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Cipriano de Cartago (210-258)
A Mortalidade (Parte 3)
Afinal,
irmãos caríssimos, que pode haver de mais proveitoso e necessário? Com efeito,
esta epidemia que parece tão horrível e funesta põe à prova a justiça de cada um
e experimenta o espírito dos homens, verificando se os sãos servem aos
enfermos, se os parentes se amam sinceramente, se os senhores têm piedade dos
servos enfermos, se os médicos não abandonam os doentes que imploram, se o
violento reprime a violência, se o avarento, ao menos por meio da morte,
abandona o ardor sempre insaciável da sua
desvairada cobiça, se
os soberbos quebram o orgulho, se os desonestos refreiam a audácia, se, ao
menos por terem morrido os que os ricos amavam, vendo-se à beira da morte e sem
herdeiros, distribuem alguma coisa aos pobres.
Se,
porém, nada mais nos proporcionasse esta mortalidade, ainda valeria muito para nós,
cristãos, por este resultado que produziu: pois, ensinando-nos a não temer a
morte, faz que comecemos a desejar de boa vontade o martírio.
Estamos,
pois, diante não do enterro, mas do adestramento. A mortalidade é um exercício
que dá ao espírito a glória da fortaleza e nos prepara para a coroa, pelo desprezo
da morte.
Mas,
talvez, alguém se oponha dizendo: “O que me contrista nesta mortalidade é que
me havia preparado para a confissão e havia feito de todo
o coração o voto de suportar o sofrimento. Como, porém, a morte me toma a
dianteira, sou privado do martírio”.
Antes
de tudo, o martírio não está em teu poder, mas na benemerência de Deus. Não podes,
portanto, dizer que perdeste o que nem sabes se merecerás receber.
Além
disso, Deus, que penetra o coração e as entranhas, vê e conhece as coisas ocultas.
Ele contempla e louva, prova e examina atentamente a virtude que em ti estava preparada
e dar-te-á a recompensa.
Acaso
Caim, quando ofereceu a Deus o sacrifício, já matara o irmão? E, todavia, Deus, que previa o
fratricídio já concebido no pensamento, condenou-o antecipadamente.
Do
mesmo modo que aquela cogitação má,
aquela ideia
criminosa fora manifesta a Deus, assim também quando os seus servos desejam a
confissão e concebem no espírito o martírio, essa disposição será coroada pelo próprio
Deus.
Uma
coisa é faltar disposição para o martírio, outra é ter faltado o martírio
quando havia disposição.
Tal
como o Senhor te encontrar ao chamar-te, assim te julgará, pois ele mesmo o
estabeleceu, dizendo:
“Saibam todas as igrejas que eu sou aquele que sonda os rins e o coração”.
Com
efeito, não deseja o nosso sangue, mas procura a nossa fé. Pois nem Abraão, nem
Isaac, nem Jacó foram mortos e, contudo, foram julgados dignos, pelos méritos
da fé e da justiça, de serem honrados como os primeiros entre os patriarcas; e todo
aquele que for encontrado fiel, justo e digno de louvor será reunido ao seu
convívio.
Devemos
estar lembrados de que cumpre fazer não a nossa vontade, mas a de Deus, conforme o Senhor nos mandou rezar
diariamente.
Verdadeiramente
é estranho e contraditório pedirmos que seja feita a vontade de Deus e não
obedecermos imediatamente quando vem chamar-nos e retirar-nos deste mundo.
Resistimos
e relutamos como servos rebeldes e somos levados à face de Deus com tristeza e
temor, saindo do século acorrentados à irresistível lei da natureza e não pela
complacente
entrega da vontade
livre.
E
ainda queremos receber o prêmio celeste das mãos daquele a quem só chegamos
constrangidos.
Por
que, pois, oramos e pedimos que venha a nós o Reino dos céus, se nos agrada o cativeiro
da terra? Por que rogamos insistentemente, em preces repetidas, que se apressem
os dias do Reino, se os nossos maiores desejos e votos são, antes, servir nesta
terra ao diabo que reinar com Cristo?
Por
último, para se tornarem mais evidentes os sinais da Divina Providência, pelos quais
o Senhor, presciente do futuro, dirige os seus à verdadeira salvação, aconteceu
o seguinte fato: um nosso companheiro de sacerdócio, estando esgotado pela doença
e preocupado com a morte que se avizinhava, implorou para si uma prolongação da
vida.
Surgiu,
então, ao suplicante, já quase moribundo, um jovem de venerável majestade e
beleza, de estatura elevada e nobre aspecto.
E,
apesar de postar-se ao lado do moribundo, este a custo o teria visto com os
seus olhos carnais, se não estivesse no limiar da morte e, por isso, em
condições de contemplar uma tal figura.
Disse-lhe
o jovem, sem esconder certa indignação no ânimo e na voz: “Temeis sofrer, não
quereis morrer; que farei por vós?”.
A
palavra é de quem censura e também de quem admoesta. É a palavra de quem cuida
dos desejos futuros, em vez de permitir, aos que estão preocupados com a perseguição
e seguros da morte, os desejos do século.
O
nosso irmão e companheiro, na hora da morte, ouviu o que era dito para os
outros.
Pois
aquele que ouviu, estando prestes a morrer, só ouviu para que transmitisse. Não
ouviu para si, mas para nós. Que poderia aprender para si, estando já para
morrer?
Aprendeu,
antes, para nós que ficamos, para que saibamos, pelo conhecimento da censura
feita ao sacerdote que pedia prolongação da vida, aquilo que convém a todos nós.
E
a nós também, mínimo e último, quantas vezes foi revelado, com que frequência e
clareza Deus se dignou ensinar-nos, a fim de que o afirmássemos e pregássemos pública
e assiduamente, que não devem ser chorados os irmãos libertados do século pelo chamado
divino.
Sabemos
que não os perdemos, mas que eles nos precedem, que, retirando-se, avançam na
nossa frente, à semelhança dos que viajam ou navegam.
Saibamos,
pois, que devemos lembrar-nos deles, mas não chorá-los, nem usar, aqui, vestes
pretas, quando eles, lá, já vestiram a veste branca.
Não
devemos, pois, dar ocasião aos gentios para que nos repreendam, com razão e
direito, dizendo que choramos como extintos e perdidos aqueles que afirmamos
viverem junto de Deus e que não provamos com o coração a fé que manifestamos
com palavras.
Traímos
assim a nossa fé e a nossa esperança; parece ser falso, fingido e simulado o
que dizemos.
De
nada adianta alardear virtudes por palavras e revelar o contrário por fatos.
Já
o apóstolo Paulo censura e incrimina os que se entristecem pelo falecimento dos
seus. Diz ele: “Não queremos, irmãos, deixar-vos na ignorância a respeito dos
que dormem, para que não vos entristeçais, como os que não possuem a esperança.
Se cremos que Jesus morreu e
ressuscitou, creiamos também que Deus conduzirá com Jesus os que nele
dormiram”.
É
próprio dos que não têm esperança, diz ele, contristar-se com a morte dos entes
queridos.
Nós,
porém, que vivemos na esperança, cremos em Deus e estamos seguros de que o
Cristo sofreu e ressuscitou por nós, nós que permanecemos no Cristo e somos
nele e por ele ressuscitados, por que não queremos deixar este século, por que
choramos e lamentamos, como perdidos, os nossos mortos?
O
próprio Cristo, nosso Deus e Senhor, nos adverte, dizendo: “Eu sou a
ressurreição e a vida. Quem crê em mim viverá, ainda que morra, e todo aquele
que vive e crê em mim não morrerá eternamente”.
Se
cremos no Cristo, se temos fé nas suas palavras e promessas, também não morremos
eternamente; caminhemos, pois, com alegria e tranquilidade em direção do Cristo,
com quem havemos de vencer e reinar para sempre.
Porque,
ao mesmo tempo que morremos, somos pela morte conduzidos à imortalidade; nem é
possível que venha a vida eterna sem que tenhamos saído do mundo. Isso,
portanto, não significa mais um fim, mas a passagem e a emigração para o eterno,
depois de percorrido o caminho do tempo.
Quem
não se apressará em chegar ao melhor? Se o apóstolo Paulo prega, dizendo: “A
nossa pátria está no céu, donde esperamos o Senhor Jesus Cristo, que
transformará o nosso corpo miserável, configurando-o com o seu corpo glorioso”, quem não deseja com ardor ser mudado
e transformado na
figura do Cristo e chegar mais depressa à majestade da glória celeste?
Que
seremos assim, o Cristo igualmente promete, quando ora ao Pai para que
estejamos ao seu lado, habitemos com ele nas moradas eternas e alegremo-nos nos
domínios celestes: “Pai, quero que os que me deste estejam comigo onde eu
estarei, e que eles vejam a glória que tu me deste antes que o mundo fosse
feito”.
Quem
está para partir para a morada do Cristo, para a glória do Reino celeste, não deve
chorar, nem se lamentar; antes, conforme a promessa do Senhor e a fé do seu Verbo
verídico, deve rejubilar-se por esta partida e migração.
Lemos,
ainda, ter sido assim transportado Henoc, que agradou a Deus, conforme o testemunho
do Gênesis: “Henoc agradou a Deus e não foi mais visto, porque Deus o
transportou”.
Por
ter sido agradável ao olhar de Deus, mereceu ter sido afastado do contágio
deste século.
O
que você destaca no texto?
Como
ele serve para a sua espiritualidade?
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