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História Eclesiástica de Eusébio de
Cesaréia
Livro III
- Capítulos 36-39
Texto Bíblico: I Coríntios 4.4
XXXVI - Sobre Inácio e suas
cartas
XXXVII - Dos evangelistas que ainda então se distinguiam
XXXVIII
- Da carta de Clemente e os escritos que falsamente lhe atribuem
XXXIX - Dos escritos de Papias
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1.
Brilhava por este tempo na Ásia
Policarpo, discípulo dos apóstolos, a quem as testemunhas oculares e os ministros do
Senhor tinham confiado o episcopado da igreja de Esmirna.
2.
Ao mesmo tempo adquiriram notoriedade Papias, bispo da igreja
de Hierápolis, e Inácio, o homem mais
célebre para muitos ainda hoje, segundo a obter a sucessão de Pedro no
episcopado de Antioquia.
3.
Uma tradição refere que este foi
trasladado da Síria à cidade de Roma para ser alimento das feras, em testemunho de Cristo.
4.
Ao ser conduzido através da Ásia,
sob a vigilância cuidadosa dos guardiães, dava ânimo com suas falas e exortações às
igrejas de cada cidade onde faziam parada.
Primeiramente exortava-os a que sobretudo se guardassem das heresias, que precisamente então começavam a
pulular, e estimulava-os a segurar-se solidamente à tradição dos
apóstolos, que, por estar ele já a ponto de sofrer o martírio, achava
necessário pôr por escrito para fins de segurança.
5.
E foi assim que, achando-se em
Esmirna, onde estava Policarpo, escreveu uma carta à igreja de Éfeso,
mencionando Onésimo, seu pastor; outra à de Magnesia, a que está sobre Meandro,
mencionando igualmente o bispo Damas, e outra à de Trales, cujo chefe era então
Políbio, segundo diz.
6.
Além destas, escreveu também à
igreja de Roma uma carta em que expõe sua súplica para que
não intercedam por ele, para não privá-lo do martírio, sua sonhada esperança.
Em apoio ao que dissemos, será bom citar algumas passagens das citadas cartas, ainda
que brevíssimas:
Escreve pois, textualmente:
7. "Desde a Síria até Roma venho lutando com feras por terra e por mar,
de noite
e de dia, atado a dez leopardos, isto é, um grupo de soldados que ficam piores com o bem que se lhes faz. Mas com
seus maus-tratos torno-me mais e
mais discípulo. Mesmo assim, nem por isso estou justificado[1].
8.
"Oxalá pudesse eu usufruir das feras que me estão
preparadas! Espero encontrá-las bem ligeiras para comigo. Chegarei até a
adulá-las para que me devorem rapidamente e
não me façam o que fizeram a alguns, que por temor não tocaram, e se fazem de
preguiçosas e não querem, eu mesmo as forçarei.
9.
Perdoai-me. Eu sei o que me convém.
Agora estou começando a ser discípulo. Que nenhuma
coisa visível ou invisível tenha ciúme de que eu alcance a Jesus Cristo. Fogo,
cruz e manadas de feras, dispersão de ossos, destroçamento de membros, trituração do corpo todo e tormentos do diabo venham sobre mim,
contanto somente que eu alcance a Jesus Cristo."
10. Isto escrevia da
cidade mencionada às igrejas que enumeramos. Mas achando-se já longe de
Esmirna, desde Troasse põe-se a conversar, por escrito mesmo, com os de Filadélfia e com a igreja de Esmirna, e em particular
com Policarpo, que a presidia. Reconhecendo este como homem verdadeiramente apostólico e porque ele mesmo era
pastor legítimo e bom, confia-lhe
seu próprio rebanho de Antioquia e pede-lhe que se ocupe dele com
solicitude.
11.
Ele mesmo, escrevendo aos de Esmirna
e citando passagens não sei de onde, discorre sobre Cristo com estas palavras:
"Quanto a mim, sei e creio que mesmo
depois da ressurreição permanece em sua carne, e quando se aproximou dos que
rodeavam Pedro disse-lhes: 'Tomai e apalpai-me, e vede que não
sou um espírito incorpóreo.' Na mesma hora eles o tocaram e creram[2]."
12. Também
Irineu conhece seu martírio e faz menção de suas cartas quando diz
assim:
"Como disse
um dos nossos, condenado às feras por seu testemunho em favor de Deus, 'sou trigo de Deus e pelos dentes das feras sou moído
para ser encontrado como pão puro.'
13. E
Policarpo também faz menção disto na carta que se diz ser dele, dirigida
aos Filipenses, quando diz textualmente:
aos Filipenses, quando diz textualmente:
"Exorto-vos pois todos a obedecer e exercitar toda a paciência, a que
vistes com vossos olhos não somente nos bem-aventurados
Inácio, Rufo e Zózimo, mas também em outros dos vossos, e
no próprio Paulo e nos demais apóstolos, persuadidos
de que não correram em vão[3], mas na fé e na
justiça, e de que já estão no lugar que lhes é devido, junto ao Senhor, com o qual
padeceram. Porque não amaram este século, mas aquele que morreu por nós e por
nós também ressuscitou, por obra de Deus." E acrescenta logo:
14. "Vós e Inácio
escrevestes-me para que, se alguém fosse à Síria, levasse também vossas cartas. Isto farei quando encontrar
ocasião favorável, eu mesmo ou
alguém que eu envie e que será também embaixador de vossa parte.
15. As cartas de Inácio que ele enviou e todas as outras que tínhamos conosco,
vo-las
envio, como haveis pedido; seguem anexas à presente carta. Delas podereis tirar grande proveito, já que estão
cheias de fé, de paciência e de toda edificação concernente a nosso
Senhor."
Isto
é o que se refere a Inácio. Depois dele Heros recebeu a sucessão do episcopado
de Antioquia.
XXXVII - Dos evangelistas que ainda então se distinguiam
1. Entre os que eram famosos neste tempo, achava-se também Codratos, sobre o qual uma
tradição refere que sobressaía em carisma profético, juntamente com as filhas
de Felipe. Também eram célebres então, além destes, muitos outros que tiveram o primeiro lugar na sucessão dos
apóstolos. Estes magníficos discípulos de tão grandes homens edificavam
sobre os fundamentos das igrejas deixados anteriormente em cada lugar pelos apóstolos[4]. Aumentavam
mais e mais a pregação e semeavam por toda a extensão da terra habitada
a semente salvadora do reino dos céus.
2.
Efetivamente, muitos dos discípulos
de então, tocados na alma pela palavra divina com um amor muito forte à
filosofia[5], primeiramente
cumpriam o mandamento salvador repartindo seus bens entre os indigentes[6], e depois empreendiam viagem e realizavam trabalho de evangelistas[7], empenhando sua honra em pregar aos que ainda não haviam ouvido a palavra da fé e em transmitir por
escrito os divinos evangelhos[8].
3.
Estes homens nada mais faziam que
deitar os fundamentos da fé em alguns lugares estrangeiros e estabelecer outros
como pastores, encarregando-os do cultivo dos recém-admitidos, e em seguida
mudavam-se para outras regiões e outros
povos com a graça e a cooperação de Deus, já que por meio deles continuavam
realizando-se ainda então muitos e maravilhosos poderes do Espírito
divino, de forma que, desde a primeira vez que os ouviam, multidões inteiras de pessoas recebiam em massa
com ardor em suas almas a religião do Criador do universo.
4. Sendo-nos impossível enumerar pelo nome todos os que na primeira geração de apóstolos foram
pastores e inclusive evangelistas nas igrejas de todo o mundo, é natural que
mencionemos por seus nomes e por escrito apenas aqueles dos quais se conserva a tradição até hoje graças a suas
memórias da doutrina apostólica.
XXXVIII -
Da carta de Clemente e os escritos que falsamente lhe atribuem
1.
Não cabe dúvida, portanto, de que
tais são Inácio, em suas cartas cuja lista fornecemos, e
Clemente na carta por todos admitida, que escreveu em nome da igreja de Roma à de Corinto. Nela Clemente expõe muitos pensamentos da Carta aos Hebreus, e inclusive utiliza textualmente algumas
passagens da mesma, mostrando assim com toda claridade que este
escrito não é recente.
2.
Por isso pareceu natural catalogá-lo entre os demais escritos
do apóstolo. Porque Paulo praticou por
escrito com os hebreus valendo-se de sua língua pátria, e alguns dizem que a carta foi traduzida pelo evangelista
Lucas, mas outros afirmam que foi o próprio Clemente,
3.
o que talvez seja mais verdadeiro
pelo fato de ambas, a Carta de Clemente e a Carta
aos Hebreus, conservarem um caráter estilístico semelhante, além de não se diferenciar muito o pensamento de um e outro escrito.
4.
Deve-se saber ainda que há uma
segunda carta que se diz de Clemente, mas não sabemos que seja
conhecida como a primeira, já que nem os antigos a utilizaram, tanto
quanto sabemos.
5.
E muito recentemente alguns
trouxeram à luz, dizendo que são dele, outros escritos,
verbosos e longos, que contêm os diálogos de Pedro e Apion. Destes escritos não se
encontra a menor menção entre os antigos, nem mesmo conservam puro o caráter da ortodoxia apostólica. Conseqüentemente fica
claro qual é o escrito aceito de
Clemente. Também se falou dos de Inácio e de Policarpo.
XXXIX - Dos escritos de Papias
1. Diz-se que são cinco os escritos de Papias, sob o título de Explicações
das palavras do Senhor. Irineu os menciona como os únicos escritos de Papias; assim diz:
"Isto também atesta por escrito Papias, que foi ouvinte de João,
companheiro de Policarpo e varão dos antigos, no
quarto livro dos que escreveu, porque efetivamente tem cinco livros
escritos."
2. Isto é o que diz Irineu. O próprio Papias no entanto, segundo o prólogo de
seus tratados, não se apresenta de modo algum como ouvinte e
testemunha ocular dos sagrados apóstolos, mas ensina-nos que recebeu o
referente à fé da boca de outros que os conheceram, estas são suas palavras:
3.
"Não vacilarei em apresentar-te
ordenadamente com as interpretações tudo o que um dia aprendi
muito bem dos presbíteros e que recordo bem, seguro que estou de sua verdade. Porque eu não me comprazia como outros com os que falam
muito, mas com os que ensinam a verdade; nem tampouco com os que recordam mandamentos alheios, mas com os que trazem na memória
os (mandamentos) que receberam pela fé da parte do Senhor e nascem da própria
verdade.
4. E se por acaso
chegava alguém que também havia seguido os presbíteros, eu procurava discernir as palavras dos presbíteros: o que disse
André, ou Pedro, ou Felipe, ou Tomás, ou Tiago, ou João, ou Mateus ou
qualquer outro dos discípulos do Senhor, porque eu pensava que não aproveitaria
tanto o que tirasse dos livros como o que provêm de uma voz viva e
durável."
5. Aqui seria bom fazer notar também
que ele enumera duas vezes o nome de João. O
primeiro coloca na lista com Pedro, Tiago, Mateus e os demais apóstolos,
sendo evidente que se refere ao evangelista; já ao outro João, depois de cortar
o discurso, coloca-o com outros, fora do número dos apóstolos, antepondo
Aristion e chamando-o claramente de presbítero.
6.
De forma que também isto demonstra que é verdade a história
dos que dizem que na Ásia houve dois com este mesmo nome, e em Éfeso dois
sepulcros, dos quais ainda hoje se afirma que são, um e outro, de João. É
necessário prestar atenção a estes fatos, porque é provável que fosse o segundo
- se não se prefere o primeiro - o que viu a Revelação (= Apocalipse)
que corre sob o nome de João.
7.
Agora bem, Papias, de quem estamos falando, confessa que
recebeu as palavras dos apóstolos de
discípulos destes, enquanto que de Aristion e de João o Presbítero ele diz ter sido ouvinte direto. Efetivamente
menciona-os pelo nome várias vezes em seus escritos e compila suas
tradições.
8.
E não se diga que por nossa parte é inútil o dito. Mas é
justo adicionar às palavras de Papias já citadas outros ditos seus com os quais
se refere a algumas coisas estranhas e
outros detalhes que, segundo ele, chegaram-lhe pela tradição.
9.
Pois bem, já foi explicado mais
acima que o apóstolo Felipe morou em Hierápolis com suas
filhas, mas agora há que se assinalar como Papias, que viveu nesse mesmo tempo, faz menção de haver recebido um relato maravilhoso da boca das filhas de Felipe. Narra efetivamente a ressurreição de
um morto ocorrida em seu tempo e, como se fosse pouco, outro
fato portentoso referente a Justo, apelidado Barsabás, pois aconteceu que este bebeu uma poção mortal sem que, pela graça do Senhor,
sofresse qualquer dano.
10. Depois da ascensão do Salvador, os sagrados apóstolos puseram este Justo junto com Matias e
oraram sobre eles para que a sorte completasse seu número em lugar do traidor
Judas; conta-o o livro dos Atos da seguinte maneira: E puseram dois: José, chamado Barsabás, que tinha por
sobrenome Justo, e Matias. E orando sobre eles disseram[9].
11. O próprio Papias conta também outras coisas como tendo chegado a ele por tradição não
escrita, algumas estranhas parábolas do Salvador e de sua doutrina, e algumas outras coisas ainda mais
fabulosas.
12. Entre elas diz
que, depois da ressurreição dentre os mortos, haverá um milênio, e que o reino de Cristo se estabelecerá fisicamente sobre esta
terra. Eu creio que Papias supõe tudo isto por haver derivado das explicações
dos apóstolos, não percebendo que estes haviam-no dito figuradamente e
de modo simbólico.
13. E aparece como
homem de muito escassa inteligência, segundo se pode supor por seus livros. Mesmo assim, ele foi o culpado de que tantos
escritores eclesiásticos depois dele tenham abraçado a mesma opinião
que ele, apoiando-se na antigüidade de tal
varão, como realmente faz Irineu e qualquer outro que manifeste
professar idéias parecidas.
14. Em sua própria obra Papias transmite ainda outras interpretações das palavras do Senhor
recebidas de Aristion, mencionado acima, assim como também outras tradições de
João o Presbítero. A elas remetemos a quantos queiram instruir-se. Agora nos
vemos obrigados a acrescentar às suas
palavras anteriormente citadas uma tradição acerca de Marcos, o que escreveu
o Evangelho, que vem exposta nos termos seguintes:
15. "E o
presbítero dizia isto: Marcos, que foi intérprete de Pedro, pôs por escrito, ainda
que não com ordem, o quanto recordava do que o Senhor havia dito e feito. Porque ele não tinha ouvido o Senhor nem o havia
seguido, mas, como disse, a Pedro
mais tarde, o qual transmitia seus ensinamentos segundo as necessidades e não como quem faz uma composição das palavras
do Senhor, mas de tal forma que
Marcos em nada se enganou ao escrever algumas
coisas tal como as recordava. E pôs toda sua preocupação em uma só coisa: não descuidar nada de quanto havia
ouvido nem enganar-se nisto o mínimo."
16. Isto é o que conta Papias sobre Marcos. Referente a Mateus, diz o
seguinte: "Mateus ordenou as sentenças em língua hebraica, mas cada um as
traduzia como melhor podia."
17. O mesmo escritor utiliza testemunhos tomados da primeira carta de João, e igualmente da de Pedro, e expõe também outro relato de uma mulher acusada de muitos pecados
ante o Senhor, que está contido no Evangelho dos hebreus[10]. Que conste também isto, além do que já havia
exposto.
O que mais te chamou a
atenção neste texto?
O que o texto contribui para
a sua espiritualidade?
Ícone da Capa: Papias foi um escritor do primeiro terço do século II e um
dos primeiros líderes da igreja cristã. Eusébio de Cesareia o chama de bispo de
Hierápolis (atualmente Hierápolis-Pamukkale, Turquia), que fica a 22 km de
Laodiceia e Colossos. Ireneu diz que ele foi companheiro de Policarpo,
consequentemente discípulo do apóstolo João. Conforme a tradição ele foi
martirizado junto com Policarpo (155 d.C.). Suas Interpretações dos Provérbios
do Senhor (a palavra "ditos" é logia) em cinco livros teria sido uma
das principais autoridades no início da exegese das palavras de Jesus.
Entretanto, o livro não sobreviveu e só é conhecido através de fragmentos
citados em escritores posteriores, como Ireneu em Contra as Heresias e mais
tarde por Eusébio em História Eclesiástica. Papias foi o primeiro a investigar
as origens dos cristianismo.
[1] 1 Co 4:4.
[2] A
passagem, que pode ter sido tirada do Evangelho dos Hebreus, corresponde
a Lc 24:38-40.
[3] Fp 2:16.
[4] 1 Co
3:10; Ef 2:20.
[5]
Significa a doutrina cristã vivida.
[6] Mt 19:21; Mc 10:21; Lc 18:22.
[7] 2 Tm 4:5.
[9] At
1:23-24.
[10] Eusébio
apenas assinala que o relato se encontra em Papias e no Evangelho dos hebreus. É muito possível que se trate do mesmo
que consta em Jo 7:53-8:11.
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