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SÃO
BASÍLIO MAGNO, ou de CESAREIA
(330-379)
Tratado sobre o Espírito Santo (Capítulos 74 - 79)
Solicitação
do Tratado:
Bispo Anfilóquio de Icônio.
Basílio escreve: “Há pouco, estava
orando com o povo. Glorificava a Deus Pai com ambas as formas de doxologia: ora
com o Filho, com o Espírito Santo; ora pelo Filho, no Espírito
Santo. Alguns dos presentes nos acusaram de empregar palavras estranhas e até
contraditórias entre si. Tu, porém..., ...pediste um ensinamento bem claro
sobre o alcance destas sílabas”.
Capítulo
74.
1.
E
onde havemos de colocar Gregório, o Grande com suas palavras? (este é o
Gregório Nanzianzo (329–390), seu amigo. Não confunda com o Gregório Magno (540–604).
2.
Por
que não com os apóstolos e os profetas, se foi um varão com espírito idêntico
ao deles, se durante toda a vida seguiu as pegadas dos santos e sempre
conservou tão exatamente o modo de viver evangélico?
3.
Quanto
a mim, digo que infligiríamos afronta à verdade se não contássemos entre os
familiares de Deus esta alma que foi uma tocha a espalhar seu fulgor por toda a
Igreja de Deus. Teve contra os demônios terrível poder, por obra do Espírito
Santo.
4.
Recebeu
a graça de tal eloquência para levar as nações à obediência da fé que, tendo
encontrado no começo apenas dezessete cristãos, levou o povo inteiro, citadinos
e camponeses, ao conhecimento de Deus. Desviou o leito dos rios, ordenando-lhes
no poderoso nome de Cristo e secou um pântano, objeto de litígio entre irmãos
ambiciosos. Suas predições foram tais que em nada cede o passo aos grandes
profetas.
5.
Em
resumo, seria longo demais narrar por extenso seus milagres. Por causa da
superabundância dos carismas produzidos nele pelo Espírito, enquanto obras de
poder, sinais e prodígios, era proclamado segundo Moisés até pelos inimigos da
Igreja.
6.
Assim,
em suas palavras e obras, realizadas por meio da graça, resplandecia certa luz,
indício do poder celeste que invisivelmente o assistia. A admiração que
suscitava nos habitantes da região era grande e dura até hoje. Sua lembrança
com viço e sempre vivaz continua firme nas Igrejas. O tempo não a apagou. Nada
se acrescentou ao que ele deixou à sua Igreja: nem prática, nem palavra, nem
símbolos místicos. Por isso, muitas coisas que ali se fazem parecem inacabadas,
por causa da antiguidade de sua instituição. Efetivamente, seus sucessores no
governo das Igrejas rejeitaram qualquer fórmula introduzida depois dele.
7.
Ora,
entre as fórmulas de Gregório encontra-se a doxologia agora controvertida;
transmitida por ele, foi conservada na Igreja. Não se precisará de esforço, ou
de muito pouco, para uma certeza sobre a questão.
8.
Tal
foi igualmente a fé de nosso Firmiliano, conforme atestam os sermões que ele
deixou. O ilustre Melécio também, segundo afirmam seus familiares, era do mesmo
parecer. Mas, por que falar do passado? Agora ainda, no Oriente, não são
reconhecidos os homens piedosos por este único meio, o uso desta palavra qual sinal
distintivo? Como ouvi de um habitante da Mesopotâmia, perito em sua língua e de
muito bom senso, não é possível, mesmo querendo, falar de outra maneira na
língua da região.
9.
Forçoso
é proferir a doxologia com a sílaba e, ou antes, com sinônimos do idioma
pátrio. É assim que também nós, capadócios, falamos em nossa língua regional,
pois o Espírito já previra, por ocasião da divisão das línguas (Gn 11,1-9), a
utilidade desta palavra. Quanto ao Ocidente inteiro, ou quase, da Ilíria até os
limites da terra que habitamos, não se prefere este termo?
Capítulo
75.
10.
Como
seria eu um inovador, um criador de neologismos, se apresento como autores e
defensores deste termo um costume imemorial, bem como povos inteiros e cidades
e homens que foram colunas da Igreja, distintos em ciência e notáveis na força
do Espírito?
11.
Tal
é o motivo da movimentação desta tropa combatente contra nós. Cada cidade, cada
aldeia e o país inteiro até os confins estão cheios dos que nos caluniam. Como
é triste e doloroso para corações que buscam a paz! Mas, como são grandes as
recompensas da paciência nos sofrimentos suportados pela fé! Além de tudo isso,
brilhe a espada, afie-se o machado, acenda-se um fogo mais ardente do que o da
fornalha de Babilônia, movimente-se contra nós todos os aparelhos de tortura.
12.
Nada
me é mais terrível do que não temer as ameaças do Senhor contra os
blasfemadores do Espírito! Constitui suficiente defesa para homens prudentes o
que foi dito. Muito apreciada e familiar entre os santos é a palavra, firmada
em antigo costume, que empregamos. Efetivamente, desde os inícios da pregação
evangélica até hoje teve direito de cidade nas Igrejas, e o que é mais, goza de
alto conceito, sagrado e piedoso.
13.
Mas
que defesa preparamos para nosso comparecimento diante do grande tribunal?
Consiste em que fomos induzidos a dar glória ao Espírito, primeiro pela honra
que o Senhor lhe presta, associado a si mesmo e ao Pai no batismo; depois, cada
um de nós é introduzido no conhecimento de Deus por idêntica iniciação (Mt
28,19); sobretudo, o temor das ameaças divinas retira de nossa mente qualquer
noção indigna do Espírito ou qualquer conceito mais humilhante.
14.
Mas,
o que dizem os adversários? Como defendem sua blasfêmia? Não respeitam nem as
honras prestadas pelo Senhor, nem têm medo de suas ameaças. Compete-lhes agora
decidir o que preferem, ou mudar de opinião desde agora.
15.
Quanto
a mim, desejo, antes de tudo, que o Deus bondoso nos dê sua paz, a fim de que
ela reine no coração de todos. Assim, nossos adversários, que com ardor e
violência se congregam contra nós, ficariam apaziguados pelo Espírito de
mansidão e de amor.
16.
Mas,
se estão inteiramente excitados e for impossível acalmá-los, que Deus nos dê
suportarmos pacientemente o que nos infligirem.
17.
Seja
como for, quando se tem em si uma sentença de morte, não é penoso sofrer pela
fé; ao contrário, não ter combatido por ela é que seria intolerável. Para
atletas, não é tão pesado receber ferimentos na luta, e sim nem ao menos ter
sido admitido no estádio! Mas, talvez seja “tempo de calar” (Ecl,7), conforme
diz o sábio Salomão.
18.
De
que adianta, de fato, gritar contra o vento, quando uma tempestade tão violenta
impede de viver? Então, a mente dos catequizandos assemelha-se a olhos cheios
de poeira, repleta como está de raciocínios falsos, de erros. Os ouvidos se
enchem de sons ensurdecedores e inusitados. Todas as coisas são sacudidas e
acham-se periclitantes.
30. Descrição
do estado atual das Igrejas
Capítulo
76.
19.
A
que se assemelha a situação atual? Assemelha-se um pouco a um combate naval que,
devido a antigos conflitos, travaram povos belicosos, e amantes da luta, veementemente
encolerizados uns contra os outros. Peço-te que olhes o seguinte quadro: de
cada lado a frota avança terrível para atacar; depois, com incontido clamor de
cólera, lançam-se uns sobre os outros em enérgica luta. Imagine que um violento
turbilhão dispersa as naves, e densa escuridão, proveniente das nuvens, encobre
a visão, de forma que não se distinguem mais amigos e inimigos, tornando-se
irreconhecíveis nesta confusão as insígnias das duas partes.
20.
Acrescentemos
ainda ao quadro, para fazê-lo mais vivo, o mar encapelado e revolto, chuva
impetuosa caindo das nuvens, espantosa borrasca, provocada por enormes
vagalhões. Em seguida, os ventos de todos os pontos concentrados num só lugar,
fazem com que toda a esquadra entre em colisão.
21.
Dentre
os combatentes, uns atraiçoam e passam para o campo do adversário mesmo durante
o prélio; outros se veem forçados simultaneamente a repelir os barcos,
arrastados contra eles pelos ventos, e a marchar contra os assaltantes e se
massacrarem uns aos outros na sedição proveniente da malevolência contra os superiores
e da ambição de cada qual de tomar o poder.
22.
Pensa
ainda no ruído impreciso e confuso do mar, no barulho do turbilhão dos ventos,
no entrechoque dos navios, no embate das ondas, nos gritos dos combatentes,
clamando contra os acidentes que os afligem, de sorte que nem se ouve a voz do
comandante, nem a do piloto e instalam-se terrível desordem e confusão.
23.
Os
males excessivos acarretam, com a desesperança de viver, desenfreada liberdade
de pecar. Acrescenta a tudo isso uma inacreditável mania de glória, a tal ponto
que já o navio naufraga e a equipagem não renuncia à disputa pelo primeiro
lugar.
Capítulo
77.
24.
Passa,
então, da imagem ao mal que lhe serve de modelo. Não parece haver já há algum
tempo que o cisma ariano, surgindo como partido contrário à Igreja de Deus, postou-se
sozinho, como fileira inimiga diante dela?
25.
Quando,
após longa e penosa disputa, os arianos se nos contrapuseram em luta aberta, a
guerra se estendeu por muitas partes e de mil maneiras, de tal sorte que a
comum hostilidade e particularmente as suspeitas suscitaram em todos implacável
ódio.
26.
Essa
agitação nas Igrejas não tem aspecto um tanto mais feroz do que a tempestade no
mar? Por ela todos os limites dos Pais foram deslocados, todos os fundamentos,
os sustentáculos da doutrina foram sacudidos. Tudo o que estava com a base
corrupta foi arrebatado, revirado à menor sacudidela.
27.
Caindo
uns sobre os outros, mutuamente fomos abatidos. Se o primeiro combatente não pôde
ferir, seu ajudante fere; se, ferido, ele caiu, seu companheiro de armas passa
por cima dele. Une-nos fortemente o ódio comum contra o adversário. Mal se
afastaram os inimigos, tratamo-nos uns aos outros como inimigos.
28.
Em
vista disso, quem pode contar a multidão de náufragos? Uns submergiram pelo
ataque dos inimigos, outros pela traição secreta de seus aliados, outros pela
inexperiência dos comandantes, porque Igrejas inteiras esbarraram contra
ciladas de hereges, quais escolhos, e pereceram, enquanto outros ainda, entre
os inimigos da Paixão salutífera que se haviam apossado do leme, naufragaram na
fé.
29.
E
as perturbações causadas pelos príncipes deste mundo não derrubam os povos de
maneira mais violenta que qualquer procela? Estende-se sobre as Igrejas noite
realmente sombria, escura e tenebrosa, pois as luzes do mundo, colocadas por
Deus, para iluminar a alma do povo, foram exiladas.
30.
O
excesso de inveja tirou aos príncipes toda sensibilidade, enquanto o temor de
uma dissolução universal é ameaçadora. A animosidade dos particulares prevalece
sobre a guerra comum do povo inteiro, pois a glória de ter esmagado os próprios
adversários fica acima do bem comum, quando se preferem os atrativos das honras
imediatas às recompensas reservadas para o fim.
31.
Por
isso, levantam todos igualmente as mãos homicidas, uns contra os outros, conforme
é possível a cada um. O som rouco daqueles que a contenda levanta um contra o
outro e o barulho confuso e indistinto formado por clamores contínuos, e que
falseiam por excesso ou por falta da reta doutrina da piedade, enchem quase
toda a Igreja.
32.
Com
efeito, uns aderem ao judaísmo, confundindo as Pessoas, outros ao paganismo, contrapondo
entre si as naturezas. A Escritura, inspirada por Deus, não consegue apaziguá-los,
nem a Tradição apostólica os induz a reconciliarem-se.
33.
Uma
só coisa define a amizade: permitir que se fale a seu bel-prazer, enquanto uma
divergência de opinião basta como pretexto de inimizade.
34.
Maior
garantia de comunhão nas diversas situações constitui a aceitação dos mesmos
erros do que qualquer juramento de conjurados. Como todos falam de Deus, até
mesmo aquele que tem a alma marcada por mil manchas, aos inovadores não faltam
partidários.
35.
Também
os intrigantes, eleitos por si mesmos, disputam a presidência das igrejas,
pouco se importando com as disposições (oiconomía) do Espírito Santo.
36.
E
como as instituições evangélicas estão inteiramente confusas devido à desordem,
são incríveis as contendas pelos primeiros lugares, e cada um dos que ambicionam
aparecer usa de violência para tomar a presidência. Uma terrível anarquia, por
causa desta ambição, apossou-se do povo, de sorte que as exortações dos chefes ficam
inteiramente ineficazes e vãs.
37.
Cada
qual julga, na vaidade de sua ignorância, que, ao invés de obedecer, deve antes
dominar os outros.
Capítulo
78.
38.
Por
tal motivo, determinei que era melhor calar-me do que falar, pois não consegue uma
só voz ser ouvida, no meio deste tumulto.
39.
Se
são verdadeiras as palavras do Eclesiastes: “Escutam-se antes na calma as
palavras dos sábios” não é oportuno
atualmente tratar deste assunto. Retém-me igualmente a palavra do profeta: “Por
isso, o sábio se cala neste tempo, porque é um tempo de desgraça” (Sm 5,13), tempo
em que uns caem, outros injuriam o que caiu, e outros aplaudem.
40.
Ninguém
estende mão compassiva àquele que está vacilante. Entretanto, segundo a Lei
antiga, aquele que passava indiferente ao lado do jumento do inimigo, caído
debaixo da carga, era condenável (Ex 23,5); agora, não é mais assim.
41.
Por
quê? Porque a caridade em toda a parte se esfriou, desapareceu a concórdia
entre os irmãos. Até mesmo seu nome é ignorado. Já não há admoestações
caridosas, nem misericórdia cristã, nem lágrimas de compaixão.
42.
Ninguém
que venha em socorro do fraco na fé; ao contrário, inflamou-se tal ódio entre
os compatriotas, que há maior regozijo pelas infelicidades do próximo do que pela
própria felicidade.
43.
Numa
epidemia de peste, até os que se sujeitam aos mais minuciosos cuidados são atingidos
como os outros, por causa do contágio proveniente do contato com os doentes; assim
também agora todos nós nos assemelhamos uns aos outros, levados a um zelo maligno
pela rivalidade de que nossas almas estão repletas.
44.
Além
disso, assentam-se os examinadores rígidos e implacáveis de causas falidas,
juízes injustos e desfavoráveis de causas em si justas.
45.
O
mal parece tão arraigado em nós, que somos mais desarrazoados que os
irracionais, pois se os compatriotas se congregam entre si, quanto a nós, é aos
nossos que fazemos a guerra mais hostil.
Capítulo
79.
46.
Tais
os motivos convenientes de calar; a caridade, contudo, se inclina noutra
direção, pois não busca os próprios interesses (1Cor 13,5), mas procura vencer
todas as dificuldades de circunstâncias e de tempo.
47.
Efetivamente,
os jovens de Babilônia (Dn 3,12ss) nos ensinaram que, mesmo se não houver quem
se ponha do lado da piedade, devemos até o fim cumprir por nós mesmos a tarefa
de que fomos incumbidos.
48.
Eles,
de fato, no meio da fornalha, louvavam a Deus, sem considerar a multidão dos
que desprezavam a verdade, mas sustentavam-se mutuamente, embora fossem somente
três. Por isso, a nuvem de inimigos não nos incute temor; mas proclamamos a
verdade com ousadia, depositando nossa esperança no auxílio do Espírito.
49.
Não
seria em extremo lamentável que nós, enquanto os blasfemadores do Espírito se
exaltam tão facilmente contra a doutrina verdadeira, apesar de termos um amparo
e defensor tão poderoso, tenhamos medo de servir a doutrina proveniente da
Tradição dos Pais, que chegou até nós, conservada fielmente?
50.
Ainda
mais, nosso ardor se inflamou novamente ao fogo de tua caridade sincera; e teu
modo de ser ponderado e calmo nos assegura que não haverá divulgação inoportuna
do que dissemos.
51.
Não
digo que seja preciso escondê-lo, e sim que não se lancem pérolas aos porcos
(Mt 7,6). Tenho dito. Se te basta o que eu disse, termine aqui o discurso. Se
te parece incompleto, nada impede de te entregares com diligência à pesquisa, e
aumentar teus conhecimentos apresentando novas perguntas, sem contestação.
52.
O
Senhor certamente suprirá, por intermédio de nós ou de outros, o que faltar,
conforme o conhecimento concedido aos que são dignos pelo Espírito!
O que você destaca neste texto?
Como serve para a sua
espiritualidade?
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