domingo, 2 de janeiro de 2022

191 - Hilário de Poitiers (315-368) - Introdução

 

191

Hilário de Poitiers (315-368)

Introdução

 

Hilário de Poitiers foi um bispo na cidade romana de Pictávio, atual Poitiers, na Gália, (França) e é um dos Doutores da Igreja. Muitas vezes chamado de "Martelo dos Arianos" e o "Atanásio do ocidente", seu nome vem da palavra grega para "feliz" ou "alegre".

Hilário, Bispo de Poitiers, Padre da Igreja, valoroso defensor da fé cristã contra as heresias no século IV, nasceu na Gália, ao que parece por volta de 315.

A cronologia é um tanto incerta, mas sabe-se que por ocasião do concílio de Béziers (356) já era bispo da cidade de Poitiers. Acredita-se que tenha sido eleito bispo em 350, aproximadamente. Dispomos de poucas informações sobre sua vida. O mais provável é que se tenha convertido ao cristianismo já adulto, abraçando a fé com grande fervor. É o que dão a entender certas páginas de tom autobiográfico no início do tratado da Trindade.

Foi casado, e, ao que parece, teve uma filha, Abra, a quem dirigiu uma epístola, Ad filiam Abram, sobre cuja autenticidade pairam dúvidas.

O início do seu episcopado foi relativamente tranquilo. Neste período de sua vida, dedicado à pregação e aos encargos do ministério, escreveu o seu comentário ao Evangelho segundo Mateus.

O arianismo que ameaçava a Igreja do Oriente ainda não causava perturbação na Gália; porém, durante o sínodo de Milão, em 355, quando o Imperador obrigou os bispos a confirmar a condenação de Atanásio e enviou para o exílio os que se opuseram a sua vontade, Hilário viu-se envolvido na controvérsia ariana, rompendo, juntamente com os demais bispos da Gália, com os partidários do imperador.

No sínodo de Béziers (356), seus argumentos em favor da doutrina ortodoxa não foram ouvidos, e os bispos inimigos pediram sua condenação, sendo ele, então, exilado na Frígia pelo Imperador.

O exílio, motivado pelo zelo na defesa da fé, veio a ser benéfico, pois seu pensamento se enriqueceu em contato com a teologia do Oriente, mais desenvolvida que a ocidental. Data desta época o início do seu livro Adversum Valentem et Ursacium. Também redigiu o Tratado sobre a Trindade, que antes foi chamado Da fé contra os arianos, e o livro De Synodis.

Enquanto permaneceu no exílio procurou desenvolver um trabalho em prol da unidade. Os bispos orientais, em grande parte, não aceitavam a definição de Nicéia porque julgavam ser próximo do sabelianismo o termo homousios.

Hilário tentou realizar uma obra de reconciliação procurando nas fórmulas de fé proclamadas por eles o que pudesse haver de válido.

Tentou um acordo com os partidários do termo homoiousios, atribuído ao Filho, pois poderia ter um sentido ortodoxo.

Também no concílio de Selêucia defendeu o uso daquele termo, pois acreditava que este uso não implicava adesão à heresia sabeliana. Sua obra Contra Constantium fala dos debates que ali tiveram lugar.

Após este concílio Hilário liderou a resistência contra a fórmula de transição proposta aos Padres, segundo a qual o Filho era apenas semelhante ao Pai.

Também nesta época teve conhecimento de que os bispos da Gália tinham chegado a um entendimento com os adversários da fé, o que o levou a escrever o segundo livro, Adversum Valentem et Ursacium.

Procurou ter contato com o Imperador em Constantinopla para defender diante dele suas posições, porém, não foi bem-sucedido.

Em protesto contra o símbolo de fé promulgado pelo concílio de Rímini, que propunha uma profissão de fé inaceitável, escreveu o Contra Constantium.

Em 360 9 ou 361 voltou ao Ocidente, onde trabalhou para restabelecer a ortodoxia. Em 361 obteve a condenação, no sínodo de Paris, dos bispos arianos de Arles e Périgueux. Manteve no cargo os outros bispos arianos que reconheceram o erro, mesmo tendo desagradado com isso os defensores mais severos da ortodoxia.

Em 364, por ocasião do advento do novo Imperador, Valentiniano, reuniu-se com outros bispos, tentando afastar o bispo ariano de Milão, Auxêncio, mas foi obrigado a voltar a Poitiers. Escreveu então sua obra Contra Auxencium.

Na Gália retomou seu trabalho de escritor e pastor. Redigiu obras exegéticas, o Tratactus super Psalmos, o Tratactus Mysteriorum e a terceira parte do livro Contra Valentem et Ursacium. Compôs também hinos litúrgicos.

Morreu em 367, talvez em 13 de janeiro, ou então em 368; a data permanece incerta.

 

O Tratado sobre a Trindade e as heresias trinitárias

Sua obra situa-se, portanto, no contexto da luta da ortodoxia contra a heresia ariana, que quase chegou a comprometer a Igreja inteira.

O tratado De Trinitate reflete o momento em que o arianismo ameaçava a fé cristã em suas próprias raízes.

Esta ameaça, Hilário a sentiu como poucos. Trata-se de um tempo particularmente importante para a formação da teologia, quando a afirmação da verdade era vital para uma Igreja que via sua fé questionada tanto pelo arianismo como pelo ressurgimento das tendências sabelianas, pela gnose, sempre presente, e pelos diversos movimentos que se opunham violentamente à ortodoxia.

Hilário esteve no centro do conflito combatendo em duas frentes: de um lado, contra o arianismo, quase triunfante; de outro contra o modalismo, que persistia, reaparecendo sob novas formas; sem deixar de pôr-se em guarda contra outras heresias que, segundo ele mesmo, venciam-se umas às outras com seus argumentos falaciosos, mas eram todas vencidas pela fé da Igreja.

O Tratado da Trindade procura, primeiramente, repelir o arianismo, proclamando, contra os seguidores de Ário, a divindade do Filho.

Ário (280-336) foi presbítero em Alexandria. Sua doutrina, que negava ser Cristo Deus verdadeiro, foi condenada pelo concílio de Nicéia de 325, que definiu a consubstancialidade do Pai e do Filho. Mesmo depois da condenação, os arianos continuavam a pregar a subordinação do Filho ao Pai, dizendo ser o Pai o único princípio ingênito sem origem, eterno e imutável. O Verbo seria criatura, essencialmente diferente de Deus Pai, recebendo a sua divindade por participação, por ter sido criado, não por geração. O Filho seria, para eles, mutável, fraco, sem as prerrogativas divinas pertencentes apenas a Deus Pai. Sendo uma criatura, embora mais excelente que todas as criaturas, não podia merecer a adoração, reservada somente ao Pai eterno.

Opondo-se ao subordinacionismo ariano, Hilário via-se, por outro lado, obrigado a refutar também os argumentos dos partidários de Sabélio, que, a pretexto de defender a unidade divina, negavam a distinção de pessoas.

Respondendo aos sabelianos, Hilário demonstra que a fé cristã não somente não professa dois deuses, como também não nega a subsistência pessoal do Verbo.

Segundo Sabélio, que pretendia defender a divina monarquia, o próprio Deus Pai se encarnara na Virgem Maria, não havendo Trindade, mas apenas modos diferentes de manifestação de Deus, para nós.

Semelhantes às ideias sabelianas são as defendidas por Práxeas, Noeto de Smirna e todos os mentores e seguidores de movimentos de caráter modalista e monarquiano.

O motivo que levou Hilário a escrever também contra os partidários de Sabélio foi a necessidade de refutar as acusações dos arianos de que o homoousios proclamado em Nicéia era uma forma de sabelianismo, por não estabelecer, segundo eles, a distinção de pessoas entre o Pai e o Filho.

Não se pode esquecer também que o gnosticismo continuava a exercer sua influência na mente dos fiéis. Por isso Hilário incluiu as doutrinas gnósticas na discussão contra os hereges, que procuravam justificar-se com base nelas.

O autor refere-se às doutrinas gnósticas dos maniqueus, seguidores das ideias de Mani, ou Maniqueu, que ensinava haver dois princípios, o Bem e o Mal, e pregava a oposição radical entre o espírito bom e a matéria má.

Segundo o maniqueísmo, o homem, prisioneiro da matéria, só poderia libertar-se pela gnose. A verdadeira gnose traria a libertação do espírito, que está aprisionado no corpo material, sensível e essencialmente mau.  Jesus seria o profeta que leva ao verdadeiro conhecimento, mas a revelação definitiva seria dada por Mani, que se identificava a si mesmo com o Paráclito.

Importante figura do movimento gnóstico, citado pelo autor, foi Valentino, que pregava a doutrina dos trinta eons, afirmando a transcendência absoluta do Deus invisível que produz as diversas emanações, sendo o Logos aquele que traz a gnose pela qual os “espirituais” se salvam, e ao qual já se referiam Ireneu e Tertuliano.

Em seu livro, Hilário também faz referência a Hieracas, que não aceitava a ressurreição da carne, e a Ebion, fundador da seita dos ebionitas, que negavam a divindade de Jesus.

Para os membros desta seita, que parece ter tido origem no primeiro século, mas reapareceu no século IV, o Filho não é eterno. Foi gerado por uma ordem de Deus (ex Verbum) e não tem subsistência pessoal antes da encarnação. Fotino, discípulo de Marcelo de Ancira, é um partidário desta heresia.

Valendo-se dos textos tanto do Antigo como do Novo Testamento, o autor repele os argumentos dos adversários e contradiz as ideias errôneas sobre o verdadeiro Deus.

Não se detém, porém, apenas nessa atitude negativa, de oposição, pois deseja sobretudo instruir os fiéis, mostrando a verdade revelada nas Escrituras, e converter os hereges, levando-os a renunciar a seus erros e aderir à verdade.

É importante acentuar que, em todas as doutrinas heterodoxas enumeradas acima, encontra-se a negação, expressa de diversas formas, da divindade de Cristo: seja pela afirmação de Ário, de que somente o Pai seria realmente Deus, subordinando-se a Ele o Filho como um deus de segunda classe, a quem se negava a plena divindade; seja pela defesa da doutrina monarquiana de um Deus único (como o entendia Sabélio), que apenas se revestia de aparências distintas “para nós”, permanecendo em si mesmo um (como uma única pessoa); seja pela afirmação de que o Filho (como também o Espírito) consistia em uma força ou energia emanada do Deus único; ou pela tese de que o Filho o era apenas por adoção.

Para a Igreja sempre foi essencial defender-se destas tentativas da razão humana para entender a Deus.

Elas ofereciam modelos de certo modo inteligíveis, mas, na realidade, atraiçoavam a verdade do Mistério divino.

O que Hilário e todos os Santos Padres proclamam é o fato da nossa salvação, operada pela Trindade Santa, salvação esta entendida tradicionalmente como deificação.

É o que se acha em jogo na luta travada por Hilário e pelos outros Padres contra as heresias, tanto trinitárias como cristológicas.

 

Ideias centrais do Tratado sobre a Trindade

Hilário propõe-se a demonstrar a importância do conhecimento de Deus, distorcido pelos opositores, sabelianos ou subordinacionistas. Mostra que o Filho é gerado pelo Pai e é Deus como o Pai é Deus. Não é, porém, a mesma Pessoa. Não se trata de um outro deus, não se trata de aparência, de modo de falar, ou alguma forma de subordinação do Filho, mas sim da mesma natureza.

O Verbo é Filho, não é criatura; é Deus, consubstancial ao Pai. A intenção de Hilário, como dos outros Padres, na defesa da ortodoxia da doutrina trinitária contra as heresias, é basicamente soteriológica.

Trata-se, em última análise, da nossa salvação, operada por Deus que se revela como Trindade. Porque, se Cristo não é Deus, consubstancial ao Pai, então nós não somos salvos, já que a salvação só pode ser obra divina. Sendo Deus de Deus, o Filho assumiu nossa humanidade para dar-lhe sua vida divina, para fazê-la participar da sua glória e imortalidade.

Com São Paulo, Hilário mostra como Cristo, sendo Deus, despojou-se da sua glória, deixando a “forma de Deus” para assumir a “forma de servo”, sem deixar de ser Deus.

Tendo cumprido todo o mistério da sua aniquilação, pela sua ressurreição retornou à glória que tinha junto do Pai “antes que o mundo existisse”, e levou consigo a humanidade assumida.

Pela ressurreição, a natureza humana de Cristo é plenamente glorificada e, como pelo mistério da encarnação o Verbo assumiu nossa natureza, toda a humanidade está, desde então, destinada a participar da sua glória; pois, pela encarnação, o Filho, além de assumir a humanidade própria à qual se uniu hipostaticamente, também assumiu, embora de maneira diversa, a humanidade inteira, e, pela assunção da nossa natureza, todos nós fomos incorporados a Ele

A nossa “carne” (ao homem todo) foi concedida a participação na divindade do Verbo, que se dignou assumir a “carne”

Por esse “admirabile comercium”, a nós é dado receber a glória, tendo nossa carne frágil revestida da incorruptibilidade gloriosa. O Verbo se fez carne para restaurar no homem a imagem do verdadeiro Deus, a qual fora perdida pelo pecado.

Participando do Verbo, imagem do Pai, a cuja imagem foram feitos, os homens podem conhecer a Deus, e esse conhecimento traz a bem-aventurança. Isso se realiza pelo Verbo feito carne, que habitou entre nós, e que renova o homem segundo sua imagem.

 Participação na divindade, conhecimento de Deus, salvação: é o que traz ao homem o Verbo, revelação de Deus.

A verdadeira fé declara que o Filho é Deus, que deve ser reconhecido na humildade da carne e pelas obras realizadas, que dão testemunho da sua divindade. Se a vida eterna consiste em conhecer a Deus, estarão afastados dela aqueles que não reconhecem o Filho como Deus.

 

A obra de Santo Hilário situa-se na grande corrente da Tradição, que defende o pressuposto fundamental da experiência cristã da salvação como ação divina e divinizante, proclamando com todo o vigor a verdade da divindade de Jesus Cristo, verdadeiro Deus, que se fez um de nós para nos salvar, concedendo-nos participar de sua divindade.

Divisão do Tratado

O Tratado está dividido em 12 livros, subdivididos em capítulos.

O livro I começa com alguns traços biográficos, falando de sua busca de Deus e conversão. Refere-se às heresias e apresenta um plano geral do trabalho.

No livro II encontra-se um resumo da doutrina da Trindade.

O livro III trata do mistério da distinção e unidade do Pai e do Filho.

No livro IV o autor apresenta a carta de Ário a Alexandre de Alexandria e demonstra a divindade de Filho a partir de citações tiradas do Antigo Testamento.

O livro V também cita o Antigo Testamento para demonstrar a divindade do Filho, que não é um outro Deus ao lado do Pai.

O livro VI refere-se novamente à carta de Ário e argumenta a partir do Novo Testamento.

O livro VII demonstra, também a partir do testemunho da Escritura, que o Pai e o Filho são um só Deus porque têm a mesma natureza.

O livro VIII trata da unidade do Pai e do Filho. O Espírito Santo é demonstração e manifestação desta unidade.

O livro IX refuta os argumentos arianos sobre a inferioridade do Filho. É preciso distinguir em Cristo as duas naturezas e os diversos estágios, antes da encarnação, na sua vida terrena e depois da ressurreição.

O livro X apresenta uma interpretação original do problema do sofrimento de Cristo e da morte de Jesus por nós.

O livro XI fala da diferença entre a humanidade e a divindade de Cristo e da glorificação da humanidade de Cristo e nossa glorificação juntamente com Ele.

O livro XII fala do nascimento eterno do Verbo e termina com a Oração que resume a sua fé na Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, e com a súplica para que Deus conserve a sua fé.

Hilário é o primeiro dos Padres do Ocidente a formular um De Trinitate com tal amplidão, por isso é importante seu estudo.  



BIBLIOGRAFIA: Patrística Vol. 22 - Tratado sobre a Santíssima Trindade - Santo Hilário de Poitiers - Paulus. 2005.

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