Hilário
de Poitiers (315-368)
O Tratado da Santíssima Trindade
Livro
Décimo (Capítulos 1 - 12)
02 de setembro de 2023
O livro X apresenta uma
interpretação original do problema do sofrimento de Cristo e da morte de Jesus
por nós. São 71 capítulos.
Capítulo
1.
1.
Não há qualquer dúvida de que toda
palavra humana está sempre exposta à contradição, porque, quando há diferentes
movimentos das vontades, são também diferentes os modos de pensar das mentes.
2.
Quando se luta com paixão contra os
juízos dos adversários, se contradizem as afirmações a que nos opomos. Embora
cada palavra conforme a verdade seja perfeita, no entanto, se cada um prefere
algo diferente, a palavra verdadeira se expõe à réplica dos contraditores,
porque o erro de uma vontade insensata ou perversa se afirma contra a verdade
que não entende ou não quer aceitar.
3.
O desejo de contradizer persiste,
inabalável, e não tem medida a obstinação em contradizer.
4.
A vontade não se submete à razão, e o
interesse não se põe a serviço da verdadeira doutrina. Procuramos razões para
provar o que desejamos com empenho e adaptamos a doutrina aos nossos desejos.
5.
Então será mais de nome do que de
realidade, a doutrina que imaginamos, e já não será mantida a norma da verdade,
mas a do que agrada, isto é, a que a vontade usará para defender o que quer, e
não a que estimulará a vontade pelo conhecimento da verdade racional.
6.
Desses vícios das vontades caprichosas,
surgem as objeções das tendências contrárias e, entre a afirmação do verdadeiro
e a defesa do que agrada, trava-se uma luta pertinaz, visto que a verdade se
mantém e a vontade caprichosa se defende.
7.
Aliás, se a vontade não precedesse a
razão, mas, mediante a compreensão da verdade, fosse movida a querer o
verdadeiro, nunca a doutrina originada na vontade seria desejada.
8.
Todo desejo de doutrina seria movido
pela razão, e a palavra verdadeira não encontraria oposição. Ninguém defenderia
como verdadeiro o que deseja, mas sim começaria a querer o que é verdadeiro.
Capítulo
2.
9.
O Apóstolo não ignorava a existência
destas vontades viciadas e, entre muitos preceitos para o anúncio da fé e a
pregação da Palavra, escreveu a Timóteo: Virá um
tempo em que alguns não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, segundo seus próprios
desejos, como que sentindo comichão nos ouvidos, se rodearão de mestres. Desviarão
os ouvidos da verdade, orientando-os para as fábulas (2Tm
4,3-4).
10. Quando,
levados pelo desejo da impiedade, não puderem suportar a sã doutrina, então
reunirão os mestres que desejam, isto é, os que acumulam argumentos
doutrinários adaptados a seus desejos. Não quererão ser ensinados, mas
congregarão doutores para dizer-lhes o que querem, a fim de que o próprio
acúmulo de pesquisadores e de mestres escolhidos e reunidos por eles satisfaça
sua ânsia.
11. Esta
tão grande loucura da estulta irreligiosidade ignora qual é o espírito que os
leva a não suportar a sã doutrina e desejar a corrompida.
12. Aprenda,
pois, do mesmo Apóstolo, escrevendo a Timóteo: O
Espírito diz expressamente que nos últimos tempos alguns renegarão a fé, dando
atenção a espíritos sedutores e a doutrinas demoníacas por causa da hipocrisia
dos mentirosos (1Tm 4,1-2).
13. Que
proveito se encontra na doutrina procurada mais pelo que seduz do que pelo que
ensina? Que devoção pela doutrina verdadeira significa não desejar o que se deve
ensinar e criar uma doutrina adaptada aos nossos desejos?
14. Estas
coisas atraem os espíritos sedutores e confirma as mentiras de uma religião
simulada. A hipocrisia mentirosa acompanha o abandono da fé, e continua a haver
piedade nas palavras, mas não na consciência.
15. Tornam
ímpia esta mesma piedade aparente por meio de palavras mentirosas e corrompem,
com falsas doutrinas, a santidade da fé, visto que se trata de uma doutrina
elaborada segundo seus desejos, e não de uma doutrina de acordo com a fé evangélica.
16. Incitados
pelo prurido de ouvir e pelo impaciente deleite de escutar a nova pregação
conforme seus desejos, afastados inteiramente da escuta da verdade, prendem-se totalmente
às fábulas e procuram dar uma aparência de verdade ao que dizem, porque não
podem ouvir nem dizer o que é verdadeiro.
Capítulo
3.
17. Chegamos
a este dificílimo tempo a que se refere a profecia apostólica. Procuram-se agora
mais os mestres do que é criado, do que os que pregam a Deus.
18. Os
homens se preocupam mais com desejos humanos do que com o ensinamento da fé
verdadeira.
19. O prurido
de ouvir levou-os a escutar o que desejam ouvir, de tal modo que, para os doutores
reunidos agora, só vale a pregação que afasta o Deus Unigênito do poder e da verdadeira
natureza de Deus Pai, o que, para nossa fé, significa que é um Deus de outro gênero
ou que não é Deus.
20. Com
uma confissão mortífera e ímpia, em ambos os casos declaram que há dois deuses
que têm uma divindade diferente ou negam que seja Deus Aquele que possui uma
natureza que vem de Deus pela natividade. Para os ouvidos alheios à verdade e
voltados para fábulas, isto é muito agradável, visto que não suportam ouvir a
sã doutrina e expulsam-na, como aos seus pregadores.
Capítulo
4.
21. Embora
muitos reúnam mestres segundo os seus desejos e rejeitem a sã doutrina, a verdade
da pregação não estará exilada dos santos. Exilados, falamos pelos livros, e a palavra
de Deus, que não pode ser ligada, livremente se difunde, advertindo ser este o tempo
da profecia apostólica.
22. Pois
quando o anúncio da verdade é recebido com impaciência, e são numerosos os
mestres que ensinam de acordo com os desejos humanos, já não se duvida terem
chegado aqueles tempos.
23. E
a verdade está no exílio, juntamente com os pregadores da fé incorrupta. Não
nos lamentamos por causa destes tempos, ao contrário, nos alegramos, porque a iniquidade
se mostrará neste tempo de nosso exílio, afastando os que pregam a sã doutrina
e procurando para si numerosos mestres, segundo seus desejos.
24. Em
nosso exílio estamos alegres e exultamos no Senhor, porque se realiza em nós,
em plenitude, a profecia apostólica.
Capítulo
5.
25. Sustentamos,
assim penso, nos livros anteriores, a profissão da fé sincera e da verdade incontaminada.
Embora, devido à natureza humana, não haja palavra livre de contradição,
julgamos, no entanto, ter dado todas as respostas de um modo tal que, a não ser
afirmando a impiedade, ninguém poderia contradizer-nos.
26. Mostrei
o sentido verdadeiro das frases tiradas dos Evangelhos pelos hereges com
artifício mentiroso, e sua verdade se patenteou tão claramente que já não lhes
resta a desculpa da ignorância, mas são obrigados a confessar a impiedade.
27. Também
agora, por dom do Espírito Santo, organizamos a demonstração de toda a fé, de
tal modo que nem mesmo possam inventar acusações contra nós. Pois costumam
encher os ouvidos dos ignorantes, afirmando que nós negamos o Filho quando
pregamos a unidade da divindade, e que confessamos um Deus solitário citando a
palavra do Evangelho: Eu e o Pai somos Um (Jo
10,30).
28. Dizem
também que nós afirmamos que o Deus inascível, descendo até a Virgem, nasceu
como Homem, e, referindo-se à economia da encarnação, disse: Eu,
para indicar a sua divindade, e acrescentou: e o Pai,
para mostrar que Ele é o pai de sua humanidade, e, como Ele é Homem e Deus,
disse de si mesmo: Somos Um.
Capítulo
6.
29. Nós,
porém, afirmamos que o Filho subsiste por sua geração fora do tempo e pregamos
que o Deus Filho é Deus, de natureza não distinta da natureza de Deus Pai.
30. Não
dizemos ser igual ao que é inascível, enquanto é inascível, mas sim que não é diferente
dele, pela geração como Unigênito. Os dois são um só, não porque o que é apenas
um receba dois nomes, mas sim pelo nascimento próprio da natureza divina.
31. Dizemos
que, em nossa fé, não se proclamam dois deuses de gêneros diferentes. Ao confessar
o mistério do Deus Unigênito, não se ensina que Deus é singular porque é único,
mas sim que no Pai se expressa e existe o Filho, porque nele está a natureza e
o nome do Pai.
32. O
Pai mostra-se e permanece no Filho, pois este não pode ser chamado de Filho,
nem existir, se não provém do Pai. É também imagem viva da
natureza viva, assinalado para ser, por natureza, a forma de Deus em Deus.
Possui de tal maneira a sua mesma essência e poder que nele nem a obra, nem a
palavra, nem o aspecto são diferentes dos do Pai.
33. Ele
é a imagem do seu Princípio, possui de modo natural a natureza deste, e por
meio de sua imagem natural, Aquele que é sua origem agiu, falou e foi visto.
Capítulo
7.
34. Proclamando
a intemporal e inenarrável geração do Unigênito, que está além de toda a compreensão
da inteligência humana, ensinamos também o mistério de Deus nascido como Homem
pelo parto da Virgem.
35. Demonstramos
que, segundo a economia da Encarnação, ao esvaziar-se da forma de Deus, assumiu
a forma de servo, sem que a forma humana enfraquecesse a natureza de Deus.
Salvo, no Homem, o poder da divindade, foi concedido ao Homem o poder de Deus.
36. Quando
Deus nasceu como Homem, não nasceu para deixar de ser Deus, mas para que,
continuando Ele a ser Deus, o Homem nascesse como Deus. Seu nome é Emanuel
(Mt 1,23), isto é, Deus conosco.
37. Não
se trata de um rebaixamento de Deus até o Homem, mas de elevação do Homem até
Deus (cf. Jo 17,5). Quando pede para ser glorificado, certamente isto não
favorece à natureza de Deus, mas à humanidade assumida, pois pede aquela glória
que era a sua, junto de Deus, antes que o mundo existisse.
Capítulo
8.
38. Respondendo
também às suas estultíssimas declarações, descemos até a explicação do desconhecimento
da hora. Mesmo que, como eles dizem, esta hora não fosse conhecida pelo Filho,
isto não redundaria em injúria à divindade do Filho Unigênito, porque seria contrário
à natureza que a natividade o fizesse retroceder à existência sem princípio do Deus
inascível, já que o Pai reservara a seu poder o momento de designar o dia, para
demonstrar a autoridade daquele que é Inascível.
39. Não
se pode entender que, por isso, a natureza do Filho seja fraca, pois nela
existe, por causa da natividade, tudo quanto uma geração perfeita pode dar.
40. Não
se pretende atribuir a ignorância do Deus Unigênito a respeito do dia e hora ao
fato de ser Ele diferente de Deus quanto à divindade.
41. Afirma-se,
sim, o poder do que não tem princípio, próprio do Pai, para demonstrar, contra
os sabelianos heréticos, que só nele existe a força que não pode nascer nem
pode ter princípio.
42. Como
ensinamos, a declaração de que não conhece dia não significa fraqueza proveniente
da ignorância, mas pertence ao desígnio de não falar.
43. Devemos
também extirpar toda ocasião de ímpias afirmações e examinar todas as heréticas
pregações da blasfêmia, para que a verdade do Evangelho, graças àquilo mesmo
que parecia obscurecê-la, brilhe mais intensamente.
Capítulo
9.
44. Muitos
deles pretendem que, por causa do temor da paixão e da fraqueza diante do sofrimento,
não haveria nele a natureza do Deus impassível. Dizem que quem temeu e sofreu
não poderia ter a segurança do poder que não teme, nem a incorrupção do Espírito
que não sofre, mas, sendo por natureza inferior a Deus Pai, tremeu de medo na paixão
humana e deu grandes gemidos pela atrocidade do sofrimento corporal.
45. Apoiam
sua afirmação de impiedade no que está escrito: Minha
alma está triste até a morte (Mt 26,38); Pai,
se possível, passe de mim este cálice (Mt 26,89), e também: Deus,
meu Deus, porque me abandonaste? (Mt 27,46). Acrescentam ainda: Pai,
em tuas mãos entrego o meu espírito (Lc 23,46).
46. Todas
estas palavras de nossa piedosa fé, eles as roubam para empregá-las a serviço
de sua impiedade. Dizem que temeu porque estava triste e pediu que o cálice
fosse afastado, que sofreu porque se queixou de ter sido abandonado por Deus na
paixão, como também foi fraco porque entregou o espírito ao Pai.
47. A
aflição não é compatível com a total semelhança com Deus, em virtude do seu nascimento
como Unigênito, pois o pedido para que se afastasse o cálice, a queixa na desolação,
e a entrega do espírito atestam sua fraqueza e inferioridade em relação ao Pai.
Capítulo
10.
48. Em
primeiro lugar, antes de demonstrarmos, por estas palavras, que não havia nele nada
que o fizesse temer por si mesmo, e que não havia nele nenhuma fraqueza, temos de
perguntar o que pareceu causar-lhe temor, para que tivesse medo de uma dor intolerável.
49. Julgo
que não atribuem outra causa ao seu temor, a não ser a paixão e a morte.
Interrogo aqueles que assim pensam, se há motivo para que temesse morrer Aquele
que, desejando tirar dos Apóstolos todo o terror da morte, os exortou à glória
que adviria pelo martírio, dizendo: Aquele que não toma sua cruz e
me segue, não é digno de mim. Aquele que acha sua vida, perdê-la-á; e quem a
perde por minha causa a encontrará (Mt 10,38-39).
50. Se
morrer por Ele é vida, que se pode pensar que causou dor, no mistério da morte,
Àquele que recompensa com a vida os que morrem por Ele? Como pode exortar a não
temer aqueles que matam o corpo, se a morte o aterrorizou, pelo temor do
sofrimento corporal?
Capítulo
11.
51. Além
disso, que dor temeria na morte quem fosse morrer na liberdade de seu poder? Para
o gênero humano, uma força exterior pode causar a morte, como a febre, as chagas,
uma queda. Calamidades, quando atacam, aceleram-na, e a própria natureza de nosso
corpo, vencida pela velhice, traz a nossa morte.
52. O
Deus Unigênito, porém, tendo o poder de entregar a alma e de retomá-la, a fim
de cumprir totalmente em si o mistério da morte, depois de beber o vinagre,
atestou ter consumado em si toda a obra da paixão humana e, inclinando a
cabeça, entregou o Espírito (cf. Jo 19,30).
53. Se
foi deixado à natureza do homem o direito de espontaneamente exalar o Espírito
e descansar na morte e se não acontece, antes, que, desfeito o corpo, afaste-se
a alma debilitada ou que, tendo sido os membros rasgados, fendidos, feridos, o
espírito se esvaia como se tivesse sido violado em sua sede, então pode ser que
o medo de morrer tenha abalado o Senhor da vida, se ao entregar o Espírito,
morreu, não por liberdade sua, usando do poder de morrer. Porém, se morreu
porque quis e por si mesmo entregou o Espírito, não pode ter havido terror da
morte porque Ele tem o poder de morrer.
Capítulo
12.
54. Mas
talvez, pela timidez própria da ignorância humana, tivesse medo deste mesmo poder
de morrer. Porque, embora morresse porque quis, talvez tivesse medo pelo fato
de ter de morrer.
55. Se
houver alguém que assim julgue, explique se a morte teria sido terrível para o
corpo, ou para o Espírito.
56. Se
disser que para o corpo, acaso ignora que o Santo não veria a corrupção (cf. Sl
15,10) e que dentro de três dias ressuscitaria o templo de seu corpo? Se para o
Espírito a morte é terrível, no entanto Lázaro, no seio de Abraão, se alegrava.
Cristo acaso iria temer o caos do inferno?
57. Tudo
isto não tem sentido e é ridículo que temesse Aquele que tem o poder de
entregar a alma e retomá-la e que iria morrer por sua livre vontade, para
operar o mistério da salvação da vida humana.
58. Não
há temor da morte naquele que quer morrer e tem o poder de não permanecer morto
por muito tempo, pois a vontade de morrer e o poder de ressuscitar excluem o
temor, já que a morte não pode ser temida quando se quer morrer e se pode voltar
a viver.
1. O que você destaca na fala do seu irmão/ã?
2. O que você destaca no texto?
3. Como ele é útil para sua espiritualidade?