terça-feira, 17 de novembro de 2020

A Mortandade - Parte 2 - Cipriano de Cartago


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Cipriano de Cartago (210-258)

A Mortalidade (Parte 2)

Além disso, se o cristão acreditou que há para si uma condição e uma lei, que ele conhece e afirma, saberá [também] que lhe compete labutar mais que os outros neste século, pois será maior para ele a agressão do diabo.

A Escritura Divina ensina e adverte, dizendo: “Filho, entrando no serviço de Deus, permanece na justiça e temor e prepara teu espírito para a tentação”.[11]

De novo: “Nas dores sê firme, nas humilhações tem paciência, porque o ouro e a prata são provados pelo fogo, mas o homem, por meio das humilhações”.[12]

Assim Jó, depois de perder os bens, de ver a morte dos filhos e de ser afligido gravemente por chagas e vermes, não foi vencido, mas provado; e, nas suas aflições e dores, disse, mostrando a paciência de sua alma religiosa: “Nu saí do ventre de minha mãe, nu irei para a terra. O Senhor deu, o Senhor tirou. Como quis o Senhor,

assim se fez. Bendito seja o nome do Senhor”.[13]

E quando a própria esposa, impaciente pela intensidade da dor, quisesse impeli-lo a pronunciar uma queixa ou uma palavra de revolta contra Deus, ele respondeu dizendo: “Falaste como uma mulher insensata. Se recebemos os bens da mão do Senhor, por que não havemos de suportar os males? Em todas estas coisas que lhe aconteceram, Jó não pecou por seus lábios diante do Senhor”.[14]

Por isso o Senhor Deus dá testemunho em

seu favor: “Reparaste o meu servo Jó? Não há na terra ninguém igual a ele, é um homem sem queixumes, que presta culto verdadeiro a Deus”.[15]

Também Tobias, depois de obras magníficas, depois dos muitos e gloriosos louvores de sua misericórdia, tendo padecido a cegueira, temeu e louvou a Deus na adversidade; pela própria desgraça corporal, cresceu no louvor.

Também sua esposa tentou pervertê-lo, dizendo: “Onde está a tua justiça? Eis que sofres”.[16]

Mas ele, constante e firme no temor de Deus, armado com a fé da religião para suportar todos os sofrimentos, não cedeu à tentação da fraca esposa diante da dor; mas, por uma paciência ainda maior, mereceu mais diante de Deus. Por isso, mais tarde, o anjo Rafael louva-o, dizendo: “É honroso revelar e confessar as obras de Deus. Pois quando oravas, tu e [tua nora] Sara,

eu apresentei vossa oração diante da glória divina, e também quando sepultavas com simplicidade os teus mortos; porque não hesitavas em levantar e abandonar a tua refeição para sair e velar um morto, fui enviado para provar-te. De novo me mandou Deus para curar a ti e a tua nora Sara. Eu sou Rafael, um dos sete anjos santos que assistem e habitam diante da glória divina”.[17]

Os justos sempre possuíram essa paciência. Os apóstolos receberam este ensinamento como lei do Senhor: não murmurar na adversidade, mas aceitar com paciência tudo que acontece neste século.

E o povo judeu sempre pecou, porque murmurava frequentemente contra Deus, conforme atesta o Senhor Deus no livro dos Números, dizendo: “Cesse a murmuração deles contra mim e não morrerão”.[18]

Não se deve, portanto, irmãos diletíssimos, murmurar na adversidade, mas suportar com paciência e coragem tudo que acontecer, pois está escrito: “Sacrifício a Deus é um espírito atribulado; Deus não despreza o coração atribulado e humilhado”.[19]

Também no Deuteronômio aconselha o Espírito Santo: “O Senhor teu Deus te afligirá, mandar-te-á fome e verá se o teu coração guarda ou não os seus preceitos”.[20]

E novamente: “O Senhor Deus vos tenta para saber se amais o Senhor vosso Deus de todo o vosso coração e de toda a vossa alma”.[21]

Assim Abraão agradou a Deus, pois para agradá -lo não temeu perder o filho, nem recusou cometer filicídio.[22]

E tu que não podes perder um filho pela lei e pela circunstância desta mortalidade, que farias se recebesses ordem de matá-lo?

O temor de Deus e a fé devem preparar-te para tudo: seja a perda da propriedade, seja o contínuo e cruel tormento dos membros atingidos pela doença, seja a triste e fúnebre perda violenta da esposa, dos filhos e dos demais entes queridos.

Nada disso seja para ti ocasião de tropeços, mas de luta. Nada disso quebre ou enfraqueça a fé do cristão. Antes, que isso manifeste mais o [seu] vigor no combate, pois toda a agressão dos males presentes não deve ser temida pela segurança dos bens futuros.

Na verdade, não pode haver vitória sem que tenha havido combate. Mas se houver vitória, então será dada a coroa aos vencedores.

É na procela que se conhece o piloto, é no combate que se prova o soldado.

Quando não há perigo, é fraca a agitação da luta. O combate nas adversidades é uma provação para a verdade. A árvore que tem raízes profundas não é abatida pelos ventos; a nau bem construída é agitada pelas ondas, mas não é perfurada.

E quando na eira se debulha a colheita, o grão forte e robusto zomba do vento, enquanto as palhas sem força são levadas pela aragem.

Assim o Apóstolo Paulo, depois de naufrágios e flagelos, depois de muitos e graves tormentos da carne e do corpo, disse não ser afligido, mas corrigido pela adversidade, de forma que quanto mais fosse atormentado, mais verdadeiramente seria provado.

“Foi-me dado”, disse ele, “um estímulo da carne, um enviado de satanás que me esbofeteie, para que me não venha a ensoberbecer. Por isso, três vezes pedi ao Senhor que ele fosse afastado de mim, e o Senhor me disse: ‘Basta-te a minha graça. Pois a força se aperfeiçoa na fraqueza’”.[23]

Quando, portanto, irromper uma calamidade, uma fraqueza ou enfermidade, então nossa força se aperfeiçoará, então a fé, que perseverou na tentação, será coroada, conforme está escrito: “O vaso se prova na fornalha, e os justos no sofrimento da tribulação”.[24]

Afinal, é isto justamente que nos diferencia dos demais homens, daqueles que não conhecem a Deus, pois enquanto estes se queixam e murmuram da adversidade, nós na desventura não nos afastamos da virtude e da fé, mas até nos fortalecemos na dor.

É proveitoso para o progresso da nossa fé que neste momento as vísceras dissolvidas em fluxo esgotem a força do corpo, que a febre interior queime a face ulcerada, que o estômago seja dilacerado por vômitos repetidos, que os olhos ardam pela afluência de sangue, que os pés e outros membros sejam amputados pelo contágio da podridão, que a doença se espalhe pelas juntas, tornando-as defeituosas e paralisadas, ou pelo corpo todo tornando obstruído o ouvido e cegos os olhos.

Diante de tantos ímpetos de devastação e morte, quão grande é para o pecador lutar com as energias de um ânimo inquebrantável, quão sublime é permanecer de pé entre as ruínas do gênero humano e não jazer prostrado como aqueles que não têm esperança em Deus.

Devemos, pois, antes, rejubilar-nos e aproveitar o favor do tempo, porque enquanto provamos a fortaleza da nossa fé, caminhamos para Cristo, suportando as penas pela sua estrada estreita, e recebemos de suas próprias mãos o prêmio da vida e da fé.

Tema morrer, sim, mas aquele que, não tendo renascido na água e no Espírito, é propriedade do fogo e da geena.

Tema morrer quem não participa da cruz e da paixão do Cristo. Tema morrer quem passa desta morte a uma segunda morte. Tema morrer o que deixando o século será atormentado pela chama inextinguível das penas eternas.

Tema morrer quem encontra na terra uma protelação dos sofrimentos e gemidos. Muitos dos nossos morrem nesta mortandade, mas isto quer dizer apenas que muitos dos nossos irmãos são libertados do século.

Pois se essa epidemia é, de fato, uma peste para judeus, gentios e demais inimigos do Cristo, é, contudo, para os servos de Deus a viagem da salvação.

Nem se pense que a ruína é igual para bons e maus, por verificar que morrem indistintamente os justos e os injustos. Pois os justos são chamados para a paz, ao passo que os injustos são arrebatados para o suplício.

O que acontece é que aqueles recebem mais depressa a herança e estes, a pena.

Assim, irmãos, diletíssimos, somos imprudentes e ingratos em relação aos benefícios divinos, pois nem reconhecemos o que nos é dado.

Eis que partem em paz, seguras de sua glória, virgens prudentes,[25] não temendo mais as ameaças da corrupção e do lupanar do anticristo, que está prestes a vir; eis que os meninos fogem do perigo da idade incerta e alcançam sem risco o prêmio da castidade e inocência; eis que a jovem esposa já não teme a tormenta e evita, pela morte prematura, o temor da perseguição e das mãos dos algozes cruéis.

Ainda mais, pelo medo da mortalidade, animam-se os tímidos, levantam-se os abatidos, exercitam-se os covardes, os desertores são compelidos a voltar, os gentios coagidos a crer e a velha fileira dos veteranos é chamada ao descanso, pois um novo e numeroso exército de ânimo mais forte, recrutado no tempo da mortalidade, vai ocupar a linha de frente, pronto a lutar sem temor da morte, quando vier o combate.


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