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Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Atenágoras de Atenas (†180)
Apelo a favor dos Cristãos – Capítulos 29 - 37
Capítulo XXIX
Também os sábios
gregos, poetas e historiadores, contam a respeito de Héracles: “Cruel! Não
respeitou a ira dos deuses, nem a mesa que lhe pusera, e depois matou seu
próprio hóspede”, isto é, Ifito. Sendo assim, é natural que fosse louco, natural
que acendesse uma fogueira e se queimasse vivo. De Asclépio, Hesíodo conta que:
“o pai dos homens e dos deuses se irritou, e acertando-o do Olimpo com raio
fuliginoso, matou Letoida, perturbando o coração de Tebo”. E Píndaro diz: “Mas
até a sabedoria é atada pelo lucro. Também ele foi desviado pelo ouro que
apareceu em sua mão por doce recompensa; mas o filho de Cronos, disparando com
suas mãos, arrebatou-lhe velozmente o alento do peito, e o ardente raio feriu o
insensato”.
Portanto, ou eram
deuses e não se comportavam como homens em relação ao ouro: “Ouro, o mais belo
presente para mortais, prazer que nem uma mãe ou os filhos ofereceu”. A
divindade não tem necessidade, e está acima do desejo. Também não morreram. Ou,
sendo homens, foram maus por ignorância e se deixaram dominar pelo dinheiro.
Para que falar amplamente, recordando Cástor e Pólux ou Anfiaseu, os quais,
sendo, como se diz, homens de ontem ou anteontem, são considerados deuses? A
própria Ino, depois de sua loucura e o que nela sofreu, dizem que se transformou
em deusa: “aqueles que caminham errantes pelo Ponto, a chamam Leucotéia”, assim
como seu filho: “será chamado augusto Palêmon pelos marinheiros”.
2ª PARTE: REFUTAÇÃO DAS ACUSAÇÕES DE IMORALIDADE, INCESTO E
REFEIÇÕES BACANAIS
Capítulo XXX -
Razões porque a Divindade foi apontada pelo homem
Ora, se pessoas tão
abomináveis e odiosas a Deus alcançaram a reputação de ser deuses, e Semíramis,
a filha de Derceto, mulher despudorada e criminosa, foi considerada deusa
síria, e os sírios, através de Derceto, cultuam os peixes, e através de
Semíramis as pombas - é impossível que uma mulher se transforme em pomba; a
fábula aparece em Clésias-, o que há de estranho que aqueles que exerceram
poder e tirania fossem chamados deuses por seus súditos? A Sibila (Platão
também recor da) diz: “Virá então a décima geração de míseros homens, desde que
o dilúvio caiu sobre os primeiros mortais, e reinaram Cronos, Titã e Iapeto,
filhos poderosos da terra e do céu, que os homens chamaram de Gaia e Urano,
dando-lhes nome por terem sido os primeiros entre os míseros homens”; uns por
sua força, como Héracles e Perseu; outros por sua arte, como Asclépio.
Portanto, a uns foram
os súditos que tributaram honra divina, a outros foram os governantes; uns por
medo e outros por respeito tiveram parte no nome divino (o próprio Antínoco,
por benevolência de nossos antepassados para com seus súditos, teve a sorte de
ser considerado deus). Depois a posteridade os aceitou sem qualquer prova ou
exame: “Cretenses sempre mentirosos. Com efeito, ó rei, os cretenses fabricaram
o teu sepulcro. Tu, porém, não morreste”.
Calímaco, tu que crês
no nascimento de Zeus recusas crer em sua sepultura, e pensando jogar uma
sombra sobre a verdade, não fazes senão anunciar um morto mesmo àqueles que não
o conhecem. Se olhas a gruta, te lembras do parto de Rea; mas se te fixas no
ataúde, lanças uma sombra sobre o morto e já não sabes que só o Deus incriado é
eterno.
Concluindo, ou os mitos
do vulgo e dos poetas sobre os deuses são indignos de fé, e então é supérfluo o
culto que se lhes tributa, porque não existem aquelas personagens sobre as
quais essas fábulas tratam; ou se são verdadeiros seus nascimentos, amores,
assassínios, roubos, mutilações e fulminações, também não existem, pois
deixaram de existir, uma vez que nasceram por não existirem antes. Com efeito,
que razão há para crer em alguns relatos e não crer em outros, quando tudo foi
contado pelos poetas, com a finalidade de glorificá-los? De fato, os que foram
causa de que fossem considerados deuses ao exaltar suas histórias, não
mentiriam contando os seus sofrimentos.
Fica portanto
demonstrado, segundo minhas forças, embora não conforme a dignidade do assunto,
que não somos ateus ao admitir como o Deus, Criador de todo este universo, e o
Verbo que dele procede.
Capítulo XXXI –
Além disso, acusam-nos
sobre comidas e uniões ímpias, pretendendo com isso encontrar alguma razão para
nos odiar. Pensam que, amedrontando-nos, nos afastarão do nosso propósito de
vida; ou, com suas acusações exorbitantes, nos exasperarão e arrumarão intrigas
com os governantes. Isso para nós é puro jogo, pois sabemos que esse costume é
antigo e não inventado só para o nosso caso e que se realiza por uma espécie e
razão divina, isto é, que a maldade faça sempre guerra à virtude. Assim,
Pitágoras foi queimado pelo fogo com trezentos companheiros; Heráclito e
Demócrito foram exilados, um de Efeso e o outro de Abdera, acusados de loucura;
os atenienses condenaram Sócrates à morte. Mas se todos esses não perderam a
reputação de virtude por causa da opinião do vulgo, a estúpida calúnia de
alguns contra nós não faz nenhuma sombra à retidão de nossa vida, pois temos
boa fama diante de Deus. Entretanto, quero também enfrentar essas acusações.
Sei que com o que eu
disse estou defendido diante de vós. De fato, superando a todos por vossa
inteligência, sabeis que aqueles que tomam a Deus como regra de vida, para que
cada um de nós esteja sem culpa e sem mancha em sua presença, não podem ter, em
pensamento, o mais leve pecado, e acreditássemos que nada existe além desta
vida presente, poder-se-ia suspeitar que pecássemos, submetendo-nos à servidão
da carne e do sangue ou sendo dominados pelo lucro e pelo desejo. Sabendo,
porém, como sabemos, que Deus vigia nossos pensamentos e nossas palavras, tanto
de dia como de noite, e que ele é todo luz e vê até dentro do nosso coração;
acreditando, como cremos, que, ao sair desta vida, viveremos outra melhor,
contando que permaneçamos com Deus e por Deus inquebrantáveis e superiores às
paixões, com alma não carnal, mas com espírito celeste, embora na carne; ou
acreditando que, se cairmos como os demais, espera-nos uma vida pior no fogo
(porque Deus não nos criou como rebanhos ou bestas de carga, de passagem, só
para morrer e desaparecer); crendo nisso, dizíamos, não é lógico que nos
entreguemos voluntariamente ao mal e nos joguemos a nós mesmos nas mãos do
grande juiz para sermos castigados.
Capítulo XXXII
Não há nada de
surpreendente que falem de nós a mesma coisa que contam sobre seus deuses, pois
apresentam suas paixões como mistérios. Contudo, se querem apresentar como
crime o unir-se livre e indiferentemente, teriam de começar a rejeitar Zeus,
que teve filhos com sua mãe Rea e com sua filha Coré e cuja mulher é a própria
irmã, ou rejeitar Orfeu, o inventor de todos esses contos, que tornou Zeus mais
ímpio e abominável do que Tiestes; com efeito, este se uniu com a própria filha
através de um oráculo e pelo desejo de chegar a reinar e vingar-se. Nós, porém,
estamos tão longe de ver isso com indiferença que não nos é lícito sequer olhar
com intenção de desejo. De fato, a Escritura diz: “Aquele que olha para uma
mulher a fim de desejá-la já cometeu adultério em seu coração”. Como não
acreditar que são castos os que nada podem olhar além daquilo para o qual Deus
formou os olhos, isto é, para que fossem nossa luz, aqueles que consideram
adultério o olhar com prazer, pois os olhos foram criados para outra finalidade,
e os que serão julgados até pelos seus pensamentos? Nós nada temos a ver com
leis humanas, que qualquer malvado pode burlar (desde o começo, ó soberano, vos
assegurei que nossa doutrina era ensinamento de Deus), mas temos uma lei e
mandamento, que nos deu a nós mesmos e ao nosso próximo como medida de justiça.
Por isso, dependendo da idade, consideramos a uns como filhos e filhas, a
outros como irmãos e irmãs, e aos mais velhos tributamos honra de pais e mães.
Assim, empenhamo-nos para que aqueles aos quais damos nome de irmãos e irmãs e
outras qualificações familiares, permaneçam sem ultraje ou corrupção em seus
corpos, como nos diz também a palavra divina: “Se alguém, por ter gostado, dá
um segundo beijo…” Portanto, é preciso ser muito exato a respeito do beijo e
principalmente na adoração, porque por pouco que manchem nossa mente nos
colocam fora da vida eterna.
Capítulo XXXIII -
Indissolubilidade do matrimônio
Como temos esperança na
vida eterna, desprezamos as coisas da vida presente e até os prazeres da alma,
tendo cada um de nós por mulher aquela que tomou conforme as leis estabelecidas
por nós e com a finalidade de procriar filhos. Assim como o lavrador, jogada a
semente na terra, espera a colheita e não continua semeando, do mesmo modo,
para nós, a medida do desejo é a procriação de fïlhos . E até é fácil encontrar
muitos dentre nós, homens e mulheres, que chegaram celibatários à velhice, com
a esperança de um relacionamento mais íntimo com Deus. Se o viver na virgindade
e castração aproxima mais de Deus e só o pensamento e o desejo separa, se
fugimos dos pensamentos, quanto mais não recusaremos as obras? Nossa religião
não se mede pelos discursos cuidadosos, mas pela demonstração e ensinamento de
obras: ou se permanece como nasceu, ou não se contrai mais do que um
matrimônio, pois o segundo é um adultério decente. A Escritura diz: “Quem deixa
sua mulher e casa com outra, comete adultério”, não permitindo deixar aquela
cuja virgindade desfez, nem casar-se novamente. Quem se separa de sua primeira
mulher, mesmo quando morreu, é adúltero dissimulado, transgredindo a mão de
Deus, pois no princípio Deus formou um só homem e uma só mulher, desfazendo a
comunidade da carne com a carne, segundo a unidade para a união dos sexos.
Capítulo XXXIV
Nós que somos assim
(por que devo falar o que não pode ser dito?), temos que ouvir o provérbio: “A
prostituta para a casta”. Com efeito, os que fazem mercado de prostituição e
constroem para os jovens prostíbulos para todo prazer vergonhoso; os que não
perdoam nem aos homens, cometendo atos torpes homens com homens; os que
ultrajam de mil modos os corpos mais respeitáveis e mais formosos, desonrando a
beleza feita por Deus (pois a beleza não nasce espontaneamente da terra, mas é
enviada pela mão e desígnio de Deus); esses nos atiram na cara aquilo de que
têm consciência, o que eles chamam de deuses, adúlteros e pederastas insultando
aos virgens e monógamos. Eles que vivem como peixes (pois devoram quem lhes cai
na boca, o mais forte atacando o mais fraco - isso sim é alimentar-se de carnes
humanas - e que, tendo leis estabelecidas por vossos antecessores após maduro
exame para toda a justiça, violentam-se os homens contra elas, de modo que não
são suficientes os governadores mandados por vós para os julgamentos); esses,
dizíamos, acusam os que não podem deixar de se apresentar aos que os golpeiam
nem de abençoar os que os amaldiçoam. Para nós não basta ser justos - a justiça
consiste em dar o mesmo aos iguais - mas nos é proposto que sejamos bons e
pacientes.
3ª PARTE: OS CRISTÃOS NÃO SÃO ANTROPÓFAGOS
Capítulo XXXV - Os
cristãos detestam e condenam qualquer crueldade
Quem, em plena razão,
poderia dizer que, sendo assim, somos assassinos? Não é possível saciar-se de carne
humana, se antes não matamos alguém. Se eles mentem quanto ao primeiro ponto,
mentem também quanto ao segundo. Com efeito, se lhes é perguntado se viram o
que dizem, não existe ninguém tão sem-vergonha que diga ter visto. Entretanto,
temos escravos, alguns mais outros menos, para os quais não é possível ocultar-nos.
No entanto, nenhum deles chegou a caluniar-nos com semelhantes coisas. De fato,
os que sabem que não suportamos ver uma execução com justiça, como vão nos
acusar de matar e comer homens? Quem de vós não se entusiasma em ver os
espetáculos de gladiadores ou de feras, principalmente os que são organizados
por vós? Nós, porém, que consideramos que ver matar está próximo do próprio
matar, nos abstemos de tais espetáculos. Portanto, como podemos matar os que
não queremos sequer ver para não contrair mancha ou impureza em nós? Afirmamos
que as mulheres que tentam o aborto cometem homicídio e terão que dar contas a
Deus por ele 4; então, por que iríamos matar alguém? Não se pode pensar que
aquele que a mulher leva no ventre é um ser vivente e objeto, consequentemente,
da providência de Deus e em seguida matar aquele que já tem anos de vida; não
expor o nascido, crendo que expor os filhos equivale a matá-los, e tirar a vida
ao que já foi criado. Não! Nós somos em tudo e sempre iguais e concordes com
nós mesmos, pois servimos à razão e não a violentamos.
Capítulo XXXVI
Além disso, quem crê na
ressurreição quererá oferecer-se como sepultura dos corpos que hão de
ressuscitar? Não é possível alguém acreditar que nossos corpos ressuscitarão e,
ao mesmo tempo, os coma, como se não devessem ressuscitar; pensar que a terra
devolverá seus próprios mortos e, ao mesmo tempo, pensar que aqueles que
engoliu não reclamarão. É mais verossímil o contrário, aqueles que pensam que
não se terá de dar conta desta vida, tanto faz se é boa ou má, e que não haverá
ressurreição, mas que julgam que com o corpo perece também a alma e esta como
que se apaga; é natural, dizíamos, que esses não se abstenham de nenhum
atrevimento, creem que nada ficará sem ser examinado diante de Deus e que
juntamente com a alma será castigado o corpo que cooperou com seus impulsos e
desejos irracionais, quanto a esses não há razão para que cometam o mais leve
pecado. Se para alguém parece pura charlatanice que um corpo apodrecido,
desfeito e desaparecido torne a organizar-se, não poderia por parte daqueles
que não creem na ressurreição imputar-nos maldade, mas ingenuidade. De fato, se
nos enganamos a nós mesmos com essas razões, não causamos prejuízo a ninguém.
Entretanto, não somos apenas nós que admitimos a ressurreição dos corpos, mas
muitos filósofos também estão conosco. Contudo, seria ocioso demonstrar-vos
isso agora, a não ser que introduzíssemos raciocínios estranhos ao nosso
objetivo, falando do inteligível, do sensível, da constituição de um e de
outro, que o incorporal é anterior aos corpos, que inteligível precede o
sensível, embora não seja isso o que primeiro encontramos, pois os corpos são
constituídos de elementos incorpóreos, conforme a acumulação do inteligível, e
o sensível é constituído de elementos inteligíveis. Segundo a doutrina de
Pitágoras e de Platão, nada impede que, realizada a dissolução dos corpos,
voltem depois a organizar-se com os mesmos elementos dos quais eram constituídos
no princípio.
Capítulo XXXVII
Reservemos, porém, para
outra ocasião o discurso sobre a ressurreição. Quanto a vós que, em tudo e por
tudo, por natureza e educação, sois bons, moderados, humanos e dignos do
império, inclinai vossa imperial cabeça diante de quem desfez todas as
acusações e demonstrou que somos piedosos, modestos e puros em nossas almas.
Quais são os que merecem, com mais justiça, conseguir o que pedem senão nós que
rogamos por vosso império, para que o herdeis, como é de estrita justiça, de
pai para filho, que cresça e acresça, através da submissão de todos os homens?
Isso também redunda em proveito nosso, para que, levando uma vida tranquila e
pacífica, cumpramos animadamente tudo quanto nos é mandado.
O que você deseja destacar neste texto?
Como ele serviu para sua espiritualidade?
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