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Hilário de
Poitiers (315-368)
O Tratado da Santíssima Trindade
Livro Quinto
(Capítulos 1 - 10)
Divisão do Tratado
O Tratado está dividido em 12
livros.
O livro I começa autobiografia. Refere-se
às heresias e apresenta um plano geral do trabalho.
O livro II é um resumo da
doutrina da Trindade.
O livro III trata do mistério da
distinção e unidade do Pai e do Filho.
No livro IV o autor apresenta a carta de Ário a Alexandre de Alexandria
e demonstra a divindade de Filho a partir de citações tiradas do Antigo
Testamento.
O livro V também cita o Antigo Testamento para demonstrar a divindade
do Filho, que não é um outro Deus ao lado do Pai.
Capítulo 1.
1.
Respondendo, nos livros anteriores, às
insensatas afirmações dos hereges, não ignorávamos que, levados pela
necessidade de contradizê-las, nossa resposta, tanto quanto nosso silêncio,
poderiam abalar os ouvintes.
2.
Quando a afirmação profana do infiel diz ser
Deus um só, a fé autêntica não pode, piedosamente, negar que haja um só Deus. A
consciência também não pode falar sobre Ele sem perigo, pois corre o risco de
antes confirmar do que negar a impiedade.
3.
A opinião da mente humana certamente julgará
inepto e sem razão pensar que negar o irreligioso possa ser, ao mesmo tempo,
confessarse irreligioso, já que a piedade em confessar condena a impiedade em
negar, e não concorda com a razão, que se afirme com proveito o que, com
proveito, se destrói.
4.
A mente humana, no entanto, não tendo a
prudência necessária para compreender a sabedoria divina, sendo estulta, se
comparada com a prudência celeste, só percebe na medida de sua fragilidade e
aprova segundo a incapacidade de sua natureza. Que ela se torne estulta para
poder apreciar a Deus e, reconhecendo a sua própria indigência e consentindo na
sabedoria de Deus, não seja prudente segundo a sabedoria humana, mas aceite o
que é aprovado segundo Deus, passando da reconhecida estultice do mundo para a
sabedoria de Deus.
5.
A herética sutileza da estulta sabedoria,
servindo-se da ocasião de enganar, confessa um só Deus, baseando-se na
autoridade da Lei e dos Evangelhos, onde se diz: Ouve,
Israel, o Senhor teu Deus é um só (Dt 6,4; Mc 12,29). Não ignora
quão grande é o perigo, tanto da resposta quanto do silêncio, por esperar de
ambos a oportunidade para a impiedade, já que, se o silêncio conivente
confirmasse a santidade da afirmação, usurpada infielmente, de que Deus é um só,
o Filho de Deus não seria Deus, pois Deus é e permanece um; porém se se
contradissesse esta sua ímpia declaração, a resposta, sem a afirmação, não
conservaria a verdade da fé evangélica, já que, conforme a profissão de nossa
fé, Deus é um; assim recairíamos na impiedade da outra heresia ao declarar que
o Deus uno é Pai e Filho.
6.
Desta forma, a sabedoria do mundo, que para Deus
é estultice, enganaria sob a capa de branda e pestífera simplicidade, pois isto
serviria de base para sua profissão de fé, que, impiamente, ou aceitaríamos, ou
negaríamos.
7.
Por isso, há perigo de obterem de nós a
confissão de que o Filho de Deus não seja Deus, porque Deus é um só, ou
exigirem a necessária heresia, se parecêssemos pregar, ao confessar Deus Pai e
Deus Filho, um único Deus, conforme a ímpia opinião de Sabélio.
8.
E assim, neste seu modo de pregar um
só Deus, ou se excluiria o outro,
ou não seria, por causa do outro, um só, ou apenas seriam um pelo nome, porque
a unidade desconheceria um outro e um outro não permitiria a unicidade e não
seria possível que dois fossem um.
Capítulo 2.
9.
Mas nós, tendo alcançado a sabedoria de Deus
que, para o mundo, é loucura, começamos em ordem nossa resposta, tendo em vista
a confissão salutar e sincera da fé do Senhor e a fim de manifestar a
fraudulência da doutrina viperina.
10. Para
conseguir uma abertura para a demonstração da verdade, sem nos enredarmos no
perigo de uma ímpia declaração, conduzimo-nos com moderação entre ambos os
extremos sem negar o Deus único e proclamando a Deus e Deus, pela autoridade
daquele pelo qual foi anunciado o Deus uno.
11. Ensinamos
que Deus é Um, porém não é uma só pessoa. Não o dividimos numa diversidade de
deuses, mas também não professamos a distinção só pelos nomes.
12. Demonstramos
que existe Deus e Deus, embora tenhamos adiado o estudo mais completo da
unidade para mais tarde.
13. Os
Evangelhos atestam muito bem que o único Deus foi pregado retamente por Moisés.
Por outro lado, Moisés, que prega o Deus único, dá a garantia de que nos
Evangelhos se ensina fielmente haver Deus e Deus.
14. Assim
não se contradiz a autoridade, pois a resposta decorrente da autoridade é que
não é lícito negar que o Filho seja Deus, pelo fato de, para Israel, Deus ser
um só, já que quem confessa ser Deus o Filho de Deus é o mesmo autor da prescrição
de se pregar um só Deus.
Capítulo 3.
15. Segue,
portanto, a ordem das questões a mesma ordem dos temas propostos, já que é esta
a sentença de ímpia sedução apresentada: Conhecemos
um único Deus verdadeiro, aqui também, neste segundo livro, a
pergunta consiste em saber se o Filho de Deus é verdadeiro Deus. Pois, sem
dúvida, a sutileza do engenho herético se adaptou a esta ordem, dizendo
primeiro: único Deus, em
seguida, confessando único verdadeiro Deus,
para, com isto, afastar o filho de Deus da natureza e da verdade de Deus, já
que, se a verdadeira natureza existe em um só, esta natureza não poderia
pertencer senão a um só.
16. Portanto,
não há nenhum lugar para a ambigüidade, e estou certo de que, pregando Moisés
um único Deus, deve-se entender ter ele indicado, a respeito do Filho, que era
Deus.
17. Tornemos
a estudar as declarações das mesmas autoridades e indaguemos se teria Moisés
ensinado que deveríamos entender que é Deus verdadeiro Aquele a quem indicou
como Deus.
18. Ninguém
duvida de que a natureza e as propriedades demonstram a verdade das coisas,
como, por exemplo, se diz que o verdadeiro trigo é aquele disposto em espiga,
cercado de praganas e folículos cruzados, moído como farinha, cozido como pão,
tomado como alimento, dando-se na natureza de pão e de dom.
19. Portanto,
já que o poder da natureza demonstra a verdade, vejamos se é Deus verdadeiro
Aquele a quem Moisés indicou como Deus.
20. Depois
falaremos do Deus uno, que é o Deus verdadeiro, e mencionaremos o tema
anunciado: a confirmação de que Deus uno e verdadeiro existe no Pai e no Filho
que subsistem pessoalmente, para que não se interponha uma perigosa suspeita e
a expectativa ansiosa não traga cansaço.
Capítulo 4.
21. Depois
de termos recebido, por meio dela, o conhecimento de Deus, a criação do mundo
indica ser Deus o Filho de Deus. Pergunto, então, por que ainda se nega ser Ele
verdadeiro Deus. Não há dúvida de que pelo Filho tudo existe. Segundo o
Apóstolo: Tudo por Ele, e nele (Cl
1,16).
22. Se
tudo é por Ele, e tudo veio do nada, e nada existe a não ser por Ele, quero
saber onde falta a verdade de Deus naquele em quem não falta nem a natureza nem
o poder de Deus. Pois usou o poder de sua natureza para que existissem os seres
que não existiam e fossem feitos aqueles que lhe agradassem. Porque Deus viu que
tudo era bom (cf. Gn 1,25).
Capítulo 5.
23. A
Lei não emprega outra indicação a não ser a das pessoas, ao dizer: E
disse Deus: “Faça-se o firmamento” (Gn 1,6), e ao acrescentar: E
Deus fez o firmamento (Gn 1,7). No restante, nem distinguiu a
virtude, nem separou a natureza, nem mudou o nome, quanto dava, apenas, o
conhecimento de quem dizia para indicar quem fazia.
24. A
designação do que fala não o priva da verdade da natureza e do poder, pelo
contrário, sublinha com mais propriedade a sua verdade.
25. Dar
eficácia à palavra pertence à natureza, pela qual o que faz pode realizar
aquilo que diz. Mas por que não será verdadeiro o que faz, se é verdadeiro o
que diz, quando, à verdade da palavra, se segue a realidade da obra? É Deus o
que diz, é Deus o que faz. Se na palavra (naquilo que diz) há a verdade,
pergunto por que negá-la na obra (naquilo que faz), a não ser, talvez, que seja
verdadeiro ao dizer e não seja verdadeiro ao fazer.
26. Temos
então em Deus, Filho de Deus, a verdade da natureza. É Deus, é Criador, é filho
de Deus, pode tudo. É pouco que possa o que quer, porque o poder pertence
sempre à vontade, mas, além disso, também pode fazer aquilo que lhe é dito,
pois pertence ao perfeito poder que a natureza do que faz possa aquilo mesmo
que indica a palavra do que fala.
27. Se
algo pode ser dito, o mesmo também pode ser realizado, e a operação que se
identifica com as palavras possui a natureza da verdade. Na verdade, o Filho de
Deus não é um Deus falso, nem um Deus adotivo, nem é Deus somente pelo nome,
mas é verdadeiro Deus.
28. Não
há necessidade de apresentar algum argumento diferente daquele do adversário
que deseja provar que não seja verdadeiro Deus; para mim, é bastante que tenha
a natureza e o nome de Deus, porque é Deus, por quem tudo foi feito.
29. Isto
a criação do mundo me revelou sobre Ele. Deus se iguala ao nome de Deus, a
verdade se identifica com a obra da verdade. Como se dá a conhecer o Deus
poderoso pela palavra, assim também se dá a conhecer o Deus poderoso nos seus
feitos.
30. Depois
disto, pergunto, na confissão do Pai e do Filho, com que autoridade se nega a
verdade da natureza de quem possui em plenitude o poder do nome e o nome do
poder?
Capítulo 6.
31. É
preciso que o leitor se lembre de que, ao calar-me agora sobre isto, não o faço
por me esquecer ou ter receio do que os hereges costumam objetar, apresentando
as palavras: O Pai é maior do que Eu (Jo
14,28) e outras semelhantes, que, ou são ignoradas ou são compreendidas de tal
forma que por elas se entende não estar no Filho a natureza do verdadeiro Deus.
32. Convém
à ordem de nossas respostas começar pelas proposições contrárias, para que,
calcando as pegadas da ímpia crença com os passos da pia pregação e, passando
por este caminho profano e irreligioso, apaguem-se as marcas deixadas pela
mentirosa doutrina.
33. Adiadas,
portanto, e reservadas para o fim as mensagens evangélicas e apostólicas, a
luta contra os ímpios se concentra sobre a Lei e os Profetas, para que seja
repelida a invenção da falaz perversidade pelos mesmos ditos com que tentam
enganar.
34. Não
há meio de se entender a verdade, a não ser que se descubra ser falso o que se
objeta contra a verdade. E isto, para a absoluta desonra dos mentirosos, se as
próprias mentiras servirem à verdade.
35. É
parecer geral do senso comum não se unir o falso ao verdadeiro, nem poder ficar
juntos, por mútuo assentimento, estes gêneros de coisas, porque, pela diferença
dos gêneros, havendo naturezas contrárias, nunca as coisas discordes se unem,
nem concordam as que são diversas, nem é comum a ambas o que lhes é estranho.
Capítulo 7.
36. Se
há um Deus verdadeiro e um falso, pergunto: como se entenderá a palavra: Façamos
o homem à nossa imagem e semelhança (Gn 1,26)? As palavras enunciam
o sentido, o sentido é o movimento da razão, a verdade incita o movimento da
razão.
37. Pelas
palavras seguimos o sentido, pelo sentido entendemos a razão, pela razão
apreendemos a verdade. Pergunto em que não será verdadeiro, à semelhança
daquele que diz para si mesmo, Aquele a quem foi dito: Façamos,
o homem à nossa imagem e semelhança, pois sem dúvida este dito brota
do afeto e da intenção do que diz.
38. Aquele
que diz: Façamos, refere-se ao
que não discute com Ele o que irá fazer, por não ser estranho, nem fraco, mas
poderoso para fazê-lo. Daí a palavra. Sem dúvida o que falava entendia que seria
compreendido aquilo que disse.
Capítulo 8.
39. Para
que a verdade da natureza e da operação seja manifestada mais plenamente, Aquele
que, pelas palavras, expressava seu pensamento, submeteu, segundo a razão natural,
o sentido à verdade, dizendo: à nossa imagem e semelhança.
40. Onde
está aqui o falso Deus, a quem o verdadeiro Deus diz: à
nossa imagem e semelhança? Nossa não significa unicidade de pessoa,
não diz diversidade, não diz diferença. Pois o homem foi feito à comum imagem,
de acordo com a verdade da declaração.
41. A
união do falso e do verdadeiro não existe. Deus, que fala, fala a Deus: o homem
é criado à imagem do Pai e do Filho. O nome não discorda, a natureza não é
diferente.
42. É
uma só a forma da imagem segundo a qual foi o homem criado. E no meio disto,
onde desaparece a verdade, se permanece entre ambos a comunhão na obra, assim
como a verdade da comum imagem?
43. Para
mim, ainda não chegou o tempo de resolver esta questão; mais tarde demonstraremos
segundo que imagem de Deus Pai e de Deus Filho foi criado o homem. Por enquanto
veremos se não é verdadeiro Deus aquele a quem o verdadeiro Deus disse: Façamos
o homem à nossa imagem e semelhança.
44. Distingue,
se puderes, nesta comunhão de imagem o verdadeiro e o falso e, com herético
furor, divide o que é indivisível. Pois são Um e o homem, criado à sua imagem e
semelhança, é um.
Capítulo 9.
45. Prossigamos
em ordem a leitura, para que a verdade, sempre coerente consigo mesma, não seja
mudada pelos tropeços da falsidade. E
Deus fez o homem, à imagem de Deus o fez (Gn 1,27).
A imagem é comum: Deus fez o homem à imagem de Deus. A quem nega ser
o Filho de Deus verdadeiro Deus, pergunto à imagem de que Deus entende ter sido
o homem feito por Deus.
46. Contudo,
lembre-se sempre: tudo pelo Filho, não
aconteça que, por herética compreensão, se atribua a operação só a Deus Pai.
Se, portanto, à imagem de Deus Pai, por meio de Deus Filho, o homem foi criado,
será também criado à imagem do Filho, porque ninguém recusa ao Filho as
palavras: à nossa imagem e semelhança.
47. A
palavra divina manteve nas palavras a verdade da divindade que as obras
confirmavam nas ações, para que o homem, criado à imagem de Deus, figurasse
Deus e significasse Deus, sem privar Deus de sua verdade, já que, na comunhão
da imagem, é Deus verdadeiro Aquele que, na realização da obra, é reconhecido
como Deus Filho.
Capítulo 10.
48. Ó
extrema insensatez da mente desesperada! Ó estulta temeridade da cega impiedade!
Se ouves Deus e Deus,
se ouves nossa imagem, por que
subordinas o verdadeiro ao não verdadeiro? Por que misturas o natural e o
falso? Por que, sob o nome de religião, destróis a religião? Por que, ao
afirmar um só Deus, e um Deus verdadeiro, tentas fazer com que o Deus
verdadeiro não seja senão um (uma só pessoa)?
49. Ainda
não faço calar teus discursos insensatos com as palavras evangélicas e
apostólicas; nestas o Pai e o Filho, não pela pessoa, mas por natureza, são Um
e verdadeiro Deus; mas, enquanto isto, a Lei, por si só, te dá a morte.
50. Acaso
diz ela que existe um Deus verdadeiro e um Deus não verdadeiro? Acaso, em
relação a ambos, emprega um nome diferente do nome de natureza? Disse: Deus
e Deus, aquela Lei que declarou que há um só Deus. Mas por que digo
somente disse?
51. Proclamou
Deus verdadeiro e Deus verdadeiro, pela verdade da imagem. Serviu-se, primeiro,
para designá-lo, do nome da natureza. Depois se referiu à verdade da natureza
segundo sua essência. Pois, como o que foi feito foi criado segundo a imagem de
ambos, não pode consistir a partir do não verdadeiro, porque ambos são o Deus
verdadeiro.
O que você destaca no texto e colo ele serve para sua
espiritualidade?
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