terça-feira, 24 de novembro de 2020

152 - A Mortalidade - Parte 3 - Cipriano de Cartago

 


152

Cipriano de Cartago (210-258)

A Mortalidade (Parte 3)

 

Afinal, irmãos caríssimos, que pode haver de mais proveitoso e necessário? Com efeito, esta epidemia que parece tão horrível e funesta põe à prova a justiça de cada um e experimenta o espírito dos homens, verificando se os sãos servem aos enfermos, se os parentes se amam sinceramente, se os senhores têm piedade dos servos enfermos, se os médicos não abandonam os doentes que imploram, se o violento reprime a violência, se o avarento, ao menos por meio da morte, abandona o ardor sempre insaciável da sua

desvairada cobiça, se os soberbos quebram o orgulho, se os desonestos refreiam a audácia, se, ao menos por terem morrido os que os ricos amavam, vendo-se à beira da morte e sem herdeiros, distribuem alguma coisa aos pobres.

Se, porém, nada mais nos proporcionasse esta mortalidade, ainda valeria muito para nós, cristãos, por este resultado que produziu: pois, ensinando-nos a não temer a morte, faz que comecemos a desejar de boa vontade o martírio.

Estamos, pois, diante não do enterro, mas do adestramento. A mortalidade é um exercício que dá ao espírito a glória da fortaleza e nos prepara para a coroa, pelo desprezo da morte.

Mas, talvez, alguém se oponha dizendo: “O que me contrista nesta mortalidade é que me havia preparado para a confissão e havia feito de todo o coração o voto de suportar o sofrimento. Como, porém, a morte me toma a dianteira, sou privado do martírio”.

Antes de tudo, o martírio não está em teu poder, mas na benemerência de Deus. Não podes, portanto, dizer que perdeste o que nem sabes se merecerás receber.

Além disso, Deus, que penetra o coração e as entranhas, vê e conhece as coisas ocultas. Ele contempla e louva, prova e examina atentamente a virtude que em ti estava preparada e dar-te-á a recompensa.

Acaso Caim, quando ofereceu a Deus o sacrifício, já matara o irmão? E, todavia, Deus, que previa o fratricídio já concebido no pensamento, condenou-o antecipadamente.

Do mesmo modo que aquela cogitação má,

aquela ideia criminosa fora manifesta a Deus, assim também quando os seus servos desejam a confissão e concebem no espírito o martírio, essa disposição será coroada pelo próprio Deus.

Uma coisa é faltar disposição para o martírio, outra é ter faltado o martírio quando havia disposição.

Tal como o Senhor te encontrar ao chamar-te, assim te julgará, pois ele mesmo o

estabeleceu, dizendo: “Saibam todas as igrejas que eu sou aquele que sonda os rins e o coração”.

Com efeito, não deseja o nosso sangue, mas procura a nossa fé. Pois nem Abraão, nem Isaac, nem Jacó foram mortos e, contudo, foram julgados dignos, pelos méritos da fé e da justiça, de serem honrados como os primeiros entre os patriarcas; e todo aquele que for encontrado fiel, justo e digno de louvor será reunido ao seu convívio.

Devemos estar lembrados de que cumpre fazer não a nossa vontade, mas a de Deus, conforme o Senhor nos mandou rezar diariamente.

Verdadeiramente é estranho e contraditório pedirmos que seja feita a vontade de Deus e não obedecermos imediatamente quando vem chamar-nos e retirar-nos deste mundo.

Resistimos e relutamos como servos rebeldes e somos levados à face de Deus com tristeza e temor, saindo do século acorrentados à irresistível lei da natureza e não pela complacente

entrega da vontade livre.

E ainda queremos receber o prêmio celeste das mãos daquele a quem só chegamos constrangidos.

Por que, pois, oramos e pedimos que venha a nós o Reino dos céus, se nos agrada o cativeiro da terra? Por que rogamos insistentemente, em preces repetidas, que se apressem os dias do Reino, se os nossos maiores desejos e votos são, antes, servir nesta terra ao diabo que reinar com Cristo?

Por último, para se tornarem mais evidentes os sinais da Divina Providência, pelos quais o Senhor, presciente do futuro, dirige os seus à verdadeira salvação, aconteceu o seguinte fato: um nosso companheiro de sacerdócio, estando esgotado pela doença e preocupado com a morte que se avizinhava, implorou para si uma prolongação da vida.

Surgiu, então, ao suplicante, já quase moribundo, um jovem de venerável majestade e beleza, de estatura elevada e nobre aspecto.

E, apesar de postar-se ao lado do moribundo, este a custo o teria visto com os seus olhos carnais, se não estivesse no limiar da morte e, por isso, em condições de contemplar uma tal figura.

Disse-lhe o jovem, sem esconder certa indignação no ânimo e na voz: “Temeis sofrer, não quereis morrer; que farei por vós?”.

A palavra é de quem censura e também de quem admoesta. É a palavra de quem cuida dos desejos futuros, em vez de permitir, aos que estão preocupados com a perseguição e seguros da morte, os desejos do século.

O nosso irmão e companheiro, na hora da morte, ouviu o que era dito para os outros.

Pois aquele que ouviu, estando prestes a morrer, só ouviu para que transmitisse. Não ouviu para si, mas para nós. Que poderia aprender para si, estando já para morrer?

Aprendeu, antes, para nós que ficamos, para que saibamos, pelo conhecimento da censura feita ao sacerdote que pedia prolongação da vida, aquilo que convém a todos nós.

E a nós também, mínimo e último, quantas vezes foi revelado, com que frequência e clareza Deus se dignou ensinar-nos, a fim de que o afirmássemos e pregássemos pública e assiduamente, que não devem ser chorados os irmãos libertados do século pelo chamado divino.

Sabemos que não os perdemos, mas que eles nos precedem, que, retirando-se, avançam na nossa frente, à semelhança dos que viajam ou navegam.

Saibamos, pois, que devemos lembrar-nos deles, mas não chorá-los, nem usar, aqui, vestes pretas, quando eles, lá, já vestiram a veste branca.

Não devemos, pois, dar ocasião aos gentios para que nos repreendam, com razão e direito, dizendo que choramos como extintos e perdidos aqueles que afirmamos viverem junto de Deus e que não provamos com o coração a fé que manifestamos com palavras.

Traímos assim a nossa fé e a nossa esperança; parece ser falso, fingido e simulado o que dizemos.

De nada adianta alardear virtudes por palavras e revelar o contrário por fatos.

Já o apóstolo Paulo censura e incrimina os que se entristecem pelo falecimento dos seus. Diz ele: “Não queremos, irmãos, deixar-vos na ignorância a respeito dos que dormem, para que não vos entristeçais, como os que não possuem a esperança.  Se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, creiamos também que Deus conduzirá com Jesus os que nele dormiram”.

É próprio dos que não têm esperança, diz ele, contristar-se com a morte dos entes queridos.

Nós, porém, que vivemos na esperança, cremos em Deus e estamos seguros de que o Cristo sofreu e ressuscitou por nós, nós que permanecemos no Cristo e somos nele e por ele ressuscitados, por que não queremos deixar este século, por que choramos e lamentamos, como perdidos, os nossos mortos?

O próprio Cristo, nosso Deus e Senhor, nos adverte, dizendo: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim viverá, ainda que morra, e todo aquele que vive e crê em mim não morrerá eternamente”.

Se cremos no Cristo, se temos fé nas suas palavras e promessas, também não morremos eternamente; caminhemos, pois, com alegria e tranquilidade em direção do Cristo, com quem havemos de vencer e reinar para sempre.

Porque, ao mesmo tempo que morremos, somos pela morte conduzidos à imortalidade; nem é possível que venha a vida eterna sem que tenhamos saído do mundo. Isso, portanto, não significa mais um fim, mas a passagem e a emigração para o eterno, depois de percorrido o caminho do tempo.

Quem não se apressará em chegar ao melhor? Se o apóstolo Paulo prega, dizendo: “A nossa pátria está no céu, donde esperamos o Senhor Jesus Cristo, que transformará o nosso corpo miserável, configurando-o com o seu corpo glorioso”, quem não deseja com ardor ser mudado

e transformado na figura do Cristo e chegar mais depressa à majestade da glória celeste?

Que seremos assim, o Cristo igualmente promete, quando ora ao Pai para que estejamos ao seu lado, habitemos com ele nas moradas eternas e alegremo-nos nos domínios celestes: “Pai, quero que os que me deste estejam comigo onde eu estarei, e que eles vejam a glória que tu me deste antes que o mundo fosse feito”.

Quem está para partir para a morada do Cristo, para a glória do Reino celeste, não deve chorar, nem se lamentar; antes, conforme a promessa do Senhor e a fé do seu Verbo verídico, deve rejubilar-se por esta partida e migração.

Lemos, ainda, ter sido assim transportado Henoc, que agradou a Deus, conforme o testemunho do Gênesis: “Henoc agradou a Deus e não foi mais visto, porque Deus o transportou”.

Por ter sido agradável ao olhar de Deus, mereceu ter sido afastado do contágio deste século.

 

O que você destaca no texto?

Como ele serve para a sua espiritualidade?


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