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Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Irineu de Lyon (130-202)
Demonstração
da Pregação Apostólica (Cap. 47 - 55)
Trindade
e criação
47. O Pai,
então, é Senhor, e o Filho é Senhor, Deus o Pai e Deus o Filho, porque aquele que
é nascido de Deus é Deus. Assim, segundo a essência do seu ser e de seu poder, aparece
um só Deus; mas, contemporaneamente, na administração da economia da nossa redenção,
Deus aparece como Pai e como Filho. E como o Pai do universo é invisível e inacessível
aos seres criados, é através do Filho que os destinados a aproximarem-se de Deus
devem conseguir o acesso ao Pai. Davi, com clareza e evidência, assim se exprimiu
a propósito do Pai e do Filho: “Teu trono é de Deus, para sempre e eternamente!
O cetro do teu reino é cetro de retidão! Amas a justiça e odeias a impiedade.
Eis por que Deus, o teu Deus, te ungiu com o óleo da alegria, como a nenhum dos
teus companheiros”. Isso significa que o Filho, enquanto Deus, recebe do Pai,
isto é, de Deus, o trono de um reino eterno e o óleo da unção, mais que os seus
companheiros. O óleo é a unção do Espírito Santo com a qual é ungido, e os seus
“iguais” são os profetas, os justos, os apóstolos, e todos os que participam do
Reino.
O
primado e a realeza de Cristo
48. Davi disse,
por sua vez: “Oráculo de Iahweh ao meu Senhor: ‘Senta-te à minha direita, até
que eu ponha teus inimigos como escabelo de teus pés’. De Sião Iahweh estende
teu cetro poderoso para dominares teus inimigos. A ti o principado no dia do
teu nascimento, as honras sagradas desde o seio, desde a aurora da tua
juventude; Iahweh jurou e jamais desmentirá: ‘Tu és sacerdote para sempre,
segundo a ordem de Melquisedec’. O Senhor está à tua direita, ele esmaga os
reis no dia da sua ira. Ele julga as nações, amontoa cadáveres, esmaga cabeças
pela imensidão da terra. A caminho ele bebe da torrente, e por isso levanta a
cabeça”. Assim, com essas palavras, declarou que primeiro veio à existência,
que dominava as nações, que julga todos os homens e os reis que o odeiam agora
e perseguem o seu nome, e que são os seus inimigos. Chamando-o “sacerdote para
sempre” de Deus, declara a sua imortalidade. Tendo dito: “A caminho ele bebe da
torrente, por isso levanta a cabeça”, se referia à exaltação gloriosa, depois
da sua condição humana, da humilhação e da abjeção.
49. Por sua vez,
o profeta Isaías afirma: “Assim diz Iahweh ao seu ungido, a Ciro que tomei pela
destra, a fim de subjugar a ele nações”. Quanto ao fato de que o Filho de Deus
é chamado “Ungido” e rei das nações, isto é, de todos os homens, Davi repete
que Ele é, e é chamado Filho de Deus e rei de todos, nestes termos: “Ele me
disse: ‘Tu és o meu Filho, eu hoje te gerei. Pede, e eu te darei as nações como
herança, os confins da terra como propriedade’”. Essas palavras não foram
pronunciadas referindo-se a Davi, porque não governou todas as nações, nem toda
a terra, mas somente os judeus. É, portanto, evidente que a promessa feita ao
Ungido de reinar sobre toda a terra se refere ao Filho de Deus, que o próprio
Davi reconhece seu Senhor: “Disse o Senhor ao meu Senhor: ‘senta-te à minha
direita...’”, como já nos referimos. Com efeito, isso significa que o Pai
conversava com o Filho, como acima demonstramos a propósito de Isaías, que
dizia: “Assim fala o Senhor ao Ungido, meu Senhor: ‘As nações lhe obedeçam’”.
Idêntica promessa aparece em ambos os profetas: “Ele será rei”. Consequentemente,
a uma só e mesma Pessoa são dirigidas as palavras de Deus, ou seja, a Cristo, o
Filho de Deus. Do momento em que Davi disse: “O Senhor me disse”, é necessário
afirmar que nem Davi, nem outro profeta falam por iniciativa própria, pois não
é um homem que profere as profecias, mas o Espírito de Deus, o qual, tomando figura
e forma semelhante às pessoas interessadas, falava através dos profetas e
discorria ora em nome do Filho, ora em nome do Pai.
A
preexistência de Cristo
50. A propósito,
Cristo afirma, por meio de Davi, que o Pai se dirige a ele, e por meio dos
profetas disse o mesmo, como, por exemplo, em Isaías, que escreveu: “Mas agora disse
Iahweh, aquele que me modelou desde o ventre materno para ser seu servo, para reconduzir
Jacó a ele, para que a ele se reúna Israel; assim serei glorificado aos olhos
de Iahweh, meu Deus será minha força! Sim, ele disse: ‘Pouca coisa é que sejas
o meu servo para restaurar as tribos de Jacó e reconduzir os sobreviventes de
Israel. Também te estabeleci como luz das nações, a fim de que a minha salvação
chegue até as extremidades da terra”.
51. Antes de
tudo, do colóquio do Pai com o Filho resulta a preexistência do Filho de Deus,
e o fato de que, ainda antes do nascimento, o Pai o fez visível aos homens; depois,
antes de nascer, que seria tornado homem nascido de homens, que Deus mesmo o
teria plasmado no seio, isto é, que seria nascido pelo Espírito de Deus, que é
Senhor de todos os homens e Salvador daqueles que nele creem, dos judeus e dos
outros. “Israel”, de fato, é o nome do povo judeu em língua hebraica, nome que
vem do patriarca Jacó, que antes fora chamado “Israel”. Chama “gentios” a todos
os outros homens. O Filho chama a si próprio servo do Pai por causa da sua
obediência ao Pai, pois todo filho, também entre os homens, é servo de seu pai.
52. Que o
Cristo, Filho de Deus existente antes do mundo, seja com o Pai e junto do Pai e,
contemporaneamente, seja vizinho aos homens e em íntima comunhão com eles, rei do
universo, pois o Pai lhe submeteu tudo, e o fez Salvador daqueles que nele
creem, é a mensagem de semelhantes textos da Escritura. Porque não é nossa
intenção, e não está nas nossas possibilidades, pôr em concordância todos os
textos bíblicos, mas, com o auxílio daqueles citados, poderá compreender também
os demais que falam da mesma maneira, a fim de que creia em Cristo e peça a
Deus a sabedoria e a inteligência para compreender o que foi dito pelos
profetas.
O
sinal profético de Acaz
53. Que esse
Cristo, que estava junto do Pai, sendo o Verbo do Pai, deveria encarnar-se, tornar-se
homem, submeter-se à geração e ao nascimento de uma Virgem e viver entre os
homens, intervindo também o Pai do universo para realizar a sua encarnação, é o
que expressa Isaías: “Pois sabei que o Senhor mesmo vos dará um sinal: Eis que
a jovem está grávida e dará à luz um filho e dar-lhe-á o nome de Emanuel. Ele
se alimentará de coalhada e de mel, até que saiba rejeitar o mal e escolher o
bem. Com efeito, antes que o menino saiba rejeitar o mal e escolher o bem, a
terra, por cujos dois reis tu te apavoras, ficará reduzida a ermo”. Indicou que
nasceria de uma virgem. Significou que seria verdadeiro homem pelo fato de
comer, por ser chamado “criança” e por receber um nome. Tudo isso se refere ao
recém-nascido. Em língua hebraica, possui um duplo nome: Messias-Cristo e Jesus
Cristo. Esses dois nomes indicam as obras que haveria de realizar. Com efeito,
recebeu o nome de Cristo (Ungido) porque o Pai, por seu intermédio e em vista
de sua vinda como homem, ungiu e ordenou cada coisa, porque foi ungido pelo Espírito
de Deus, seu Pai, como disse, falando de si próprio, em Isaías: “O Espírito do Senhor
Iahweh está sobre mim, porque Iahweh me ungiu. Enviou-me a anunciar a Boa-Nova
aos pobres”.[143] E o nome de “Salvador”, porque é a causa de salvação para
todos os que, desde então, foram libertados por ele de toda enfermidade e da
morte; e para os que haveriam de crer depois deles, é também o doador da
salvação eterna.
O
Emanuel
54. Eis por que é chamado “Salvador”.
“Emanuel” se traduz por “Deus-conosco”, ou como expressão de bom desejo
formulado pelo profeta “Deus esteja conosco”. Desse modo, Ele é a interpretação
e a revelação da “Boa-Nova”. Por isso disse: “Eis que a virgem conceberá e dará
à luz um filho”. É ele que, sendo Deus, tem o destino de estar conosco. É, ao
mesmo tempo, maravilhado por tal acontecimento; [Isaías] anunciou o que acontecerá,
ou seja, que “Deus estará conosco”. E também, com relação a seu nascimento, o
mesmo profeta diz em outra passagem: “Antes de sentir as dores do parto, ela
deu à luz; antes de lhe sobrevirem as contrações, ela pôs no mundo um menino”,
proclamando assim o caráter inesperado e paradoxal do nascimento da Virgem. O
mesmo profeta repetiu: “Porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado, ele
recebeu o poder sobre seus ombros, e lhe foi dado este nome: Conselheiro maravilhoso,
Deus-forte, Pai-eterno, Príncipe da paz”.
O
conselheiro admirável
55. [Isaías] o
chama “conselheiro admirável”, também ao Pai, indicando assim que o Pai criou
com ele todas as coisas, como se diz no primeiro livro de Moisés, intitulado “Gênesis”:
“Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança”. Aqui
visivelmente fala o Pai ao Filho, como seu conselheiro admirável. Ele é também
nosso conselheiro; fala e não nos obriga, como Deus, embora seja também “Deus
forte”. Ele nos ajuda a abandonar a ignorância e adquirir o conhecimento, a nos
afastar do erro para caminhar até a verdade, a rechaçar a corrupção para obter
a incorruptibilidade.
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