sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Sermão de Natal de Leão Magno

Leão Magno
Sermão n° 23: «Natal do Senhor»
(P.L. 54, 199 ss)
á muitas vezes, caríssimos, ouvistes falar e fostes instruídos a respeito do mistério da solenidade de hoje; porém, assim como a luz visível enche sempre de prazer os olhos sadios, também aos corações retos não cessa de causar regozijo a natividade do Senhor.
Jamais devemos deixá-la transcorrer em silêncio, embora não possamos condignamente explaná-la, pois aquela palavra: "a sua geração, quem a poderá explicar?" 1 se refere certamente não só ao mistério pelo qual o Filho de Deus é co-eterno com o Pai, mas ainda a este nascimento em que "o Verbo se fez carne" 2.
O Filho de Deus, que é Deus como seu Pai, que recebe do Pai sua mesma natureza, Criador e Senhor de tudo, que está presente em toda parte e transcende o universo inteiro, na seqüência dos tempos que, de sua providência dependem, escolheu para si este dia, a fim de, em prol da salvação do mundo, nele nascer da bem-aventurada Virgem Maria, conservando intacto o pudor de sua mãe. A virgindade de Maria não foi violada no parto, como não fora maculada na conceição, "a fim de que se cumprisse - diz o evangelista - o que foi pronunciado pelo Senhor, através do profeta Isaías: Eis que uma virgem conceberá no seu seio e dará à luz um filho, ao qual chamarão Emanuel, que quer dizer Deus conosco" 3.
O admirável parto da sagrada Virgem trouxe à luz uma pessoa que, em sua unicidade, era verdadeiramente humana e verdadeiramente divina, já que as duas naturezas não conservaram suas propriedades de modo tal que se pudessem distinguir como duas pessoas: não foi apenas ao modo de um Habitador em seu habitáculo que o Criador assumiu a sua criatura, mas, ao contrário, uma natureza como que se adicionou à outra. Embora duas naturezas, uma a assumente e outra assumida, é tal a unidade que formam, que um único e mesmo Filho poderá dizer-se, enquanto verdadeiro homem, menor que o Pai 4 e enquanto verdadeiro Deus, igual ao Pai 5.
Uma unidade dessas, caríssimos, entre Criador e criatura, o olhar cego dos arianos não pôde entender, os quais, não crendo que o Unigênito de Deus possua a mesma glória e substância do Pai, afirmaram ser menor a divindade do Filho, argumentando com as palavras (evangélicas) que dizem respeito à forma de servo 6.
Ora, o próprio Filho de Deus, para mostrar como essa condição de servo nele existente não pertence a uma pessoa estranha e distinta, com ela mesma nos diz: "eu e o Pai somos uma só coisa" 7
Na natureza de servo, portanto, que ele, na plenitude dos tempos, assumiu em vista da nossa redenção, é menor do que o Pai; mas na natureza de Deus, na qual existia desde antes dos tempos, é igual ao Pai. Em sua humildade humana, foi feito da mulher, foi feito sob a Lei 8, continuando a ser Deus, em sua majestade divina, o Verbo divino, por quem foram feitas todas as coisas 9. Portanto, aquele que, em sua natureza de Deus, fez o homem, revestiu uma forma de servo, fazendo-se homem; é o mesmo o que é Deus na majestade desse revestir-se e homem na humildade da forma revestida. Cada uma das naturezas conserva integralmente suas propriedades: nem a de Deus modifica a de servo, nem a de servo diminui a de Deus. O mistério, pois, da força unida à fraqueza, permite que o Filho, em sua natureza humana, se diga menor do que o Pai, embora em sua natureza divina lhe seja igual, pois a divindade da Trindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo é uma só. Na Trindade o eterno nada tem de temporal, nem existe dissemelhança na divina natureza: lá a vontade não difere, a substância é a mesma, a potência igual, e não são três Deuses, unidade verdadeira e indissociável é essa, onde não pode existir diversidade.
Nasceu pois numa natureza perfeita e verdadeira de homem o verdadeiro Deus, todo no que é seu e todo no que é nosso. "Nosso" aqui dizemos que o Criador criou em nós no início, e depois assumiu para restaurar. O que, porém, o sedutor (o demônio) introduziu e o homem, ludibriado, aceitou, isso não teve nem vestígio no Salvador, pois comungando com nossas fraquezas não participou dos nossos delitos. Elevou o humano sem diminuir o divino, dado que a exinanição em que o Invisível se nos mostrou visível foi descida de compaixão, não deficiência de poder.
Assim, para sermos novamente chamados dos grilhões originais e dos erros mundanos à eterna bem-aventurança, aquele mesmo a quem não podíamos subir desceu até nós. Se, realmente, muitos eram os que amavam a verdade, a astúcia do demônio iludia-os na incerteza de suas opiniões, e sua ignorância, ornada com o falso nome de ciência, arrastava-os a sentenças as mais diversas e opostas. A doutrina da antiga Lei não era bastante para afastar essa ilusão que mantinha as inteligências no cativeiro do soberbo demônio. Nem tampouco as exortações dos profetas lograriam realizar a restauração de nossa natureza. Era necessário que se acrescentasse às instituições morais uma verdadeira redenção, necessário que uma natureza corrompida desde os primórdios renascesse em novo início. Devia ser oferecida pelos pecadores uma hóstia ao mesmo tempo participante de nossa estirpe e isenta de nossas máculas, a fim de que o plano divino de remir o pecado do mundo por meio da natividade e da paixão de Jesus Cristo atingisse as gerações de todos os tempos e, longe de nos perturbar, antes nos confortasse a variação dos mistérios no decurso dos tempos, desde que a fé, na qual hoje vivemos, não variou nas diversas épocas.
Cessem, por isso, as queixas dos que impiamente murmuram contra a divina providência e censuram o retardo da natividade do Senhor, como se não tivesse sido concedido aos tempos antigos o que se realizou na última idade do mundo. A Encarnação do Verbo podia conceder, já antes de se realizar, os mesmos benefícios que outorga aos homens, depois de realizada; o ministério da salvação humana nunca deixou de se operar. O que os apóstolos pregaram, os profetas prenunciaram; não foi cumprido tardiamente aquilo a que sempre se prestou fé. A sabedoria, porém, e a benignidade de Deus, cem essa demora da obra salutífera, nos fez mais capazes de nossa vocação, pois o que fora prenunciado por tantos sinais, tantas vezes e tantos mistérios, poderíamos reconhecer sem ambigüidade nestes dias do Evangelho. A natividade, mais sublime do que todos os milagres e do que todo o entendimento, geraria em nós uma fé tanto mais firme quanto mais antiga e amiudada tivesse sido antes sua pregação. Não foi, pois, por deliberação nova ou por comiseração tardia que Deus remediou a situação do homem, mas, desde a Criação do mundo instituíra uma e mesma causa de salvação, para todos. A graça de Deus, que justifica os santos, foi aumentada com o nascimento de Cristo, não foi simplesmente principiada. E esse mistério da compaixão, esse mistério que hoje já enche o mundo, fora tão potente em seus sinais prefigurativos que todos os que nele creram, quando prometido, não conseguiram menos do que os que o conheceram realizado.
São assim, caríssimos, tão grandes os testemunhos da bondade divina para conosco que, para nos chamar à vida eterna, não apenas nos ministrou as figuras, como aos antigos, mas a própria Verdade nos apareceu, visível e corpórea. Não seja, portanto, com alegria profana ou carnal que celebremos o dia da natividade do Senhor. celebra-lo-emos dignamente se nos lembrarmos, cada um de nós, de que Corpo somos membros e a que Cabeça estamos unidos, cuidando que não se venha a inserir no sagrado edifício uma peça discordante.
Considerai atentamente, caríssimos, sob a luz do Espírito Santo, quem nos recebeu consigo e quem recebemos conosco: sim, como o Senhor se tornou carne nossa, nascendo, também nós nos tornamos seu Corpo, renascendo. Somos membros de Cristo e templos do Espírito Santo e por isto o Apóstolo diz: "Glorificai e trazei a Deus no vosso corpo" 10. Apresentando-nos o exemplo de sua humildade e mansidão, o Senhor comunica-nos aquela mesma força com que nos remiu, conforme prometeu: "Vinde a mim, vós todos, que trabalhais e estais sobrecarregados, e eu vos reconfortarei. Tomai o meu jugo sobre vós e aprendei de mim que sou manso e humilde de coração, e encontrareis repouso para vossas almas" 11.
Tomemos, portanto, o jugo, em nada pesado e em nada áspero, da Verdade que nos guia e imitemos na humildade aquele a cuja glória queremos ser configurados. Que nos auxilie e nos conduza às suas promessas quem em sua grande misericórdia é poderoso para apagar nossos pecados e completar seus dons em nós, Jesus Cristo, nosso Senhor, que vive e reina pelos séculos dos séculos. Assim seja.

FONTE:
GOMES, Cirilo Folch, OSB. Antologia dos Santos Padres. Coleção "Patrologia". Ed. Paulinas, São Paulo, 1985.
NOTAS:
[1] Jo 53, 8;
[2] Jo 1, 14;
[3] Mt 1, 23 (cf. Is7, 14);
[4] Jo 14, 38;
[5] Jo 10, 30;
[6] FI 2, 6;
[7] Jo 10, 30;
[8] Gl 4, 4;
[9] Jo 1, 3;
10 1Cor 6,20;
[11] Mt 11, 28s.


sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

13
História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia
Livro II* - Capítulos 1 e 2



Prólogo
Da vida dos apóstolos depois da ascensão de Cristo
Da emoção de Tibério ao ser informado por Pilatos dos feitos referentes a Cristo
De como a doutrina de Cristo em pouco tempo se propagou por todo o mundo

Prólogo
1.            Todos os dados da História Eclesiástica que era necessário estabelecer como prólogo: o referente à divindade do Verbo salvador, a antigüidade dos dog­mas de nossa doutrina e a sobriedade da forma de vida evangélica dos cristãos; e não apenas isso, mas também o que se relaciona com a recente manifestação de Cristo, com a atividade anterior à paixão e com a escolha dos apóstolos; tudo isto está bem explicado no livro anterior, com razões abreviadas.
2.            Mas no presente vamos considerar também os fatos que se seguiram à sua ascensão. Uns iremos anotando das Sagradas Escrituras, outros tomaremos de fora, dos tratados que oportunamente citaremos.

I - Da vida dos apóstolos depois da ascensão de Cristo
1.            O primeiro pois, que a sorte designou para o apostolado em substituição a Judas o traidor foi Matias, que também tinha sido um dos discípulos do Salvador, como já foi provado. Por outro lado os apóstolos, mediante a oração e imposição das mãos, instituem ainda com destino ao ministé­rio e para o serviço comum, a alguns homens de boa reputação, em núme­ro de sete: Estevão e seus companheiros[1]. Também foi Estevão, depois do Senhor e quase no momento em que recebia a imposição de mãos, como se o tivessem promovido para isto mesmo, o primeiro a ser morto a pedradas pelos mesmos que mataram o Senhor[2], e desta maneira o primeiro também a levar a coroa, a que alude seu nome, dos vitoriosos mártires de Cristo.
2.            Naquele tempo também Tiago, o chamado irmão do Senhor[3] - porque também ele era chamado filho de José; pois bem, o pai de Cristo era José, já que estava casado com a Virgem quando, antes que convivessem des­cobriu-se que havia concebido do Espírito Santo, como ensina a Sagrada Escritura dos evangelhos -; este mesmo Tiago pois, a quem os antigos puseram o sobrenome de Justo, pelo superior mérito de sua virtude, refere-se que foi o primeiro a quem se confiou o trono episcopal da Igreja de Jerusalém.
3.            Clemente, no livro VI das Hypotyposeis, adiciona o seguinte: "Porque -dizem - depois da ascensão do Salvador, Pedro, Tiago e João, mesmo tendo sido os preferidos do Salvador, não tomaram para si esta honra, mas elegeram como bispo de Jerusalém Tiago o Justo."
4.             E o mesmo autor, no livro VII da mesma obra, diz ainda sobre ele o que segue: "O Senhor, depois de sua ascensão, fez entrega do conhecimento a Tiago o Justo, a João e a Pedro, e estes o transmitiram aos demais apóstolos, e os apóstolos aos setenta, um dos quais era Barnabé.
5.             Houve dois Tiagos: um, o Justo, que foi lançado do pináculo do templo e morto a golpes com um bastão; e o outro, o que foi decapitado." Também Paulo menciona Tiago o Justo quando escreve: Outro apóstolo não vi além de Tiago, o irmão do Senhor[4].
6.             Por este tempo também se cumpriu o prometido por nosso Salvador ao rei de Osroene, pois Tomás, por impulso divino, enviou Tadeu a Edessa como arauto e evangelista da doutrina de Cristo, como acabamos de provar com documentos ali encontrados[5].
7.      Tadeu, estando no lugar, cura a Abgaro pela palavra de Cristo e deixa pasmos com seus estranhos milagres a todos os presentes[6]. Quando já os tinha bas­tante predispostos com suas obras conduziu-os à adoração do poder de Cristo, e acabou fazendo-os discípulos da doutrina do Salvador. Desde então e até hoje toda a cidade de Edessa está consagrada ao nome de Cristo, dando assim prova nada comum dos benefícios que nosso Salvador lhes fez.
8.             Baste o que foi dito, tomado de antigos relatos, e voltemos outra vez à Sagrada Escritura. Em seguida ao martírio de Estevão produziu-se a pri­meira e grande perseguição contra a Igreja de Jerusalém por parte dos mesmos judeus. Todos os discípulos, exceto os doze, dispersaram-se por toda a Judéia e Samaria. Alguns, segundo diz a Escritura divina, chega­ram à Fenícia, Chipre e Antioquia. Não estavam ainda preparados para ousar compartilhar com os gentios a doutrina da fé, e assim anunciaram-na somente aos judeus.
9.            Neste tempo também Paulo ainda assolava a Igreja: entrava nas casas dos fiéis, arrancava à força os homens e mulheres e os encarcerava[7].
10. Mas também Felipe, um dos que foram escolhidos para o serviço junto com Estevão e que se achava entre os dispersos, desceu a Samaria e cheio do poder divino, foi o primeiro a pregar a doutrina aos Samaritanos. Tão grande era a graça divina que operava nele, que atraiu com suas palavras o próprio Simão Mago e uma grande multidão[8].
11. Por aquele tempo Simão tinha conseguido tamanha fama com seu mágico poder sobre os iludidos que ele mesmo acreditava ser o grande poder de Deus. Foi então que, pasmo ante as incríveis maravilhas operadas por Felipe com o poder divino, infiltrou-se e levou o fingimento de sua fé em Cristo ao ponto de ser batizado[9].
12.     O que também é de admirar é que até agora aconteça o mesmo com os que ainda hoje compartilham de sua terrível heresia, os quais, fiéis ao método de seu antepassado se infiltram na Igreja como sarna pestilenta, e causam o maior estrago àqueles em quem conseguem inocular o veneno incurável e terrível oculto neles. Mesmo assim, a maioria já foi expulsa à medida que foram surpreendidos nesta perversidade, como o mesmo Simão, quando Pedro o desmascarou e o fez pagar o merecido.
13.     Mas, enquanto dia a dia a pregação salvadora ia progredindo, alguma disposição da providência trouxe para fora da Etiópia um nobre da rainha daquele país, que ainda hoje em dia, segundo costume ancestral, é regido por uma mulher[10]. Este nobre, primeiro dos gentios a conhecer os mistérios da doutrina divina, por ter encontrado Felipe[11], e primogênito dos crentes no mundo, segundo refere um documento, depois de regressar à terra pátria, foi o primeiro a anunciar a boa nova do conhecimento do Deus de todas as coisas e a função vivificadora de nosso Salvador entre os homens, devido a isto, graças a ele, realizou-se a profecia que diz: Etiópia corre a estender suas mãos a Deus[12].
14.     Além dos citados, Paulo, o instrumento escolhido[13] não por parte dos homens nem por meio dos homens, mas por revelação do próprio Jesus Cristo e de Deus Pai, que o ressuscitou de entre os mortos, foi proclamado apóstolo: uma visão e uma voz do céu[14] no momento da revelação o consi­deraram digno da chamada.

II - Da emoção de Tibério ao ser informado por Pilatos dos feitos referentes a Cristo
1. A fama da assombrosa ressurreição de nosso Salvador e de sua ascen­são aos céus já havia alcançado a grande maioria. Havia sido imposto aos governadores das nações o antigo costume de informar o ocupante do cargo imperial de todas a novidades ocorridas em suas regiões, para que nada escapasse de seu conhecimento. Pilatos portanto informou ao Imperador Tibério sobre tudo o que corria de boca em boca por toda a Palestina sobre a ressurreição de nosso Salvador Jesus de entre os mortos.
2.             Informou-o também de seus outros milagres e de que o povo já acreditava que ele era Deus, porque depois de sua morte ressuscitou de entre os mortos. Diz-se que Tibério levou o assunto ao senado, e que este o rechaçou, aparentemente porque não o havia aprovado previamente - pois uma antiga lei prescrevia que, entre os romanos, ninguém poderia ser divinizado se não o fosse por voto e por decreto do senado -, mas na realidade era porque a doutrina salvadora da pregação divina não necessitava de ratificação nem de recomendação vinda dos homens.
3.             Desta forma pois, o senado romano rechaçou o informe apresentado sobre nosso Salvador. Tibério, por outro lado, conservou sua primeira opinião e não tramou nada de errado contra a doutrina de Cristo.
4.             Tertuliano, fiel conhecedor das leis romanas, homem insigne por outros méritos e ilustríssimo em Roma, expõe todos estes fatos em sua Apologia pelos cristãos, que escreveu no próprio idioma romano e que está traduzida em língua grega, expressando-se textualmente como segue:
5.             "Mas, para que discutamos partindo da origem de tais leis, existia um antigo decreto de que ninguém podia ser consagrado como deus antes de ser aprovado pelo senado. Marco Emílio assim o fez a respeito de certo ídolo, Alburno. Também isto vai a favor de nossa doutrina: que entre vós a divindade seja outorgada por arbítrio dos homens. Se um deus não agrada ao homem, não chega a ser deus. Assim, quanto a isto, convém que o homem seja propício a Deus!
6.             Tibério, pois, sob o qual apareceu no mundo o nome de cristão, quando lhe anunciaram esta doutrina procedente da Palestina, onde primeiro começou, comunicou-o ao senado, explicando aos senadores que dita doutrina o agradava. Mas o senado a rechaçou por não tê-la aprovado previamente. Tibério, por outro lado, persistiu na sua declaração e ameaçou de morte aos acusadores dos cristãos."
A providência celestial tinha disposto este ânimo ao imperador a fim de que a doutrina do Evangelho tivesse um início livre de obstáculos e se propagasse por toda a terra.

III - De como a doutrina de Cristo em pouco tempo se propagou por todo o mundo
1. Assim, sem dúvida por uma força e uma assistência de cima, a doutrina salvadora, como um raio de sol, iluminou subitamente toda a terra habi­tada. De pronto, conforme as divinas Escrituras, a voz de seus evangelistas inspirados e de seus apóstolos ressoou em toda a terra, e suas palavras nos confins do mundo[15].
2.      Efetivamente, por todas as cidades e aldeias, como numa época fervilhante, constituíam-se em massa igrejas formadas por multidões inumeráveis. Os que por herança ancestral e por um antigo erro tinham suas almas presas da antiga moléstia da superstição idólatra, pelo poder de Cristo e graças ao ensinamento de seus discípulos e aos milagres que os acom­panhavam, tendo rompidas suas penosas prisões, afastaram-se dos ídolos como de amos terríveis e cuspiram fora todo o politeísmo demoníaco e confessaram que não há mais do que um só Deus: o criador de todas as coisas. E a este Deus honraram com os ritos da verdadeira religião por meio de um culto divino e racional, o mesmo que nosso Salvador semeou na vida dos homens.
3.      Pois bem, como quer que a graça divina já se difundisse pelas demais nações, e em Cesaréia da Palestina Cornélio e toda sua casa haviam sido os primeiros a aceitar a fé em Cristo por meio de uma aparição divina e do ministério de Pedro, também em Antioquia ela foi aceita por toda uma multidão de gregos aos quais haviam pregado os que foram dispersados quando da persegui­ção contra Estevão[16]. A Igreja de Antioquia já florescia e se multiplicava quando, estando presentes numerosos profetas chegados de Jerusalém[17], e com eles Barnabé e Paulo, além de uma multidão de outros irmãos, pela primeira vez o nome de Cristãos brotou dela, como de uma fonte caudalosa e fecundante.
4.      Ágabo era também um dos profetas que estava com eles e predizia como iminente uma grande fome, devido a isto Paulo e Barnabé foram enviados para pôr-se a serviço da assistência aos irmãos"[18].



O que mais te chamou a atenção neste texto?
O que o texto contribui para a sua espiritualidade?







* Este livro foi composto com extratos de Clemente, de Tertuliano, de Josefo e de Fílon.
[1] At 6:1-6.
[2] At 7:58-59.
[3] Gl 1:19.
[4] Gl 1:19.
[5] vide I:XIII:5.
[6] vide I:XIII: 11-18.
[7] At 8:3.
[8] At 8:5-13.
[9] At 8:13.
[10] Não mais ao tempo de Eusébio, mas da fonte por ele consultada.
[11] At 8:26-39.
[12] Sl 67:32 (68:31).
[13] At 9:15.
[14] At 9:3-6; 22:6-9; 26:14-19.
[15] Sl 18:5 (19:4); Rm 10:18.
[16] At 11:19-26.
[17] At 11:27.
[18] At 11:28-30.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

História Eclesiástica - Livro 1 - Capítulos 11 a 13

12
História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia
Livro I – Capítulos 11 a 13

XI - Testemunhos sobre João Batista e Cristo
XII - Dos discípulos de nosso Salvador
XIII - Relato sobre o rei de Edessa

13 de dezembro de 2014.



XI - Testemunhos sobre João Batista e Cristo
1. Não muito depois, Herodes o Jovem mandou decapitar João o Batista. O texto sagrado do Evangelho também o menciona[1] e Josefo o confirma, ao menos quando faz referência a Herodias e de como Herodes se casou com ela, apesar de ser mulher de seu irmão, depois de repudiar sua pri­meira e legítima esposa (filha de Aretas, rei de Petra) e de separar Hero­dias de seu marido, que ainda vivia; menciona também que por causa dela deu morte a João e promoveu uma guerra contra Aretas, cuja filha tinha desonrado.
2.             E diz ainda que nesta guerra, durante a batalha, o exército de Herodes foi desbaratado por inteiro, e que tudo isso aconteceu por ter atentado contra João.
3.             O mesmo Josefo confessa que João era um homem extremamente justo e que batizava, confirmando assim o que está escrito sobre ele no texto dos evangelhos. Menciona ainda que Herodes foi destronado por culpa da mesma Herodias, e com ela foi desterrado, condenado a habitar na cidade de Viena, na Gália[2].
4.      Isto é o que narra no mesmo livro XVIII das Antigüidades, onde escreve sobre João o que segue textualmente:
"Para alguns judeus parece que foi Deus que desbaratou o exército de Herodes, fazendo-o pagar muito justamente pelo que fez a João, chamado o Batista.
5.      Porque Herodes havia-lhe dado morte. Era um homem bom e que exortava os judeus ao exercício da virtude, a usar da justiça no trato de uns com os outros e da piedade para com Deus, e a aceitar o batismo. Porque desta maneira também o batismo lhe parecia aceitável, não como instrumento de perdão para alguns pecados, mas para a purificação do corpo, desde que a justiça já de antemão houvesse purificado a alma.
6.             E como outros se fossem aglomerando em torno de João (pois ficavam suspensos escutando suas palavras), Herodes, temeroso de que uma tal força de persuasão sobre os homens conduzisse a alguma revolta (já que em tudo pareciam proceder segundo os conselhos de João), pensou que o melhor era antecipar-se e fazê-lo matar antes que armasse uma revolução, em vez de ver-se envolto em dificuldades por uma mudança de situação e ter que se arrepender mais tarde. E João, devido à suspeita de Herodes, foi mandado prisioneiro a Maqueronte, a célebre fortaleza mais acima, e ali foi executado."
7.   Depois de explicar tudo isto a respeito de João, na mesma obra histórica menciona também nosso Salvador nos seguintes termos:
"Por este mesmo tempo viveu Jesus, homem muito sábio se é que de homem devemos chamá-lo, porque realizava obras portentosas, era mestre dos homens que recebiam com prazer a verdade e atraiu não somente muitos judeus, mas também muitos gregos.
8.    Este era o Cristo. Havendo-lhe infligido Pilatos o suplício da cruz, instigado por nossos líderes, os que primeiro o haviam amado não cessaram de amá-lo, pois ao fim de três dias novamente apareceu-lhes vivo. Os profetas de Deus tinham dito estas mesmas coisas e outras incontáveis maravilhas sobre ele. A tribo dos Cristãos, que dele tomou o nome, ainda não desapareceu até hoje."
9.  Quando um escritor saído dentre os próprios judeus transmite desde o começo em suas próprias obras estas coisas referentes a João Batista e a nosso Salvador, que subterfúgio resta aos que tramaram contra eles as Memórias, sem que fique evidente seu descaramento? Mas seja bastante o que foi dito.

XII - Dos discípulos de nosso Salvador
1.            Dos apóstolos do Salvador, pelo menos os nomes aparecem claramente em todos os evangelhos[3]. Dos setenta discípulos por outro lado, em nenhum lugar se encontra lista alguma; mesmo assim, sabe-se ao menos que Barnabé era um deles; dele fazem menção especial os Atos dos Apóstolos[4], igual­mente Paulo quando escreve aos Gálatas[5]. Dizem ainda que também Sóstenes, um dos que escrevem com Paulo aos Coríntios, era um deles[6].
2.            A referência se encontra em Clemente, no livro V das Hypotyposeis, onde afirma que também Cefas - de quem Paulo diz: Mas quando Cefas veio a Antioquia, enfrentei-me com ele[7]-, era um dos setenta discípulos e que sua homonímia com o apóstolo Pedro era casual.
3.            E um documento[8] ensina também que Matias - o que foi juntado à lista dos apóstolos em substituição a Judas - e o outro que com ele teve a honra de disputar a sorte foram dignos de serem dos setenta[9]. Diz-se ainda[10] que também Tadeu era um deles, sobre este chega a nós um relato que exporei em seguida[11].
4.     Mas observando bem, encontraremos que os discípulos do Salvador eram muito mais do que os setenta, aceitando o testemunho de Paulo, que diz que depois de sua ressurreição dentre os mortos apareceu primeiro a Cefas, depois aos doze, e depois destes a mais de quinhentos irmãos juntos, sobre os quais afirmava que alguns já tinham morrido, mas que a maior parte ainda vivia no tempo em que ele escrevia estas coisas[12].
5.     Depois diz que apareceu a Tiago. Pois bem, este era também um dos men­cionados irmãos do Salvador. Portanto, de qualquer forma, os apóstolos à imagem dos doze eram muitos mais - o próprio Paulo o era -, prossegue dizendo: depois apareceu a todos os apóstolos. Sobre este tema, baste o que foi dito.

XIII - Relato sobre o rei de Edessa
1.             O relato acerca de Tadeu[13] é como segue. A fama da divindade de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, devido ao seu poder milagroso, alcançou a todos os homens, e com a esperança de cura de suas enfermidades e moléstias de toda espécie, atraía a inumeráveis pessoas que habitavam inclusive no estrangeiro, muito longe da Judéia.
2.             Nestas condições se achava o rei Abgaro, que reinava excelentemente sobre os povos do outro lado do Eufrates e tinha seu corpo destroçado por uma doença terrível e incurável para o poder humano. Assim que chegaram a ele notícias recorrentes sobre o nome de Jesus e os milagres unanimemente testemunhados por todos, converteu-se em seu suplicante, enviando um mensageiro com uma carta na qual pedia para ver-se livre da enfermidade.
3.      Mas Jesus não atendeu de imediato a seu chamamento. Mesmo assim, fez-lhe a honra de uma carta de próprio punho e letra na qual prometia enviar-lhe um de seus discípulos que o curaria da enfermidade e ao mesmo tempo levaria a salvação para ele e para os seus.
4.      Não passou muito tempo sem que Jesus cumprisse sua promessa. Depois de sua ressurreição de entre os mortos e de sua ascensão aos céus, Tomás, um dos doze apóstolos, movido por Deus, enviou à região de Edessa Tadeu -que também era um dos setenta discípulos de Cristo - como arauto e evangelista da doutrina de Cristo, e por meio dele se cumpriu o que o Sal­vador havia prometido.
5.      Temos de tudo isto testemunho escrito, tirado dos arquivos de Edessa, que naquele tempo era a corte. Nos documentos públicos que neles se guardam e que contém os feitos antigos e dos tempos de Abgaro, encontra-se também o referido testemunho, conservado deste então e até hoje. Mas nada melhor do que ouvir as próprias cartas que tiramos dos arquivos e que, traduzidas do siríaco[14], dizem textualmente como segue:
      Cópia da carta escrita por Abgaro, toparca, a Jesus e enviada a Jerusalém pelo mensageiro Ananías.
6.      "Abgaro Ucama[15], toparca, a Jesus, o bom salvador que surgiu na região de Jerusalém, saudações: Tem chegado a meus ouvidos notícias acerca de tua pessoa e de tuas curas, que, ao que parece, realizas sem empregar remédios ou ervas, pois pelo que se conta, fazes com que os cegos recobrem a visão e que os coxos andem; limpas os leprosos e retiras espíritos impuros e demô­nios; curas os que estão atormentados por longa enfermidade e ressuscitas mortos.
7.      E eu, ao ouvir tudo isto de ti, pus-me a pensar que, de duas possibilidades uma: ou és Deus, que descendo pessoalmente do céu realizas estas mara­vilhas, ou és filho de Deus, já que fazes tais obras.
8.      Este é, pois, o motivo para escrever-te rogando-te que te apresses a vir a mim e curar-me do mal que me aflige. Porque também tenho ouvido que os judeus andam murmurando contra ti e querem fazer-te mal. Muito pequena é minha cidade, mas digna, e bastará para os dois[16]."
9.      Esta é a carta que Abgaro escreveu, iluminado então por um pouco de luz divina. Mas será bom que escutemos a carta que Jesus enviou a ele pelo mesmo correio, carta de poucas linhas, mas de muita força, cujo teor é o que segue:
Resposta de Jesus a Abgaro, toparca, por meio do mensageiro Ananías.
10. "Bem-aventurado tu, que creste em mim sem ter me visto. Porque de mim está escrito que os que me viram não crerão em mim, e que aqueles que não me viram crerão e terão a vida. Mas, acerca do que me escreves de ir para junto de ti, é necessário que eu cumpra aqui por inteiro minha missão e que, depois de havê-la consumado, suba novamente ao que me enviou[17]. Quando tiver subido, te mandarei algum de meus discípulos, que sanará tua doença
e trará a vida a ti e aos teus."
11. A estas cartas estava anexado ainda, em siríaco, o seguinte:
"Depois da ascensão de Jesus, Judas, chamado também Tomás, enviou-lhe como apóstolo a Tadeu, um dos setenta, o qual chegou e se hospedou na casa de Tobías, filho de Tobías. Quando se espalhou a notícia sobre ele, avisaram a Abgaro que havia chegado ali um apóstolo de Jesus, como tinha sido descrito na carta.
12. Começou pois Tadeu, com o poder de Deus[18], a curar toda enfermidade e fraqueza, ao ponto de todos se admirarem. Mas, quando Abgaro ouviu falar dos prodígios e maravilhas que operava e de que também curava, veio-lhe a suspeita de se seria o mesmo do qual Jesus falava na carta, ali onde dizia: Quando tiver subido, te mandarei algum de meus discípulos, que sanará tua doença.
13.     Fez pois chamar a Tobías, em cuja casa se hospedava, e lhe disse: Tenho ouvido dizer que veio certo homem poderoso e que se aloja em tua casa. Traga-o a mim. Foi-se Tobías para junto de Tadeu e lhe disse: O toparca Abgaro mandou chamar-me e me ordenou que te levasse até ele para que o cures; e Tadeu respondeu-lhe: Subirei, posto que fui enviado a ele com poder."
14.     "No dia seguinte Tobías madrugou, e tomando consigo a Tadeu, foi até Abgaro. Entrou Tadeu, estando ali presentes de pé os nobres do rei, e no momento de fazer sua entrada, uma grande visão apareceu a Abgaro no rosto do apóstolo Tadeu. Ao vê-la, Abgaro se prosternou ante Tadeu, deixan­do em suspenso todos os que o rodeavam, pois eles não haviam contemplado a visão, que só se mostrou a Abgaro.
15.     Este perguntou a Tadeu: És tu em verdade discípulo de Jesus, o filho de Deus, o que me disse: te mandarei algum de meus discípulos que te curará e te dará vida? E Tadeu respondeu: Porque é muito grande a tua fé naquele que me enviou, por isso fui enviado a ti. E se ainda crês nele, segundo a fé que tenhas, assim verás cumpridas as súplicas de teu coração.
16.     E Abgaro respondeu-lhe: de tal maneira cri nele, que quis tomar um exército e aniquilar os judeus que o crucificaram, se não me tivesse feito desistir o medo ao Império romano. E Tadeu lhe disse: Nosso Senhor cumpriu a vontade do Pai, e uma vez cumprida, subiu ao Pai.
17.     Disse-lhe Abgaro: Também cri nele e em seu Pai, e Tadeu disse: Por isto vou pôr minha mão sobre ti em seu nome. E assim que o fez, no mesmo instante curou-se o rei de sua enfermidade e das dores que tinha.
18.     E Abgaro se maravilhou, porque tal como tinha ouvido dizer sobre Jesus, assim acabava de experimentar de fato por obra de seu discípulo Tadeu, que o tinha curado sem remédios nem ervas. E não somente a ele, mas também a Abdon, filho de Abdon, que sofria de gota e que, aproximando-se também de Tadeu, caiu a seus pés, suplicou com suas mãos e foi curado. E muitos outros concidadãos curou Tadeu, operando maravilhas e proclamando a palavra de Deus.

19.      Depois disso disse Abgaro: Tadeu, tu fazes estes milagres com o poder de Deus, e nós ficamos maravilhados. Mas eu te rogo que também nos dês alguma explicação sobre a vinda de Jesus, como foi, e também sobre seu poder: em virtude de que poder operava ele os prodígios de que ouvi falar.
20.  E Tadeu respondeu: Agora guardarei silêncio. Mas amanhã, já que fui enviado para pregar a palavra, convoca em assembléia todos teus concidadãos, e eu pregarei diante deles, e neles semearei a palavra da vida: sobre a vinda de Jesus: como foi; e sobre sua missão: por que o Pai o enviou; e sobre seu poder, suas obras e os mistérios de que falou no mundo: em virtude de que poder realizava isto; e sobre a novidade de sua mensagem, de sua humildade e humilhação: como se humilhou a si mesmo depondo e reduzindo sua divindade, e como foi crucificado e desceu ao Hades, e fez saltar o ferrolho que desde sempre prevalecia e ressuscitou mortos, e como, tendo descido só, subiu a seu Pai com uma grande multidão.
21. Mandou pois Abgaro que ao amanhecer se reunissem todos seus cidadãos e que escutassem a pregação de Tadeu, e ordenou que lhe dessem ouro e prata sem poupar. Mas ele não o aceitou e disse: Se deixamos o nosso, como poderíamos tomar o alheio?
Corria o ano de 340.[19]
22. Baste para o momento este relato, que não será inútil, traduzido literalmente da língua Siríaca.


O que mais te chamou a atenção neste texto?
O que o texto contribui para a sua espiritualidade?











[1] Mt 14:1; Mc 6:14-29; Lc 3:19-20; 9:7-9.
[2] Engana-se o autor. Quem foi desterrado para Viena foi Arquelau; Herodes o Jovem foi desterrado para Lion (Lugdunum).
[3] Mt 10:2-4; Mc 3:16-19; Lc 6:14-16.
[4] At 4:36; 9:27; 11:22-30; 12:25; 13:15.
[5] Gl 2:1, 9, 13.
[6] 1 Co 1:1.
[7] Gl 2:11.
[8] Significando tradição passada por escrito.
[9] At 1:23-26.
[10] Tradição oral, sem registro escrito.
[11] Para Mt 10:3 e Mc 3:14, 18. Tadeu era um dos doze, mas em Lucas ele não aparece.
[12] 1 Co 15:5-7.
[13] Cf. 12:3.
[14] Eusébio provavelmente copiou os documentos já traduzidos anteriormente.
[15] Abgaro o Negro.
[16] Gn 19:20.
[17] At l:2-ss.;Jo 16:5.
[18] Mt 10:1.
[19] Isto seria os anos 28-29 d.C; o texto segue a Era Selêucida, iniciada em 1º de outubro de 312a.C.