segunda-feira, 17 de abril de 2023

227 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Oitavo (Capítulos 39 - 54).

 


227

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Oitavo (Capítulos 39 - 54)

O livro VIII trata da unidade do Pai e do Filho. O Espírito Santo é demonstração e manifestação desta unidade.

Capítulo 39.

1.      Mostrai agora vossas línguas que vibram sibilando, ó serpentes heréticas, quer sejais Sabélio, Fotino, ou os que agora ensinais que o Deus Unigênito é uma criatura.

2.      Que aquele que nega o Filho escute, agora, as palavras um só Deus Pai, e, porque o Pai não pode ser Pai, a não ser que tenha um Filho, e porque já se menciona o Filho, quando se diz Pai, saiba, quem nega ao Filho a unidade da natureza com o Pai, que existe um só Senhor Jesus Cristo, pois, se não há um só Senhor, pela unidade do Espírito, não se admite que Deus Pai seja Senhor.

3.      Aquele que pensa que o Filho procede do tempo e da carne fique sabendo que é por Ele que tudo existe e que é por Ele que nós existimos (cf. 1Cor 8,6), e que sua imensidade atemporal cria todas as coisas, fora do tempo.

4.      Lembre-se de que é uma a esperança da vocação, um o batismo e uma a fé (cf. Ef 4,4-5). Depois de tudo isso, ao opor-se à pregação do Apóstolo, faz-se, ele mesmo, anátema, porque, pensando de modo diferente, segundo seu próprio modo de sentir, não é nem chamado, nem batizado, nem fiel, porque uma só é a fé da única esperança e um só é o batismo no único Deus Pai e no único Jesus Cristo. As diferentes doutrinas não poderão gloriar-se de ter seu fundamento nesta verdade: um só Deus, um só Senhor, uma só esperança, um só batismo e uma só fé.

 

Capítulo 40.

5.      A fé é uma só e consiste em confessar o Pai no Filho e o Filho no Pai, em virtude da unidade inseparável da sua natureza inconfusa e indivisa, que não é resultado de uma mistura, mas é indiferenciada, não por justaposição, mas em virtude de seu ser original, não inacabada, mas perfeita.

6.      Trata-se de um nascimento, não de uma divisão. O Filho é realmente Filho, não há adoção. O Filho é Deus, não criatura. Não é um Deus de outro gênero, mas o Pai e o Filho são Um. A natureza não se modificou no que nasce de modo a adquirir características diferentes daquelas da sua origem.

7.      O Apóstolo mantém a fé no Filho que permanece no Pai e no Pai que está no Filho, quando afirma que, para ele, não há senão um só Deus Pai e um só Senhor Jesus Cristo. No Senhor Jesus Cristo está também Deus e em Deus Pai está também o Senhor, e um e outro são um só Deus, como um e outro são um só Senhor.

8.      Considerar-se-ia uma imperfeição para Deus não ser Senhor e para o Senhor não ser Deus. Visto que os dois são Um, a unidade de natureza se expressa nos nomes dos dois, e nenhum dos dois existe sem a unidade.

9.      Em seu ensinamento, o Apóstolo não vai além da pregação evangélica. Cristo, quando fala em Paulo, não diz coisas diferentes das que disse quando permanecia no mundo em forma corporal.

 

Capítulo 41.

10.  Pois o Senhor havia dito nos Evangelhos: Trabalhai, não pelo alimento que perece, mas pelo que perdura até a vida eterna, que o Filho do Homem vos dará, pois Deus, o Pai, o marcou com um selo. A obra de Deus é que acrediteis naquele que Ele enviou (Jo 6,27.29).

11.  O Senhor, ao explicar o mistério da encarnação e de sua divindade, revelou a doutrina de nossa fé e de nossa esperança: que não trabalhássemos pelo alimento que perece, e sim pelo que permanece para sempre, que nos lembrássemos de que o alimento de eternidade nos é dado pelo Filho do Homem, que soubéssemos que o Filho do Homem foi assinalado por Deus Pai e que conhecêssemos que a obra de Deus consiste em acreditar naquele que o Pai enviou.

12.  Quem é Aquele que o Pai enviou? Certamente Aquele a quem Deus assinalou. E que é Aquele que o Pai assinalou? O Filho do Homem, ou seja, o que dá alimento para a vida eterna. E quem são aqueles a quem é dado este alimento? São os que trabalham pelo alimento que não perece. Assim, o trabalho por este alimento é a mesma obra de Deus, isto é, acreditar naquele que enviou.

13.  Porém isto é o Filho do Homem quem o diz. E como dará o Filho do Homem o alimento da vida eterna? Ignora o mistério de sua salvação, quem ignora que o Filho do Homem, que dá o alimento para a vida, foi assinalado por Deus Pai.

14.  Pergunto agora em que sentido se deve entender que o Filho do Homem foi assinalado por Deus Pai.

 

Capítulo 42.

15.  Antes de tudo, é preciso saber que Deus, falando, não para si mesmo, mas para nós, em tudo adaptou suas palavras à nossa compreensão, para que a inteligência própria de nossa natureza pudesse apreender o que dizia.

16.  Tinha sido censurado antes pelos judeus porque se fazia igual a Deus, ao afirmar que era Filho de Deus. Respondera então que fazia tudo o que o Pai fazia, tendo recebido do Pai todo poder para julgar. Afirmara ainda que Ele também devia ser honrado como o Pai. Em todas essas afirmações, depois de ter dito que era o Filho, igualara-se ao Pai em honra, poder e natureza e dissera que, como o Pai tinha a vida em si mesmo, tinha dado ao Filho a capacidade ter a vida em si mesmo.

17.  Indicou, com isso, a natureza que possui pelo mistério de seu nascimento. Ao falar daquilo que o Pai tem, quis dizer que Ele tem o próprio Pai, porque Deus não existe como um ser composto, à maneira dos homens, de modo que haja nele diferença entre o que possui e o que é possuído.

18.  Tudo o que Ele é, é vida, natureza perfeita, completa, infinita, não formada por coisas díspares, mas vivendo, ela mesma, em todo o seu ser. Esta natureza se dá tal como é possuída e, embora isto signifique o nascimento daquele ao qual foi dada, não implica diversidade na substância, já que a natureza é dada tal como é possuída.

 

Capítulo 43.

19.  Depois desta explicação tão longa, própria para demonstrar que Ele possui a natureza do Pai, pronunciou estas palavras: pois Deus, o Pai, o marcou com um selo (Jo 6,27).

20.  É próprio dos selos reproduzir a imagem impressa neles, sem perder nada da figura impressa.

21.  Ao mesmo tempo que recebem o que neles se imprime, imprimem, a partir de si mesmos, tudo o que neles está gravado.

22.  Certamente, este exemplo não é próprio para explicar o nascimento divino, porque nos selos há uma matéria prévia, uma diferença de substâncias e um ato de imprimir mediante os quais as imagens formadas por materiais mais consistentes se imprimem em outros mais frágeis, porém o Filho Unigênito, que é também Filho do Homem, pelo mistério de nossa salvação, querendo revelar-nos que possui em si a imagem da essência do Pai, disse que foi assinalado por Deus.

23.  Porque o Filho do Homem ia dar o alimento da vida eterna, disse isso para que se pudesse entender que Ele tinha o poder de dar o alimento da eternidade, porque possuía em si a plenitude da imagem do Deus Pai que o assinalou. Aquele a quem Deus assinalou com o seu selo não manifestava outra coisa de si mesmo senão a forma do Deus que o havia assinalado.

24.  O Senhor disse tudo isso aos judeus que, por causa de sua infidelidade, eram incapazes de compreender suas palavras.

 

Capítulo 44.

25.  O Pregador do Evangelho explica, pelo Espírito de Cristo que fala por ele, o que Jesus possui: Ele tinha a condição divina, e não considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente. Mas esvaziou-se a si mesmo e assumiu a condição de servo (Fl 2,6-7).

26.  Aquele que Deus tinha assinalado não podia ser outra coisa senão forma de Deus, e o que foi assinalado na forma de Deus deve ter em si, necessariamente, tudo o que é de Deus. Por isso o Apóstolo proclamou que Aquele que Deus marcou com o seu selo permanece na forma de Deus. Ao falar do mistério do corpo assumido por Ele, no qual nasceu, diz: não considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente. Mas esvaziou-se a si mesmo, e assumiu a condição de servo (Fl 2,7).

27.  Existindo na forma de Deus porque Deus o tinha assinalado com o seu selo, permanecia Deus. Como tinha de assumir a forma de servo e ser obediente até a morte, sem se apegar ciosamente a ser igual a Deus, despojou-se de si mesmo para assumir forma de servo, por sua obediência. Despojou-se da forma de Deus, isto é, de sua igualdade com Deus, pensando que não tinha de reter para si o ser igual a Deus, mesmo existindo na forma de Deus e sendo igual a Deus, selado como Deus, por Deus.

 

Capítulo 45.

28.  Pergunto se o que permanece como Deus, na forma de Deus, é um Deus de outro gênero, como vemos nos selos, quer se trate das imagens que são gravadas, quer se trate das que resultam da gravação, como acontece com o ferro aplicado sobre o chumbo, a pedra preciosa sobre a cera modelando a forma da imagem impressa ou reproduzindo o que está em relevo.

29.  Haverá alguém tão insensato e estulto a ponto de acreditar que Deus modela a partir de si mesmo algo distinto de Deus, para que seja Deus, e o que existe na forma de Deus seja algo totalmente distinto de Deus, depois dos mistérios da assunção da humanidade e da humildade consumada pela obediência até a morte de cruz?

30.  Ouça, então, tudo o que há nos céus, na terra e nos infernos e toda língua confessar que Jesus Cristo está na glória de Deus Pai. (Cf. Fl 2,11.) Se vai permanecer nesta glória, depois de sua forma ter sido a de servo, pergunto que condição tinha quando estava na forma de Deus. Acaso Cristo Espírito não existia na natureza de Deus, se Jesus Cristo, nascido como Homem, permanecerá na glória de Deus Pai?

 

Capítulo 46.

31.  O bem-aventurado Apóstolo mantém em tudo a pregação imutável da fé evangélica e confessa que o Senhor Jesus Cristo é Deus de tal maneira que nem se elimina a fé apostólica, a ponto de confessar dois deuses, nem se considera Jesus Cristo como um Deus de outro gênero.

32.  A existência de Deus Filho, inseparável do Pai, não dá ocasião à impiedade, para que anuncie um Deus único e solitário, pois ao dizer na forma de Deus (Fl 2,6) e na glória de Deus Pai (Fl 2,11), Paulo ensina que não há diferença entre o Pai e o Filho e, ao mesmo tempo, impede que se julgue não ter o Filho existência pessoal, já que o que existe na forma de Deus não se converte em outro Deus nem deixa de ser Deus, porque não pode separar-se da forma de Deus, pois está nela.

33.  Não é possível que quem existe na forma de Deus não seja Deus. Aquele que está na glória de Deus não pode ser outra coisa senão Deus. Sendo Deus na glória de Deus, não pode ser confessado como outro Deus ou como diferente de Deus, pois, pelo fato de estar na glória de Deus, tem, por natureza, a divindade daquele em cuja glória está.

 

Capítulo 47.

34.  A unidade da fé não corre perigo pelo fato de haver muitas pregações. O Evangelista tinha ensinado esta palavra do Senhor: Quem me vê, vê também o Pai (Jo 14,9), e Paulo, doutor das gentes, acaso ignorou ou silenciou a força da palavra do Senhor quando disse: Ele é a imagem do Deus invisível (Cl 1,15)? Pergunto se há uma imagem visível do Deus invisível e se o Deus invisível se pode fazer visível mediante a imagem de uma forma determinada, pois é preciso que a imagem reproduza a forma daquele de quem é imagem.

35.  Os que pretendem que o Filho tenha uma natureza de outro gênero devem determinar de que maneira desejam que o Filho seja imagem do Deus invisível. Será acaso como uma imagem corpórea e visível, que vai de um lugar para outro, movendo-se continuamente? Que estes se lembrem de que, segundo os Evangelhos e os Profetas, Cristo é Espírito e Deus é Espírito. Se pretendem limitar num corpo bem determinado Cristo, que é Espírito, o que é corpóreo não será imagem do Deus invisível, pois o que é infinito não pode ser expresso pelo que é finito e limitado.

 

Capítulo 48.

36.  O Senhor não deixa dúvida quando diz: Quem me vê, vê também o Pai (Jo 14,9). O Apóstolo também não calou a respeito de quem é imagem do Deus invisível. O Senhor disse: Se não faço as obras de meu Pai, não acrediteis em mim (Jo 10,37). Ensinava, com estas palavras, que nele se via o Pai porque Ele fazia as obras do Pai, para que o conhecimento do poder de sua natureza mostrasse a natureza do poder conhecido.

37.  Por isso o Apóstolo, ao explicar o que significa ser Cristo a imagem de Deus, diz: Ele é a Imagem do Deus invisível, o Primogênito de toda criatura, porque nele foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis: Tronos, Soberanias, Principados, Autoridades, tudo foi criado por ele e para ele. Ele é antes de tudo e tudo nele subsiste. Ele é a Cabeça da Igreja, que é o seu Corpo: ele é o Princípio, o Primogênito dos mortos, tendo em tudo a primazia, pois nele aprouve a Deus fazer habitar toda a plenitude e reconciliar por ele e para ele todos os seres, os da terra e os dos céus, realizando a paz pelo sangue da sua cruz (Cl 1,15-20).

38.  Portanto, é imagem de Deus pelo poder dessas obras, pois certamente o Criador das coisas invisíveis não precisa, por sua natureza, ser imagem visível do Deus invisível. Ele é dito imagem do Deus invisível para que não se pense que é imagem de sua forma, mais que de sua natureza, pois deve-se reconhecer que possui a natureza divina pelo poder de sua natureza, não pela sua condição invisível.

 

Capítulo 49.

39.  Ele é o Primogênito de toda criatura porque nele todas as coisas foram criadas. E para que ninguém se atrevesse a dizer que não foi em Cristo que tudo foi criado, temos o dito do Apóstolo: porque nele foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis: Tronos, Soberanias, Principados, Autoridades, tudo foi criado por Ele e para Ele.

40.  Tudo tem consistência nele, que existe antes de tudo. Nele tudo existe, e essas coisas se referem ao começo da criação. O que vem depois, diz respeito à Economia da assunção do nosso corpo: Ele é a Cabeça da Igreja, que é o seu Corpo: ele é o Princípio, o Primogênito dos mortos (tendo em tudo a primazia), pois nele aprouve a Deus fazer habitar toda a plenitude e reconciliar por ele e para ele todos os seres, os da terra e os dos céus, realizando a paz pelo sangue da sua cruz.

41.  O Apóstolo mostra a correspondência entre os mistérios espirituais e as operações corporais. O que é a imagem do Deus invisível é a cabeça do corpo da Igreja. O que é o Primogênito de toda criatura é também o Primogênito dentre os mortos, para que o que se fez corpo e é imagem de Deus tenha em tudo a primazia.

42.  O Primogênito de toda criatura é também Primogênito para a eternidade. Os seres humanos deverão seu renascimento eterno no Primogênito entre os mortos, Àquele no qual os seres espirituais criados no Primogênito devem sua subsistência, pois Ele é o princípio.

43.  Por ser Filho, é imagem e, sendo imagem de Deus, é também o Primogênito de toda criatura e contém em si o princípio de todo o universo. É também a cabeça do corpo da Igreja e o Primogênito dentre os mortos, para que em tudo tenha a primazia; e, porque tudo tem consistência para Ele, desejou habitar nele toda a plenitude, pois nele, por Ele e para Ele são reconciliadas todas as coisas, como nele, por Ele e para Ele foram criadas todas as coisas.

 

Capítulo 50.

44.  Entendes agora o que significa imagem de Deus e o que significa que nele e por meio dele foram criadas todas as coisas? Se tudo é criado nele, deves perceber que Aquele de quem Ele é imagem cria nele todas as coisas e, como aquilo que é criado nele é criado também por meio dele, reconhece, no que é imagem, a natureza daquele de quem Ele é imagem, pois cria por meio dele mesmo o que é criado nele mesmo, assim como, por meio dele, todas as coisas são reconciliadas nele.

45.  Porque são reconciliadas nele, deves reconhecer que Ele é, por sua natureza, Um com o Pai, que nele reconcilia consigo todas as coisas. E como nele são reconciliadas todas as coisas por meio dele, reconhece que Ele reconcilia em si, com o Pai, o que reconcilia por meio dele, pois o mesmo Apóstolo diz: Tudo isto vem de Deus, que nos reconciliou consigo por Cristo e nos confiou o ministério da reconciliação (2Cor 5,18).

46.  Compara com estas palavras todo o mistério da fé evangélica. Aquele que é visto quando Ele é visto, opera quando Ele opera, fala quando Ele fala, é o mesmo que reconcilia consigo quando Ele reconcilia.

47.  A reconciliação se produz nele e por meio dele porque o Pai, que permanece nele pela identidade de natureza, por meio dele e nele, restituiu o mundo a si mesmo, por meio dele e nele, pela reconciliação.

 

Capítulo 51.

48.  Em consideração à fraqueza humana, Deus não ensinou esta mensagem da fé com poucas palavras, que poderiam causar dúvidas. A própria autoridade da palavra do Senhor torna necessário que se acredite nela, contudo Ele quis instruir nossa inteligência, dando-nos a conhecer os motivos daquilo que diz. Quando diz: Eu e o Pai somos Um (Jo 10,30), conhecemos a razão da unidade que é revelada.

49.  Quando diz que o Pai fala por meio das palavras do Filho, opera por meio de suas obras, julga por seus juízos, é visto quando Ele é visto, reconcilia mediante sua obra de reconciliação, permanece naquele que habita nele, eu pergunto que outra linguagem mais adequada à nossa compreensão poderia usar, visto que ensinou que, pela realidade do nascimento e unidade de natureza, tudo o que o Filho fazia e dizia, o Pai fazia e dizia no Filho.

50.  Isso não poderia acontecer se uma natureza alheia a Deus houvesse sido equiparada a Ele por criação ou se tivesse nascido para ser Deus de uma parte de Deus. É próprio somente do ser divino, gerado por um perfeito nascimento para ser Deus perfeito. Está tão seguro de sua natureza que diz: Eu estou no Pai e o Pai em mim (Jo 14,11) e também: Tudo o que o Pai tem é meu (Jo 16,15).

51.  Nada do que é de Deus falta a Ele, em quem Deus opera, fala e é visto, quando Ele opera, fala e é visto. Não são dois diferentes, na ação, palavra ou aparência de um só, nem se trata de um Deus solitário, que agiu, falou e foi visto como Deus, no Deus que age, fala e é visto. Isto é o que a Igreja compreende, a sinagoga não acredita, a filosofia não entende: que o que é Um proceda do que é Um, que o que é inteiramente Deus proceda do que é inteiramente Deus, que o que é Filho também seja Deus, e, por seu nascimento, não retire do Pai a sua plenitude e Ele próprio não deixe de ter consigo a plenitude, pelo fato de nascer. Quanto ao que se deixa iludir por tamanha estultice e incredulidade, é seguidor dos judeus e dos gentios.

 

Capítulo 52.

52.  Para poderes entender a palavra do Senhor: tudo o que o Pai tem é meu (Jo 16,15), escuta o ensinamento do Apóstolo que diz: tomai cuidado para que ninguém vos escravize por vãs e enganosas especulações da “filosofia”, segundo a tradição dos homens, segundo os elemento do mundo, e não segundo Cristo, porque nele habita a plenitude da divindade corporalmente.

53.  Pertence ao mundo, pensa segundo a tradição dos homens e é prisioneiro da filosofia todo aquele que ignora a Cristo como Deus verdadeiro e desconhece que nele está a plenitude da divindade.

54.  A mente humana só aprecia o que entende, e o mundo somente crê naquilo que pode apreender, julgando que, pela natureza das coisas, só é possível aquilo que vê ou faz.

55.  Os elementos do mundo vieram à existência do nada, porém Cristo não existe a partir do não existente nem, para ter origem, começou a existir. Recebeu uma origem eterna daquele que é seu Princípio. Os elementos do mundo ou carecem de vida ou começam a existir. Cristo é a vida, nasceu do Deus vivo como Deus vivo. Os elementos do mundo foram estabelecidos por Deus, porém não são Deus; Cristo é Deus de Deus e é inteiramente o que Deus é.

56.  Os elementos do mundo existem dentro de limites e não podem estar fora de si mesmos, saindo de si; Cristo está em Deus e tem em si a Deus de modo misterioso. Os elementos do mundo quando engendram de si a vida para os seus semelhantes oferecem de si mesmos, por meio dos instintos corporais, os princípios do nascimento, porém não estão eles mesmos como seres vivos naqueles que nascem; em Cristo, porém, está a plenitude da divindade.

 

Capítulo 53.

57.  Pergunto de quem é a divindade que está na plenitude, se não é a divindade do Pai, ó falso pregador de um só Deus. Que outro Deus me apresentarás, cuja divindade habite em Cristo em plenitude? Porém, se é a divindade do Pai, explica de que maneira habita nele corporalmente esta plenitude, porque, se acreditas que o Pai está no Filho de modo corporal, o Pai que habita no Filho não existirá em si mesmo.

58.  Porém, se a divindade que nele habita corporalmente significa a realidade da natureza de Deus naquele que procede de Deus, pois Deus está nele, não por graça ou por sua vontade, mas por verdadeira geração, já que o que Ele é nasceu para ser Deus, mediante o nascimento de Deus, e também não há em Deus nada diverso ou diferente do que habita corporalmente em Cristo, se aquilo que habita nele corporalmente está nele segundo a plenitude de sua divindade.

59.  Por que vais procurar doutrinas humanas? Por que aderes a doutrinas enganosas? Por que me falas de unanimidade, de concórdia, de vontade, de criatura, se a plenitude de sua divindade habita em Cristo corporalmente?

 

Capítulo 54.

60.  Também nisto o Apóstolo foi fiel à regra de sua fé. Ao ensinar que em Cristo habita corporalmente a plenitude da divindade, quis evitar a confissão ímpia da unicidade pessoal e desejou impedir que a loucura infiel chegasse até a afirmar uma natureza distinta, pois, ao dizer que a plenitude da divindade habita em Cristo corporalmente, mostra que esta não é nem singular nem separável, já que não é possível que a plenitude corporal seja separada da plenitude corporal, e a divindade que habita não pode ser considerada como sendo a mesma coisa que a habitação da divindade.

61.  E Cristo é de tal modo que a plenitude da divindade está nele corporalmente, porém a plenitude da divindade está em Cristo corporalmente de tal maneira que a plenitude que nele habita não pode ser considerada como outra coisa diferente de Cristo.

62.  Aproveita todas as ocasiões que quiseres para mudar as palavras e aguça as sutilezas de teu engenho ímpio. Inventa, porém, pelo menos, uma mentira para dizer-nos de quem é a plenitude da divindade que habita em Cristo corporalmente, pois existe Cristo e existe também a plenitude da divindade que habita nele corporalmente.

63.  E se perguntas de que inabitação corporal se trata, entende o que é falar no que fala, ser visto no que é visto, operar no que opera. Entende o que significa que Deus esteja em Deus, que o que é inteiramente tenha nascido do que é inteiramente, que o que é Um tenha nascido do que é Um e assim poderás entender a plenitude da divindade corporal e lembrar-te de que o Apóstolo não deixa de declarar de quem é a plenitude da divindade que habita corporalmente quando diz: Sua realidade invisível – seu eterno poder e sua divindade – tornou-se inteligível, desde a criação do mundo, através das criaturas, de sorte que não têm desculpa (Rm 1,20).

64.  Sua divindade corporal está em Cristo, não em parte, mas inteiramente. Não se trata de uma parte, mas da plenitude que permanece nele corporalmente, de tal maneira que são nele uma só coisa e são de tal modo uma só coisa que Deus não é diferente de Deus. Deus não difere de Deus, de tal maneira que o perfeito nascimento dá lugar a Deus perfeito. O que nasceu perfeitamente tem sua própria subsistência, porque no Deus nascido de Deus habita corporalmente a plenitude da divindade.

 

 

O que destaquei neste texto?:

Como ele serve para a minha espiritualidade?

domingo, 9 de abril de 2023

226 Hilário de Poitiers (315-368) O Tratado da Santíssima Trindade Livro Oitavo (Capítulos 30 - 38)

 


226

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Oitavo (Capítulos 30 - 38)


 


O livro VIII trata da unidade do Pai e do Filho. O Espírito Santo é demonstração e manifestação desta unidade.

 

Capítulo 30.

1.      O que aparece em quarto lugar, a saber, a manifestação do Espírito na doação do que é útil, se entende com toda clareza, pois se recordou por meio de que dons se dá a manifestação do Espírito.

2.      Em meio à diversidade de dons, aparece, sem dúvida nenhuma, aquele dom do que o Senhor falou aos Apóstolos, quando mandou que não saíssem de Jerusalém: No decurso duma refeição da qual participou, ordenou-lhes que não se afastassem de Jerusalém, mas que esperassem a realização da promessa do Pai, a qual, disse ele, “ouvistes da minha boca”. Mas o Espírito Santo descerá sobre vós e dele recebereis força. Sereis, então, minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria, e até os confins da terra” (At 1,4.8).

3.      Ordena que esperem a promessa do Pai que foi ouvida de seus lábios. Também agora se trata, certamente, da promessa do Pai, e, através dessas obras de poder, dá-se a manifestação do Espírito, pois não está oculto o dom do Espírito quando se ouvem as palavras de sabedoria e de vida e quando se dá a ciência do conhecimento divino para que, ignorando a Deus, não ignoremos, como os animais, o Autor de nossa vida.

4.      O dom do Espírito não está oculto na fé em Deus, para que não estejamos fora do Evangelho de Deus, por não termos acreditado no Evangelho: nem também no dom das curas, para que demos testemunho da graça daquele que concede estas coisas, com a cura das doenças; nem no poder de fazer milagres, para que se compreenda que o que fazemos é força de Deus; nem na profecia, para que, com o nosso conhecimento da doutrina, se conheça que fomos ensinados por Deus; nem no discernimento dos espíritos, para que não sejamos inábeis para julgar se alguém fala em espírito bom ou mau; nem na variedade de línguas, de tal modo que o falar em línguas nos seja concedido como sinal de que o Espírito Santo foi dado; nem na interpretação das línguas, para que não se ponha em risco a fé dos ouvintes, por causa da ignorância, pois o intérprete explica a língua aos que ignoram.

5.      Em todas essas coisas, distribuídas a cada um para utilidade, é dada a manifestação do Espírito. Por tais dons maravilhosos, dados a cada um para utilidade, manifesta-se o dom do Espírito.

Capítulo 31.

6.      Quando o santo Apóstolo Paulo falou dos mistérios celestiais, ocultos e dificílimos para a compreensão humana, manteve, ao mesmo tempo, a clareza da exposição e uma prudência cautelosa, mostrando que os diversos dons são dados no Espírito e pelo Espírito (pois não é a mesma coisa serem dados pelo Espírito e no Espírito), porque o dom que se recebe no Espírito é dado por meio do Espírito.

7.      E assim conclui o Apóstolo sua exposição sobre os diferentes dons: Mas isso tudo, é o único e mesmo Espírito que o realiza, distribuindo a cada um os seus dons, conforme lhe apraz (1Cor 12,11).

8.      Por isso, pergunto: que Espírito opera essas coisas distribuindo-as a cada um conforme lhe apraz, o Espírito pelo qual se faz a distribuição dos dons ou o Espírito no qual ela se faz?

9.      Se alguém se atrever a dizer que se trata da indicação do mesmo Espírito, o Apóstolo contradirá o leitor que o interpreta de maneira errada, pois antes já dissera: Há diversas operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos (1Cor 12,6).

10.  Um é o que distribui e outro é Aquele no qual é feita a distribuição. Deves entender que é Deus que sempre opera, porém de tal maneira que Cristo opera, e o Filho, ao operar, realiza a ação do Pai.

11.  Se, no Espírito Santo, confessas a Jesus como Senhor, deves entender o valor da tríplice indicação do Apóstolo, pois na diversidade de dons há um mesmo Espírito, na diversidade de ministérios, é o mesmo Senhor, na diversidade de operações, é o mesmo Deus.

12.  O mesmo Espírito realiza todas as coisas, distribuindo-as a cada um conforme lhe apraz. Compreende, se puderes, que o Senhor, na diversidade dos ministérios, e Deus, na diversidade de operações, são um e o mesmo Espírito que opera e distribui conforme lhe apraz, porque na distribuição de dons é um só e o mesmo Espírito que opera e distribui.

 

Capítulo 32.

13.  Se não aceitas, em Deus e no Senhor, pelo mistério do nascimento, este único Espírito da divindade, mostra que Espírito opera e reparte entre nós esta diversidade de dons e em que Espírito se realiza isto.

14.  Não poderás mostrar nada diferente daquilo que pertence à nossa fé, porque o Apóstolo mostra a quem se refere quando diz: o corpo é um e, não obstante, tem muitos membros, mas os membros do corpo, apesar de serem muitos, formam um só corpo. Assim também acontece com Cristo (1Cor 12,12).

15.  Indica que os diversos carismas vêm do único Senhor Jesus Cristo, que é o corpo de todos, pois, ao mostrar o Senhor no ministério, mostrou também a Deus nas operações e ensinou que um só Espírito opera e distribui todas as coisas dividindo as graças para a perfeição dos membros de um só corpo.

 

Capítulo 33.

16.  Talvez penses que o Apóstolo não levou em conta a unidade quando disse: há diversidade de ministérios, mas um mesmo Senhor (1Cor 12,5), pois referiu os ministérios ao Senhor e as operações a Deus.

17.  Pode parecer que não pense em um e o mesmo quando fala dos ministérios e das operações. Observa, porém, como os membros que exercem os ministérios são os mesmos que realizam as operações: vós sois o corpo de Cristo e sois os seus membros, cada um por sua parte. E aqueles que Deus estabeleceu na Igreja são, em primeiro lugar, os apóstolos, nos quais está a palavra da sabedoria, em segundo lugar, os profetas, nos quais está o dom da ciência, em terceiro lugar, os doutores, nos quais está a doutrina da fé... Vêm, a seguir, os dons dos milagres (1Cor 12,27-28).

18.  Entre esses dons estão a cura das doenças, o poder da assistência e de governar profeticamente e os dons de falar e de interpretar diversas línguas.

19.  Estes são ministérios e operações da Igreja e neles está o corpo de Cristo. Tudo isso foi estabelecido por Deus, mas talvez afirmes que não foi estabelecido por meio de Cristo, porque foi Deus que estabeleceu.

20.  Escuta, porém, o mesmo Apóstolo: a cada um de nós foi dada a graça, segundo a medida do dom de Cristo (Ef, 4,7), e: o que desceu é também o que subiu, acima de todos os céus, a fim de levar à plenitude todas as coisas. A uns ele deu ser apóstolos, a outros, profetas, a outros, evangelistas, a outros pastores e doutores para a perfeição dos santos na obra do ministério (Ef 4,10-12).

21.  Acaso os ministérios não são dons de Cristo, embora sejam também dons de Deus?

 

Capítulo 34.

22.  Se a heresia se baseia no fato de Paulo ter dito o mesmo Senhor e o mesmo Deus (1Cor 12,5-6), para afirmar que não há neles unidade de natureza, acrescentarei a esta interpretação argumentos que tu consideras mais consistentes, pois o mesmo Apóstolo diz: para nós, contudo, existe um só Deus, o Pai, de quem tudo procede e para quem nós somos, e um só Senhor, Jesus Cristo, por quem tudo existe e por quem nós somos (1Cor 8,6), e: há um só Senhor, uma só fé, um só batismo; há um só Deus e Pai de todos, que é sobre todos, por meio de todos e em todos (Ef 4,5-6). Ao dizer um só Deus e um só Senhor, parece que atribui só a Deus Pai, como Deus único, o ser propriamente Deus, pois o que é próprio a um só não admite a participação de outro.

23.  Como são raros e difíceis de obter os dons carismáticos e a manifestação do Espírito na concessão desses bens úteis para todos, a ordem nas graças que se distribuem mantém-se, de modo que a primeira seja a palavra da sabedoria porque é verdadeira esta afirmação: ninguém pode dizer: “Jesus é Senhor” a não ser no Espírito Santo (1Co 12,3) e não se pode entender que Cristo seja o Senhor, senão por meio da palavra de sabedoria.

24.  Vem depois a palavra da ciência, para que possamos falar do que sabemos com conhecimento.

25.  Em terceiro lugar, vem o dom da fé, porque os dons principais e mais elevados perderiam sua utilidade se não se acreditasse que Jesus é Deus.

26.   Fundamentados no ensinamento contido nessas belas palavras do Apóstolo, podemos concluir que os hereges não têm a palavra da sabedoria nem da ciência nem têm a fé que corresponde à verdadeira religião.

27.  A heresia, incapaz de entendimento, está longe do conhecimento da palavra e da simplicidade da fé, pois ninguém pode falar do que não sabe nem acreditar naquilo de que não pode falar.

28.  O Apóstolo, que vinha da Lei e foi chamado para o Evangelho de Cristo, ao anunciar um só Deus, manteve a profissão da perfeita fé.

29.  E para que a simplicidade de uma linguagem, que poderemos chamar de incauta, não desse aos hereges nenhuma ocasião para negar o nascimento do Filho, por causa da pregação do Deus único, professou a fé no Deus único mencionando o que lhe é próprio: um só Deus, o Pai, de quem tudo procede e para quem nós somos (1Co 8,6), a fim de que se acreditasse que é Pai Aquele que é Deus.

30.  Visto que acreditar unicamente em Deus Pai não basta para a salvação, acrescentou: e um só Senhor, Jesus Cristo, por quem tudo existe e por quem nós somos (1Cor 8,6).

31.  Mostrou assim a pureza da fé salvífica, na pregação de um só Deus e de um só Senhor, para que se acredite em um só Deus Pai e um só Senhor Jesus Cristo, pois não ignorava que o Senhor tinha dito: esta é a vontade de meu Pai: quem vê o Filho e nele crê tem a vida eterna (Jo 6,40).

32.  Para estabelecer o sentido da fé da Igreja e fundamentar nossa fé no Pai e no Filho expressou o mistério da unidade e da fé inseparável e indivisível dizendo: um só Deus e um só Senhor (1Cor 8,6).

33.  Reconhece, antes de tudo, tua insensatez, ó herege, que vives afastado do espírito dos Apóstolos, pois usas a confissão de um só Deus para que Cristo não seja considerado Deus. Visto que, para ti, onde há um só, deve-se entender um solitário e que ser único é uma característica própria e exclusiva do que é um só, qual será tua opinião a respeito de ser Jesus Cristo o único Senhor?

34.  Para ti, o fato de ser o Pai um só não permite que Cristo seja Deus. Por isso, em tua opinião, o fato de Jesus Cristo ser o único Senhor impede necessariamente que Deus seja Senhor, já que queres que o ser único seja próprio do que é um só.

35.  Assim, negando que o único Senhor Jesus seja também Deus, negarás igualmente que o único Deus Pai seja também Senhor.

36.  Portanto, que poder terá Deus, se não é Senhor, e que força terá o Senhor, se não é Deus, já que o ser Senhor aperfeiçoa o ser Deus, e o ser Deus é o fundamento do ser Senhor?

 

Capítulo 35.

37.  O Apóstolo se mantém fiel ao mistério da palavra do Senhor: Eu e o Pai somos Um (Jo 10,30).

38.  Enquanto professa que os dois são a mesma coisa, dá a entender que são Um, não na solidão de uma única pessoa, mas na unidade do Espírito, pois há um só Deus Pai e um só Cristo Senhor e um e outro são Deus e Senhor.

39.  Contudo, nossa fé não admite que haja dois deuses e dois senhores. Um e outro são um só e, sendo um só, nenhum dos dois está só.

40.  Não podemos expressar o mistério da fé, senão com a palavra apostólica: há um só Deus e um só Senhor.

41.  Precisamente porque há um só Deus e um só Senhor, fica claro que em Deus está o ser Senhor como no Senhor está o ser Deus.

42.  Não se deve sustentar a unicidade de pessoa, de tal modo que Deus seja solitário, mas também não se pode dividir o Espírito, de tal modo que um e outro não sejam um só Deus.

43.  Não se pode separar o poder do único Deus e do único Senhor, como se Aquele que é Senhor não fosse também Deus, e o que é Deus não fosse também Senhor.

44.  Quando mencionou estes nomes, o Apóstolo teve o cuidado de não pregar nem dois deuses nem dois senhores e serviu-se deste modo de propor a doutrina para mostrar o único Deus também no único Senhor Cristo e o único Senhor também no único Deus Pai.

45.  Professou a fé no Pai e em Cristo para não nos induzir à ímpia confissão da unicidade de pessoa e à negação do nascimento do Deus Unigênito.

 

Capítulo 36.

46.  Talvez a loucura de quem se encontra no último grau do desespero ouse afirmar que, embora o Apóstolo tenha dito que Cristo é Senhor, ninguém deve confessá-lo mais do que como Senhor e que, possuindo a qualidade de Senhor, Ele não tem a verdadeira condição de Deus.

47.  Paulo, porém, mostra não ignorar que Cristo seja Deus quando diz: aqueles aos quais pertencem os patriarcas, e dos quais descende o Cristo, segundo a carne, que é, acima de tudo, Deus bendito pelos séculos (Rm 9,5).

48.  Aqui não se trata de considerar que uma criatura seja Deus, mas de afirmar que o Deus das criaturas é Deus acima de todas as coisas.

 

Capítulo 37.

49.  Aprende também, por estas mesmas palavras, que Jesus é Deus sobre todas as coisas, inseparável do Pai no Espírito, pois o Apóstolo confessou a um só Deus Pai do qual tudo procede e um só Senhor, Jesus Cristo, por meio do qual tudo existe (1Cor 8,6).

50.  Pergunto: que diversidade na natureza introduziu ao dizer que tudo procede de Deus e tudo foi feito por meio de Cristo? Acaso podem considerar-se como separáveis entre si, na natureza e no Espírito, Aquele de quem tudo procede e Aquele por meio de quem tudo foi feito?

51.  Tudo recebeu, do nada, a sua consistência, por meio do Filho, e o Apóstolo disse de Deus: do qual tudo procede, e, do Filho: por meio do qual tudo existe.

52.  Não posso compreender que diferença pode haver quando a obra realizada por um e outro é realizada pelo mesmo poder. Se, para explicar a subsistência do universo, bastasse dizer que as criaturas procedem de Deus, que necessidade haveria de lembrar que o que procede de Deus foi feito por meio de Cristo, se não fosse a mesma coisa existir por meio de Cristo e proceder de Deus?

53.  Como os nomes Senhor e Deus se atribuem a cada um, de modo a pertencerem aos dois, igualmente as expressões do qual e por meio do qual se referem aos dois. Isto indica a unidade de um e de outro, mas não significa que se deva entender um singular.

54.  Suas palavras não oferecem ocasião à impiedade. A fé apostólica é objeto de uma pregação cuidadosa, limitando-se o Apóstolo a empregar palavras que não permitissem pensar que falava de dois deuses ou de um Deus solitário.

55.  Enquanto recusa a unicidade de pessoa, não divide a unidade divina, pois as palavras do qual tudo procede e por meio do qual tudo existe não permitem que se pense em um ser singular na força de seu poder, mas também não falam de dois seres diversos na sua eficiência.

56.  As palavras do qual e por meio do qual indicam um Criador de uma única natureza para todo o universo. O Apóstolo manifestou claramente que a mesma natureza é própria dos dois e, depois de ter proclamado a profundidade da riqueza e sabedoria de Deus e de ter confessado a impossibilidade de compreender seus juízos inescrutáveis e de ter mostrado a ignorância de seus caminhos impenetráveis, reconhecendo a obrigação da fé humana, rendeu homenagem à profundidade dos mistérios celestes impenetráveis e inescrutáveis dizendo: porque tudo é dele, por Ele e para Ele. A Ele a glória pelos séculos! Amém (Rm 11,36). Com estas palavras, Paulo atribui à unidade de natureza o que só pode ser a obra de uma única natureza.

 

Capítulo 38.

57.  Paulo atribuiu especialmente a Deus as palavras: do qual tudo procede, e referiu a Cristo a expressão: por meio do qual tudo existe.

58.  O fato de dele, por Ele e para Ele existirem todas as coisas, é motivo para honrar a Deus.

59.  Como o Espírito de Deus é o mesmo que o Espírito de Cristo e como, no ministério do Senhor e na atuação de Deus, o único Espírito opera e reparte os dons, é necessário que sejam um só aqueles que têm como próprio o que pertence a um só, pois o Espírito, que é o mesmo, repartindo seus dons no mesmo Espírito Santo, leva à perfeição todas as coisas.

60.  Aquele que foi arrebatado e eleito para ser participante dos segredos de Deus foi digno de conhecer os grandes mistérios celestiais, mas guardou o devido silêncio sobre aquelas coisas de que não se pode falar.

61.  Foi verdadeiramente Apóstolo de Cristo, aquele que soube refutar os argumentos engenhosos da perversidade humana com palavras claras, ao confessar um só Deus Pai e um só Senhor Jesus Cristo, para que ninguém possa confessar dois deuses ou uma só pessoa, porque o que não é uma única pessoa não pode converter-se em dois deuses nem os que não são dois podem ser considerados como um solitário, e a revelação de Deus Pai revela, ao mesmo tempo, a perfeita natividade de Cristo.

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