terça-feira, 10 de novembro de 2020

150 - A Mortalidade - Cipriano de Cartago - (Parte 1)

 


150

Cipriano de Cartago (210-258)

A Mortalidade (Parte 1)


Introdução

– De mortalitate (A mortalidade):

Em 252, uma peste deixava mortos em quase todos os lares, pagãos e cristãos; morte era comum a ambos, e o que distinguia um de outro era o modo como era afrontada. Cipriano convida os cristãos a não temê-la, porque é partida para o encontro com o Cristo que chama a entrar na imortalidade e na felicidade eterna. Mesmo que a obra não seja de grandes proporções, é o primeiro tratado – embora não no senso técnico contemporâneo do termo – na história do cristianismo a propor uma teologia da morte.

 

Texto de Cipriano

Muitos de vós, irmãos diletíssimos, têm o espírito calmo, a fé firme e o ânimo devotado; longe de serem abalados pela extensão da mortalidade atual, qual rochedo forte e estável, quebram os assaltos impetuosos do mundo e as violentas vagas do século, sendo por elas provados, mas não vencidos.

Noto, todavia, que alguns dos fiéis sustentam o combate com menor vigor e – seja por fraqueza de caráter ou por falta de fé, seja pelos encantos da vida no século ou pela fraqueza do sexo, seja, ainda, o que é mais grave, por um erro de doutrina – não fazem valer a força divina e invencível que trazem dentro de si. Isso não é algo que se possa deixar passar em silêncio ou disfarçar; pelo contrário.

Portanto, na medida das minhas pobres forças, com a maior energia e com palavras hauridas dos livros divinos, seja reprimida a ignávia (alidade de ignavo; indolência, inércia, preguiça) de um ânimo autocondescendente, a fim de que seja realmente digno de Deus e do Cristo quem já se tornou servo de Deus e do Cristo.

Quem é soldado de Deus, irmãos caríssimos, deve reconhecer, como que colocado nos acampamentos celestiais, que já vive das realidades divinas, de maneira que não tenhamos nenhuma hesitação, nenhuma perturbação diante das procelas e dos turbilhões do mundo; pois o próprio Senhor predisse que essas coisas haveriam de vir.

Com palavras de previdente exortação, ele instruiu, ensinou, preparou e animou os membros de sua Igreja, para que pudessem suportar, quando viessem, os sofrimentos futuros – fome, guerras, terremotos e pestes – que prenunciou e profetizou que surgiriam por toda parte. E para que um medo de inesperadas e desconhecidas calamidades não nos fizesse tremer, preveniu que nos últimos tempos mais e mais se intensificariam as adversidades.

Eis que acontece o que foi predito. E, se se realiza o que foi anunciado, virá em

seguida o que foi prometido pelo próprio Senhor, que prometeu, dizendo: “Quando virdes que essas coisas sucedem, sabei que está próximo o Reino de Deus”.[1]

Aproxima-se, irmãos caríssimos, o Reino de Deus. Avizinham-se, com [este] mundo que passa, o prêmio da nossa vida, o júbilo da salvação eterna e a alegria perpétua, a posse do paraíso que perdêramos. As realidades celestes já sucedem às terrenas, as grandes às pequenas, as eternas às passageiras.

Que motivo há, pois, para ansiedade e desassossego? Quem fica inquieto e triste nesta situação, senão quem não tem esperança e fé? Temer a morte é próprio de quem não quer ir para o Cristo.

Não querer ir para o Cristo é próprio de quem não crê que começará a reinar com ele. Está escrito: “O justo vive da fé”.[2] Se és justo e vives da fé, se verdadeiramente crês em Deus, por que – seguro da promessa do Senhor de que estarás com o Cristo – não te rejubilas por seres chamado para junto dele e por ficares livre do diabo?

Assim se deu com o justo Simeão, que foi verdadeiramente um justo e observou  com plena fé os preceitos de Deus. Fora-lhe prometido, por revelação divina, que não morreria antes de ver o Cristo.

Por isso, quando o Cristo, recém-nascido, veio ao templo com sua mãe, conheceu no Espírito que havia nascido aquele de quem lhe fora profetizado. Assim que o viu, soube que estava prestes a morrer.

Alegrando-se, então, pela morte próxima e certo do chamado iminente, tomou nas mãos o menino e, bendizendo o Senhor,[3] exclamou: “Despede agora, Senhor, o teu servo, em paz, segundo a tua palavra; pois os meus olhos já viram a tua salvação”.[4]

Reconheceu assim e testemunhou que só haverá paz e repouso livre e tranquilo para os servos de Deus quando, retirados dos reboliços deste mundo, caminharmos para o porto seguro da eterna morada e quando, vencida esta morte, chegarmos à imortalidade. Essa é, com efeito, a nossa paz, a tranquilidade em que se pode confiar; a segurança estável, sólida e perpétua.

Aliás, o que há no mundo senão o combate cotidiano que se trava contra o  demônio e pelejas assíduas contra seus dardos e flechas? Nossa luta é com a avareza, com o despudor, com a ira, com a ambição; nossa batalha contínua e penosa é contra os vícios da carne e as seduções do século.

O espírito do homem, cercado e oprimido de todos os lados pela perseguição do diabo, dificilmente percebe cada um de seus golpes e a custo resiste-lhes. Pois, se a avareza é abatida, levanta-se a libido; se a libido é dominada, surge a ambição; se é desprezada a ambição, a ira exaspera, a soberba infla, a embriaguez atrai, a inveja rompe a concórdia, o ciúme destrói a amizade. És levado a maldizer e a lei divina nos proíbe isso.[5] És obrigado a jurar e isso não é lícito.[6]

Tantas perseguições sofre cotidianamente o espírito [humano], tantos perigos oprimem o seu peito; e [ainda assim] agrada-lhe estar por mais tempo aqui, entre as armas do demônio, apesar de ser mais desejável e preferível apressar os passos, por uma morte mais próxima, ao encontro do Cristo? Ele próprio nos ensina dizendo: “Em verdade, em verdade vos digo, havereis de lamentar e chorar enquanto o século se alegra; mas a vossa tristeza se converterá em alegria”.[7]

Quem não prefere não ter tristeza, quem não se apressa à alegria? Mas é o Senhor mesmo, mais uma vez, que nos declara quando a nossa tristeza se converterá em alegria: “Hei de ver-vos novamente, e o vosso coração se encherá de alegria e ninguém poderá retirá-la de vós”.[8]

Se, portanto, alegrar-se é ver o Cristo, e não pode haver outra alegria para nós que não a de ver o Cristo, que cegueira de mente, que insanidade de espírito é amar as angústias, as penas e as lágrimas do mundo, em vez de correr ao encontro da alegria que nunca nos poderá ser tirada. Isso acontece, irmãos diletíssimos, porque falta a fé; porque ninguém crê que seja verdadeiro aquilo que prometeu Deus, que é veraz e cuja palavra é eterna e inabalável para aqueles que creem.

Se um homem respeitável e bem reputado te promete alguma coisa, terás certamente confiança no promitente; não pensarás ser enganado ou iludido por alguém que sabes constante em suas palavras e ações. Quando é Deus que te fala, tu, incrédulo, hesitas com espírito desconfiado? Deus, ao partires deste mundo, te promete a imortalidade e eternidade, e tu duvidas? Isso é desconhecer a Deus por completo! Isso é ofender o Cristo, Mestre de quem crê, com o pecado da incredulidade! Isso é estar na Igreja e não ter fé dentro da própria morada da fé.

O próprio Cristo, Mestre da nossa salvação e do nosso bem, mostra o quanto convém sair do século. Pois quando seus discípulos se entristeceram por anunciar-lhes que tinha de partir, falou-lhes dizendo: “Se me amásseis, ficaríeis certamente alegres, porque vou para o Pai”.[9]

Dessa maneira ensinou e mostrou que a partida dos entes amados deste mundo é antes ocasião de alegria que de tristeza. Lembrado disso é que o bem-aventurado apóstolo Paulo declara na sua epístola: “Para mim, viver é o Cristo e morrer é lucro”.[10]

Estima, pois, o Apóstolo como a maior das vantagens já não estar mais preso pelos laços deste século, nem sujeito a pecados e vícios de carne; estar, portanto, isento de torturas e angústias, e partir, livre dos venenosos hálitos do diabo, para a alegria eterna do próprio Cristo que chama.

Mas, todavia, a alguns estranha que o contágio deste mal atinja igualmente os nossos e os gentios, como se acreditassem que se é cristão para gozar sossegado deste mundo e desta vida, imunes do contato dos males, e não para reservar-se às futuras alegrias, depois de sofrer aqui todas as adversidades.

Lastimam estes que compartilhemos com todos da mesma mortalidade. O que, porém, não haveremos de ter em comum com os demais homens, enquanto esta carne comum permanece sob a lei do primeiro nascimento?

Enquanto estamos neste mundo, somos ligados ao gênero humano pela igualdade na carne, e separados pelo Espírito. Por isso, até que este [corpo] corruptível se revista da incorrupção, o mortal receba a imortalidade e o Espírito nos conduza a Deus Pai, tudo o que há de incômodo na carne nos será comum com o gênero humano.

Assim, quando a terra [torna-se] estéril e não produz frutos, a fome não distingue ninguém. O mesmo quando uma cidade é dominada pela invasão do inimigo, o cativeiro pesa igualmente sobre todos [os habitantes]. Quando o céu sereno retém a chuva, a seca é uma só para todos. Quando um escolho fende o navio, o naufrágio é comum aos navegantes, sem exceção. Do mesmo modo a dor dos olhos, o ataque das febres e as enfermidades de todos os membros são as mesmas para nós e para os outros, enquanto carregamos neste século esta mesma carne.

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