domingo, 24 de abril de 2022

198 - Hilário de Poitiers (315-368) - Tratado da Santíssima Trindade - Livro Segundo (Capítulos 6 - 11)

 



198

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Segundo (Capítulos 6 - 10)


Divisão do Tratado

O Tratado está dividido em 12 livros, subdivididos em capítulos.

O livro I começa com alguns traços biográficos, falando de sua busca de Deus e conversão. Refere-se às heresias e apresenta um plano geral do trabalho.

No livro II encontra-se um resumo da doutrina da Trindade.

 

LIVRO SEGUNDO

 

Capítulo 6.

1.      O Pai é Aquele a partir de quem tudo o que é subsiste. Ele é, em Cristo e por Cristo, a origem de tudo. Tem em si mesmo o seu ser, não recebendo de outra parte o que é; Ele o tem de si mesmo e em si mesmo. É infinito, porque não está contido em nada, mas tudo está contido nele.

2.      Está sempre fora do espaço, porque não pode ser contido. É sempre anterior ao tempo, porque o tempo procede dele.

3.      Dilata a tua imaginação, se julgas ter um fim último. Saberás que sempre está presente. Sempre poderás procurar o lugar onde se encontra, pois seu ser não tem fim.

4.      Sobre Ele, a palavra falha, sua natureza não poderá ser circunscrita. Revolve os tempos, mais uma vez, sempre encontrarás que Ele é; quando faltarem os números para calcular, ao falar dele, a Deus nunca falta o ser sempre.

5.      Excita a inteligência, e abraça com a mente o todo; nada segures.

6.      O todo tem resto, mas este resto está sempre no todo. Portanto, não há todo quando há resto, nem o que resta é o todo. Pois resto é uma porção; todo, porém, é o que é inteiro. Deus está todo em toda parte, onde quer que esteja.

7.      Aquele fora do qual nada existe ultrapassa os limites da inteligência, Ele, a quem pertence o ser sempre. Esta é a verdade do mistério de Deus, este é o nome da natureza imperscrutável, no Pai, Deus invisível, inefável, infinito.

8.      A palavra se cala ao tentar dizê-lo, o pensamento, ao querer investigá-lo, se embota, e, ao querer abarcá-lo, a inteligência se estreita.

9.      Como dissemos, o nome de sua natureza é Pai, mas é somente Pai. Não tem outra origem, à maneira humana, o seu ser Pai. Ele mesmo é ingênito, eterno, sempre tendo em si o ser sempre.

10.  É conhecido somente pelo Filho, porque ao Pai ninguém conhece a não ser o Filho, e aquele a quem o Filho quiser revelá-lo, e ao Filho ninguém conhece, senão o Pai (cf. Mt 11,27). Sua ciência é mútua, o conhecimento recíproco é perfeito. Visto que ao Pai ninguém conhece, senão o Filho, pensemos sobre o Pai o mesmo que o Filho que revela, única testemunha fiel (cf. Ap 1,5).

 

Capítulo 7.

11.  A respeito do Pai, deveria mais sentir do que dizer, pois tenho consciência de que toda palavra é impotente para dizer aquilo que deveria ser dito. Tem de ser pensado como invisível, incompreensível, eterno.

12.  Aliás, que Ele seja em si mesmo, e de si mesmo e por si mesmo e que seja invisível, incompreensível e imortal, nestes atributos está a confissão de sua honra, a indicação do sentido e certo âmbito de conjecturas, mas a linguagem humana sucumbe, e as palavras não o explicam tal como é.

13.  Pois se ouves que é em si mesmo, este pensamento não concorda com a razão humana.

14.  Para nós existe uma distinção entre conter e ser contido, e será uma coisa aquilo que é contido, e outra aquilo em que se contém. Se ainda aceitas que seja por si mesmo, ninguém é, para si mesmo, o doador e o dom.

15.  Se é imortal, então haverá algo que não vem dele, e que a ele não esteja sujeito; nem é só o que pelo enunciado desta palavra é reivindicado por outro.

16.  Se é incompreensível, não estará em lugar nenhum, porque se nega que possa ser alcançado.

17.  Se é invisível, está privado de tudo aquilo que pode ser visto. Falha, portanto, a nossa palavra ao enunciá-lo, pois a nossa linguagem não é capaz de dizer como é Deus e quão grande Ele é.

18.  A perfeita ciência consiste em conhecer a Deus de tal forma que, embora não o ignoremos, saibamos, no entanto, que é inenarrável. Deve ser crido, escutado, adorado e é preciso falar de seus benefícios.

 

Capítulo 8.

19.  Arrancados de inacessíveis lugares sem portos, estamos em agitado mar alto; não é possível, sem perigo, retroceder nem progredir. Há, no entanto, maiores dificuldades em ir adiante do que as já encontradas.

20.  O Pai é como é, e, como é, deve ser crido.

21.  A mente se atemoriza em querer atingir o Filho, e treme ao dizer qualquer palavra. Pois é progenitura do Ingênito.

22.  Um que procede do que é Um, Verdadeiro do Verdadeiro, Vivo do que vive, perfeito do que é perfeito, virtude da virtude, sabedoria da sabedoria, glória da glória, imagem de Deus invisível, forma do Pai ingênito.

23.  Que ideia teremos a respeito da geração do Unigênito pelo Ingênito? Várias vezes, clama dos céus o Pai: Este é o meu Filho dileto, em quem tenho meu prazer (Mt 3.17).

24.  Não há cisão nem divisão, pois é impassível o que gera e é imagem do Deus invisível o que dele nasce, como atesta: O Pai está em mim e eu no Pai (Jo 10.38).

25.  Não se trata de adoção, pois é verdadeiro Filho de Deus e clama: Quem me vê, vê também o Pai (Jo 14.9). Mas também não lhe é concedido o ser por meio de uma ordem, como aos outros seres, pois o Unigênito vem do que é Um e tem a vida em si, assim como tem a vida Aquele que o gerou, pois diz: Assim como o Pai tem a vida em si mesmo, também deu ao Filho ter a vida em si mesmo (Jo 5.26).

26.  O que é Filho também não é parte do Pai. Atesta-o o Filho, ao dizer: Tudo o que é do Pai, é meu (Jo 16.15); e de novo: Tudo o que é meu é teu, e tudo o que é teu é meu (Jo 17.10).

27.  Tudo o que o Pai tem deu-o ao Filho. Também o Apóstolo o comprova quando diz: Porque nele habita toda a plenitude da divindade corporalmente (Cl 2.9).

28.  Não é próprio da natureza que aquilo que é parte seja todo. O perfeito vem do perfeito, porque quem tem tudo, tudo deu. Não se julgue não ter dado, porque tem, ou não ter, porque deu.

 

Capítulo 9

29.  O segredo deste nascimento pertence a um e outro. Talvez alguém atribua à própria inteligência não poder compreender o mistério desta geração, quando não entende de modo algum quem seja o Pai nem, também, o Filho.

30.  Saiba que maior dor sinto eu em ignorar isto. Não sei, não pergunto; consolo-me, no entanto.

31.  Os arcanjos não sabem, os anjos não ouviram, os séculos não alcançam, o Profeta não vê, o Apóstolo não interrogou, o próprio Filho não declarou. Cesse a dor das queixas.

32.  A ti, quem quer que sejas, que investigas estas coisas, eu não chamo para as alturas, não atraio para a amplidão, não levo às profundezas.

33.  Acaso não poderás ignorar com serenidade o nascimento do Criador, se ignoras a origem da criatura? Pergunto apenas se tu te reconheces como gerado e compreendes o que de ti foi gerado.

34.  Não indago de onde te veio a capacidade de sentir, como foste agraciado com a vida, donde recebeste a inteligência, como existe em ti o olfato, o sentido da visão, o ouvido.

35.  Sem dúvida ninguém desconhece o que faz; pergunto donde vem aquilo que concedes aos que geras, como lhes incutes os sentidos, iluminas seus olhos, dá-lhe o coração. Estas coisas, descreve-as, se puderes.

36.  Tens, portanto, o que não conheces, e dás o que não compreendes, tranquilamente ignorante do que te pertence, insolentemente néscio do que diz respeito a Deus.

 

Capítulo 10.

37.  Ouve, portanto, o Pai ingênito, ouve o Filho unigênito; escuta: O Pai é maior do que eu (Jo 14,28); ouve: Eu e o Pai somos Um (Jo 10,30); ouve: Quem me vê, vê também o Pai (Jo 14,9); ouve: Eu saí do Pai (Jo 16,28); Aquele que está no seio do Pai: Tudo que o Pai tem, entregou-o ao Filho; O Filho tem a vida em si mesmo, assim como o Pai tem a vida em si mesmo (Jo 5,26), escuta ser o Filho imagem, sabedoria, virtude, glória de Deus, e entende o Espírito Santo a proclamar: Sua geração, quem a descreverá? (Is 53,8) e tenta censurar o Senhor, que atesta: Ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho quiser revelar (Mt 11,27).

38.  Procura esgueirar-te no interior deste segredo e, entre o único Deus ingênito e o único Deus unigênito, tenta mergulhar no mistério do inconcebível nascimento.

39.  Começa, avança, persiste; mesmo que eu saiba que não conseguirás chegar, pelo menos alegrar-me-ei com o teu adiantamento, pois quem piedosamente procura, sem descanso, o infinito, ainda que afinal não o alcance, há de tirar proveito do seu progresso. Aí termina a compreensão das palavras.

 

Capítulo 11

40.  O Filho procede do Pai que tem o ser, é o Unigênito que procede do Ingênito, descendência do Pai, Vivente que procede do Vivente.

41.  Como o Pai tem a vida em si mesmo, também foi dado ao Filho ter a vida em si mesmo. É o Perfeito que procede do Perfeito, porque é todo do todo, sem divisão nem separação, porque um está no outro, e a plenitude da divindade está no Filho.

42.  É o Incompreensível que procede do Incompreensível, não é conhecido por ninguém, mas somente um conhece o outro.

43.  É o Invisível que procede do Invisível, por ser a imagem do Deus invisível, e porque quem vê o Filho, vê também o Pai.

44.  Um procede do outro, porque são Pai e Filho, possuindo a mesma natureza da divindade, porque são Um. Deus de Deus, Deus unigênito que procede do único Deus ingênito; não dois deuses, mas Um, que procede do que é Um; não são dois ingênitos, porque o que nasceu procede do inato, em nada diferindo um do outro, porque a vida do Vivente está no que vive.

45.  Estas ideias sobre a natureza da divindade, apenas as tocamos de leve, sem atingir por inteiro a sua compreensão, mas compreendendo ser incompreensível aquilo sobre o que falamos.

46.  Dizes que não há lugar para a fé, se nada se pode compreender. Ao contrário, aqui se declara o mistério da fé, porque ela sabe ser incompreensível o que procura.

 

O que você destaca em cada capítulo?

Como este texto auxilia sua espiritualidade?

domingo, 10 de abril de 2022

Páscoa: Festa da Vida

 



Páscoa: festa da vida

O significado dos 50 dias da Páscoa para Santo Agostinho

 

1.      Certamente, Agostinho de Hipona (354-430) celebrou a Páscoa ao longo de toda a sua vida. Não deixou de lembrar a noite de 24 para 25 de abril do ano 387, na qual ele recebeu o batismo e se revestiu de Cristo para ser uma nova criatura em Deus, tornando realidade as palavras que ele havia lido no códice do Apóstolo Paulo no jardim de Milão, obedecendo à voz que dizia: «Tolle, lege» (pegue e leia!), porque lá tinha recebido o convite para «despojar-se das obras das trevas e revestir-se com as armas da luz» (Rm 13.13).

2.      A teologia batismal e o convite a viver com fidelidade o chamado à santidade recebido no batismo estarão sempre presentes em suas homilias e seus escritos.

3.      Da mesma forma o pensamento da celebração da Páscoa e o fato de celebrá-la todos os anos; não porque Cristo necessite morrer muitas outras vezes, mas para que, a cada ano, os fiéis façam memória do ocorrido, para que esqueçam a centralidade do mistério da ressurreição de Cristo na vida dos cristãos.

4.      Portanto, o que aconteceu uma vez definitivamente, se repete todos os anos para avivar a memória e a fé dos fiéis: «A repetição anual da solenidade é equivalente a uma repetição do que Cristo Senhor sofreu por nós na sua morte única.

5.      O que ocorreu apenas uma vez na história para a renovação da nossa vida é comemorada durante todo o ano para perpetuar a sua memória» (sermão 206,1).

6.      Para santo Agostinho a Páscoa é a festa da vida. O cristão é chamado para morrer para sua vida de pecado e ressuscitar para uma nova vida, uma vida plena com Cristo. Então, no dizer de Santo Agostinho em um dos seus sermões de Páscoa, é necessário morrer para o homem velho e para o pecado, para viver em Cristo.

7.      Somente neste caminho, quando chegar a morte corporal, poderemos realmente viver com Deus: «Creia, você que já é batizado: a velha vida já morreu, a morte foi recebida na Cruz e sepultada no batismo. A vida antiga, na qual você experimentou o mal, foi enterrada. Ressuscite para a (vida) nova! Viva bem! Viva para viver! Viva de maneira que, quando você morrer, não morra» (s. 229 E, 3).

8.      Por outro lado, a Páscoa foi para Santo Agostinho um tempo em que se antecipa a alegria da vida eterna com Deus, pois é o tempo de cantar Aleluia, ou seja, «Louvado seja Deus». Precisamente, o louvor será a principal ocupação dos bem-aventurados na abençoada vida eterna:

9.      «Com razão, meus irmãos, a Igreja mantém a antiga tradição de cantar o Aleluia durante estes cinquenta dias. Aleluia e louvor a Deus são a mesma coisa. Com ele nos é antecipado, simbolicamente, no meio de nossas fadigas, o que faremos em nosso descanso. Com efeito, quando, após o trabalho do tempo presente, chegarmos a ele, a nossa única ocupação será o louvor de Deus. Toda a nossa atividade se reduzirá no Aleluia. O que significa Aleluia? “Louvai ao Senhor”» (s. 252, 9).

10.  O tempo da Páscoa é símbolo da vida eterna com Deus, onde o ser humano poderá desfrutar para sempre de Deus e louvá-lo.

11.  É, portanto, um tempo de esperança e de consolação, que antecipa, litúrgica e misteriosamente, a alegria eterna do céu, onde a pessoa poderá amar, louvar, contemplar a Deus e finalmente relaxar.

12.  Isto é o que Santo Agostinho ressalta em um dos seus sermões de Páscoa, antecipando, de alguma forma, a célebre frase que conclui sua obra A Cidade de Deus:

13.  «Façamos destes dias um símbolo do dia sem fim. Façamos do lugar da mortalidade um símbolo do tempo da imortalidade. Corramos para a casa eterna. Felizes são aqueles que vivem em sua casa, Senhor; te louvarão pelos séculos eternos. Diz a lei, a Escritura, a Verdade: precisamos chegar à casa de Deus que está nos céus. Ali nós entoaremos louvores a Deus, não apenas cinquenta dias, mas, como está escrito, pelos séculos dos séculos. Nós o veremos, o amaremos e o louvaremos; não desaparecerá a visão, nem se esgotará o amor, nem se calará o louvor. Tudo será eterno, nada terá fim» (s. 254, 8).

14.  Para Agostinho, o Aleluia torna-se um viático para caminhante e para o peregrino da cidade de Deus. Poder cantar o Aleluia no tempo presente é um incentivo e encorajamento para continuar percorrendo o caminho com alegria, apesar das dificuldades e problemas, sabendo que somos aguardados pelo Reino eterno e a pela vida eterna com Deus.

15.  O Aleluia é, pois, um canto de peregrinos, de viandantes que sabem que nesta terra eles não têm morada perpétua e se destinam a Deus: «Também neste tempo de nossa peregrinação cantemos Aleluia como viático para nosso conforto; o Aleluia é agora, para nós, canção dos viajantes. Por um caminho cansativo, avançamos para a pátria, um lugar de paz, onde, depostas todas nossas ocupações, teremos não mais do que o Aleluia» (s. 255, 1).

16.  De fato os cinquenta dias do tempo da Páscoa são interpretados por Agostinho simbolicamente, como a soma de quarenta, representando o trabalho e a fadiga da vida contemporânea, à qual deve ser adicionado o dez do denário prometido aos trabalhadores fieis e perseverantes que trabalham na vinha do Senhor.

17.  Por isso o tempo pascal para santo Agostinho tem um sentido profundamente escatológico, como ele costuma repetir em muitos de seus sermões:

18.  «Mas, uma vez tenhamos vivido santamente o número quarenta, ou seja, uma vez que vivemos santamente nesta dispensação temporária, caminhando em conformidade com os preceitos de Deus, receberemos como salário o denário que corresponde aos fiéis (…). Portanto, acrescente o salário do denário ao número quarenta santamente vivido e surgirá o número cinquenta, que simboliza a futura Igreja, onde Deus será louvado para sempre» (s. 252, 11).

19.  E dentro deste simbolismo pascal, se multiplica cinquenta por três, número da Trindade e se adiciona três, obtendo-se, assim, cento cinquenta e três, o número de peixes apanhados pelos Apóstolos após a ressurreição de Cristo na pesca milagrosa:

20.  «Mas, como todos foram chamados à vida santa do número quarenta em nome da Trindade e a receber o denário, multiplique o número cinquenta por três e se obterá cento e cinquenta. “Acrescente-lhe o mistério da Trindade e terá cento e cinquenta e três, o número de peixes que foi pego na direita” (s. 252, 11).

21.  Finalmente, a Páscoa é para santo Agostinho, entre outros elementos que poderíamos destacar, um tempo de alegria, sabendo que a morte não é o fim, mas, depois da morte vem a ressurreição e a vida. Por isto assinala santo Agostinho que os cinquenta dias pascais constituem um momento de alegria e felicidade que deve empapar toda a existência do cristão:

22.  «Estes dias que se seguem à paixão de nosso Senhor, e nos quais cantemos o Aleluia a Deus, são para nós dias de festa e alegria» (s. 228, 1).

 

 

23.  (fonte: http://www.agustinosrecoletos.com/2014/04/para-santo-agostinho-pascoa-e-a-festa-da-vida/?lang=pt-pt)