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Hilário
de Poitiers (315-368)
O Tratado da Santíssima Trindade
Livro
Oitavo (Capítulos 1 - 5)
Divisão do Tratado
O
Tratado está dividido em 12 livros.
O livro I começa autobiografia. Refere-se
às heresias e apresenta um plano geral do trabalho.
O livro II é um resumo da
doutrina da Trindade.
O livro III trata do mistério da
distinção e unidade do Pai e do Filho.
No livro IV o autor apresenta a
carta de Ário a Alexandre de Alexandria e demonstra a divindade de Filho a
partir de citações tiradas do Antigo Testamento.
O livro V também cita o Antigo
Testamento para demonstrar a divindade do Filho, que não é um outro Deus ao
lado do Pai.
O livro VI refere-se novamente à
carta de Ário e argumenta a partir do Novo Testamento.
O livro VIII trata da
unidade do Pai e do Filho. O Espírito Santo é demonstração e manifestação desta
unidade.
LIVRO
OITAVO
Capítulo
1.
1. O
santo apóstolo Paulo, ao indicar com seus preceitos como deveria ser
constituído o Bispo e quais as qualidades necessárias ao novo homem da Igreja,
apresenta um resumo das principais virtudes que deve possuir, dizendo: Seja
de tal modo fiel na exposição da palavra, que possa tanto ensinar a sã doutrina
como refutar os que a contradizem. Pois há muitos que são rebeldes, palavrosos
e enganadores (Tt 1,9-10).
2. Mostra,
deste modo, que as virtudes próprias à disciplina e aos bons costumes são úteis
para o sacerdócio se não faltarem aquelas que são necessárias para ensinar e guardar
a fé, porque, ao bom e útil sacerdote não convém, ou apenas viver de modo
honesto, ou apenas pregar com ciência, já que ser honesto sem ser douto somente
seria útil para ele mesmo e pregar com ciência seria inútil se lhe faltasse a
honestidade.
3. A palavra
apostólica sobre a probidade e os preceitos da honestidade não se refere apenas
à vida do homem do século, ou ao conhecimento da doutrina que prepara o escriba
da Sinagoga para a Lei. Institui também o perfeito príncipe da Igreja pelos
perfeitos bens das máximas virtudes, de modo que sua vida se orne ao ensinar e
a doutrina seja ornada por sua vida.
4. Paulo
esclarece finalmente a Tito, a quem dirige a palavra, apresentando esta norma
da religião consumada: Faze-te em tudo, a ti mesmo, um modelo de boas obras,
na doutrina, na integridade, na gravidade, na palavra sadia e irrepreensível,
para que os nossos adversários sejam confundidos, nada tendo de mal ou
vergonhoso a dizer de nós (Tt 2,78).
5. Não
ignorava este doutor das gentes e eleito doutor da Igreja, pela consciência de
que nele Cristo habitava e falava, que o contágio das palavras envenenadas iria
grassar e que a corrupção da doutrina pestífera se oporia com violência à
pureza da palavra da fé.
6. Não
ignorava que a peste de uma ímpia interpretação, penetrando a própria sede da
alma, se alastraria até as suas profundezas. Por isso disse: A palavra deles
é como uma gangrena que corrói (2Tm 2,17).
7. O
oculto, sub-reptício contágio penetra a mente, infeccionando-a. Por esse
motivo, quis Paulo que o Bispo tivesse a doutrina da palavra sadia, a fé
consciente e a ciência para exortar contra as ímpias, mentirosas e insensatas
contradições. Pois são muitos os que, simulando fé, mas não sujeitos à fé, com
a inteligência inchada pela vaidade humana, estabelecem para si mesmos a fé, em
vez de recebê-la, aprovado o que querem, sem querer saber do que é verdadeiro.
8. A
verdadeira sabedoria, no entanto, consiste, às vezes, em entender o que não
queremos. A palavra estulta provém da sabedoria nascida da vontade própria,
porque é forçoso que o estulto pregue estultamente aquilo que prefere. Quanto
mal a estulta pregação causa aos ouvintes, seduzidos pela palavra estulta sob
capa de sabedoria!
9. Por isso
o Apóstolo disse a respeito deles: Há muitos que são rebeldes, palavrosos e enganadores
(Tt 1,10). Por esse motivo é preciso, pela pureza da doutrina, verdade da fé
e sinceridade das palavras, contradizer não só a impiedade insolente, mas ainda
a insolência mentirosa e a mentira do que seduz, para que haja a sinceridade da
verdade e a verdade da integridade.
Capítulo
2.
10. Foi-me
sugerida a citação desta sentença apostólica pela necessidade de contradizer certos
homens de espírito perverso, mentirosos por profissão e vazios de esperança,
que proferem palavras viperinas, porque doutrinas mortíferas, interpretações
doentias e vontades corrompidas se insinuam sob capa de religião, iludindo a
simplicidade dos ouvintes.
11. Deixando
de lado a pureza da pregação apostólica, dizem que o Pai não é Pai, que o Filho
não é Filho, que Deus não é Deus, e que a fé não é a fé.
12. Resistindo
contra estas mentiras insensatas, vamos procurar responder, afirmando, segundo
a Lei, Deus e Deus, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro. Mostraremos, em
seguida, por meio da doutrina evangélica e apostólica, a perfeita e verdadeira
natividade do Deus Unigênito. Finalmente demonstraremos que o Filho de Deus é
verdadeiro Deus, idêntico ao Pai pela natureza.
13. A fé
da Igreja não professa um Deus sozinho, nem dois deuses, já que a perfeita
natividade não permite que haja um Deus solitário nem admite que os nomes indiquem
naturezas diversas em dois deuses.
14. Nosso
cuidado em repelir suas fantasias foi duplo: em primeiro lugar, procuramos
ensinar as coisas santas, íntegras e sadias, sem que nossa palavra se desviasse
por atalhos e rodeios.
15. Procuramos,
mais do que investigar a verdade, demonstrá-la claramente. Em segundo lugar,
tratamos de deixar claro como é ridículo e inepto tudo aquilo que, com a
argúcia de vãs e mentirosas sentenças, querem apresentar como se fosse uma
verdade lisonjeira.
16. Pois
não nos basta ensinar o que é piedoso, se não dermos a entender que é piedoso
rejeitar o que é ímpio.
Capítulo
3.
17. Assim
como as inclinações naturais dos homens bons e prudentes se voltam inteiramente
para o que é objeto de uma feliz esperança, a fim de que a expectativa não seja
inferior ao que é esperado, do mesmo modo esses hereges se empenham com todo o furor
de sua louca solicitude em trabalhar contra a verdade da sagrada fé.
18. Estes
homens irreligiosos querem vencer os que são religiosos e ser mais fortes, no
desespero de sua vida, que a esperança que anima nossa existência. Ocupam-se
mais com pensamentos falsos do que nós com a verdade da doutrina.
19. Elaboraram
as contradições de sua perfídia opondo-as à santa profissão de nossa fé,
perguntando, primeiro, se para nós existe ou não um só Deus; em seguida,
perguntam se também Cristo é Deus e, por fim, se o Pai é maior do que o Filho.
Ao ouvirem a profissão de que Deus é Um, aproveitam-se desta resposta para
dizer que Cristo não é Deus. Não perguntam se o Filho é Deus, mas, ao perguntarem
somente sobre Cristo, querem que se diga que não é Filho. Procuram persuadir
com falsidade o homem de fé simples. Querem fazê-lo rejeitar, pela fé em um só
Deus, a confissão de que Cristo é Deus; porque, segundo eles, já não haveria um
só Deus, se Cristo também fosse confessado como Deus.
20. Com
artimanhas de astúcia secular nos interpelam, dizendo que, se Deus é um só, um
outro, ainda que pareça ser Deus, não o é, e que, se há outro, não é Deus, pois
a natureza não admite que haja outro onde há um só.
21. Depois
de terem iludido, com essa doutrina enganadora, os que ouvem e acreditam mais
facilmente, já podem fazer com que se afirme que Cristo é Deus, antes pelo nome
que pela natureza, e que este nome lhe foi dado como é dado aos outros e não
anula a única e verdadeira fé no único Deus. Dizem que o Pai é maior do que o Filho,
porque, sendo diferente a natureza, como há só um Deus, o Pai é maior pela natureza
que lhe é própria. O Filho recebeu esse nome, é criatura, subsiste pela vontade
do Pai e é menor que o Pai. O Filho não é Deus porque o fato de haver um só
Deus não permite que haja outro Deus e é necessário que o que é menor tenha uma
natureza diferente da natureza do que é maior.
22. São
ridículos quando querem dar ordens a Deus e afirmam que nada pode nascer do que
é um, porque todo nascimento se dá pela conjunção de dois.
23. Afirmam
ainda que o Deus imutável não pode dar nascimento a ninguém a partir de si
mesmo, porque é imutável e não pode receber acréscimos e porque a natureza do
que é só e único não tem possibilidade de gerar.
Capítulo
4.
24. Nós,
porém, recebemos, com ensinamentos espirituais, a fé evangélica e apostólica. Buscamos
na confissão do Pai e do Filho a esperança da felicidade eterna. Demonstramos,
a partir da Lei, o mistério de Deus e Deus, sem abandonar a fé em um só Deus e
sem deixar de anunciar a Cristo como Deus.
25. Em
nossa resposta, adotamos esta ordem, a partir dos Evangelhos, para ensinar o
verdadeiro nascimento do Deus Unigênito, de Deus Pai, pelo qual é Deus
verdadeiro e não é alheio à natureza do único e verdadeiro Deus.
26. Não se
pode negar que seja Deus nem se pode dizer que seja outro Deus, porque o
nascimento faz com que seja Deus, e a natureza de único Deus, que procede de
Deus, não o separa para fazer com que seja outro Deus.
27. Embora
o sentido comum nos leve a pensar que nomes de natureza diferente não são
próprios para indicar a mesma natureza e que aqueles cuja essência não difere
no gênero não deixam de ser uma só coisa, julguei oportuno mostrar estas coisas
com as palavras de nosso Senhor, que, tendo dado a conhecer o único Deus de
nossa fé, disse, para confirmar o mistério do Deus único depois de ter afirmado
e demonstrado ser Ele também Deus: Eu e o Pai somos Um (Jo 11,30); Se
me conhecêsseis, conheceríeis também o Pai (Jo 14,7); Quem me viu, viu o
Pai (Jo 14,9); o Pai, que permanece em mim, realiza suas obras (Jo 14,10)
e: Crede-me: eu estou no Pai e o Pai em mim. Crede-o, ao menos, por causa destas
obras (Jo 14,11).
28. Com o
nome de Pai, indicou seu nascimento. Ensinou que se conhece o Pai quando
Ele é conhecido, manifestou a unidade da natureza, porque, quando se vê a Ele,
vê-se o Pai, deu testemunho de que é inseparável do Pai porque permanece no
Pai, que permanece nele.
29. Demonstra
uma confiança consciente, quando pede que se creia em suas palavras pelas obras
de seu poder.
30. Nessa
fé bem-aventurada no seu perfeito nascimento desaparece todo erro, tanto o de
afirmar dois deuses como o de pregar um Deus solitário, pois os que são Um não
são uma só pessoa e o que não é um só em nada difere daquele do qual nasceu, de
modo que ambos não possam ser um só.
Capítulo
5.
31. Os
hereges, não podendo negar estas palavras ditas e entendidas com tanta clareza,
corrompem o seu sentido com a mentira demente de sua impiedade.
32. Dizem
que as palavras eu e o Pai somos um (Jo 10,30) referem-se à coincidência
das vontades. Haveria, assim, unidade de vontade e não de natureza, ou seja,
seriam um, não pelo que são, mas pelo fato de desejarem as mesmas coisas.
33. Utilizam,
para defender-se, aquela passagem dos Atos dos Apóstolos que diz: a multidão
dos fiéis era um só coração e uma só alma (At 4,32), segundo a qual, a
diversidade de almas e corações se uniria em um só coração e uma só alma pela
coincidência de uma única vontade.
34. Também
citam o que foi escrito aos Coríntios: Aquele que planta e aquele que rega
são um (1Cor 3,8), para provar que há nos dois uma unidade de vontade, pois
o ministério para nossa salvação não difere da realização do mesmo mistério.
35. Segundo
eles, o que o Senhor disse, quando pediu ao Pai a salvação de todos os povos: Não
rogo somente por eles, mas por aqueles que, pela sua palavra, crerão em mim: a
fim de que todos sejam um, como tu, Pai, estás em mim e eu em ti; que eles também
estejam em nós (Jo 17,20), significa que, como os homens não podem
fundir-se em Deus e unir-se uns aos outros numa única massa indiferenciada, sua
unidade há de ser de vontade, se todos fizerem o que é agradável a Deus
unindo-se a Ele pela coincidência dos afetos da alma, de modo que não é a
natureza que os faz ser um, mas a vontade.
O que você destaca no Texto?
Como ele serve para sua espiritualidade?
O que você destaca na fala do seu irmão/ã?
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