terça-feira, 30 de abril de 2019

93 - Orígenes de Alexandria (185-253) As Homilias sobre São Lucas (Prólogo e Homilia 1)


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93
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Orígenes de Alexandria (185-253)
As Homilias sobre São Lucas (Prólogo e Homilia 1)


PRÓLOGO DA TRADUÇÃO DE SÃO JERÔNIMO

Inicia-se o prólogo do bem-aventurado presbítero Jerônimo para as homilias de Orígenes sobre o evangelista Lucas Jerônimo a Paula e Eustóquia

Há alguns dias, vós dissestes que havíeis lido certos comentários sobre [São] Mateus e [São] Lucas, um dos quais seria embotado tanto no pensamento quanto no estilo, o outro jogaria com as palavras, ao passo que cochilaria em suas ideias. Por essa razão, pedistes, desprezando semelhantes frivolidades, que eu traduzisse pelo menos as trinta e nove homilias, sobre [São] Lucas, de nosso caro Adamâncio, tal como se encontram em grego – tarefa desagradável esta e similar a um tormento escrever, como diz Túlio [Cícero], segundo o gosto alheio, e não o seu próprio,  a qual agora mesmo, porém, por causa disso, eu empreenderei porque não me exigis algo acima da minha capacidade. Outrora em Roma, nossa santa amiga Blesila havia solicitado que eu
entregasse aos leitores de nossa língua os vinte e seis tomos de Orígenes sobre [São] Mateus, e outros cinco sobre [São] Lucas, e os trinta e dois sobre [São] João, mas sabeis que isso não estava ao alcance de minhas forças, nem de meu tempo disponível, nem de minhas possibilidades de trabalho. Eis o quão grande é, junto a mim, vossa influência e vontade! Eu pus um pouco de lado os livros das Questões Hebraicas, para que, para seguir vosso arbítrio, eu pudesse ditar estas páginas, quaisquer que sejam, de uma obra tão proveitosa que não é minha, mas alheia, principalmente quando ouço o crocitar de um corvo de mau agouro, que se ri de modo estranho das cores de todas as aves, quando ele próprio é inteiramente tenebroso.
E assim confesso, antes que aquele indivíduo me faça suas críticas, que Orígenes, nestes tratados, brinca de dados como um menino.
As outras obras de sua maturidade e velhice são totalmente sérias. Se me aprouver, se eu tiver a possibilidade, se o Senhor me der a licença para que eu verta para a língua latina estas obras acima, e se eu tiver arrematado a obra anteriormente deixada de lado, então podereis ver, ou melhor, através de vós a língua romana conhecerá quanta riqueza não só até aqui ignorou, tanto quanto ela agora começará a conhecer. Além disso, eu me dispus a enviar-vos em alguns dias os comentários que publicaram sobre [São] Mateus, um de Hilário, escritor eloquentíssimo e o outro do bem-aventurado mártir Vitorino, cada um em estilo diverso, mas sob a inspiração única do Espírito Santo, para que não ignoreis quanto empenho pelas Sagradas Escrituras outrora houve também em nossos companheiros.
Aqui termina o prólogo. Começam as homilias de Orígenes sobre São Lucas em número de trinta e nove, vertidas para o latim por Eusébio Jerônimo, proferidas aos domingos.

COMEÇA A HOMILIA

PRIMEIRA HOMILIA 1
Lc 1,1-4
Sobre o Prólogo de Lucas, até aquela passagem, quando diz: “...escrever a ti, excelente Teófilo”.
Os Evangelhos canônicos
1. Como outrora, no seio do povo judeu, muitos prediziam a profecia, e certos deles eram pseudoprofetas – dos quais um foi Ananias, filho de Azur – outros, em verdade, eram verdadeiros profetas. E havia junto ao povo o dom de discernimento dos espíritos, pelo qual outros eram reconhecidos no número dos profetas, [e] alguns eram rejeitados ao modo de cambistas treinadíssimos.
No momento presente, no tempo do Novo Testamento, muitos também tentaram escrever evangelhos, mas nem todos foram aceitos. E a fim de que saibais que se escreveram não apenas quatro evangelhos, mas vários outros, dos quais estes, que temos, foram escolhidos e entregues às igrejas, que deste prólogo de Lucas, cujo texto assim se apresenta, aprendamos isto: “Porque evidentemente muitos tentaram compor uma narrativa”. Esta palavra “tentaram” tem uma acusação latente contra aqueles que, sem a graça do Espírito Santo, lançaram-se na redação dos Evangelhos. Mateus, Marcos, João e Lucas, com efeito, não “tentaram” escrever, mas, cheios do Espírito Santo, escreveram os Evangelhos.
“Muitos”, pois, “tentaram compor uma narrativa destes acontecimentos, que nos são perfeitamente conhecidos”.
2. A Igreja possui quatro Evangelhos; os hereges, vários, dos quais um se intitula “segundo os egípcios”, outro “segundo os doze Apóstolos”. Basílides mesmo teve a audácia de escrever um evangelho e de intitulá-lo com seu próprio nome. Assim, muitos tentaram escrever, mas apenas quatro Evangelhos foram aprovados, e é deles que se devem tirar os preceitos acerca da pessoa de nosso Senhor e Salvador. Conheço certo Evangelho que se chama “segundo [São] Tomé” e outro “segundo [São] Matias”; e muitos outros lemos, a fim de não parecermos ignorantes por causa daqueles que se julgam saber algo, caso tenham conhecido estes. Mas, em tudo isso, não aprovamos nada diferente do que aprova a Igreja, ou seja, que sejam admitidos apenas quatro Evangelhos. Por essa razão, eis o que se leu no prólogo: “Muitos tentaram compor uma narrativa acerca destes eventos que se consolidaram entre nós”. Eles ensaiaram e “tentaram” escrever uma narrativa destes eventos que para nós se revelaram
absolutamente certos.

O conhecimento sensível e o conhecimento da fé
3. Lucas revela seus sentimentos a partir do trecho em que diz: “Foram-nos muito claramente manifestadas”, segundo o sentido do grego pepleroforeménon que a língua latina não pode explicar com uma só palavra. Era, pois, com a certeza da fé e da razão que ele havia conhecido os fatos, e não hesitava absolutamente em alguma coisa se era assim ou de outro modo que sucedia. Isso, porém, sucede àqueles que acreditaram com muita fidelidade: aquilo que o profeta roga com insistência, eles obtiveram; e dizem: “confirma-me nas tuas palavras”.
 Por isso, o Apóstolo diz também sobre os que estavam firmes e sólidos: “Que sejais enraizados e fundados na fé”. Se alguém está, pois, enraizado e fundado na fé, pode a tempestade elevar-se, podem os ventos soprar, pode a chuva cair a cântaros, não será abalado, nada ocorrerá, porque sobre a pedra o edifício foi fundado com sólida base. E não pensemos que é
dada a estes olhos carnais a firmeza da fé, que a inteligência e a razão concederam. Que os infiéis acreditem por causa de sinais e prodígios que a penetração do homem considera atentamente. Que o fiel verdadeiramente avisado e firme siga a razão espiritual e assim discirna o que é verdadeiro do que é falso.
4. “Como transmitiram a nós aqueles que desde o princípio eles próprios viram e se tornaram servidores da palavra.” No Êxodo está escrito: “O povo via a voz do Senhor”. E com certeza ouve-se a voz, mais do que se vê, mas por isto foi escrito, para que nos fosse mostrado que ver a voz de Deus é ver com outros olhos, com os
quais os que merecem são capazes de ver. Mas, no Evangelho, não se discerne a voz, e sim a palavra, que é mais excelente que a voz. Donde se diz agora: “Como nos transmitiram aqueles que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e se tornaram servidores da Palavra”. Os apóstolos contemplaram a palavra, não porque tivessem  avistado o corpo do Senhor Salvador, mas porque haviam visto o Verbo. Se, com efeito, ter visto a Jesus segundo a carne é ter visto a Palavra de Deus, portanto também Pilatos, que condenou Jesus, viu a Palavra de Deus, bem como o traidor Judas e todos os que clamaram: “Crucifica-o, crucifica-o, tira da terra tal indivíduo”, viram a Palavra de Deus. Longe de mim esse pensamento de que qualquer incrédulo possa ver a Palavra de Deus. Ver a Palavra de Deus é tal qual o Salvador diz: “Quem me vê, vê também o Pai, que me enviou”.

Conhecimento e ação
5.  “Como nos transmitiram aqueles que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e se tornaram servidores da Palavra”. Implicitamente, somos instruídos pelas palavras de Lucas de que o fim de um ensinamento é o próprio ensinamento, mas que há outro tipo de ensinamento cujo fim é o cômputo das obras. Assim, por exemplo, a ciência da geometria tem como finalidade apenas a própria ciência e ensinamento. Há outra ciência, cuja finalidade exige a prática, como a Medicina. É necessário que eu saiba o método e os princípios da Medicina, não para que saiba somente o que eu deva fazer, mas para que faça, isto é, fazer uma incisão em uma ferida, receitar um regime moderado e estrito, sentir o calor da febre ao tomar o pulso, secar os humores muito abundantes com cuidados periódicos, moderá-los e contê-los. Se alguém só souber essa ciência e não vier acompanhado da prática, inútil será a sua ciência. Há algo semelhante à ciência da Medicina e à [sua] prática, de um lado, e conhecimento e ministério da Palavra, de outro lado. Daí está escrito: “Como nos transmitiram aqueles que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e se tornaram servidores da Palavra”, para que saibamos que a expressão “testemunhas oculares” indica o conhecimento teórico, mas a palavra “servidores” designa as obras.
6. “Pareceu-me por bem também, depois de ter-me informado cuidadosamente de tudo, desde o princípio”. Lucas incute e repete, visto que aquilo que há de escrever não conheceu a partir de boato, mas colheu pessoalmente desde o início. Desse modo, meritoriamente é louvado pelo Apóstolo, que diz: “[o irmão] cujo louvor, quanto ao Evangelho, está disperso por todas as igrejas”. Não se diz isso de nenhum outro, mas é-nos transmitido esse comentário de Lucas.

Todos somos Teófilos
“Pareceu-me por bem também, depois de ter-me informado cuidadosamente de tudo, desde o princípio, escrever para ti o relato detalhado de tudo, excelente Teófilo”. Alguém poderia pensar que era para algum personagem de nome Teófilo que ele teria escrito o Evangelho. Todos os que nos ouvis falar, se tais fordes que sejais amados por Deus, ao mesmo tempo vós sois “teófilos”, e para vós o Evangelho está escrito. Se alguém é um “Teófilo”, este é, ao mesmo tempo, “muito bom” e “muito forte”, como o exprime de forma mais significativa a língua grega, [com o termo] “krátistos”. Nenhum “Teófilo” é fraco, e como foi escrito sobre o povo de Israel, quando saía do Egito, que não houve em suas tribos alguém fraco; assim, audaciosamente falarei: que todo aquele que é “Teófilo” é forte, tendo a força e o vigor tanto de Deus quanto de sua palavra, de tal forma que possa conhecer a verdade de suas palavras, com as quais se instruiu, entendendo a palavra do Evangelho em Cristo, “a quem pertencem a glória e o poder nos séculos dos séculos. Amém”.

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quarta-feira, 24 de abril de 2019

92 - Orígines de Alexandria (185-253) Biografia


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92

Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra

Orígines de Alexandria (185-253)

Biografia





Orígenes é um dos mais distinto discípulo de Amônio de Alexandria. Foi um grande escritor cristão, de grande erudição, ligado à Escola Catequética de Alexandria, no período pré-niceno (antes do Concílio de Nicéia).
Inspirados em Orígenes e na Escola de Alexandria, muitos escritores cristãos desenvolveram suas obras: Sexto Júlio Africano, Dionísio de Alexandria, o Grande, Gregório Taumaturgo, Firmiliano, bispo de Cesareia (Capadócia), Teognosto, Pedro de Alexandria, Pânfilo e Hesíquio.
Nasceu de uma família cristã egípcia e teve como mestre Clemente de Alexandria. Seu pai, Leônides, foi morto em 202 durante as purificações do imperador Severo. Ele incentivou seu pai a não fugir do martírio. Orígenes em ato de piedade extrema e insana, castrou a si mesmo ao tomar literalmente o capítulo 19, versículo 12, do Evangelho de Mateus.
Assumiu, em 203, a direção da escola catequética de Alexandria - fundada por um estoico chamado Panteno, que se havia convertido à mensagem de Jesus - atraindo muitos jovens estudantes pelo seu carisma, conhecimento e virtudes pessoais.
Depois de ter também frequentado, desde 205, a escola de Amônio Sacas, fundador do neo-platonismo e mestre de Plotino, apercebeu-se da necessidade do conhecimento apurado dos grandes filósofos.
No decurso de uma viagem à Grécia, no ano de 230, foi ordenado sacerdote na Palestina pelos bispos Alexandre de Jerusalém e Teoctisto de Cesareia.
Em 231, Orígenes foi forçado a abandonar Alexandria devido à animosidade que o bispo Demétrio lhe devotava pelo facto de se ter castrado e convocou o Concílio de Alexandria (231) com esta finalidade. Também, contribui para esse fato o de Orígenes ter levado ao extremo a apropriação da filosofia platónica, tendo sido considerado herético.
Orígenes, então, passou a morar num lugar onde Jesus havia muitas vezes estado: Cesareia de Filipe, no norte de Israel (atual Banias), onde prosseguiu suas atividades com grande sucesso, abrindo a chamada Escola de Cesareia.
Na sequência da onda de perseguição aos cristãos, ordenada por Décio, Orígenes foi preso e torturado, o que lhe causou a morte, por volta de 253.
Os seus ensinos foram condenados ainda pelo Concílio de Alexandria de 400 e pelo Segundo Concílio de Constantinopla, em 533, o que demonstra terem perdurado até ao século VI.

A produção teológica
Orígenes escreveu nada menos que 600 obras, entre as quais as mais conhecidas são: De Princippis; Contra Celso e a Héxapla. Entre os seus numerosos comentários bíblicos devem ser realçados: Comentário ao Evangelho de Mateus e Comentário ao Evangelho de João. O número das suas homílias que chegaram até aos dias de hoje ultrapassam largamente a centena.

A importância do Espírito Santo:
“O Espírito sopra onde quer (Jo 3. 8). Isto significa que o Espírito é um ser substancial e não, como alguns afirmam, uma simples força ou actividade de Deus sem existência individual. O Apóstolo (São Paulo), depois de enumerar os dons do Espírito, prossegue: "um só e o mesmo Espírito opera todas estas coisas, repartindo particularmente a cada um de acordo com a sua vontade" (1 Cor 12, 11). Portanto, se atua e distribui de acordo com a sua vontade, é um ser substancial ativo, e não uma mera atividade ou manifestação”!.

Pensamentos condenados
Orígenes, além dos seus trabalhos teológicos, dedicou-se ao estudo e à discussão da filosofia, em especial Platão e os filósofos estoicos.
No seu pensamento, podemos referir a tese da pré-existência da alma e a doutrina da "Apocatástase", ou seja, da restauração universal (palingenesia), ambas posteriormente condenadas no Segundo Concílio de Constantinopla, realizado em 553, por serem formalmente contrárias ao núcleo irredutível do ensinamento bíblico. A condenação de algumas doutrinas de Orígenes se deu muito pelos exageros cometidos pelos seus discípulos, os origenistas.

Interpretação da Bíblia
Orígenes, embora não duvidando de que o texto sagrado seja invariavelmente verdadeiro, insiste na necessidade da sua correcta interpretação. Assim, teve a suficiente percepção para distinguir três níveis de leitura das escrituras:
1- Literal
2- Moral;
3- Espiritual, que é o mais importante e também o mais difícil.

Segundo Orígenes, cada um destes níveis indica um estado de consciência e amadurecimento espiritual e psicológico.

Santíssima Trindade
Orígenes como é comum nos escritores cristãos influenciados pelas doutrinas derivadas de Platão coloca as Ideias platônicas na Mente Divina, na Sabedoria de Deus. O Filho de Deus, Segunda pessoa da Trindade, é a Sabedoria bíblica: Mente de Deus, substancialmente subsistente:
“ […] Deus sempre foi Pai, e sempre teve o Filho unigênito, que, conforme tudo o que expusemos acima, é chamado também de sabedoria (…) nesta sabedoria que sempre estava com o Pai, estava sempre contida, preordenada sob a forma de idéias, a criação, de modo que não houve momento em que a ideia daquilo que teria sido criado não estivesse na sabedoria…(Orígenes. Os princípios, livro I, 4, 4-5.) ”

Primado de Pedro
Conforme fragmento conservado na "História Eclesiástica" de Eusébio, III, 1 Orígenes conta como foi o martírio do apóstolo Pedro em Roma: "Pedro, finalmente tendo ido para Roma, lá foi crucificado de cabeça para baixo".
E professa também o Primado de Pedro: "E Pedro, sobre quem a Igreja de Cristo foi edificada, contra a qual as portas do inferno não prevalecerão”.

Batismo
Orígenes também atesta que a Igreja como sempre fez, deve batizar as crianças: "A Igreja recebeu dos Apóstolos a tradição de dar batismo também aos recém nascidos". (Epist. ad Rom. Livro 5,9).

A Contra Celso e a exegese alegórica
Orígenes dedicou uma de suas obras contra Celso, considerado um dos primeiros críticos da doutrina do cristianismo. Do que sabemos de Celso foi o próprio Orígenes quem nos deu a conhecer, inclusive a sua obra a Alêthês Lógos (O logos verdadeiro) e o livro "Discurso contra os Cristãos", obra em que Celso coloca claramente a forma como o judaísmo e Cristianismo se tornaram cópias de outras religiões, tanto na questão dos mitos da arca de Noé como a circuncisão onde Celso afirma que os Judeus receberam essa tradição dos egípcios.
A partir de Orígenes, sabemos ainda apenas que ele é do século II, e que escreveu a sua obra por volta de 178, e, portanto, sob o reinado do imperador Marco Aurélio (que se deu de 161 a 180).
“ A Alêthês Lógos, de Celso, coloca em questão vários assuntos da crença relacionados à criação e à unidade de Deus, à encarnação e ressurreição de Jesus, aos profetas, aos milagres, etc. Ela questiona também assuntos da vida religiosa, não só sobre a moral, mas também sobre a participação da Igreja e dos cristãos na vida política e social.”
A obra exegética de Orígenes se concentra sobretudo no tratado que ele desenvolveu Sobre os princípios (Perì archôn). A exegese difundida e aplicada por ele está apoiada no que o judeu Fílon de Alexandria (20 a.C. a 42 d.C.) concebeu como interpretação alegórica dos textos sagrados do judaísmo.
“ Filon era de opinião de que o texto bíblico, de um modo geral, carecia de ser interpretado historicamente (no sentido da crítica das fontes, da origem do texto e de seu contexto). Dado que as palavras tinham um sentido escondido, mas admirável e profundo, era necessário adentrar-se nessa profundeza, a fim de trazer à tona, além do sentido magnífico, todo o seu valor… É nessa mesma perspectiva de Fílon (representante da Escola Bíblica Judaica), e no ambiente das escolas exegéticas de Alexandria… que se desenvolveu a exegese de Orígenes.”

O Maior Teólogo de Alexandria
Não por acaso, Orígenes foi considerado o maior teólogo da antiga escola de Alexandria. Seu pensamento, ou melhor, suas especulações extremamente audaciosas para a época, granjearam-lhe um número imenso de discípulos, mas, talvez em proporção muito maior, uma quantidade enorme de inimigos. Conseqüentemente, muitas posições suas foram condenadas em vários sínodos de diferentes épocas. Mesmo tendo admiradores do porte de Gregório do Ponto, Eusébio de Cesaréia, Dionísio, o Grande, Atanásio, dos Pais Capadócios (Basílio, o Grande, Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa), além de Ambrósio de Milão e Hilário de Poitiers, nenhum deles se animou a defender as suas idéias mais avançadas para a época, sendo que a série de condenações culminou com o concílio convocado por Justiniano em Constantinopla, no ano de 553. Ato contínuo, a polícia imperial confiscou e destruiu boa parte dos escritos de Orígenes, razão pela qual muito do seu pensamento original (com o perdão da redundância) se perdeu.
Entretanto, algo importante sobre Orígenes foi (convenientemente ou não) sublimado e esquecido com todas as controvérsias teológicas que se lhe seguiram, ou seja, o fato de que Orígenes, dada a sua genialidade, trabalhava com hipóteses, exercendo aquilo que melhor sabia fazer: especular. Muitas de suas idéias eram apenas idéias, especulações, indagações que seu espírito investigativo requeria de seu alto nível intelectual. Suas idéias eram expostas de boa fé, mas talvez fossem avançadas demais para a sua época, e tenha lhe faltado o senso de oportunidade e a prudência para perceber que essas mesmas idéias poderiam ser-lhe atribuídas como dogmas, por pessoas que se valeriam de seu nome para justificar posições com as quais Orígenes sequer havia pensado. O próprio Orígenes fazia questão de distinguir entre as suas proposições de fé, aquelas que eram aceitas e defendidas pela ortodoxia da Igreja, e aquelas que eram meramente hipotéticas, como sugestões para que seus discípulos e leitores nelas trabalhassem, a fim de se chegar a um consenso.


A Doutrina Ortodoxa Cristã
Orígenes ajudou a formular boa parte da doutrina ortodoxa cristã. Como lembra Justo L. González (“Uma História do Pensamento Cristão”, Ed. Cultura Cristã, 2004, vol. I, págs. 210/1), Orígenes sempre fez questão de frisar que Deus não pode ser compreendido por qualquer inteligência humana, porque “Deus é invisível, não apenas no sentido físico, mas também no sentido intelectual, pois não há mente que seja capaz de contemplar a essência divina. Não importa quão perfeito seja nosso conhecimento sobre Deus, devemos constantemente nos lembrarmos que Deus é muito mais elevado do que qualquer coisa que nossa inteligência possa conceber (De principiis, 1.1.5). Deus é a natureza absoluta e intelectual, além de toda definição de essência (Contra Celso 7.38). A linguagem antropomórfica que a Escritura aplica a Deus deve ser entendida alegoricamente, como uma tentativa de nos mostrar alguma faceta da maneira pela qual Deus se relaciona com a criação e com a humanidade. Por outro lado, se há uma coisa que podemos dizer sobre Deus em um sentido quase literal, é que Deus é Um (De principiis 1.1.6). Unidade absoluta, aquela unidade que é diametralmente oposta à multiplicidade do mundo transitório – e que era um dos temas característicos do platonismo contemporâneo – é o principal atributo do ser de Deus. Contudo, este Um inefável também é o Deus triúno da regra de fé da Igreja. Orígenes não apenas conhecia e frequentemente usava o termo “trindade”, como também contribuiu para o desenvolvimento da doutrina trinitariana, uma vez que sua teologia é uma das principais fontes dos debates trinitarianos que sacudiriam a igreja quase um século mais tarde”.

Orígenes e Origenismo
Para finalizar, uma distinção é essencial: uma coisa é Orígenes; outra muito diferente é o movimento que se tornou conhecido como “origenismo”. O Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs (Ed. Paulus – Ed. Vozes, 2002, pág. 1051) distingue 6 fases do movimento:

1) o próprio Orígenes, ou seja, o conjunto de suas especulações que, com as incompreensões de seus sucessores, constituiu-se na base do origenismo posterior;
2) o segundo momento é dado pelo origenismo tal como o entendem seus detratores entre o séc. III e o IV, Metódio, Pedro de Alexandria e Eustácio de Antioquia: a estes responde a “Apologia de Orígenes”, escrita por Pânfilo. Além da preexistência da alma e da apocatástase (a redenção e salvação final e universal de todos os seres), são contestadas, por uma série de mal-entendidos, a doutrina do corpo ressuscitado e a criação eterna;
3) o dos monges egípcios e palestinos da segunda metade do séc. IV, exposto principalmente por Evágrio Pôntico nos “Kephalaia Gnostica”. Evágrio fez uma “escolástica” do pensamento de Orígenes, suprimindo as tensões internas e omitindo grande parte da doutrina para construir com o restante um sistema: era o modo mais seguro para torná-lo herético, pois a heresia é a supressão e o corte das antíteses que caracterizam a doutrina cristã;
4) o mais importante é o origenismo como o supõem os antiorigenistas dos séculos IV-V, Epifânio, Jerônimo e Teófilo de Alexandria (ao passo que Orígenes é defendido por João de Jerusalém e por Rufino de Aquiléia). Suas proposições devem passar pelo crivo da crítica, pois lhes falta sobretudo senso histórico, o que é bem normal para sua época: não tinham noção alguma do desenvolvimento do dogma, a cuja consciência se chegou bem recentemente, e não julgavam Orígenes a partir de seu tempo. Além do mais, não primavam nem pela compreensão filosófica nem pela teológica. Na realidade, não apreenderam a mudança de mentalidade que separava a Igreja em minoria, perseguida, do tempo de Orígenes, e a Igreja triunfante de sua época, principalmente no que diz respeito à importância de uma cristianização da filosofia para a pastoral do mundo e da necessidade de uma teologia “em exercício”, isto é, em procura.
5) o evagrianismo dos monges palestinos da primeira metade do séc. VI, que viviam nos conventos da obediência de São Sabas, a Grande Laura e a Nova Laura. A principal manifestação de sua doutrina é o “Livro de Santo Hieróteo”, obra do monge sírio Estevão bar Sudayle, que agrava a “escolástica” origenista até chegar a um panteísmo radical.
6) o do tempo da condenação do imperador Justiniano. Os documentos a respeito do Concílio de Constantinopla II não fazem referência expressa a Orígenes, cujo nome foi muito provavelmente acrescentado depois ao cânon 11 (acompanhando os anátemas a Ário, Nestório e Apolinário, entre outros), já que nem o esboço do Imperador, nem a carta em que o papa Virgílio aprova o concílio, tocam no nome de Orígenes. Formalmente, Orígenes não foi considerado um herético, mas boa parte de seus escritos se perdeu depois da condenação dos origenistas. Só no século XX é que a espiritualidade de Orígenes é redescoberta por W. Völker (1931) e a compreensão de sua exegese é obra de H. de Lubac (1950), fazendo com que sua personalidade reencontrasse, 1700 anos depois, suas dimensões essenciais. Atualmente, Orígenes é, dentre os escritores eclesiásticos da antiguidade, o mais lido depois de Agostinho.

A Espiritualidade de Orígenes
Orígenes levava uma vida austera, rigorosa, a ponto de ser quase certo que, interpretando ao pé da letra Mateus 19:12, castrar-se a si mesmo e fazer-se eunuco para Deus, atitude extrema que o impediu de ser ordenado sacerdote por Demétrio. O historiador Paul Johnson (“História do Cristianismo”, Ed. Imago, 2001, pág. 75), qualificando-o de “fanático religioso”, relata que Orígenes “abriu mão de seu emprego e vendeu seus livros para concentrar-se na religião. Dormia no chão, não comia carne, não bebia vinho, tinha apenas um casaco e não possuía sapatos”. Já próximo dos 30 anos de idade, deixa a direção da escola com Héraclas e, seguido de alguns discípulos que ele próprio escolheu, aprofunda-se nos estudos bíblicos e filosóficos, passando a escrever sua vasta obra, incentivado por Ambrósio, um homem rico de Alexandria que, pela pregação de Orígenes, havia abandonado a heresia valentiniana convertendo-se à ortodoxia da Igreja. Ambrósio tinha uma profunda sede intelectual e, vendo em Orígenes as qualidades do pensamento que tanto prezava, passa a financiá-lo para que suas idéias sejam conhecidas de todos. Nesse período, Orígenes também viaja muito, visitando Roma, Cesaréia, Jordânia, chegando a ser levado com escolta militar a Antioquia, onde a mãe do imperador Alexandre Severo, Júlia Maméia, desejava conhecer melhor o cristianismo.
Orígenes adquire, então, o status de uma espécie de “celebridade mundial” da época, segundo relata Hans von Campenhausen (“Os Pais da Igreja”, Ed. CPAD, 2005, pág. 51): “o governador da Arábia solicitou ao seu colega egípcio e também escreveu ao bispo Demétrio uma carta amável pedindo que fosse permitido que Orígenes desse algumas palestras em sua presença”. Por volta do ano 231, é convidado pelos bispos gregos a ir a Atenas discutir com os grupos de heréticos. De passagem, visita Cesaréia da Palestina, onde os bispos Teoctisto e Alexandre o ordenam sacerdote. De volta a Alexandria, Demétrio se irrita profundamente com esse fato e, reunindo um pequeno concílio, o exila do Egito e, pouco depois, o suspende da ordem sacerdotal. Orígenes vai, então, a Cesaréia, onde é bem recebido pelos amigos palestinos, que, a exemplo de outras igrejas do Oriente, não dão importância alguma à sentença de Demétrio.
Moderno a seu tempo, Orígenes dirige um tipo de escola para “simpatizantes” do cristianismo, ou seja, jovens pagãos que queriam entender melhor o que a nova religião pregava, e que Orígenes apresentava-lhes a visão cristã dos grandes problemas filosóficos. Entre suas muitas viagens, uma feita à Jordânia reconduz o bispo Berilo de Bostra à ortodoxia, e aproveita para discutir com um grupo de cristãos que afirmavam que a alma morre com o corpo e ressuscita com ele. Entretanto, nova perseguição irrompe sob o comando do imperador Décio, em 250, e Orígenes é preso e torturado, não com o fim de matá-lo, mas para que renegasse a sua fé, visto que uma eventual apostasia sua produziria efeitos notáveis nos demais fiéis, já que, dos seus contemporâneos, era a figura mais relevante do cristianismo. Pouco tempo depois, Décio morre e Orígenes é liberto, morrendo pouco depois, aos 69 anos de idade, provavelmente em 253. No século XIII, o seu túmulo era ainda visível em Tiro, na igreja chamada do Santo Sepulcro.

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segunda-feira, 8 de abril de 2019

91 - Tertuliano de Cartago (155-220) Apologia (Capítulo 32 - 35)



91
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Tertuliano de Cartago (155-220)
Apologia (Capítulo 32 - 35)


CAPÍTULO XXXII
Há também uma outra e grande necessidade para oferecermos orações em favor dos imperadores, e não somente para a completa estabilidade do Império e em favor dos interesses dos Romanos em geral. Pois nós sabemos que o iminente choque de poderes em toda a terra é apenas retardado pela contínua existência do Império Romano.
Nós não temos desejo algum de sermos tomados por esses terríveis eventos e em nossas orações, no desejo de que esses eventos demorem a acontecer, colocamos em destaque nosso desejo de continuidade do Império Romano.
 Além disso, enquanto nos recusamos jurar pelo gênio de César, nós juramos por sua segurança, a qual é muito mais importante que todo seu gênio. São vocês ignorantes do fato de que esses gênios são chamados “Daimones”, e que o diminutivo “Daimonia” é aplicado a eles? Nós respeitamos na pessoa do imperador a ordem de Deus, que o pôs acima das nações.
Nós sabemos que há isso neles o qual Deus tem legado; e a quem Deus legou essas coisas nós desejamos toda segurança, e nós consideramos um juramento pela segurança do imperador um julgamento muito importante.
Mas para os demônios, isso é, seus gênios, nós temos o hábito de exorcizálos, não juramos por eles, evitando dar a eles a divina honra. »

CAPÍTULO XXXIII
Mas por que se estender a respeito do sagrado respeito e reverência que os cristãos dão ao imperador, o qual nós apenas podemos reconhece-lo chamado por Deus ao seu serviço?
Portanto, sob essas condições devo dizer que César pertence mais a nós do que a vocês, pois nosso Deus o escolheu.
Portanto, tendo essa possibilidade, eu faço mais por seu bem-estar, não simplesmente porque eu peço isso para Aquele que pode dar isso, ou porque eu peço isso como alguém que merece, mas por que, em se tratando de manter o poder de César em seus devidos limites e pondo isso sob o Excelso e tornando isso menor que o divino, eu muito o recomendo a Deidade, a quem eu o faço o único inferior.
Mas eu o coloco em uma posição inferior a quem eu considero mais glorioso que o imperador. Nunca irei chamar o imperador de Deus, e isso porque não está em mim ser culpado de falsidade; ou porque eu não me atrevo a expô-lo ao ridículo; ou porque ele mesmo não desejará ter esse alto nome a ele aplicado.
Se ele é somente um homem, é do seu interesse como homem dar a Deus seu alto posto. Deixemos que ele pense sobre isso o suficiente para suportar o nome de imperador. Chamá-lo de Deus é usurpar seu título. Se ele não é um homem, então não pode ser um imperador.
Mesmo quando, em meio às honras de um triunfo, ele está sentado no seu honroso carro de guerra, ele se recorda de ser um homem. Uma voz em sua mente permanece suspirando em seus ouvidos: “Olhe para sua condição, lembre-se de que você é apenas um homem.”
E isso apenas acrescenta as suas exaltações o fato de que ele brilha com uma luz que ultrapassa os requerimentos de sua condição e que ele necessita de uma reminiscência, para que ele não acredite ser de natureza divina. »

CAPÍTULO XXXIV
Augusto, o fundador do Império, nunca recebeu o título de Senhor; este é, pois, o nome da Deidade. Da minha parte, estou disporto a dar ao imperador essa designação, mas na aceitação comum da palavra e quando sou forçado a chamá-lo assim no caso dele estar sendo um representante de Deus.
Mas minha relação com ele é apenas de liberdade, pois tenho um só e verdadeiro Senhor, Deus onipotente e eterno, o qual é senhor também do imperador. Como pode ele, o qual é realmente pai de seu país, ser seu senhor?
O nome da piedade é mais gratificante que o nome do poder; então os chefes das famílias são chamados pais tanto mais que senhores. Longe de nós o imperador receber o nome de Deus.
Nós apenas podemos professar nossa crença de que ele é o que é indignamente, ou mais que isso, por uma bajulação fatal; isso é como se, tendo um imperador, você chamasse a outro pelo nome de imperador, em qual caso você ofenderia aquele que atualmente reina. Dê toda a reverência a Deus, se você deseja que o imperador seja propiciado por Deus.
Dê toda a adoração e acredite nEle, pos nenhum outro é divino. Cessem também de atribuir o nome sagrado àquele que necessita de Deus.
Se essa adulação mentirosa não é vergonhosa, chamando divino um homem, deixe que ele tenha pavor pelo menos do mau presságio o qual ele suporta. É a invocação de um praga, para dar a César o nome de deus antes de sua apoteose. »

CAPÍTULO XXXV
Esta é a razão, pois, do porquê serem os cristãos considerados inimigos públicos: eles não são vaidosos, falsos, nem imprudentes com relação à honra do imperador; como homens que acreditam na verdadeira religião, eles preferem celebrar seus dias de festa com boa consciência, ao invés de serem libertinos.
É, verdadeiramente, uma notável homenagem lançar fogos e camas ante o público, banqueteando de rua em rua, tornando a cidade uma grande taverna, fazendo lama com vinho, realizando atos violentos, vergonhosos e luxuriantes!
Será honesto alegrar-se abertamente da desgraça pública? Fazer coisas diferentes sendo outras vezes conveniente os dias festivos dos príncipes? Aqueles que observam as regras das virtudes em reverência a César, por causa dele se afastariam delas? Deve a piedade ser uma licença para ações imorais, e deve a religião ser usada para fornecer a ocasião para todo tipo de extravagâncias?
Pobres de nós, dignos de condenação! Pois por que nós mantemos os dias votivos e de alta alegria em honra de César com castidade, sobriedade e virtude? Por que, nos dias de felicidade, nós nem cobrimos as vigas de nossas portas com loureiros nem iniciamos o dia com lâmpadas?
É algo correto, nas ocasiões de festividade pública, vestir nossa casa elegantemente como um novo bordel? Entretanto, na importância desta homenagem a uma majestade menor, em referência a nós sermos acusados de um pequeno sacrilégio, pois nós não celebramos com vocês os feriados de César de uma maneira proibida pela modéstia, decência e pureza - de fato, eles têm sido estabelecidos como que fornecendo oportunidades para dissoluções mais do que qualquer outro motivo; nesta importância estou ansioso para ressaltar quão fiéis e verdadeiros são vocês, para não acontecer que estes que não nos tem como romanos, mas como inimigos dos chefes de Roma, sejam considerados piores que nós, cristãos!
Apelo aos próprios habitantes de Roma, à população das sete colinas: por acaso os habitantes de Roma já dispensaram algum César? O Tibre e as feras selvagens testemunham.
Diga agora se a natureza cobriu nossos corações com uma substância transparente através da qual a luz pode passar, os quais, todos cortados, não podem deletar a cena de outro e outro César presidindo a distribuição de um dom?
E muitas vezes eles estão gritando: “Talvez Júpiter pegue anos de nós e com eles alongue os de vocês” - palavras tão estranhas aos lábios de um cristão quanto está fora de questão seu desejo de uma mudança de imperador.
Mas isto é o povinho, vocês dizem; mas, mesmo sendo a ralé, eles ainda são romanos, e nada mais frequente do que eles pedirem a morte dos cristãos. É claro que as outras classes, como convém a suas altas posições, são muito religiosas.
Nem um único sinal de traição há no Senado, nas ordens eqüestres, nos campos, no palácio. De que lugar, então, veio um Cássio, um Negro, um Albino?
De que lugar, eles que acossaram o César entre os dois loureiros? De onde, eles que praticaram luta livre, na qual adquiriram a habilidade necessária para estrangulá-lo? Eles, que entraram no palácio, cheios de armas, mais audaciosos que todos os seus Tigerii e Parthenii. Se não estou enganado, eles eram romanos; isto é, eles não eram cristãos.
Ainda todos eles, na véspera de suas traições, ofereceram sacrifícios pela vida do imperador, e juraram por ele, uma coisa em profissão e outra em seus corações; e eles tinham o hábito de denominar os cristãos de inimigos do Estado.
Sim, e pessoas que agora são trazidas diariamente à luz como confederados ou aprovadores desses crimes e traições, as junções ainda restantes depois de uma colheita de traidores, com loureiros novos e verdes eles enfeitaram suas portas; com nobres e brilhantes lâmpadas, eles revestiram seus pórticos; com os mais requintados e chamativos sofás eles dividiram o Fórum entre eles; não que eles devam celebrar festas públicas, mas eles devem pegar uma amostra de suas seções votivas em participação das festividades de outro, e inaugurar o modelo e imagem de suas esperanças, mudando em suas mentes o nome do imperador.
A mesma homenagem é prestada, também respeitosamente, por aqueles que consultam astrólogos e magos, sobre a vida de César - artes que, sendo feitas por anjos caídos e proibidas por Deus, os cristãos não podem usá-las.
Mas quem tem qualquer ocasião para perguntar sobre a vida do imperador, se ele não tem algum desejo contra ela ou alguma esperança e expectativas para depois dela?
Pois consultas a astrólogos não têm o mesmo motivo no caso de amigos como no caso dos soberanos. A ansiedade de uma parenta é algo muito diferente da de um súdito.

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segunda-feira, 1 de abril de 2019

90 - Tertuliano de Cartago (155-220) Apologia (Capítulo 28 - 31 )


Gleisto, Alexandre e Edson

90
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Tertuliano de Cartago (155-220)
Apologia (Capítulo 28 - 31 )



CAPÍTULO XXVIII
 Mas sendo evidente a injustiça de compelir homens livres, contra sua vontade, a oferecer sacrifício - porque mesmo em outros atos de serviço religioso se requer uma mente de boa vontade - deveria ser tido por total absurdo um homem obrigar outro a dar honras aos deuses, quando cada um deve voluntariamente, pelo sentido de sua própria necessidade, procurar o favor deles, para que, na liberdade que é seu direito, esteja pronto a dizer: "Não preciso dos favores de Júpiter, a quem orais... Que Jano me venha com olhares tristes em qualquer uma de suas faces, a que desejar... O que tendes a ver comigo?"
Vós sois levados, não há dúvidas, por aqueles mesmos espíritos maus que vos compelem a oferecer sacrifícios para o bem estar do imperador; e ficais compelidos à necessidade de usar a força, da mesma forma como estamos sob a obrigação de enfrentar os perigos disso. Somos conduzidos, agora, à segunda base da acusação: somos culpados de traição contra a majestade muito augusta, porque cuidais de dar homenagem com maior temor e a maior reverência ao Imperador do que a ao próprio Júpiter Olímpico.
Mas - bem sabeis - procedeis com diferentes fundamentos. É porque não há nenhum homem melhor do que aquele temível, seja quem for? Mas isso não é feito por vós senão com base num poder cuja presença vivamente sentis. Assim também nisso sois culpados de impiedade para com vossos deuses, visto que mostrais uma maior reverência ao soberano humano do que aos deuses. Daí, entre vós, o povo também jura falso mais facilmente pelo nome de todos os deuses, do que pelo nome do supremo Imperador. »

CAPÍTULO XXIX
Esclareçamos, portanto, antes de mais nada, se aqueles aos quais se oferecem sacrifícios estão aptos a proteger seja o Imperador seja alguém mais, e assim nos julguem culpados de traição; se anjos ou demônios, espíritos da pior natureza, podem realizar o bem, se o perdido pode dar salvação, se o condenado pode dar liberdade, se o morto (refiro-me a quem bem conheceis) pode defender o vivo...
Porque certamente a primeira coisa de que cuidariam seria da proteção de suas estátuas, imagens e templos, e aquilo a que antes de tudo deveriam sua segurança, ou seja, à vigilância dos guardas do Imperador. Sim, penso, os próprios materiais de que são feitos provêm das minas do Imperador, e não haveria um templo que não dependesse da vontade do Imperador.
Sim, e muitos deuses já sentiram o desagrado do Imperador. Meu argumento é que eles são também participantes do favor imperial, quando o Imperador lhes confere algum presente ou privilégio. Como podem eles - que assim estão sob o poder do Imperador, que pertencem inteiramente ao Imperador - ter a proteção do Imperador sob sua responsabilidade, do modo que possais imaginá-los aptos a dar ao Imperador o que eles mais prontamente recebem do Imperador?
Esta é, pois, a base na qual somos acusados de traição contra a majestade imperial, a saber, não colocamos os imperadores submissos às suas próprias propriedades; porque não oferecemos um simples arremedo de culto à crença nessas divindades, como não acreditando que a segurança dos imperadores permaneça em mãos metálicas.
Mas sois ímpios a tal ponto que procurais a divindade onde não está, que a procurais naqueles que não a possuem, passando por Aquele que a possui inteiramente em Seu poder. Além disso, perseguis aqueles que sabem onde procurá-La e que, sabendo onde procurá-La, são capazes de também gozar de Sua segurança. »

CAPÍTULO XXX
 Oferecemos preces pela segurança de nossos líderes ao Eterno, ao Verdadeiro, ao Deus vivo, cujo beneplácito, acima de todos os outros, eles próprios desejam. Eles sabem de quem receberam seu poder. Sabem, já que são homens, de quem receberam a própria vida.
Estão convencidos de que Ele é o único Deus, de cujo único poder são inteiramente dependentes, de quem são segundos, depois de Quem ocupam os mais altos cargos, antes e acima de todas as divindades. Por que não são superiores à morte, já que estão acima de todos os seres humanos, e vivendo como vivem? Eles meditam sobre a extensão de seu poder e assim vêm a compreender o Altíssimo.
Reconhecem que possuem todo seu poder recebido d'Ele contra o qual seu poder é nada. Que o imperador faça guerra ao céu, que leve o céu cativo em seu triunfo, que ponha guardas no céu, que imponha taxas ao céu! Ele não pode! Exatamente porque ele é menor do que o céu, ele é grande. Pois ele mesmo é d'Aquele ao qual o céu e todas as criaturas pertencem.
Ele obteve seu cetro quando lhe foi concedida sua humanidade. Seu poder, quando recebeu o sopro da vida. Para lá elevamos nossos olhos, com as mãos abertas, porque livres do pecado, com a cabeça descoberta, porque não temos nada de que nos envergonharmos, finalmente, sem um monitor porque é de nosso coração que partem nossas preces.
Sem cessar, oferecemos preces por todos os nossos líderes. Pedimos por uma vida longa, pela segurança do Império, para a proteção da casa imperial, para os bravos exércitos, por um senado fiel, por um povo virtuoso, e, enfim, por todo o mundo, seja quem for, homem ou Imperador, como um imperador desejaria.
 Essas coisas eu não posso pedir senão a Deus, de quem sei que as obterei, seja porque somente Ele as concede, seja porque Lhe peço sua dádiva, como sendo um servo Dele, rendendo homenagem somente a Ele, perseguido por Sua doutrina, oferecendo a Ele, por Seu própria recomendação, aquele custoso e nobre sacrifício de prece feito por um corpo casto, uma alma pura, um espírito santificado, e não por alguns poucos grãos de incenso que nada valem - extraído da árvore arábica - nem alguns pingos de vinho, nem o sangue de alguma boi indigno para o qual a morte é um destaque, e, em adição a outras ofensivas coisas, uma consciência poluída, de tal modo que alguém se admira quando vossas vítimas são examinadas por aqueles sacerdotes vis.
Por que o exame é menor sobre o que sacrificam do que sobre os que são sacrificados? Com nossas mãos assim abertas e levantadas para Deus, nos entregamos a vossas claves de ferro, somos suspensos em cruzes, lançados às chamas, temos decepadas nossas cabeças pela espada, somos entregues aos animais selvagens: a verdadeira atitude de prece de um cristão é uma preparação para todos os castigos.
Que esses bons administradores façam seu trabalho, arranquem-nos a alma, implorando a Deus pelo bem estar do Imperador. Acima da verdade de Deus e da devoção a Seu nome, ponde o estigma do crime.

CAPÍTULO XXXI
Mas nós simplesmente, vocês dizem, lisonjeamos o imperador e fingimos essas nossas orações para escaparmos da perseguição. Obrigado por vosso engano, dando a nós a oportunidade de provar nossas alegações. Aquele de vós que pensa que não nos importamos com o bem-estar de César, investigue as revelações de Deus, examine nossos livros sagrados, os quais nós não escondemos e que por muitas maneiras acabam parando nas mãos daqueles que não são dos nossos.
Aprenda através deles que uma grande benevolência está sobre nós a ponto de suplicarmos a Deus por nossos inimigos e desejarmos bênçãos a nossos perseguidores. Quem, portanto, são os maiores perseguidores dos cristãos, senão as muitas festas com traições as quais somos carregados.
 Além disso, muitas vezes e claramente a Escritura diz: “Reze pelos reis, juízes e poderes, então tudo estará em paz com você”. Pois quando há distúrbios no Império, se o tumulto é sentido por seus outros membros, certamente nós também o sentimos, já que nós não somos dados à desordem.

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