sábado, 26 de março de 2016

Sermão de Santo Agostinho de Hipona sobre a Ressurreição do Senhor

Pregação em uma Vigília Pascal



A ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo lê-se estes dias, como é costume, segundo cada um dos livros do santo Evangelho. Na leitura de hoje ouvimos Jesus Cristo censurando os discípulos, primeiros membros seus, companheiros seus porque não criam estar vivo aquele mesmo por cuja morte choravam. Pais da fé, mas ainda não fiéis; mestres - e a terra inteira haveria de crer no que pregariam, pelo que, aliás, morreriam - mas ainda não criam. Não acreditavam ter ressuscitado aquele que haviam visto ressuscitando os mortos. Com razão, censurados: ficavam patenteados a si mesmos, para saberem o que seriam por si mesmos os que muito seriam graças a ele.
E foi deste modo que Pedro se mostrou quem era: quando iminente a Paixão do Senhor, muito presumiu; chegada a Paixão, titubeou. Mas caiu em si, condoeu-se, chorou, convertendo-se a seu Criador.

Eis quem eram os que ainda não criam, apesar de já verem. Grande, pois, foi a honra a nós concedida por aquele que permitiu crêssemos no que não vemos! Nós cremos pelas palavras deles, ao passo que eles não criam em seus próprios olhos.

A ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo é a vida nova dos que crêem em Jesus, e este é o mistério da sua Paixão e Ressurreição, que muito devíeis conhecer e celebrar. Porque não sem motivo desceu a Vida até a morte. Não foi sem motivo que a fonte da vida, de onde se bebe para viver, bebeu desse cálice que não lhe convinha. Por que a Cristo não convinha a morte.

De onde veio a morte?

Vamos investigar a origem da morte. O pai da morte é o pecado. Se nunca houvesse pecado ninguém morreria. O primeiro homem recebeu a lei de Deus, isto é, um preceito de Deus, com a condição de que se o observasse viveria e se o violasse morreria. Não crendo que morreria, fez o que o faria morrer; e verificou a verdade do que dissera quem lhe dera a lei. Desde então, a morte. Desde então, ainda, a segunda morte, após a primeira, isto é, após a morte temporal a eterna morte. Sujeito a essa condição de morte, a essas leis do inferno, nasce todo homem; mas por causa desse mesmo homem, Deus se fez homem, para que não perecesse o homem. Não veio, pois, ligado às leis da morte, e por isso diz o Salmo: “Livre entre os mortos” [Sl 87].

Concebeu-o, sem concupiscência, uma Virgem; como Virgem deu-lhe à luz, Virgem permaneceu. Ele viveu sem culpa, não morreu por motivo de culpa, comungava conosco no castigo mas não na culpa. O castigo da culpa é a morte. Nosso Senhor Jesus Cristo veio morrer, mas não veio pecar; comungando conosco no castigo sem a culpa, aboliu tanto a culpa como a castigo. Que castigo aboliu? O que nos cabia após esta vida. Foi assim crucificado para mostrar na cruz o fim do nosso homem velho; e ressuscitou, para mostrar em sua vida, como é a nossa vida nova. Ensina-o o Apóstolo: “Foi entregue por causa dos nossos pecados, ressurgiu por causa da nossa justificação”[Rm 4,25].

Como sinal disto, fora dada outrora a circuncisão aos patriarcas: no oitavo dia todo indivíduo do sexo masculino devia ser circuncidado. A circuncisão fazia-se com cutelos de pedra: porque Cristo era a pedra. Nessa circuncisão significava-se a espoliação da vida carnal a ser realizada no oitavo dia pela Ressurreição de Cristo. Pois o sétimo dia da semana é o sábado; no sábado o Senhor jazia no sepulcro, sétimo dia da semana. Ressuscitou no oitavo. A sua Ressurreição nos renova. Eis por que, ressuscitando no oitavo dia, nos circuncidou.

É nessa esperança que vivemos. Ouçamos o Apóstolo dizer. “Se ressuscitasses com Cristo…” [Cl 3,1] Como ressuscitamos, se ainda morremos? Que quer dizer o Apóstolo: “Se ressuscitasses com Cristo?” Acaso ressuscitariam os que não tivessem antes morrido? Mas falava aos vivos, aos que ainda não morreram … os quais, contudo, ressuscitaram: que quer dizer?

Vede o que ele afirma: “Se ressuscitasses com Cristo, procurai as coisas que são do alto, onde Cristo está assentado à direita de Deus, saboreai o que é do alto, não o que está sobre a terra. Porque estais mortos!”

É o próprio Apóstolo quem está falando, não eu. Ora, ele diz a verdade, e, portanto, digo-a também eu… E por que também a digo? “Acreditei e por causa disto falei” [Sl 115].

Se vivemos bem, é que morremos e ressuscitamos. Quem, porém, ainda não morreu, também não ressuscitou, vive mal ainda; e se vive mal, não vive: morra para que não morra. Que quer dizer: morra para que não morra? Converta-se, para não ser condenado.

“Se ressuscitasses com Cristo”, repito as palavras do Apóstolo, “procurai o que é do alto, onde Cristo está assentado à direita de Deus, saboreai o que é do alto, não o que é da terra. Pois morrestes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, que é a vossa vida, aparecer, então também aparecereis com ele na glória”. São palavras do Apóstolo. A quem ainda não morreu, digo-lhe que morra; a quem ainda vive mal, digo-lhe que se converta. Se vivia mal, mas já não vive assim, morreu; se vive bem, ressuscitou.

Mas, que é viver bem? Saborear o que está no alto, não o que sobre a terra. Até quando és terra e à terra tornarás? Até quando lambes a terra? Lambes a terra, amando-a, e te tornas inimigo daquele de quem diz o Salmo: “os inimigos dele lamberão a terra” [Sl 79,9].

Que éreis vós? Filhos de homens. Que sois vós? Filhos de Deus.

Ó filhos dos homens, até quando tereis o coração pesado? Por que amais a vaidade e buscais a mentira? Que mentira buscais? O mundo.

Quereis ser felizes, sei disto. Dai-me um homem que seja ladrão, criminoso, fornicador, malfeitor, sacrílego, manchado por to- dos os vícios, soterrado por todas as torpezas e maldades, mas não queira ser feliz. Sei que todos vós quereis viver felizes, mas o que faz o homem viver feliz, isso não quereis procurar. Tu, aqui, buscas o ouro, pensando que com o ouro serás feliz; mas o ouro não te faz feliz. Por que buscas a ilusão? E com tudo o que aqui procuras, quando procuras mundanamente, quando o fazes amando a terra, quando o fazes lambendo a terra, sempre visas isto: ser feliz. Ora, coisa alguma da terra te faz feliz. Por que não cessas de buscar a mentira? Como, pois, haverás de ser feliz? “Ó filhos dos homens, até quando sereis pesados de coração, vós que onerais com as coisas da terra o vosso coração?” [Sl 4,3] Até quando foram os homens pesados de coração? Foram-no antes da vinda de Cristo, antes que ressuscitasse o Cristo. Até quando tereis o coração pesado? E por que amais a vaidade e procurais a mentira? Querendo tornar-vos felizes, procurais as coisas que vos tornam míseros! Engana-vos o que descaiais, é ilusão o que buscais.

Queres ser feliz? Mostro-te, se te agrada, como o serás. Continuemos ali adiante (no versículo do Salmo): “Até quando sereis pesados de coração? Por que amais a vaidade e buscais a mentira?”“Sabei” - o quê? ? “que o Senhor engrandeceu o seu Santo” [Sl 4,3].

O Cristo veio até nossas misérias, sentiu a fone, a sede, a fadiga, dormiu, realizou coisas admiráveis, padeceu duras coisas, foi flagelado, coroado de espinhos, coberto de escarros, esbofeteado, pregado no lenho, traspassado pela lança, posto no sepulcro; mas no terceiro dia ressurgiu, acabando-se o sofrimento, morrendo a morte. Eia, tende lá os vossos olhos na ressurreição de Cristo; porque tanto quis o Pai engrandecer o seu Santo, que o ressuscitou dos mortos e lhe deu a honra de se assentar no Céu à sua direita. Mostrou-te o que deves saborear se queres ser feliz, pois aqui não o poderás ser. Nesta vida não podes ser feliz, ninguém o pode.

Boa coisa a que desejas, mas não nesta terra se encontra o que desejas. Que desejas? A vida bem-aventurada. Mas aqui não reside ela.

Se procurasses ouro num lugar onde não houvesse, alguém, sabendo da sua não existência, haveria de te dizer: “Por que estás a cavar? Que pedes à terra? Fazes uma fossa na qual hás de apenas descer, na qual nada encontrarás!”

Que responderias a tal conselheiro? “Procuro ouro”. Ele te diria: “Não nego que exista o que descias, mas não existe onde o procuras”.

Assim também, quando dizes: “Quero ser feliz”. Boa coisa queres, mas aqui não se encontra. Se aqui a tivesse tido o Cristo, igualmente a teria eu. Vê o que ele encontrou nesta região da tua morte: vindo de outros paramos, que achou aqui senão o que existe em abundância? Sofrimentos, dores, morte. Comeu contigo do que havia na cela de tua miséria. Aqui bebeu vinagre, aqui teve fel. Eis o que encontrou em tua morada.

Contudo, convidou-te à sua grande mesa, à mesa do Céu, à mesa dos anjos, onde ele é o pão. Descendo até cá, e tantos males recebendo de tua cela, não só não rejeitou a tua mesa, mas prometeu-te a sua.

E que nos diz ele?

“Crede, crede que chegareis aos bens da minha mesa, pois não recusei os males da vossa”.

Tirou-te o mal e não te dará o seu bem? Sim, da-lo-á. Pro- meteu-nos sua vida, mas é ainda mais incrível o que fez: ofereceu-nos a sua morte. Como se dissesse: “À minha mesa vos convido. Nela ninguém morre, nela está a vida verdadeiramente feliz, nela o alimento não se corrompe, mas refaz e não se acaba. Eia para onde vos convido, para a morada dos anjos, para a amizade do Pai e do Espírito Santo, para a ceia eterna, para a fraternidade comigo; enfim, a mim mesmo, à minha vida eu vos conclamo! Não quereis crer que vos darei a minha vida? Retende, como penhor a minha morte”.

Agora, pois, enquanto vivemos nesta carne corruptível, morramos com Cristo pela conversão dos costumes, vivamos com Cristo pelo amor da justiça.

Não haveremos de receber a vida bem-aventurada senão quando chegarmos àquele que veio até nós, e quando começarmos a viver com aquele que por nós morreu.
Fonte: http://cocp.50webs.com/fixas/sermressr.htm 

quarta-feira, 23 de março de 2016

Uma Vida de Impacto: M. Basilea Schlink



Uma “mãe em Cristo”, Madre Basilea, que fundou a Irmandade Evangélica de Maria após a Segunda Guerra Mundial na Alemanha, faleceu no dia 21 de março, com a idade de 96 anos.
Depois de uma vida longa e frutífera, marcada pelo sofrimento, mas também por uma paixão imensa por Jesus, e por um discipulado de total comprometimento com Deus, Basilea Schlink partiu para a glória, deixando um exemplo duradouro de confiança implícita no Pai celestial e de obediência à direção do Espírito Santo.
Filha de um professor de matemática, Klara Schlink foi criada em Braunschweig, na Alemanha, e tornou-se cristã fervorosa com a idade de 17 anos. Formou-se como professora de pré-escola e líder de juventude, completou estudos num instituto bíblico, e em 1934, tirou seu doutorado em psicologia na Universidade de Hamburg.
Schlink e sua colega luterana, Erika Madauss, tomaram uma corajosa posição cristã, durante o regime de Hitler. Quando era a presidente nacional do “Movimento Cristão das Estudantes Alemãs” (1933-35), Schlink recusou-se a compactuar com a política nazista, que impedia aos judeus cristãos de participarem de encontros e reuniões.
Durante a II Guerra Mundial ela arriscou a vida e a carreira, falando publicamente sobre o destino singular de Israel, o povo de Deus. Convocada duas vezes a comparecer perante a polícia nazista (a Gestapo) pelo fato de proclamar o senhorio de Jesus Cristo, permitiram-lhe que saísse ilesa, a despeito de sua firme postura. Madauss mantinha estudos da Bíblia para jovens e também ensinava-lhes o Antigo Testamento, que era proibido durante o regime de Hitler.
Em 11 de setembro de 1944, depois da cidade de Darmstadt ser praticamente destruída por bombardeios, causando mais de 12 mil mortos, algo tremendo aconteceu. Durante anos, Schlink e Madauss haviam orado por avivamento entre as moças dos seus grupos de estudo bíblico. Agora suas orações foram respondidas de modo bem diferente do que esperavam. Naquela noite as moças encontraram com Deus em sua santidade como Juiz e Senhor da vida e da morte. Nada podia ser escondido, nenhum cristianismo morno podia permanecer na sua santa presença.
Depois daquela noite de terror, houve um mover entre estas moças para trazer o pecado à luz e receber perdão. O momento havia chegado. Das cinzas surgiu nova vida.
Foi somente em março de 1947 que Schlink e Madauss finalmente puderam realizar sua visão de estabelecer a Irmandade. A cerimônia inaugural foi realizada no lar dos pais de Schlink em Darmstadt, na Casa Steinberg, que permanecera quase intacta apesar dos bombardeios de 1944.
Schlink assumiu o nome religioso de Madre Basilea, enquanto Madauss tornou-se Madre Martyria. As duas trabalharam juntas até a morte da Madre Martyria em 1999.
O co-fundador, Paul Riedinger, um pastor da Igreja Metodista, deu à Irmandade o nome de Maria, a mãe de Jesus, que exemplificava a fé e a dedicação à vontade de Deus, seguindo Jesus até à cruz. As primeiras Irmãs eram na maioria da igreja luterana, mas atualmente a Irmandade conta com membros de muitas denominações evangélicas, procedentes de 18 nacionalidades.
Dois anos depois da sua fundação, quando a Casa Steinberg não estava mais cabendo a Irmandade, e com apenas 30 marcos alemães em caixa, a comunidade começou a construir um novo centro que seria chamado de Canaã, aproveitando tijolos resgatados dos escombros da cidade.
Até hoje os visitantes neste centro da Irmandade são recebidos por uma faixa proclamando: “Edificado somente com a ajuda do Senhor, que fez os céus e a terra—pela fé em Jesus Cristo”.
Na época, foi levantada uma tenda ao lado do local da construção, para que a casa de Deus fosse apoiada em oração, além de serviço braçal. As pessoas se revezavam na tenda numa corrente de oração, a fim de apresentar a Deus todas as suas necessidades. E Deus supria todos os materiais, mesmo na dificuldade daquela Alemanha pós-guerra.
Qualquer problema, acidente ou revés durante a construção, levava toda a equipe de irmãs para a tenda para saber por que o Senhor estava retendo sua bênção. À medida que tensões ocultas e irritações eram trazidas à luz, elas pediam perdão umas das outras, e do Senhor. E as coisas voltavam a engrenar. Por longo tempo depois da construção terminada, quando a tenda já não existia mais, as lições de orações respondidas, de como andar na luz, e viver pela fé permaneciam firmes nas vidas dos participantes. Hoje as comunidades da Irmandade, em todos os países onde estão, dependem de Deus não só para ampliação ou estruturação, mas para seu sustento diário. Totalmente dependentes da bondade e fidelidade do Pai celestial, seja em missões de apenas duas pessoas, seja em centros maiores, onde se cozinha para mais de duzentas pessoas, existem abundantes testemunhos de como o Senhor supriu, às vezes de maneiras bem originais.
Uma visita da Madre Basilea ao Monte Sinai em 1963 resultou nos “Preceitos de Canaã”, uma aplicação prática dos Dez Mandamentos e do Sermão da Montanha. Amar, perdoar, compartilhar, dar a outra face, confiar em Deus em todas as situações — estas são as leis que Deus deu para o reino do céu. Elas funcionam. Quando todo um grupo as segue, em amorosa obediência, ele faz ali a sua morada, conforme prometeu (João 14.23).
Entre os preceitos de Canaã estão estes dois fundamentos:
• Arrependa-se diariamente—e você terá cada dia um gostinho do Reino dos Céus. E quanto maior for o seu arrependimento, tanto mais amplamente abrir-se-lhe-ão os portais para o Reino dos Céus. Salmo 51.7,8.
• Dirija-se àquele contra quem você tenha algo em seu coração — ou ele contra você — e reconcilie-se, e a oração alcançará os céus e terá poder. Mateus 5.23,24.
Além de formar irmandades, que fossem lugares onde o mundo pudesse encontrar o reino de amor que só Deus pode gerar, a vida e obra de Basilea Schlink produziu outros frutos importantes.
Depois da Segunda Guerra Mundial, ela procurou identificar-se com a culpa do seu país, visitando os lugares das atrocidades nazistas nos países vizinhos, e buscando reconciliação com os tchecos, os poloneses e outros, especialmente, os judeus. Em vários lugares, placas de reconciliação foram colocadas, expressando tristeza por esses crimes.
Ela cria fortemente que havia uma ligação entre o Holocausto e a divisão do país da Alemanha. Considerava a divisão da nação um castigo pelas atrocidades cometidas pelos alemães contra os judeus. Falava da “maldição da falta de arrependimento pela culpa para com Israel”.
Como cidadã do seu país, ansiava por corrigir os pecados daquele passado, no espírito de Daniel 9, e por encontrar maneiras práticas de expressar o amor pelo povo escolhido de Deus. Isto a levou, em 1961, a inaugurar uma pequena casa para hóspedes, em Jerusalém, para sobreviventes do Holocausto, que continua sob a liderança da Irmandade. O objetivo ali é compartilhar a dor daqueles que talvez jamais consigam se esquecer dos traumas que sofreram, e orar com eles para que se sintam como se estivessem repousando no seio de Abraão, e para que experimentem a paz do Todo-Poderoso. Passagens das Escrituras são lidas, mostrando que Deus jamais se esqueceu do seu povo em todos seus sofrimentos, e que jamais se esquecerá da sua aliança, que é eterna.
Outro aspecto da sua obra foi iniciada durante as décadas de 1950 e 1960, que era a construção de “pontes” entre cristãos de diferentes denominações, principalmente católicos, ortodoxos e coptas, segundo o último pedido de Jesus em João 17. Por cima das barreiras denominacio- nais e nacionais, laços de comunhão foram estabelecidos, porque, como ela dizia: “Quanto mais perto estivermos do coração amoroso de Deus, tanto mais perto estaremos uns dos outros.”
Finalmente, procurando expressar o amor por Jesus, e de Jesus para o mundo, que é o cerne de todo verdadeiro ministério, Madre Basilea transmitiu esta mensagem de todas as maneiras possíveis ao seu alcance. Livros e panfletos de Canaã foram traduzidos e distribuídos em mais de 60 idiomas. Há aproximadamente 300 transmissões radiofônicas, semanalmente, em 12 línguas. Uma variedade de programas de vídeo em 23 línguas já foi transmitida em todos os cinco continentes, por centenas de estações.
Dos Bálcãs, dilacerados pela guerra, até os campos mortíferos de Ruanda, essa literatura tem alcançado áreas consideradas inacessíveis. No auge da Guerra Fria, os livros da Madre Basilea eram secretamente copiados a mão e passados entre as pessoas na antiga União Soviética e nos satélites da Europa Oriental. Desde que a Cortina de Ferro se abriu, livros, folhetos e textos curtos aos milhões encontraram seu caminho nesses países. Cartas vindas do mundo todo contam de detentos nas prisões aceitando a Jesus; casamentos refeitos; viciados em drogas sendo libertados do vício, e jovens sendo libertados de práticas de bruxarias e de ocultismo.
Em Cuba, famílias inteiras reúnem-se com seus vizinhos em torno de um rádio para sintonizar estes programas. Cristãos na China baseiam-se nas transmissões de rádio de Canaã para os seus ensinos. Na Austrália e nos EUA, os vídeos de Canaã são, freqüentemente, um aspecto popular da televisão durante o Natal e a Páscoa.
Entre suas obras literárias maiores está o livro “Para Ele Todo o Meu Ser”, de onde foi extraído um devocional na edição nº 11 da revista Impacto, e que expressa em maiores detalhes a mensagem da sua vida.
Uma de suas passagens favoritas da Bíblia era: “Para mim o viver é Cristo, e o morrer é lucro” (Fp 1.21). Como boa semente que era pela graça de Deus, sua vida continuará a frutificar e trazer glória a Jesus através das pessoas que foram marcadas, e das literaturas que foram e que ainda serão publicadas.
Para maiores informações e contatos diretos com a Irmandade Evangélica de Maria, verifique o website internacional: www.kanaan.org, ou o endereço da Irmandade no Brasil: Caixa Postal 440; 80011-970 Curitiba, PR; e-mail: canaan @bsi.com.br

Fonte: https://www.revistaimpacto.com.br/biblioteca/uma-vida-de-impacto-m-basilea-schlink/

sexta-feira, 11 de março de 2016

Livro V – Capítulos 16 e 17

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História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia
Livro V – Capítulos 16 e 17


XVI - O que se menciona sobre Montano e os pseudoprofetas de sua compa­nhia
XVII - De Milcíades e os tratados que compôs

XVI - O que se menciona sobre Montano e os pseudoprofetas de sua compa­nhia
1.           Contra a heresia chamada catafriga, o poder defensor da verdade levantou em Hierápolis uma arma potente e invencível: Apolinário, a quem esta obra já mencionou mais acima[1], e com ele muitos outros homens doutos daquele tempo, dos quais foi-nos deixado abundante material para historiar.
2.           Ao começar pois, um dos mencionados seu escrito contra aqueles, assinala primeiramente que também lutou contra eles com argumentos orais. Escreve no prólogo desta maneira:
3.     Faz muito e bem longo tempo, querido Avircio Marcelo, que tu me ordenaste escrever algum tratado contra a heresia dos chamados "de Milcíades", mas até agora de certa maneira sentia-me indeciso, não por dificuldade em poder refutar a mentira e dar testemunho da verdade, mas por temor de que, apesar de minhas precauções, parecesse a alguns que de certo modo acres­cento ou junto[2] algo novo à doutrina do Novo Testamento, ao qual não pode juntar nem tirar nada quem tenha decidido viver conforme este mesmo Evangelho.
4.     Encontrando-me recentemente em Ankira da Galácia e compreendendo que a igreja local estava aturdida por esta, não como dizem, nova profecia, mas mais propriamente, como se demonstrará, pseudoprofecia, enquanto nos foi possível e com a ajuda do Senhor, durante vários dias, discutimos intensamente sobre estes mesmos homens e sobre os pontos propostos por eles, tanto que a igreja encheu-se de alegria e ficou robustecida na verdade, enquanto que os contrários eram rechaçados na hora e os inimigos abatidos.
5.            Em conseqüência, os presbíteros do lugar pediram que lhes deixássemos alguma nota do que havia sido dito contra os que se opõe à doutrina da verdade, achando-se também presente nosso co-presbítero[3] Zotico, o de Otreno, mas nós não o fizemos; em troca, prometemos escrevê-lo aqui, com a ajuda de Deus, e enviá-lo com toda a presteza."
6.            Depois de expor no começo isto e em seguida alguma outra coisa, segue adiante e narra a causa da mencionada heresia desta maneira:
"Agora bem, sua conduta e sua recente ruptura herética a respeito da Igreja tiveram como causa o que segue.
7.             "Diz-se que em Misia da Frígia existe uma aldeia chamada Ardaban. Ali foi, dizem, que um recém-convertido à fé chamado Montano, pela primeira vez, em tempos de Grato, procônsul da Ásia, saindo contra o inimigo com a paixão desmedida de sua alma ambiciosa de proeminência, ficou a mercê do espírito e de repente entrou em arrebatamento convulsivo como se pos­sesso e em falso êxtase, e começou a falar e a proferir palavras estranhas, profetizando desde aquele momento contra o costume recebido pela tradição e por sucessão desde a Igreja primitiva.
8.             Dentre os que naquela ocasião escutaram estas expressões bastardas, uns, ofendidos com ele como energúmeno, endemoninhado, embebido no espírito do erro e perturbador das multidões, repreendiam-no e tentavam impedi-lo de falar, lembrando-se da explicação e advertência do Senhor sobre estar em guarda e alerta com a aparição de falsos profetas[4]; os outros em troca, como que excitados por um espírito santo e um carisma profético, e não menos inchados de orgulho e esquecidos da explicação do Senhor, fascinados e extraviados pelo espírito insano, sedutor e desencaminhador do povo, provocavam-no para que não permanecesse mais em silêncio.
9.             Com certa habilidade, ou melhor, com tais métodos fraudulentos, o diabo maquinou a perdição dos desobedientes e, honrado por eles contra todo merecimento, excitou e inflamou ainda suas mentes adormecidas, já distan­tes da fé verdadeira, e assim suscitou outras duas mulheres quaisquer[5] e encheu-as com seu espírito bastardo, de maneira que também elas começa­ram a falar delirando, inoportunamente e de modo estranho, como o men­cionado antes. O espírito proclamava bem-aventurados aos que se alegra­vam e vangloriavam nele e os enchia com a grandeza de suas promessas; às vezes, no entanto, por motivos aceitáveis e verossímeis, condenava-os publicamente a fim de parecer também ele capaz de argumentar; mas contudo, poucos eram os frígios enganados. O orgulhoso espírito ensinava também a blasfemar contra a Igreja católica inteira que se estende sob o céu, porque o espírito pseudoprofético não tinha conseguido louvor nem entrada nela.
10.     Efetivamente, os fiéis da Ásia haviam-se reunido para isto muitas vezes e em muitos lugares da Ásia, e depois de examinar as recentes doutrinas, declararam-nas profanas e as rechaçaram como heresia; desta maneira aqueles foram expulsos da Igreja e separados da comunhão."
11.     É a isto que se refere no início; logo continua através de todo o livro a refutação do erro montanista, e no segundo livro diz sobre o fim das pessoas citadas o que segue:
12.     "Pois bem, posto que nos chamam mata-profetas[6] porque não aceitamos seus profetas charlatães (dizem efetivamente que estes são os que o Senhor havia prometido enviar a seu povo[7]), que ante Deus nos respondam: dos que começam a falar[8] a partir de Montano e das Mulheres, há algum, amigos, a quem os judeus tenham perseguido ou alguém que os crimino­sos tenham assassinado? Nenhum. Nem sequer algum deles foi preso e crucificado por causa do nome? Também não, desde logo. Nem sequer alguma das mulheres foi açoitada nas sinagogas dos judeus e apedrejada?
13.     Nem em parte alguma, em absoluto. Por outro lado, diz-se que Montano e Maximila findaram com outro gênero de morte. Efetivamente, é corrente que estes, por influência do espírito perturbador da mente, que movia tanto um quanto a outra, enforcaram-se, ainda que não ao mesmo tempo, e que ao tempo da morte de ambos correu forte boato de que haviam terminado e morrido da mesma maneira que Judas o traidor.
14.     Como também é rumor insistente que aquele inefável Teodoto, o primeiro intendente[9], por assim dizer, de sua pretendida profecia, achando-se um dia como que elevado e alçado aos céus, entrou em êxtase e entregou-se por completo ao espírito do engano, e então, lançado com força, acabou desastrosamente. Ao menos dizem que foi assim.
15.     No entanto, querido, não o tendo visto nós mesmos, pensamos que nada sabemos a respeito; porque talvez tenha ocorrido assim, mas talvez não tenham morrido assim nem Montano nem Teodoto nem a citada mulher."
16. Volta a dizer no mesmo livro que os sagrados bispos daquele tempo tentaram refutar o espírito que havia em Maximila, mas que outros o impediram, colaboradores, evidentemente, daquele espírito.
17. Escreve como segue:
"E que aquele espírito que opera por meio de Maximila não diga no mesmo livro de Asterio Urbano: 'Perseguem-me como a um lobo longe das ovelhas; eu não sou lobo, sou palavra e espírito e poder', antes é bom que demonstre claramente o poder que há no espírito, que o prove e que por meio do espírito obrigue a confessar aos que naquela ocasião achavam-se presentes para examinar e para dialogar com o espírito que falava, varões probos e bispos: Zotico, da aldeia de Cumana, e Juliano, de Apamea, cujas bocas foram amordaçadas pelos partidários de Temiso, impedindo assim que refutassem o espírito enganador e desencaminhador de povos."
18. Novamente no mesmo livro, quando dizem algumas outras coisas refutando as falsas profecias de Maximila, indica o tempo em que escreveu isto e menciona os vaticínios dela, nos quais predizia que haveria guerras e revoluções; a falsidade de tudo isto ele revela quando escreve:
19. "E como não se evidenciou também esta mentira? Porque já são transcorridos mais de treze anos até hoje desde que aquela mulher morreu e no mundo não tem havido guerra, nem parcial nem geral, mas que até para os cristãos a paz tem sido mais permanente, por misericórdia divina."
20. Isto tomamos do livro segundo. Mas também do terceiro citaremos algumas frases breves, pelas quais diz contra os que se jactavam de que entre eles houve mais mártires:
"Agora bem, quando os refutamos com todo o dito e vêem-se apurados, tentam refugiar-se nos mártires, dizendo que têm muitos mártires e que isto é uma garantia fidedigna do poder do espírito que eles chamam profético, mas isto, ao que parece, é de tudo o menos verdadeiro.
21. Efetivamente, das outras heresias algumas têm numerosos mártires, e nem por isso vamos aprová-las nem confessar que possuem a verdade. Os primeiros ao menos, os que se chamam Marcionitas por seguir a heresia de Márcion, também eles dizem que têm inúmeros mártires, mas ao próprio Cristo não confessam conforme a verdade."
E depois de breve espaço, acrescenta ao dito:
22. "Por isso, sempre que os fiéis da Igreja chamados a dar testemunho da fé conforme a verdade encontram-se com algum dos chamados mártires procedentes da heresia catafriga, afastam-se deles e morrem sem terem se comunicado com eles, porque não querem dar assentimento ao espírito que se vale de Montano e de suas mulheres. Que isto é verdadeiro e que, até em  nossos tempos, tem ocorrido em Apamea, às margens do Meandro, evidencia-se nos martírios de Caio e Alexandre de Eumenia e de seus companheiros."

XVII - De Milcíades e os tratados que compôs
1. Na mesma obra[10] menciona-se também Milcíades, um escritor que, parece, também escreveu um tratado contra a dita heresia. Depois de citar algumas passagens destes[11] continua dizendo: "Isto encontrei em uma obra das que atacam o escrito de Milcíades, nosso irmão, escrito que demonstra não ser necessário que um profeta fale em êxtase, e fiz um resumo."
2. Um pouco mais abaixo na mesma obra estabelece uma lista dos que profe­tizaram no Novo Testamento; entre eles enumera um tal Amias e a Codrato; diz assim:
 ".. .mas o falso profeta, no êxtase - ao qual seguem o descaramento e a ousa­dia -, começa em voluntária ignorância e termina em demência involuntária da alma, como se disse anteriormente.
3.             Mas não poderão mostrar um só profeta, nem do Antigo nem do Novo (Testamento) que tenha sido arrebatado pelo espírito desta maneira, nem poderão gloriar-se de Agabo, nem de Judas, nem de Silas, nem das filhas de Felipe, nem de Amias de Filadélfia, nem de Codrato nem de nenhum outro, se há, porque nada tem a ver com eles."
4.      E logo, depois de curto espaço, diz o seguinte:
"Porque, se é como dizem, que depois de Codrato e de Amias de Filadélfia, o carisma profético passou por sucessão às mulheres do séquito de Montano, que demonstrem quem dentre eles sucedeu aos discípulos de Montano e a suas mulheres, já que o Apóstolo sustenta que é necessário que o caris­ma profético subsista em toda a Igreja até a parousia final[12]. Mas não pode­rão mostrar ninguém, apesar de já ser este o décimo quarto da morte de Maximila."
5.   Isto diz ele. No que tange a Milcíades, por ele mesmo mencionado, também deixou-nos outras lembranças de sua aplicação diligente às divinas Escrituras nos tratados que compôs Contra os gregos e Contra os judeus, temas com os quais se debateu separadamente nos dois livros. E mais, fez também uma Apologia dirigida aos príncipes[13] do mundo em favor da filosofia por ele professada[14].

1. O que mais te chamou a atenção neste texto?
2. O que o texto contribui para a sua espiritualidade?

Desenho da capa: Montano e o Montanismo
O montanismo foi um movimento cristão fundado por Montano por volta de 156-157 (ou 172), que se organizou e difundiu em comunidades na Ásia Menor, em Roma e noNorte de África. Por ter se originado na região da Frígia, Eusébio de Cesareia relata em sua História Eclesiástica (V.14-16) que ela era chamada de "Heresia Frígia" na época.



[1] Vide IV:XXI; IV:XXVI: 1; IV:XXVII.
[2] Gl 3:15.
[3] É como os bispos se dirigiam aos presbíteros e às vezes a seus colegas de episcopado.
[4] Mt 7:15.
[5] Quer dizer, outras vítimas (do diabo), não outras duas mulheres.
[6] Mt 23:31.
[7] Jo 14:26.
[8] Isto é: começaram a "profetizar" como Montano.
[9] Como veremos mais tarde, Montano tinha suas finanças bem organizadas, por isso podemos entender literalmente o cargo atribuído a Teodoto.
[10] O anônimo antimontanista, cf. 16:2.
[11] Dos hereges.
[12] Ef 4:11-13; 1 Co 1:4-8; 13:8-10.
[13] Provavelmente refere-se a Marco Aurélio e a seu co-augusto Lúcio Vero.
[14] Todas suas obras se perderam.

sexta-feira, 4 de março de 2016

32
História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia
Livro V – Capítulos 2 a 15


Texto Bíblico: (Dos quais o mundo não era digno), errantes pelos desertos, e montes, e pelas covas e cavernas da terra.  Hebreus 11.38.

II - De como os mártires, amados de Deus, acolhiam e cuidavam dos que haviam falhado na perseguição
III - De como Irineu menciona as diversas Escrituras
IX - Os que foram bispos sob Cômodo
X - De Panteno, o filósofo
XI - De Clemente de Alexandria
XII - Dos bispos de Jerusalém
XIII - De Ródon e as dissensões que menciona dos marcionitas
XIV - Dos falsos profetas catafrigas
XV - Do cisma de Blasto em Roma

 II - De como os mártires, amados de Deus, acolhiam e cuidavam dos que haviam falhado na perseguição
1.              Isto foi o que, sob o mencionado imperador, aconteceu às igrejas de Cristo, e partindo disto pode-se também conjeturar num cálculo razoável o que ocorreu nas demais províncias; será conveniente juntar ao que foi dito mais algumas passagens do mesmo documento, nas quais se descreve a suavi­dade e humanidade dos citados mártires com estas mesmas palavras:
2.              "Os quais, no zelo e imitação de Cristo, que subsistindo em forma de Deus não considerou usurpação o ser igual a Deus[1], chegaram a tão alto grau que, apesar de sua glória e de terem dado testemunho, não uma vez ou duas, mas muitas vezes mais, e de terem sido retirados das feras e de estarem cobertos por toda parte de queimaduras, equimoses e feridas, nem eles próprios se proclamaram mártires nem a nós mesmos permitiram que os chamássemos por este nome; mas antes, se algum de nós por carta ou por palavra se dirigia a eles como a mártires, repreendiam-no severamente.
3.              E compraziam-se em ceder o título do martírio a Cristo, o fiel e verdadeiro mártir, primogênito dos mortos e autor da vida de Deus, e recordando os mártires que já haviam partido, inclusive diziam: 'Aqueles sim é que são mártires, posto que Cristo teve por bem levá-los consigo em sua confissão e selou seus martírios com suas mortes; nós porém somos uns confessores medianos e sem expressão'; e com lágrimas exortavam os irmãos pedindo-lhes que se fizessem assíduas orações para lograr sua consumação.
4.              E com seu trabalho demonstravam a força de seu martírio, dirigindo a palavra com inteira liberdade aos pagãos, e manifestavam sua nobreza mediante sua paciência, sua integridade e sua impavidez; mas o título de mártires dado pelos irmãos eles rechaçavam, repletos do temor de Deus."
5.              E logo, pouco mais adiante, dizem:
"Humilhavam-se sob a mão poderosa que agora os tem grandemente exal­tados. E então defendiam a todos e não condenavam a ninguém, desatavam a todos e não atavam ninguém, e como Estevão, o mártir perfeito, rogavam pelos que lhes infligiam os tormentos: Senhor, não lhes imputes este pecado. E se rogava pelos que o apedrejavam, quanto mais não faria pelos irmãos?"
6.    E novamente, depois de outros detalhes, dizem:
"Porque este foi para eles seu maior combate contra ele[2], pela verdade de seu amor, para que a besta se engasgasse e vomitasse vivos os que primeiro pensava ter engolido. Efetivamente, não se mostraram arrogantes frente aos caídos, mas sim, com entranhas maternas, acudiam em socorro dos necessitados com sua própria abundância e, derramando muitas lágrimas por eles ao Pai, pediam vida e para eles a davam.
7.       Também a repartiam aos demais quando, vencedores em tudo, marchavam para Deus. Sempre amaram a paz, e em paz emigraram para Deus recomendando-nos a paz, não deixando para trás trabalhos para a mãe[3] nem revolta e guerra para os irmãos, mas alegria, paz, concórdia e amor."
8.       O dito sobre o amor daqueles bem-aventurados para com os irmãos caídos poderá ser útil, por causa da atitude desumana e inclemente daqueles que, depois disto, tornaram-se implacáveis nos membros de Cristo.

III - De como Irineu menciona as diversas Escrituras
1.              Posto que ao dar início a esta obra[4] prometemos citar oportunamente as palavras dos antigos presbíteros e escritores eclesiásticos, nas quais nos transmitiram por escrito as tradições chegadas até eles sobre as Escrituras canônicas, e como Irineu era um destes, citemos também suas palavras;
2.              e em primeiro lugar as que se referem aos sagrados evangelhos; são as seguintes:
"Mateus publicou entre os hebreus, em sua própria língua, um Evangelho também escrito[5], enquanto Pedro e Paulo estavam em Roma evangelizando e lançando os fundamentos da Igreja.
3.              "Depois da morte destes, Marcos, o discípulo e intérprete de Pedro, trans­mitiu-nos por escrito, também ele, o que Pedro havia pregado. E Lucas, por sua parte, o seguidor de Paulo, colocou em livro o Evangelho que este havia pregado.
4.      Finalmente João, o discípulo do Senhor, o que havia se reclinado sobre seu peito, também ele publicou o Evangelho, enquanto morava em Éfeso da Ásia."
5.      Isto é o que diz o livro terceiro antes mencionado da dita obra, mas no quinto expressa-se acerca do Apocalipse de João e do número do nome do anticristo[6] como segue:
"Sendo isto assim e encontrando-se este número em todas as boas e antigas cópias, e atestando-o aqueles mesmos que viram João face a face, e visto que a razão nos ensina que o número do nome da besta aparece manifesto segundo o cálculo dos gregos por meio das letras que nele há..."
6.     E um pouco mais abaixo segue dizendo sobre o mesmo:
"Nós pois, não nos arrisquemos a manifestarmo-nos de maneira segura sobre o nome do anticristo, porque, se houvesse sido necessário na presente ocasião proclamar abertamente seu nome, ter-se-ia feito por meio daquele que também tinha visto o Apocalipse, já que não faz muito tempo que foi visto, mas quase em nossa geração, ao final do império de Domiciano."
7.     Isto é o que o citado autor refere acerca do Apocalipse, mas menciona também a primeira carta de João ao apresentar numerosos testemunhos tirados dela, assim como da primeira de Pedro; e não apenas conhece, mas também aceita[7] o escrito do Pastor quando diz:
"Porque bem diz a Escritura: O primeiro de tudo, crê que há um só Deus, o que criou e ordenou tudo, etc."
8.     E até utiliza algumas sentenças tiradas da Sabedoria de Salomão, dizendo mais ou menos:
"Visão de Deus que produz incorrupção; e a incorrupção faz estar perto de Deus", e menciona as Memórias de certo presbítero apostólico, sobre cujo nome silenciou, e cita suas Explicações das divinas Escrituras.
9.       Faz menção ainda ao mártir Justino e a Inácio, utilizando uma vez mais testemunhos tirados das obras escritas por eles, e promete refutar ele mesmo, com trabalho próprio, a Márcion, partindo de seus escritos.
10.   E quanto à tradução das Escrituras inspiradas realizada pelos Setenta, ouve o que escreve textualmente:
"Deus pois fez-se homem, e o Senhor mesmo nos salvou, depois de dar-nos o sinal da Virgem, mas não como dizem alguns de agora que se atrevem a traduzir a Escritura: Eis aqui que a jovem conceberá em seu ventre e dará à luz um filho[8], como traduziram Teodósio, o de Éfeso, e Áquila, o do Ponto, ambos judeus prosélitos, aos que seguem os ebionitas quando dizem que Ele nasceu de José."
11.   Depois de um breve espaço, acrescenta ao dito:
"Efetivamente, antes que os romanos fizessem prevalecer seu governo e quando os macedônios ainda dominavam a Ásia, Ptolomeu, filho de Lagos, ambicionando adornar a biblioteca por ele organizada em Alexandria com as obras de todos os homens, ao menos as boas, pediu aos de Jerusalém para ter traduzidas em língua grega suas Escrituras.
12.        Eles, que então ainda estavam submetidos aos macedônios, enviaram a Ptolomeu setenta anciãos, os mais versados dentre eles nas escrituras e em ambas as línguas. Deus fazia precisamente o que queria.
13.        Ptolomeu, querendo testá-los separadamente e evitando que se pusessem de acordo para ocultar por meio da tradução o que há de verdade nas Escrituras, separou-os uns dos outros e ordenou que escrevessem a mesma tradução, e assim fez com todos os livros.
14.        Mas logo que se reuniram junto a Ptolomeu e cada um comparou sua própria tradução, Deus foi glorificado e as Escrituras foram reconhecidas como verdadeiramente divinas: todos haviam proclamado as mesmas coisas com as mesmas expressões e os mesmos nomes, desde o começo até o fim, de forma que até os pagãos ali presentes reconheceram que as Escrituras foram traduzidas sob a inspiração de Deus.
15.        E não há que estranhar que Deus fizesse isto, porque foi Ele que, havendo sido destruídas as Escrituras no cativeiro do povo sob Nabucodonosor e tendo os judeus regressado a seu país depois de setenta anos, logo, nos tempo de Artaxerxes, rei dos persas, inspirou o sacerdote Esdras, da tribo de Levi, a refazer todas as palavras dos profetas que o haviam precedido e restituir ao povo a legislação dada por meio de Moisés."
Tudo isto diz Irineu.

IX - Os que foram bispos sob Cômodo
1. Tendo-se mantido Antonino no império por dezenove anos, Cômodo recebe o principado. No primeiro ano deste e depois de Agripino ter cumprido o ministério pelo espaço de doze anos, é Juliano que assume o cargo do episcopado das igrejas de Alexandria.

X - De Panteno, o filósofo
1.              Naquele tempo a escola dos fiéis dali era dirigida por um varão celebérrimo por sua instrução, cujo nome era Panteno. Existia entre eles, por costume antigo, uma escola das sagradas letras. Esta escola continua prolongando-se até nós e, pelo que ficamos sabendo, é formada por homens eloqüentes e estudiosos das coisas divinas. Mas uma tradição afirma que entre os daquela época brilhava sobremaneira o mencionado Panteno. E procedia da escola filosófica dos chamados estóicos!
2.              Conta-se pois, que demonstrou um zelo tão grande pela doutrina divina com sua ardente disposição de ânimo, que inclusive foi proclamado arauto do Evangelho de Cristo para os pagãos do Oriente e enviado até as terras Índias[9]. Porque havia, sim, havia até aquele tempo ainda numerosos evangelistas da doutrina, cuja preocupação era colocar à disposição seu inspirado zelo de imitação dos apóstolos para crescimento e edificação da doutrina divina.
3.      Destes foi também Panteno, e diz-se que foi à Índia, onde é tradição que descobriu que o Evangelho de Mateus havia-se adiantado à sua chegada entre alguns habitantes do país que conheciam Cristo: Bartolomeu, um dos apóstolos, teria pregado para eles e havia-lhes deixado o escrito de Mateus nos próprios caracteres hebreus, escritos que conservavam até o tempo mencionado.
4.      Certo é, ao menos, que Panteno, por seus muitos merecimentos, terminou dirigindo a escola de Alexandria, comentando de viva voz e por escrito os tesouros dos dogmas divinos.

XI - De Clemente de Alexandria
1.              Por este tempo[10] exercitava-se nas Escrituras divinas e era célebre em Alexandria Clemente, homônimo do discípulo dos apóstolos que antigamente regeu a igreja de Roma.
2.              Nas Hypotyposeis que compôs menciona Panteno pelo nome, no livro primeiro de seus Stromateis quando, ao assinalar os mais célebres da sucessão apostólica por ele recebida, diz o seguinte:
3.              "Em verdade esta obra não é um escrito composto com arte para ostentação, mas apontamentos guardados para minha velhice, remédio contra o esquecimento, imagem sem arte e desenho em sombras daquelas palavras brilhantes e cheias de vida que eu tive a honra de ouvir, e daqueles varões bem-aventurados e realmente eminentes.
4.      Um deles, o jônico, na Grécia; outro na Magna Grécia; outro era de Celesiria, outro do Egito; outros ainda estavam pelo Oriente, um deles da Assíria e outro, hebreu de origem, na Palestina. Mas quando deparei com o último -mas que era o primeiro em poder - e procurei por ele no Egito, onde se ocultava, descansei[11].
5.              Mas estes homens, que conservavam a verdadeira tradição do ensinamento bendito proveniente em linha reta dos santos apóstolos, de Pedro e de Tiago, de João e de Paulo, recebendo-a o filho do pai (mas poucos foram os filhos parecidos com os pais), com a ajuda de Deus chegaram inclusive até nós para depositar aquelas sementes ancestrais e apostólicas."

XII - Dos bispos de Jerusalém
1. Nestes tempos era célebre e famoso - ainda hoje continua sendo entre muitos - Narciso, bispo da igreja de Jerusalém, décimo quinto na sucessão desde o assédio dos judeus sob Adriano. Já mostramos que foi desde então que pela primeira vez ali a Igreja foi composta por gentios, depois dos oriundos da circuncisão, e que o primeiro dos bispos gentios que os dirigiu foi Marcos[12].
2. E as sucessões do lugar assinalam que depois dele foi bispo Cassiano, e depois deste, Públio, depois Máximo; depois deles, Juliano; depois, Caio, e depois deste, Símaco e um segundo Caio; de novo outro Juliano; depois destes, Capiton, Valente e Doliquiano, e depois de todos, Narciso, trigésimo desde os apóstolos, segundo a sucessão da série.

XIII - De Ródon e as dissensões que menciona dos marcionitas
1.              Também por este tempo, Ródon[13], oriundo da Ásia e discípulo em Roma, como ele mesmo conta, de Taciano, a quem já conhecemos por relato ante­rior[14], compôs diversos livros e alinhou-se também com os outros contra a heresia de Márcion. Conta que em seu tempo esta encontrava-se dividida em diversas correntes, descreve os causadores da ruptura e refuta com rigor as falsas doutrinas imaginadas por cada um deles.
2.              Ouve pois, o que escreve:
"Por isso discordam também entre si, porque reivindicam doutrinas incon­sistentes. Efetivamente, de seu rebanho é Apeles, venerado por sua conduta e por sua idade, que confessa sim um único princípio, mas diz que os profetas procedem do espírito contrário, e obedece aos preceitos de uma virgem possuída pelo demônio chamada Filomena.
3.      Outros ainda, assim como o próprio piloto (Márcion), introduziram dois princípios. De suas fileiras vêm Potito e Basílico.
4.              Também estes seguiram o lobo do Ponto, e não encontrando, como ele também não encontrou, a divisão das coisas, deram meia volta para o lado fácil e proclamaram dois princípios, arbitrariamente e sem demonstração. E outros, partindo por sua vez destes, chegaram ao pior e já supõe não apenas duas, mas três naturezas; seu chefe e patrão é Sineros, segundo dizem os que estão a cargo de sua escola."
5.              Escreve também o mesmo autor que inclusive chegou a ocupar-se de Apeles; diz assim:
"Porque o velho Apeles, quando tratou conosco convenceu-se de que estava dizendo muitas coisas equivocadamente, e a partir de então costumava repetir que não convinha examinar absolutamente as razões, mas que cada um ficasse com sua própria crença; declarava mesmo que se salvavam os que tinham posta sua esperança no Crucificado, contanto que apresentem boas obras. Mas, como já dissemos, declarava que para ele, de todos, o assunto mais obscuro era o que se refere a Deus. E dizia, assim como nossa doutrina, que há somente um princípio."
6.     Logo, depois de expor toda a opinião deste, segue dizendo:
"Como eu lhe perguntasse: De onde tiras esta prova ou como podes tu dizer que há um princípio? Explica-nos. Respondeu que as profecias se refuta­vam a si mesmas porque nada disseram de inteiramente verdadeiro, já que discrepam, são enganosas e contradizem umas às outras. Quanto a como há um só princípio, dizia que o ignorava, que assim, apenas isto, sentia-se movido.
7.               Então eu o conjurei a que dissesse a verdade, e ele jurou que estava dizendo a verdade: que não sabia como existe um só Deus incriado, mas que ele o cria. Eu então pus-me a rir e acusei-o de dizer que é mestre e ainda assim não dominar o que ensina."
8.               O mesmo autor, dirigindo-se a Calistion na mesma obra, confessa que ele mesmo foi discípulo de Taciano em Roma e diz também que Taciano preparou um livro de Problemas; como Taciano prometera mostrar através deles o obscuro e oculto das divinas Escrituras, o próprio Ródon anuncia por sua vez que vai expor num livro especial as soluções dos problemas daquele. Conserva-se também dele um Comentário sobre o Hexameron.
9.       Apeles, no entanto, proferiu impiamente inúmeros ultrajes contra a lei de Moisés, blasfemando contra as divinas palavras com seus numerosos escritos e pondo grande empenho, pelo menos em aparência, em refutá-las e destruí-las. Isto é, pois, o que há sobre eles.

XIV - Dos falsos profetas catafrigas
1. Como o inimigo da Igreja de Deus é em último grau avesso ao bem e amante do mal e de forma alguma deixa de lado qualquer maneira de conspirar contra os homens, fez com que de novo brotassem estranhas heresias contra a Igreja. Destes hereges alguns, como serpentes venenosas, rastejavam pela Ásia e Frígia, vangloriando-se de ter como modelo Montano e nas mulheres de sua companhia, Priscila e Maximila, as supostas profetisas de Montano.

XV - Do cisma de Blasto em Roma
1. Os outros floresciam em Roma, eram dirigidos por Florino, um excluído do presbitério da Igreja, e com ele Blasto, que tivera uma queda[15] similar. Estes arrastaram muitos da Igreja e os submeteram a sua vontade, tentando um e outro introduzir novidades sobre a verdade, cada um por seu lado.

1. O que mais te chamou a atenção neste texto?
2. O que o texto contribui para a sua espiritualidade?

Ícone da capa: Os Quarenta Mártires de Sebaste (em grego Ἃγιοι Τεσσεράκοντα) foram quarenta soldados pertencentes à Legio XII Fulminata e que prestavam serviço em Sebaste (Sivas), no século IV, por volta do ano 320, que se tornaram mártires cristãos ao se recusar a prestar juramento de fidelidade aos deuses romanos contra a vontade do imperador Licínio. O relato mais antigo da existência e do martírio deles aparece numa homilia de Basílio de Cesareia (370-379) justamente na festa litúrgica dos mártires.



[1] Fp 2:6.
[2] Devido ao corte da citação, não aparece a quem se refere, mas trata-se sem dúvida do demônio.
[3] A Igreja.
[4] Vide I:I:1;III:III: 1-3.
[5] Supõe-se as duas formas: oral e escrita.
[6] Ap 13:18.
[7] i.e. aceita-o entre as Escrituras canônicas.
[8] Os Setenta traduzem "partenas" (virgem), enquanto os outros traduzem "neanis" (jovem).
[9] Não se sabe exatamente de que terras se trata, se da própria Índia ou do sudeste da Arábia.
[10] Tempos de Cômodo, ainda que se possa entender que sejam os de Panteno.
[11] Não se conseguiu identificar estes mestres, exceto o último, que pode ser Panteno.
[12] Vide IV:V1:4.
[13] Sobre este só se sabe o que aqui diz Eusébio.
[14] Vide IV:XVI:7; IV:XXIX.
[15] Esta queda pode significar a heresia como também a perda do cargo presbiteral.