sexta-feira, 26 de agosto de 2016

2º Estudo da OFSE - Biografia de Francisco de Assis Tomás de Celano - 1Celano 3-7

Biografia de Francisco de Assis 

Tomás de Celano

1Celano 3-7


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Capítulo 3 - Como, transformado interiormente, mas não exteriormente, falou alegoricamente de um tesouro encontrado e de uma noiva. 

6. 
1 Já mudado, mas só espiritual e não exteriormente, não quis mais ir para a Apúlia e procurou orientar sua vontade pela vontade de Deus. 
2 Por isso subtraiu-se aos poucos do bulício do mundo e dos negócios, querendo esconder Jesus Cristo em seu interior. 
3 Como um negociante prudente, escondeu aos olhos dos enganadores a pérola encontrada e, ocultamente, procurou vender tudo para poder adquiri-la. 
4 Tinha predileção por um jovem de Assis, porque era de sua idade e uma amizade plenamente compartilhada permitia contar-lhe seus segredos. Levava-o muitas vezes a lugares afastados e aptos para os seus planos, garantindo que tinha encontrado um tesouro precioso e enorme. 
5 Alegre e curioso e curioso pelo que ouvira, o amigo ia de boa vontade com ele todas as vezes que era chamado. 
6 Havia uma cripta perto da cidade, à qual iam com freqüência para falar do tesouro. 
7 O homem de Deus, já santificado pelo desejo de ser santo, entrava na cripta enquanto o companheiro ficava esperando do lado de fora e, tomado pelo novo e singular espírito, orava ao Pai na solidão. 
8 Esforçava-se para que ninguém soubesse o que fazia lá dentro, para que o segredo fosse causa de maior bem, e buscava só a Deus em seu santo propósito. 
9 Orava com devoção para que Deus eterno e verdadeiro dirigisse seu caminho e o ensinasse a cumprir sua vontade. 
10 Sustentava em sua alma uma luta violenta e não conseguia parar enquanto não realizasse o que tinha resolvido em seu coração. Pensamentos muito variados entrecruzavam-se nele, importunando-o e perturbando-o duramente. 
11 Ardia interiormente pela chama divina e não conseguia esconder o fervor de sua alma. Doía-lhe ter pecado tão gravemente e ofendido os olhos da majestade de Deus. As vaidades do passado ou do presente já não o agradavam, mas ainda não recebera plenamente a confiança de poder resistir-lhes

7. 
1 Certo dia, tendo invocado mais plenamente a misericórdia divina, o Senhor lhe mostrou o que tinha que fazer. 
2 Ficou tão cheio de alegria, que não cabia mais em si e, mesmo sem querer, deixou escapar alguma coisa aos ouvidos dos outros. 
3 Mas embora não pudesse calar-se por ser tão grande o amor que lhe fora inspirado, era com cautela que comunicava alguma coisa, e falando em parábolas. 
4 Assim como falara ao amigo íntimo de um tesouro escondido, como dissemos, aos outros procurava falar por analogias. Dizia que não queria ir para a Apúlia, mas prometia que haveria de fazer coisas nobres e estupendas em sua própria terra. 
5 Os outros acharam que ele ia se casar e perguntaram: “Você vai se casar, Francisco?” 
6 Respondeu-lhes: “Vou me casar com uma noiva nobre e bonita como vocês nunca viram, que ganha das outras em beleza e supera a todas em sabedoria”. 
7 De fato, a esposa imaculada do Senhor era a verdadeira religião, que ele abraçara, e o tesouro escondido era o reino dos céus, que buscou com tanto entusiasmo. 
8 Pois era necessário que se cumprisse plenamente a vocação evangélica naquele que haveria de ser ministro fiel e autêntico do Evangelho. 

Capítulo 4 - Como, tendo vendido tudo, desprezou o dinheiro recebido 
8. 
1 Quando chegou a hora estabelecida, o servo do Altíssimo, assim preparado e confirmado pelo Espírito Santo, seguiu o ímpeto sagrado do espírito, pelo qual se chega aos bens melhores, desprezando os que passam. 
2 De fato, nem podia esperar mais: uma doença mortal estendia por toda parte seus efeitos nefastos e paralisava tantas pessoas, que qualquer demora do médico podia ser fatal para elas. 
3 Levantou-se, armado do sinal da cruz e, tendo preparado um cavalo, montou e, levando consigo peças de escarlate para vender, partiu veloz para Foligno. 
4 Tendo lá vendido como de costume tudo que levara, o feliz mercador deixou até o cavalo que montara, depois de receber o preço que valia. De volta, livre da carga, vinha pensando com visão religiosa no que fazer com o dinheiro. 
5 Admirável e repentinamente todo convertido para as coisas de Deus, achou que era pesado demais carregar aquela soma por uma hora que fosse. Considerando simples areia todo aquele pagamento, apressou-se em se desfazer dela. 
6 Vindo na direção de Assis, encontrou à beira do caminho uma igreja erguida havia muito tempo em honra de São Damião e agora ameaçando ruína por sua muita antiguidade. 

9. 
1 Chegando a ela, o novo soldado de Cristo, comovido pela piedade de tão urgente necessidade, entrou cheio de temor e de reverência. 
2 Encontrando lá um sacerdote pobre, beijou suas mãos consagradas cheio de fé, deu-lhe o dinheiro que levava e contou direitinho o que queria. 
3 Espantado, e admirando tão incrível e repentina conversão, o padre não quis acreditar. 
4 Achando que estava sendo enganado, não aceitou o dinheiro oferecido: 
5 poderíamos dizer que o tinha visto, um dia antes, vivendo regaladamente entre parentes e conhecidos e mostrando mais loucura que os outros. 
6 Mas o jovem insistia teimosamente, e com palavras ardentes procurava convencer o sacerdote que, pelo amor de Deus, lhe permitisse viver em sua companhia. 
7 Afinal o padre concordou em que ficasse, mas, por medo de seus pais, não recebeu o dinheiro, que Francisco, verdadeiro desprezador de todas as riquezas, jogou a uma janela, tratando-o como se fosse pó. 
8 Pois desejava possuir a sabedoria que é melhor do que o ouro e adquirir a prudência que é mais preciosa do que a prata (Prov 16,16). 

Capítulo 5 - Como seu pai, perseguindo-o, o prendeu 
10. 
1 Enquanto o servo de Deus Altíssimo estava nesse lugar, seu pai, como um investigador aplicado buscava-o por todos os lados, querendo saber que fim levara o filho. 
2 Quando entendeu como ele estava vivendo naquele local, teve o coração ferido de íntima dor, e ficou muito perturbado com a súbita mudança. Convocou amigos e vizinhos e correu o mais depressa que pôde para onde morava o servo de Deus. 
3 Francisco, que era um atleta de Cristo ainda novato, sabendo das ameaças dos que o perseguiam e pressentindo sua chegada, não quis dar oportunidade à raiva e se meteu numa cova secreta que tinha preparado para isso. 
4 Esteve um mês nesse esconderijo, que ficava na casa e talvez só fosse conhecido por um amigo, mal ousando sair para as necessidades. 
5 Comia algum alimento, quando o recebia, no fundo da cova. Todo auxílio lhe era levado em segredo. 
6 Banhado em lágrimas, rezava continuamente para que Deus o livrasse da mão dos que o perseguiam e, por um favor benigno, lhe permitisse cumprir seus piedosos propósitos. Jejuando e chorando, implorava a clemência do Salvador e, desconfiando da própria capacidade, punha em Deus todo o seu pensamento. 
7 Mesmo dentro do buraco e na escuridão, gozava de uma alegria indizível, que nunca tinha experimentado. Cheio de ardor, saiu do esconderijo e se apresentou às injúrias dos que o perseguiam. 

11. 
1 Levantou-se sem vacilar, com alegria e presteza, ostentando o escudo da fé para combater pelo Senhor e munido com as armas de uma grande confiança. Tomou o caminho da cidade e, animado pelo entusiasmo divino, começou a acusar-se por sua demora e covardia. 
2 Vendo-o, todos os que o conheciam e confrontavam o presente com o passado passaram a insultá-lo miseravelmente, chamando-o de louco e demente, e lhe atiraram pedras e lama das praças. 
3 Viam-no completamente transformado em seus hábitos anteriores e muito acabado pela mortificação, e atribuíam seu comportamento à fraqueza e à loucura. 
4 Mas, como a paciência vale mais que a arrogância, o servo de Deus se fazia surdo a tudo isso e, sem se ofender ou abater, dava graças a Deus por todas as coisas. 
5 Pois é em vão que o iníquo persegue quem busca a honestidade: quanto mais for ultrajado, maior sua vitória. O coração generoso, disse um autor, torna-se mais forte com o desprezo. 

12. 
1 Mas o tumulto pelas praças e ruas da cidade durou tanto, ouvindo-se em toda parte o clamor dos que o insultavam, que, entre os muitos a cujos ouvidos chegou, estava também seu pai. 
2 Ouvindo o nome do filho, e que estava sendo comprometido nesse tipo de conversa por seus concidadãos, levantou-se imediatamente, não para libertá-lo mas para perdê-lo. 
3 Sem moderação alguma, partiu como um lobo para cima da ovelha e, olhando-o com truculência, arrastou-o com modos indignos e afrontosos para casa. 
4 Sem qualquer compaixão, prendeu-o por muitos dias em um lugar escuro e, querendo dobrá-lo para seu modo de ver, agiu primeiro com palavras e depois com chicotadas e algemas. 
5 Com isso tudo, o próprio Francisco ficou ainda mais pronto e decidido a seguir seu santo propósito, e sem se convencer com as palavras, nem se cansar da cadeia, não perdeu a paciência. 
6 Não são castigos e algemas que vão mudar a maneira correta de pensar e de agir, ou afastar do rebanho de Cristo aquele que aprendeu que deve se alegrar nas tribulações. 
7 Não treme diante de um dilúvio de muitas águas quem, na hora do aperto, se refugia no Filho de Deus, o qual, para que nossas tribulações não nos pareçam insuportáveis, sempre mostra que já passou por coisas piores. 

Capítulo 6 - Como sua mãe o soltou e como se despiu diante do bispo de Assis 
13. 
1 Aconteceu que seu pai precisou ausentar-se, pela urgência dos negócios, por algum tempo, deixando o homem de Deus preso no calabouço. A mãe, que ficou sozinha com ele em casa, e não aprovava o procedimento do marido, dirigiu-se ao filho com palavras ternas. 
2 Mas, vendo que não conseguia fazê-lo mudar de opinião, sentiu seu coração materno se enternecer e, soltando as correntes, deixou-o sair. 
3 Ele deu graças a Deus e voltou depressa para o lugar onde estivera antes. Provado pelas tentações, gozava agora de maior liberdade e, depois de tantas lutas, adquirira um ânimo mais sereno. 
4 As dificuldades lhe deram maior segurança, e começou a andar mais confiante e livre por toda parte. 
5 Nesse meio tempo, o pai estava de volta. Não o tendo encontrado, acumulando seus desatinos, armou uma gritaria com sua mulher. 
6 Depois, irado e ameaçador, correu em busca do filho, decidido a expulsá-lo da região, se não conseguisse traze-lo de volta. 
7 Mas, como o temor de Deus é o arrimo da confiança, logo que o filho da graça viu que seu pai carnal estava chegando, veio seguro, alegre e espontaneamente ao seu encontro, dizendo claramente que, para ele, cárceres e castigos não queriam dizer nada. 
8 Até garantiu que, por amor de Cristo, estava disposto a suportar com alegria todos os males. 

14. 
1 Vendo que não poderia afastá-lo do caminho em que se metera, o pai cuidou apenas de reaver o dinheiro. 
2 O homem de Deus teria querido gastá-lo e oferecê-lo todo para o sustento dos pobres e na construção daquele lugar mas, como não lhe tinha amor, não podia sofrer decepção alguma, nem se perturbou com a perda de um bem a que não tinha apego. 
3 Quando achou o dinheiro que ele, desprezador por excelência dos bens terrenos, ávido demais das riquezas celestes, tinha jogado a uma janela como lixo, acalmou-se um bocado o furor do pai irado. A recuperação foi como um refrigério para sua sede de avareza. 
4 Mais tarde, apresentou-o ao bispo da cidade, para que, renunciando em suas mãos à herança, devolvesse tudo que tinha. 
5 Ele não se recusou. Até se apressou alegremente a fazer o que pediam. 

15. 
1 Diante do bispo, não se demorou e nada o deteve: sem dizer nem esperar palavra, despiu e jogou suas roupas, devolvendo-as ao pai. 
2 Não guardou nem as calças: ficou completamente nu diante de todos. 
3 O bispo, compreendendo sua atitude e admirando muito seu fervor e constância, levantou-se prontamente e o acolheu em seus braços, envolvendo-o no manto. 
4 Compreendeu claramente que era uma disposição divina e percebeu que os gestos do homem de Deus, que estava presenciando, encerravam algum mistério. 
5 Tornou-se, desde então, seu protetor, animando-o, confortando-o e abraçando-o nas entranhas da caridade. 
6 É aqui que o nu luta com o adversário nu e, desprezando as coisas que são do mundo, aspira apenas à justiça de Deus. 
7 Foi assim que Francisco tratou de desprezar a própria vida, deixando de lado toda solicitude mundana, para encontrar como um pobre a paz no caminho que lhe fora aberto: só a parede da carne separava-o ainda da visão celeste. 

Capítulo 7 - Como, preso por ladrões, foi jogado na neve, e como serviu os leprosos 
16. 
1 Vestido de andrajos, ele que em outros tempos andara de escarlate, e cantando os louvores de Deus em francês através de um bosque, foi assaltado por ladrões. 
2 Perguntaram-lhe brutalmente quem era, e ele respondeu forte e confiante: “Sou um arauto do grande Rei! Que é que vocês têm com isso?” 
3 Bateram nele e o jogaram numa fossa cheia de neve, dizendo: “Fica aí, pobre arauto de Deus”. 
4 Quando se afastaram, revirou-se na fossa e conseguiu sair, sacudindo a neve. Com alegria redobrada, começou a cantar em voz alta pelos bosques os louvores do Criador de tudo. 
5 Chegando a um mosteiro, passou muitos dias na cozinha como servente, vestido apenas com uma túnica vil. Quisera saciar-se com um pouco de caldo. 
6 Mas ninguém teve pena dele e não conseguiu sequer alguma roupa velha. Saiu dali, não levado pela raiva mas pela necessidade, e foi para a cidade de Gúbio, onde conseguiu uma túnica com um de seus velhos amigos. 
7 Algum tempo depois, quando a fama do homem de Deus cresceu e o seu nome se espalhou no meio do povo, o prior daquele mosteiro, recordando e compreendendo o que fora feito contra o homem de Deus, procurou-o e pediu-lhe perdão por amor de Deus em seu nome e no dos monges. 

17. 
1 Depois disso, amante santo de toda humildade, transferiu-se para um leprosário. Vivia com os leprosos, servindo com a maior diligência a todos por amor de Deus. Lavava-lhes qualquer podridão dos corpos e limpava até o pus de suas chagas, como disse no Testamento: 
2 “Como estivesse ainda em pecado, parecia-me deveras insuportável olhar para leprosos, mas o Senhor me conduziu para o meio deles e eu tive misericórdia com eles”. 
3 Essa visão lhe era tão insuportável que, em suas próprias palavras, no tempo de sua vida mundana, tapava o nariz só de ver suas cabanas a duas milhas de distância. 4 Mas, eis que um dia, quando, por graça e força do Altíssimo, ainda vivia como secular mas já tinha começado a pensar nas coisas santas e úteis, encontrou-se com um leproso e, superando-se, chegou e o beijou. 
5 A partir de então, foi ficando cada dia mais humilde até chegar à perfeita vitória sobre si mesmo, por misericórdia do Redentor. 
6 Ajudava também os outros pobres, mesmo quando ainda era secular e seguia o espírito do mundo, estendendo sua mão misericordiosa para os que não tinham nada e mostrando compassivo afeto para com os aflitos. 
7 Houve um dia em que, contra seu costume, porque era muito bem educado, tratou mal um pobre que lhe pedia esmola. Mas logo, arrependido, começou a dizer consigo mesmo que era grande ofensa e vergonha negar a quem estivesse pedindo no nome de tão grande Rei, o que quisesse. 
8 Resolveu que jamais negaria a quem lhe pedisse em nome de Deus o que estivesse ao seu alcance. 
9 E o cumpriu com muita diligência, até oferecer totalmente a si mesmo, fazendo-se antes um cumpridor que um mestre do Evangelho: 
10 “Dá a quem te pede e não te desvies daquele que te pedir emprestado (cfr. Mt 5,42).”. 






quinta-feira, 18 de agosto de 2016

46 História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia Livro VII – Capítulos 26 a 29

46
História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia
Livro VII – Capítulos 26 a 29

 

O que refletimos no texto passado?

O que veremos hoje
XXVI - Das cartas de Dionísio
XXVII - Sobre Paulo de Samosata e a heresia que suscitou em Antioquia
XXVIII - Os bispos ilustres que eram célebres naquele tempo
XXIX - De como se rebateu Paulo e este foi excomungado


XXVI - Das cartas de Dionísio
1.            Além destas cartas, conservam-se também muitas outras de Dionísio, como a dirigida a Ammon, bispo da igreja de Bernice, contra Sabélio; a Telesforo, a Eufranor; novamente a Ammon e a Euporo, contra Sabélio. E sobre o mesmo tema compôs também outros quatro escritos que dirigiu a seu homônimo de Roma Dionísio.
2.            E entre nós, além destas, existem também muitas cartas suas e inclusive prolixos tratados em forma de cartas, como os dedicados a seu filho Timóteo Sobre a natureza, e o outro Sobre as tentações, que também dedicou a Eufranor.
3.            Além destas obras, escrevendo também a Basílides, bispo das igrejas de Pentápolis, ele mesmo diz que escreveu um Comentário do começo do Eclesiastes. E deixou-nos diversas cartas dirigidas ao mesmo.
Tudo isto escreveu Dionísio, mas, depois de historiar estas coisas, já é hora de que entreguemos ao conhecimento da posteridade também como era nossa geração[1].

XXVII - Sobre Paulo de Samosata e a heresia que suscitou em Antioquia
1.            A Sixto, que presidiu a igreja de Roma durante onze anos, sucedeu Dionísio, homônimo do de Alexandria[2]. E neste tempo, ao emigrar também Demetriano desta vida em Antioquia, recebeu o episcopado Paulo, o de Samosata.
2.     Como este, contrariamente ao ensinamento da Igreja, tinha acerca de Cristo pensamentos baixos e ao nível do chão, dizendo que por natureza foi um homem comum, Dionísio de Alexandria, convidado para assistir ao concilio, dando como desculpa sua velhice e debilidade corporal, adia sua presença pessoal, e por meio de uma carta expõe seu pensamento sobre o tema debatido. Os outros pastores das igrejas, por outro lado, cada qual de sua terra, iam se reunindo como contra uma peste do rebanho de Cristo, e todos se apressavam em direção a Antioquia.

XXVIII - Os bispos ilustres que eram célebres naquele tempo
1.            Entre eles, os que mais sobressaíram foram: Firmiliano, bispo de Cesaréia da Capadócia; os irmãos Gregório e Atenodoro, pastores das igrejas do Ponto; e depois deles, Heleno, da igreja de Tarso, e Nicomas, da de Iconio. Mas não somente eles, como também Himeneo, da igreja de Jerusalém; e Teotecno, da de Cesaréia, limítrofe desta; e além destes, Máximo, que dirigia também com muito brilho os irmãos de Bostra. E não seria muito difícil enumerar muitíssimos outros reunidos junto com os presbíteros e diáconos pelo mesmo motivo na citada cidade; mas de todos, pelo menos os mais destacados eram estes.
2.     Todos pois, reuniram-se para o mesmo, em diferentes e repetidas ocasiões[3]. E em cada reunião levantavam-se razoamentos e perguntas: os partidários do samosatense, tentando ocultar ainda e dissimular o que houvesse de heresia; os outros, de sua parte, pondo todo seu empenho em desnudar e trazer à vista a heresia e a blasfêmia daquele contra Cristo.
3.            Mas por este tempo morreu Dionísio, no décimo segundo ano do império de Galieno, depois de haver presidido o episcopado de Alexandria durante dezessete anos. Sucede-o Máximo.
4.     Tendo sido Galieno dono do poder durante quinze anos completos, foi instituído seu sucessor Cláudio. Este, quando terminou seu segundo ano, transmitiu o principado a Aureliano.

XXIX - De como se rebateu Paulo e este foi excomungado
1. Nos tempos deste, havendo-se reunido um último concilio[4] de numero­síssimos bispos, surpreendido in flagranti e já por todos condenado aberta­mente por heterodoxia, o líder da heresia de Antioquia foi excomungado da Igreja católica que está sob o céu.
2. Quem mais fez para acabar com sua dissimulação e deixá-lo convicto foi Malquion, homem muito eloqüente e diretor da classe de retórica nas escolas gregas de Antioquia; e não só isto, mas também considerado digno do presbiterado da comunidade local, pela excelentíssima legitimidade de sua fé em Cristo. Este havia empreendido contra ele, com taquígrafos que iam registrando, uma investigação - que sabemos que se conservou até nossos dias -, pelo que entre todos somente ele foi capaz de surpreender in flagranti aquele homem, apesar de sua dissimulação e engano.


1.    O que mais te chamou atenção neste texto?
2.    Como ele contribuiu para sua espiritualidade?



  



[1] Eusébio começa a falar de pessoas e fatos que considera contemporâneos seus: aque­las porque morreram depois de seu nascimento; destes porque também ocorriam depois de seu nascimento. E o único ponto de referência para fixar aproximadamente a data deste.
[2] Eusébio toma por anos os onze meses do pontificado de Sixto II (martirizado em 6 de agosto de 258), isto leva a várias incongruências cronológicas.
[3] Isto parece indicar que em Antioquia existia uma espécie de concilio permanente, com sessões mais ou menos intermitentes, até a definitiva, que terminou com a deposição de Paulo de Samosata.
[4] Conforme indicado em 28:2, deve-se entender isto como uma última sessão do conci­lio que já durava alguns anos.

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

45 - História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia - Livro VII – Capítulos 24 e 25.

Livro VII
45
História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia
Livro VII – Capítulos 24 e 25


XXIV - De Népos e seu cisma
1. Além de tudo isto, escreveu também os dois livros Sobre as promessas, cujo tema era Népos, bispo dos do Egito, que ensinava que as promessas feitas aos santos nas divinas Escrituras devem ser interpretadas mais ao modo judeu, e supunha que haveria um milênio de delícias corpóreas sobre esta terra seca.
2.            Em todo caso, acreditando reforçar sua própria suposição com o Apocalipse de João, compôs sobre ele uma obra que intitulou Refutação dos alegoristas.
3.            Contra esta obra ergue-se Dionísio em seus livros Sobre as promessas. No primeiro expõe seu próprio pensamento sobre a doutrina, e no segundo discute acerca do Apocalipse de João. Nele faz menção a Népos no começo, e escreve o seguinte sobre ele:
4.     "Mas como quer que aleguem certo livro de Népos no qual se apóiam mais do que deveriam, como se demonstrasse irrefutavelmente que o reinado de Cristo será sobre a terra, em muitas outras coisas aprovo Népos e o amo: por sua fé, por sua laboriosidade, por seu estudo sério das Escrituras e por sua numerosa produção de hinos, com os quais muitos irmãos vêm se reconfortando até hoje, e meu respeito pelo homem é absoluto, ainda mais estando já morto. Porém, como a verdade me é mais querida e mais estimada do que todas as coisas, deve-se louvá-lo e estar de acordo com ele, sem reservas, se diz algo retamente, mas também, se em algo não parece correto o que escreveu, deve-se examiná-lo e corrigi-lo.
5.            Para com alguém que está presente e que se explica por palavra, poderia ser suficiente uma conversação oral, que a base de perguntas e respostas vai persuadindo e reduzindo os contendores; mas havendo no meio um escrito, e muito persuasivo segundo alguns, e contando de outra parte com alguns mestres que, em nada estimando a Lei e os Profetas, deixando de seguir os Evangelhos e desprezando as Cartas dos apóstolos, proclamam sem mais o ensinamento deste livro como um grande e oculto mistério, e não permitem a nossos irmãos mais simples ter pensamentos elevados e magníficos sobre a manifestação gloriosa e realmente divina de nosso Senhor, nem de nossa ressurreição dentre os mortos nem de nossa reunião e configuração com Ele, mas os persuadem a esperar coisas mínimas e mortais, como são as presentes, no reino de Deus, é necessário que também nós discutamos com nosso irmão Népos como se estivesse presente."
6.   Ao dito acrescenta, depois de outras coisas, o seguinte:
"Assim pois, achando-me em Arsinoé, onde, como sabes, há muito prevalece esta doutrina, até o ponto de que ocorreram cismas e apostasias de igrejas inteiras, convoquei os presbíteros e mestres dos irmãos das aldeias, e estando presentes também os irmãos que queriam, exortei-os a realizar em público o exame da doutrina.
7.             Ao me apresentarem este livro como arma e muro inatacável, estive com eles três dias em sessão contínua, da aurora ao anoitecer, tentando emendar o que estava escrito.
8.      Pude então admirar sobremaneira o equilíbrio, o amor à verdade, a facili­dade de compreensão e a inteligência dos irmãos quando, por ordem e com moderação, desenvolvíamos as perguntas, as objeções e os pontos de coincidência; por um lado, tínhamos nos recusado a nos aterrarmos obstinada e insistentemente às decisões tomadas uma só vez, ainda que isto não nos parecesse justo; e por outro, também não evitávamos as objeções, mas na medida do possível tentávamos abordar os temas propostos e dominá-los; e tampouco nos envergonhávamos de mudar de idéia e concordar se a razão o exigisse, antes, com a melhor consciência, sem disfarces e com o coração aberto a Deus, aceitávamos o que ficasse estabelecido pelas argumentações e pelos ensinamentos das Santas Escrituras.
9.      E por último, o líder e introdutor desta doutrina, o chamado Coracion, con­fessou e atestou para que todos os irmãos presentes ouvissem que não mais se entregaria a isto, nem discutiria sobre isto, nem o recordaria nem ensinaria, pois estava suficientemente convencido pelos argumentos opostos. E dos outros irmãos, uns se alegravam do colóquio, assim como da condescen­dência e disposição comum para com todos..."

XXV - Sobre o Apocalipse de João
1.   Logo continuando, pouco mais abaixo, diz o seguinte sobre o Apocalipse de João:
"Assim pois, alguns dos nossos antecessores rechaçaram como espúrio e desacreditaram por completo o livro, examinando capítulo por capítulo e declarando que era ininteligível e ilógico, e seu título enganoso.
2.            Dizem mesmo que não é de João e que tampouco é Apocalipse[1], estando como está bem velado com o grosso manto da ignorância, e que o autor deste escrito não só não foi nenhum dos apóstolos, mas que nem sequer nenhum santo ou membro da Igreja em absoluto, mas Cerinto[2], o mesmo que instituiu a heresia cerintiana e que quis dar credibilidade a sua própria invenção com um nome digno de fé.
3.     Na verdade, a doutrina que ele ensina é esta: o reino de Cristo será terreno; e como ele era um amante de seu corpo e inteiramente carnal, sonhava que consistiria no mesmo que ele desejava: fartura do ventre e do que está abaixo do ventre, ou seja: de comidas, de bebidas, de uniões carnais e de tudo aquilo com que lhe parecia que se procurariam estas coisas de uma forma mais bem sonante: festas, sacrifícios e imolação de vítimas.
4.     Eu, de minha parte, não poderia me atrever a rechaçar o livro, pois são mui­tos os irmãos que o tomam a sério, mas ainda admitindo que o pensamento que encerra excede minha própria inteligência, suponho que o sentido de cada passagem está em certo modo encoberto e é bastante admirável, porque, mesmo que não o compreenda, ainda assim suspeito ao menos que nas palavras se encerra alguma intenção mais profunda.
5.            Não meço isto nem o julgo com minha própria razão, mas, ainda outorgando a superioridade à fé, cheguei à conclusão de que isto está demasiado alto para ser concebido por mim. E eu não reprovo o que não compreendi, antes até o admiro mais, porque nem sequer o vi."
6.     Depois disto e depois de examinar todo o livro do Apocalipse e demonstrar que é impossível entendê-lo segundo seu sentido óbvio, continua dizendo: "Depois de concluir toda sua - por assim dizer - profecia, o profeta declara bem-aventurados os que a guardam e também, é verdade, a si mesmo: Bem-aventurado - diz, efetivamente - o que guarda as palavras da profecia deste livro, e eu, João, que estou vendo e escutando estas coisas[3].
7.     Portanto, não contradirei que ele se chamava João e que este livro é de João. Porque inclusive estou de acordo de que é obra de um homem santo e inspirado por Deus. Mas eu não poderia concordar facilmente em que este fosse o apóstolo, o filho de Zebedeu e irmão de Tiago, de quem é o Evangelho intitulado de João e a Carta católica.
8.            De fato, pelo caráter de um e de outro, pelo estilo e pela chamada disposi­ção geral do livro, conjeturo que não é o mesmo, já que o evangelista em nenhuma parte escreve seu nome nem prega a si mesmo: nem no Evangelho nem na Carta."
9.            Logo, um pouco mais abaixo, outra vez diz assim:
"Mas João de nenhuma maneira, nem em primeira nem em terceira pessoa. Porém, o que escreveu o Apocalipse, imediatamente se põe adiante, já no começo: Revelação de Jesus Cristo, que foi dada para mostrar prontamente a seus servos, e que foi revelada enviada por meio de seu anjo a seu servo João, o qual deu testemunho da palavra de Deus e de seu testemunho: tudo o que viu[4].
10. Logo escreve também uma carta: João às sete igrejas que estão na Ásia. Graça e paz a vós outros[5]. Mas o evangelista nem no cabeçalho de sua Carta católica escreveu seu nome, mas começou sem mais pelo próprio mistério da revelação divina: O que era desde o princípio, o que temos ouvido, que vimos com nossos próprios olhos[6]. Por motivo desta revela­ção, efetivamente, o Senhor chamou bem-aventurado a Pedro quando disse:
Bem-aventurado és, Simão, filho de Jonas, pois nem a carne nem o sangue to revelaram, mas meu Pai celestial[7].
11. Mas ocorre que nem na segunda nem na terceira Carta que se consideram de João, ainda que breves, aparece João por seu nome, mas de uma forma anônima achamos escrito: o presbítero[8]. Por outro lado, este outro não achou suficiente nomear-se uma vez só e seguir a explicação, mas repete novamente: Eu, João, vosso irmão e co-partícipe na tribulação, no reino e na paciência de Jesus, estive na ilha chamada Patmos por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus[9]. E ainda, mesmo perto do final, diz o seguinte: bem-aventurado o que guarda as palavras da profecia deste livro, e eu, João, o que está vendo e ouvindo estas coisas[10].
12. Portanto, que é João que escreve isto, temos que crê-lo pois ele o diz; mas não está claro quem seja este, pois não diz, como em muitas passagens do Evangelho, que ele é o discípulo amado pelo Senhor, o que se reclinou sobre seu peito, o irmão de Tiago, a testemunha ocular e ouvinte direto do Senhor.
13. Porque teria dito algo do que acabamos de indicar se quisesse dar-se a conhecer claramente. E mesmo assim, nada disto, antes se disse irmão e companheiro nosso, testemunha de Jesus e feliz por haver contemplado e ouvido as revelações.
14. Eu creio que houve muitos com o mesmo nome do apóstolo João, os quais, por amor a ele e por admirá-lo e escutá-lo e por querer ser amados como ele pelo Senhor, afeiçoaram-se a esse mesmo nome, da mesma forma que entre os filhos dos fiéis abundam os nomes de Paulo e Pedro.
15. Assim pois, nos Atos dos apóstolos há também outro João, de sobrenome Marcos,[11] a quem Barnabé e Paulo tomaram consigo e sobre o qual chega a dizer: E tinham também a João como servidor[12]. Pois bem, se foi este o autor, eu não diria, porque não está escrito que chegou com eles à Ásia, mas diz: Navegando desde Pafos, Paulo e seus companheiros chegaram a Perges da Panfília, enquanto que João se separou deles e voltou a Jerusalém[13].
16. Eu creio que foi outro dos que viveram na Ásia. Diz-se que em Éfeso havia dois sepulcros e que cada um dos dois era atribuído a João[14].
17. E pelos pensamentos, pelas palavras e por sua ordenação, compreende-se naturalmente que um é pessoa diferente do outro. Efetivamente o Evangelho e a Carta concordam entre si.
18.     E ambos começam igual. Aquele diz: No princípio era o Verbo[15]; e aquele diz: e o Verbo se fez carne e plantou sua tenda entre nós e contemplamos sua glória, glória como do unigênito do Pai[16]; e esta as mesmas palavras um pouco mudadas: o que temos ouvido, o que temos visto com nossos olhos, o que temos contemplado e nossas mãos apalparam acerca do Verbo da vida, e a vida se manifestou...[17].
19.     Porque isto é o que põe como prelúdio, apontando, segundo o que demons­trou em seguida, aos que andavam dizendo que o Senhor não tinha vindo na carne, pelo que teve também o cuidado de acrescentar: E o que vimos ates­tamos, e vos anunciamos a vida eterna, a que estava no Pai e manifestou-se-nos. O que temos visto e ouvido anunciamos também a vós outros[18].
20. Mantém-se fiel a si mesmo e não se aparta daquilo a que se propôs, mas tudo vai explicando com os mesmos princípios e as mesmas expressões, algumas das quais vamos recordar brevemente:
21. Quem se aplique a ler encontrará em um e na outra muitas vezes as expres­sões: 'a vida', 'a luz', 'afastamento das trevas'; e continuamente: 'a verdade', 'a graça', 'a alegria', 'a carne e o sangue do Senhor', 'o juízo', 'o perdão dos pecados', 'o amor de Deus para conosco, o mandamento de amarmos uns aos outros' e que 'há que se guardar todos os mandamentos'; a refutação do mundo, do diabo e do anticristo, a promessa do Espírito Santo, a adoção como filhos por parte de Deus, a fé, que nos é exigida absolutamente; o Pai e o Filho, por todas as partes. E em uma palavra: é evidente que quem se atém a todas suas características vê que tanto o Evangelho como a Carta apresentam uma mesma e única coloração.
22. Por outro lado, o Apocalipse é muito diferente e alheio a estes escritos. Não está ligado a nenhum deles nem lhes tem afinidade, e quase, por assim dizer, nem uma sílaba tem em comum com eles.
23. Porque assim é que nem a Carta (deixemos já o Evangelho) tem a menor menção ou o menor pensamento sobre o Apocalipse, nem o Apocalipse sobre a Carta, enquanto que Paulo deixa entrever em suas Cartas algo sobre suas revelações, ainda que não as tenha consignado por si mesmas[19].
24. Mas inclusive pelo estilo é possível ainda reconhecer a diferença do Evangelho e da Carta com respeito ao Apocalipse.
25. Aqueles, efetivamente, não somente estão escritos sem faltas contra a língua grega, mas inclusive com a máxima eloqüência por sua dicção, seus raciocínios e a construção de suas expressões. Pelo menos estão muito longe de que se encontre neles algum vocábulo bárbaro, um solecismo, ou de modo geral, um vulgarismo, pois seu autor, segundo parece, possuía os dois saberes, por haver o Senhor lhe outorgado ambos graciosamente: o do conhecimento e o da linguagem.
26.    Quanto ao outro, não lhe negarei que viu revelações e que recebeu conhe­cimento e profecia; não creio porém que seu estilo e sua língua sejam exatamente gregas, antes utiliza idiotismos bárbaros e em algumas partes inclusive comete solecismos. Não é preciso agora dar uma seleção,
27. já que tampouco disse isto por zombaria (que ninguém pense isso) mas unicamente para estabelecer a desigualdade destes escritos."

1.    O que te chamou mais atenção neste texto?
2.    Como ele contribuiu para sua espiritualidade?




[1] Isto é, "Revelação".
[2] Daqui até o final do parágrafo já foi citado em III:XXVIII:4-5.
[3] Ap 22:7-8. Ao contrário do que diz Dionísio, a frase "e eu, João..." não pertence à oração anterior, mas começa uma nova.
[4] Ap 1:1-2.
[5] Ap 1:4.
[6] 1 Jo 1:1.
[7] Mt 16:17.
[8] 2 Jo l;3 Jo 1.
[9] Ap 1:9.
[10] Ap 22:7-8.
[11] At 12:25.
[12] At 13:5.
[13] At 13:13.
[14] Vide III:XXXIX:6.
[15] 1 Jo 1:1.
[16] Jo 1:14.
[17] 1 Jo 1:1-2.
[18] 1 Jo 1:2-3.
[19] 2 Co 12:1-9; Gl 1:12; 2:2; Ef 3:3.