quarta-feira, 27 de julho de 2022

207 Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Quinto (Capítulos 1 - 10)

 

207
Hilário de Poitiers (315-368)
O Tratado da Santíssima Trindade
Livro Quinto (Capítulos 1 - 10)

Divisão do Tratado
O Tratado está dividido em 12 livros.
O livro I começa autobiografia. Refere-se às heresias e apresenta um plano geral do trabalho.
O livro II é um resumo da doutrina da Trindade.
O livro III trata do mistério da distinção e unidade do Pai e do Filho.
No livro IV o autor apresenta a carta de Ário a Alexandre de Alexandria e demonstra a divindade de Filho a partir de citações tiradas do Antigo Testamento.
O livro V também cita o Antigo Testamento para demonstrar a divindade do Filho, que não é um outro Deus ao lado do Pai.

 LIVRO QUINTO

Capítulo 1.

1.      Respondendo, nos livros anteriores, às insensatas afirmações dos hereges, não ignorávamos que, levados pela necessidade de contradizê-las, nossa resposta, tanto quanto nosso silêncio, poderiam abalar os ouvintes.

2.      Quando a afirmação profana do infiel diz ser Deus um só, a fé autêntica não pode, piedosamente, negar que haja um só Deus. A consciência também não pode falar sobre Ele sem perigo, pois corre o risco de antes confirmar do que negar a impiedade.

3.      A opinião da mente humana certamente julgará inepto e sem razão pensar que negar o irreligioso possa ser, ao mesmo tempo, confessarse irreligioso, já que a piedade em confessar condena a impiedade em negar, e não concorda com a razão, que se afirme com proveito o que, com proveito, se destrói.

4.      A mente humana, no entanto, não tendo a prudência necessária para compreender a sabedoria divina, sendo estulta, se comparada com a prudência celeste, só percebe na medida de sua fragilidade e aprova segundo a incapacidade de sua natureza. Que ela se torne estulta para poder apreciar a Deus e, reconhecendo a sua própria indigência e consentindo na sabedoria de Deus, não seja prudente segundo a sabedoria humana, mas aceite o que é aprovado segundo Deus, passando da reconhecida estultice do mundo para a sabedoria de Deus.

5.      A herética sutileza da estulta sabedoria, servindo-se da ocasião de enganar, confessa um só Deus, baseando-se na autoridade da Lei e dos Evangelhos, onde se diz: Ouve, Israel, o Senhor teu Deus é um só (Dt 6,4; Mc 12,29). Não ignora quão grande é o perigo, tanto da resposta quanto do silêncio, por esperar de ambos a oportunidade para a impiedade, já que, se o silêncio conivente confirmasse a santidade da afirmação, usurpada infielmente, de que Deus é um só, o Filho de Deus não seria Deus, pois Deus é e permanece um; porém se se contradissesse esta sua ímpia declaração, a resposta, sem a afirmação, não conservaria a verdade da fé evangélica, já que, conforme a profissão de nossa fé, Deus é um; assim recairíamos na impiedade da outra heresia ao declarar que o Deus uno é Pai e Filho.

6.      Desta forma, a sabedoria do mundo, que para Deus é estultice, enganaria sob a capa de branda e pestífera simplicidade, pois isto serviria de base para sua profissão de fé, que, impiamente, ou aceitaríamos, ou negaríamos.

7.      Por isso, há perigo de obterem de nós a confissão de que o Filho de Deus não seja Deus, porque Deus é um só, ou exigirem a necessária heresia, se parecêssemos pregar, ao confessar Deus Pai e Deus Filho, um único Deus, conforme a ímpia opinião de Sabélio.

8.      E assim, neste seu modo de pregar um só Deus, ou se excluiria o outro, ou não seria, por causa do outro, um só, ou apenas seriam um pelo nome, porque a unidade desconheceria um outro e um outro não permitiria a unicidade e não seria possível que dois fossem um.

 

Capítulo 2.

9.      Mas nós, tendo alcançado a sabedoria de Deus que, para o mundo, é loucura, começamos em ordem nossa resposta, tendo em vista a confissão salutar e sincera da fé do Senhor e a fim de manifestar a fraudulência da doutrina viperina.

10.  Para conseguir uma abertura para a demonstração da verdade, sem nos enredarmos no perigo de uma ímpia declaração, conduzimo-nos com moderação entre ambos os extremos sem negar o Deus único e proclamando a Deus e Deus, pela autoridade daquele pelo qual foi anunciado o Deus uno.

11.  Ensinamos que Deus é Um, porém não é uma só pessoa. Não o dividimos numa diversidade de deuses, mas também não professamos a distinção só pelos nomes.

12.  Demonstramos que existe Deus e Deus, embora tenhamos adiado o estudo mais completo da unidade para mais tarde.

13.  Os Evangelhos atestam muito bem que o único Deus foi pregado retamente por Moisés. Por outro lado, Moisés, que prega o Deus único, dá a garantia de que nos Evangelhos se ensina fielmente haver Deus e Deus.

14.  Assim não se contradiz a autoridade, pois a resposta decorrente da autoridade é que não é lícito negar que o Filho seja Deus, pelo fato de, para Israel, Deus ser um só, já que quem confessa ser Deus o Filho de Deus é o mesmo autor da prescrição de se pregar um só Deus.

 

Capítulo 3.

15.  Segue, portanto, a ordem das questões a mesma ordem dos temas propostos, já que é esta a sentença de ímpia sedução apresentada: Conhecemos um único Deus verdadeiro, aqui também, neste segundo livro, a pergunta consiste em saber se o Filho de Deus é verdadeiro Deus. Pois, sem dúvida, a sutileza do engenho herético se adaptou a esta ordem, dizendo primeiro: único Deus, em seguida, confessando único verdadeiro Deus, para, com isto, afastar o filho de Deus da natureza e da verdade de Deus, já que, se a verdadeira natureza existe em um só, esta natureza não poderia pertencer senão a um só.

16.  Portanto, não há nenhum lugar para a ambigüidade, e estou certo de que, pregando Moisés um único Deus, deve-se entender ter ele indicado, a respeito do Filho, que era Deus.

17.  Tornemos a estudar as declarações das mesmas autoridades e indaguemos se teria Moisés ensinado que deveríamos entender que é Deus verdadeiro Aquele a quem indicou como Deus.

18.  Ninguém duvida de que a natureza e as propriedades demonstram a verdade das coisas, como, por exemplo, se diz que o verdadeiro trigo é aquele disposto em espiga, cercado de praganas e folículos cruzados, moído como farinha, cozido como pão, tomado como alimento, dando-se na natureza de pão e de dom.

19.  Portanto, já que o poder da natureza demonstra a verdade, vejamos se é Deus verdadeiro Aquele a quem Moisés indicou como Deus.

20.  Depois falaremos do Deus uno, que é o Deus verdadeiro, e mencionaremos o tema anunciado: a confirmação de que Deus uno e verdadeiro existe no Pai e no Filho que subsistem pessoalmente, para que não se interponha uma perigosa suspeita e a expectativa ansiosa não traga cansaço.

 

Capítulo 4.

21.  Depois de termos recebido, por meio dela, o conhecimento de Deus, a criação do mundo indica ser Deus o Filho de Deus. Pergunto, então, por que ainda se nega ser Ele verdadeiro Deus. Não há dúvida de que pelo Filho tudo existe. Segundo o Apóstolo: Tudo por Ele, e nele (Cl 1,16).

22.  Se tudo é por Ele, e tudo veio do nada, e nada existe a não ser por Ele, quero saber onde falta a verdade de Deus naquele em quem não falta nem a natureza nem o poder de Deus. Pois usou o poder de sua natureza para que existissem os seres que não existiam e fossem feitos aqueles que lhe agradassem. Porque Deus viu que tudo era bom (cf. Gn 1,25).

 

Capítulo 5.

23.  A Lei não emprega outra indicação a não ser a das pessoas, ao dizer: E disse Deus: “Faça-se o firmamento” (Gn 1,6), e ao acrescentar: E Deus fez o firmamento (Gn 1,7). No restante, nem distinguiu a virtude, nem separou a natureza, nem mudou o nome, quanto dava, apenas, o conhecimento de quem dizia para indicar quem fazia.

24.  A designação do que fala não o priva da verdade da natureza e do poder, pelo contrário, sublinha com mais propriedade a sua verdade.

25.  Dar eficácia à palavra pertence à natureza, pela qual o que faz pode realizar aquilo que diz. Mas por que não será verdadeiro o que faz, se é verdadeiro o que diz, quando, à verdade da palavra, se segue a realidade da obra? É Deus o que diz, é Deus o que faz. Se na palavra (naquilo que diz) há a verdade, pergunto por que negá-la na obra (naquilo que faz), a não ser, talvez, que seja verdadeiro ao dizer e não seja verdadeiro ao fazer.

26.  Temos então em Deus, Filho de Deus, a verdade da natureza. É Deus, é Criador, é filho de Deus, pode tudo. É pouco que possa o que quer, porque o poder pertence sempre à vontade, mas, além disso, também pode fazer aquilo que lhe é dito, pois pertence ao perfeito poder que a natureza do que faz possa aquilo mesmo que indica a palavra do que fala.

27.  Se algo pode ser dito, o mesmo também pode ser realizado, e a operação que se identifica com as palavras possui a natureza da verdade. Na verdade, o Filho de Deus não é um Deus falso, nem um Deus adotivo, nem é Deus somente pelo nome, mas é verdadeiro Deus.

28.  Não há necessidade de apresentar algum argumento diferente daquele do adversário que deseja provar que não seja verdadeiro Deus; para mim, é bastante que tenha a natureza e o nome de Deus, porque é Deus, por quem tudo foi feito.

29.  Isto a criação do mundo me revelou sobre Ele. Deus se iguala ao nome de Deus, a verdade se identifica com a obra da verdade. Como se dá a conhecer o Deus poderoso pela palavra, assim também se dá a conhecer o Deus poderoso nos seus feitos.

30.  Depois disto, pergunto, na confissão do Pai e do Filho, com que autoridade se nega a verdade da natureza de quem possui em plenitude o poder do nome e o nome do poder?

 

Capítulo 6.

31.  É preciso que o leitor se lembre de que, ao calar-me agora sobre isto, não o faço por me esquecer ou ter receio do que os hereges costumam objetar, apresentando as palavras: O Pai é maior do que Eu (Jo 14,28) e outras semelhantes, que, ou são ignoradas ou são compreendidas de tal forma que por elas se entende não estar no Filho a natureza do verdadeiro Deus.

32.  Convém à ordem de nossas respostas começar pelas proposições contrárias, para que, calcando as pegadas da ímpia crença com os passos da pia pregação e, passando por este caminho profano e irreligioso, apaguem-se as marcas deixadas pela mentirosa doutrina.

33.  Adiadas, portanto, e reservadas para o fim as mensagens evangélicas e apostólicas, a luta contra os ímpios se concentra sobre a Lei e os Profetas, para que seja repelida a invenção da falaz perversidade pelos mesmos ditos com que tentam enganar.

34.  Não há meio de se entender a verdade, a não ser que se descubra ser falso o que se objeta contra a verdade. E isto, para a absoluta desonra dos mentirosos, se as próprias mentiras servirem à verdade.

35.  É parecer geral do senso comum não se unir o falso ao verdadeiro, nem poder ficar juntos, por mútuo assentimento, estes gêneros de coisas, porque, pela diferença dos gêneros, havendo naturezas contrárias, nunca as coisas discordes se unem, nem concordam as que são diversas, nem é comum a ambas o que lhes é estranho.

 

Capítulo 7.

36.  Se há um Deus verdadeiro e um falso, pergunto: como se entenderá a palavra: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança (Gn 1,26)? As palavras enunciam o sentido, o sentido é o movimento da razão, a verdade incita o movimento da razão.

37.  Pelas palavras seguimos o sentido, pelo sentido entendemos a razão, pela razão apreendemos a verdade. Pergunto em que não será verdadeiro, à semelhança daquele que diz para si mesmo, Aquele a quem foi dito: Façamos, o homem à nossa imagem e semelhança, pois sem dúvida este dito brota do afeto e da intenção do que diz.

38.  Aquele que diz: Façamos, refere-se ao que não discute com Ele o que irá fazer, por não ser estranho, nem fraco, mas poderoso para fazê-lo. Daí a palavra. Sem dúvida o que falava entendia que seria compreendido aquilo que disse.

 

Capítulo 8.

39.  Para que a verdade da natureza e da operação seja manifestada mais plenamente, Aquele que, pelas palavras, expressava seu pensamento, submeteu, segundo a razão natural, o sentido à verdade, dizendo: à nossa imagem e semelhança.

40.  Onde está aqui o falso Deus, a quem o verdadeiro Deus diz: à nossa imagem e semelhança? Nossa não significa unicidade de pessoa, não diz diversidade, não diz diferença. Pois o homem foi feito à comum imagem, de acordo com a verdade da declaração.

41.  A união do falso e do verdadeiro não existe. Deus, que fala, fala a Deus: o homem é criado à imagem do Pai e do Filho. O nome não discorda, a natureza não é diferente.

42.  É uma só a forma da imagem segundo a qual foi o homem criado. E no meio disto, onde desaparece a verdade, se permanece entre ambos a comunhão na obra, assim como a verdade da comum imagem?

43.  Para mim, ainda não chegou o tempo de resolver esta questão; mais tarde demonstraremos segundo que imagem de Deus Pai e de Deus Filho foi criado o homem. Por enquanto veremos se não é verdadeiro Deus aquele a quem o verdadeiro Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança.

44.  Distingue, se puderes, nesta comunhão de imagem o verdadeiro e o falso e, com herético furor, divide o que é indivisível. Pois são Um e o homem, criado à sua imagem e semelhança, é um.

 

Capítulo 9.

45.  Prossigamos em ordem a leitura, para que a verdade, sempre coerente consigo mesma, não seja mudada pelos tropeços da falsidade. E Deus fez o homem, à imagem de Deus o fez (Gn 1,27). A imagem é comum: Deus fez o homem à imagem de Deus. A quem nega ser o Filho de Deus verdadeiro Deus, pergunto à imagem de que Deus entende ter sido o homem feito por Deus.

46.  Contudo, lembre-se sempre: tudo pelo Filho, não aconteça que, por herética compreensão, se atribua a operação só a Deus Pai. Se, portanto, à imagem de Deus Pai, por meio de Deus Filho, o homem foi criado, será também criado à imagem do Filho, porque ninguém recusa ao Filho as palavras: à nossa imagem e semelhança.

47.  A palavra divina manteve nas palavras a verdade da divindade que as obras confirmavam nas ações, para que o homem, criado à imagem de Deus, figurasse Deus e significasse Deus, sem privar Deus de sua verdade, já que, na comunhão da imagem, é Deus verdadeiro Aquele que, na realização da obra, é reconhecido como Deus Filho.

 

Capítulo 10.

48.  Ó extrema insensatez da mente desesperada! Ó estulta temeridade da cega impiedade! Se ouves Deus e Deus, se ouves nossa imagem, por que subordinas o verdadeiro ao não verdadeiro? Por que misturas o natural e o falso? Por que, sob o nome de religião, destróis a religião? Por que, ao afirmar um só Deus, e um Deus verdadeiro, tentas fazer com que o Deus verdadeiro não seja senão um (uma só pessoa)?

49.  Ainda não faço calar teus discursos insensatos com as palavras evangélicas e apostólicas; nestas o Pai e o Filho, não pela pessoa, mas por natureza, são Um e verdadeiro Deus; mas, enquanto isto, a Lei, por si só, te dá a morte.

50.  Acaso diz ela que existe um Deus verdadeiro e um Deus não verdadeiro? Acaso, em relação a ambos, emprega um nome diferente do nome de natureza? Disse: Deus e Deus, aquela Lei que declarou que há um só Deus. Mas por que digo somente disse?

51.  Proclamou Deus verdadeiro e Deus verdadeiro, pela verdade da imagem. Serviu-se, primeiro, para designá-lo, do nome da natureza. Depois se referiu à verdade da natureza segundo sua essência. Pois, como o que foi feito foi criado segundo a imagem de ambos, não pode consistir a partir do não verdadeiro, porque ambos são o Deus verdadeiro.

 

O que você destaca no texto e colo ele serve para sua espiritualidade?

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