Além disso, se o cristão acreditou que há para si uma condição e uma lei, que ele conhece e afirma, saberá [também] que lhe compete labutar mais que os outros neste século, pois será maior para ele a agressão do diabo.
A
Escritura Divina ensina e adverte, dizendo: “Filho, entrando no serviço de
Deus, permanece na justiça e temor e prepara teu espírito para a tentação”.[11]
De
novo: “Nas dores sê firme, nas humilhações tem paciência, porque o ouro e a
prata são provados pelo fogo, mas o homem, por meio das humilhações”.[12]
Assim
Jó, depois de perder os bens, de ver a morte dos filhos e de ser afligido gravemente
por chagas e vermes, não foi vencido, mas provado; e, nas suas aflições e
dores, disse, mostrando a paciência de sua alma religiosa: “Nu saí do ventre de
minha mãe, nu irei para a terra. O Senhor deu, o Senhor tirou. Como quis o
Senhor,
assim se fez. Bendito
seja o nome do Senhor”.[13]
E
quando a própria esposa, impaciente pela intensidade da dor, quisesse impeli-lo
a pronunciar uma queixa ou uma palavra de revolta contra Deus, ele respondeu
dizendo: “Falaste como uma mulher insensata. Se recebemos os bens da mão do
Senhor, por que não havemos de suportar os males? Em todas estas coisas que lhe
aconteceram, Jó não pecou por seus lábios diante do Senhor”.[14]
Por
isso o Senhor Deus dá testemunho em
seu favor: “Reparaste
o meu servo Jó? Não há na terra ninguém igual a ele, é um homem sem queixumes,
que presta culto verdadeiro a Deus”.[15]
Também
Tobias, depois de obras magníficas, depois dos muitos e gloriosos louvores de
sua misericórdia, tendo padecido a cegueira, temeu e louvou a Deus na
adversidade; pela própria desgraça corporal, cresceu no louvor.
Também
sua esposa tentou pervertê-lo, dizendo: “Onde está a tua justiça? Eis que
sofres”.[16]
Mas
ele, constante e firme no temor de Deus, armado com a fé da religião para
suportar todos os sofrimentos, não cedeu à tentação da fraca esposa diante da
dor; mas, por uma paciência ainda maior, mereceu mais diante de Deus. Por isso,
mais tarde, o anjo Rafael louva-o, dizendo: “É honroso revelar e confessar as
obras de Deus. Pois quando oravas, tu e [tua nora] Sara,
eu apresentei vossa
oração diante da glória divina, e também quando sepultavas com simplicidade os
teus mortos; porque não hesitavas em levantar e abandonar a tua refeição para
sair e velar um morto, fui enviado para provar-te. De novo me mandou Deus para curar
a ti e a tua nora Sara. Eu sou Rafael, um dos sete anjos santos que assistem e habitam
diante da glória divina”.[17]
Os
justos sempre possuíram essa paciência. Os apóstolos receberam este ensinamento
como lei do Senhor: não murmurar na adversidade, mas aceitar com paciência tudo
que acontece neste século.
E
o povo judeu sempre pecou, porque murmurava frequentemente contra Deus,
conforme atesta o Senhor Deus no livro dos Números, dizendo: “Cesse a
murmuração deles contra mim e não morrerão”.[18]
Não
se deve, portanto, irmãos diletíssimos, murmurar na adversidade, mas suportar com
paciência e coragem tudo que acontecer, pois está escrito: “Sacrifício a Deus é
um espírito atribulado; Deus não despreza o coração atribulado e humilhado”.[19]
Também
no Deuteronômio aconselha o Espírito Santo: “O Senhor teu Deus te afligirá,
mandar-te-á fome e verá se o teu coração guarda ou não os seus preceitos”.[20]
E
novamente: “O Senhor Deus vos tenta para saber se amais o Senhor vosso Deus de todo
o vosso coração e de toda a vossa alma”.[21]
Assim
Abraão agradou a Deus, pois para agradá -lo não temeu perder o filho, nem recusou
cometer filicídio.[22]
E
tu que não podes perder um filho pela lei e pela circunstância desta
mortalidade, que farias se recebesses ordem de matá-lo?
O
temor de Deus e a fé devem preparar-te para tudo: seja a perda da propriedade,
seja o contínuo e cruel tormento dos membros atingidos pela doença, seja a
triste e fúnebre perda violenta da esposa, dos filhos e dos demais entes
queridos.
Nada
disso seja para ti ocasião de tropeços, mas de luta. Nada disso quebre ou
enfraqueça a fé do cristão. Antes, que isso manifeste mais o [seu] vigor no
combate, pois toda a agressão dos males presentes não deve ser temida pela
segurança dos bens futuros.
Na
verdade, não pode haver vitória sem que tenha havido combate. Mas se houver vitória,
então será dada a coroa aos vencedores.
É
na procela que se conhece o piloto, é no combate que se prova o soldado.
Quando
não há perigo, é fraca a agitação da luta. O combate nas adversidades é uma
provação para a verdade. A árvore que tem raízes profundas não é abatida pelos
ventos; a nau bem construída é agitada pelas ondas, mas não é perfurada.
E
quando na eira se debulha a colheita, o grão forte e robusto zomba do vento,
enquanto as palhas sem força são levadas pela aragem.
Assim
o Apóstolo Paulo, depois de naufrágios e flagelos, depois de muitos e graves tormentos
da carne e do corpo, disse não ser afligido, mas corrigido pela adversidade, de
forma que quanto mais fosse atormentado, mais verdadeiramente seria provado.
“Foi-me
dado”, disse ele, “um estímulo da carne, um enviado de satanás que me
esbofeteie, para que me não venha a ensoberbecer. Por isso, três vezes pedi ao Senhor
que ele fosse afastado de mim, e o Senhor me disse: ‘Basta-te a minha graça. Pois
a força se aperfeiçoa na fraqueza’”.[23]
Quando,
portanto, irromper uma calamidade, uma fraqueza ou enfermidade, então nossa
força se aperfeiçoará, então a fé, que perseverou na tentação, será coroada, conforme
está escrito: “O vaso se prova na fornalha, e os justos no sofrimento da tribulação”.[24]
Afinal,
é isto justamente que nos diferencia dos demais homens, daqueles que não conhecem
a Deus, pois enquanto estes se queixam e murmuram da adversidade, nós na desventura
não nos afastamos da virtude e da fé, mas até nos fortalecemos na dor.
É
proveitoso para o progresso da nossa fé que neste momento as vísceras dissolvidas
em fluxo esgotem a força do corpo, que a febre interior queime a face ulcerada,
que o estômago seja dilacerado por vômitos repetidos, que os olhos ardam pela afluência
de sangue, que os pés e outros membros sejam amputados pelo contágio da podridão,
que a doença se espalhe pelas juntas, tornando-as defeituosas e paralisadas, ou
pelo corpo todo tornando obstruído o ouvido e cegos os olhos.
Diante
de tantos ímpetos de devastação e morte, quão grande é para o pecador lutar com
as energias de um ânimo inquebrantável, quão sublime é permanecer de pé entre
as ruínas do gênero humano e não jazer prostrado como aqueles que não têm
esperança em Deus.
Devemos,
pois, antes, rejubilar-nos e aproveitar o favor do tempo, porque enquanto provamos
a fortaleza da nossa fé, caminhamos para Cristo, suportando as penas pela sua estrada
estreita, e recebemos de suas próprias mãos o prêmio da vida e da fé.
Tema
morrer, sim, mas aquele que, não tendo renascido na água e no Espírito, é propriedade
do fogo e da geena.
Tema
morrer quem não participa da cruz e da paixão do Cristo. Tema morrer quem passa
desta morte a uma segunda morte. Tema morrer o que deixando o século será
atormentado pela chama inextinguível das penas eternas.
Tema
morrer quem encontra na terra uma protelação dos sofrimentos e gemidos. Muitos
dos nossos morrem nesta mortandade, mas isto quer dizer apenas que muitos dos
nossos irmãos são libertados do século.
Pois
se essa epidemia é, de fato, uma peste para judeus, gentios e demais inimigos
do Cristo, é, contudo, para os servos de Deus a viagem da salvação.
Nem
se pense que a ruína é igual para bons e maus, por verificar que morrem indistintamente
os justos e os injustos. Pois os justos são chamados para a paz, ao passo que
os injustos são arrebatados para o suplício.
O
que acontece é que aqueles recebem mais depressa a herança e estes, a pena.
Assim,
irmãos, diletíssimos, somos imprudentes e ingratos em relação aos benefícios divinos,
pois nem reconhecemos o que nos é dado.
Eis
que partem em paz, seguras de sua glória, virgens prudentes,[25] não temendo mais as ameaças da
corrupção e do lupanar do anticristo, que está prestes a vir; eis que os
meninos fogem do perigo da idade incerta e alcançam sem risco o prêmio da
castidade e inocência; eis que a jovem esposa já não teme a tormenta e evita,
pela morte prematura, o temor da perseguição e das mãos dos algozes cruéis.
Ainda
mais, pelo medo da mortalidade, animam-se os tímidos, levantam-se os abatidos,
exercitam-se os covardes, os desertores são compelidos a voltar, os gentios coagidos
a crer e a velha fileira dos veteranos é chamada ao descanso, pois um novo e numeroso
exército de ânimo mais forte, recrutado no tempo da mortalidade, vai ocupar a linha
de frente, pronto a lutar sem temor da morte, quando vier o combate.
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