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Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e
Obra
Cipriano de Cartago (210-258)
Os Lapsos –
Partes 1 e 2
De
lapsis (Os lapsos):
Durante a perseguição de Décio, em 250-251, muitos cristãos negaram
a própria fé, ofereceram ou o sacrifício ou o incenso aos deuses, enquanto outros,
sem de fato terem oferecido um ou outro, obtiveram ilicitamente um atestado de tê-lo
feito. Pelo fato de terem decaído na fé, embora em graus distintos, estes não
devem ser readmitidos na comunidade sem a devida penitência. Cipriano admoesta
a não dar aos lapsos bilhetes de perdão indistintamente, pois a administração
da disciplina eclesiástica cabe ao bispo somente. Composta em 251, a obra
motiva e reflete as deliberações do Concílio de Cartago daquele ano.
1.
Retorno à paz e alegria pela força dos fiéis
Eis que, irmãos diletíssimos, a paz foi restituída à Igreja
e, coisa que há pouco parecia difícil para os incrédulos e impossível para os
pérfidos, a nossa segurança foi restabelecida por obra e vingança divina.
As mentes retornam à alegria e, tendo-se dissipado a
tempestade e a nuvem da aflição, refulgiram a tranquilidade e a serenidade.
Louvores sejam dados a Deus e sejam celebradas com ações de
graça as suas
benevolências
e as suas dádivas – ainda que a nossa voz nem durante a perseguição tenha
cessado de render graças.
O inimigo não possui um poder tal que nós, que amamos a Deus
com todo o coração e alma e vigor, não possamos proclamar gloriosamente as suas
bênçãos e os seus louvores, sempre e em todo lugar. Almejado pelas orações de todos,
veio o dia e, após a terrível e sombria obscuridade da noite, o mundo brilhou, irradiado
pela luz do Senhor.
Miramos com olhos alegres os confessores, preclaros pela
fama do seu bom nome e gloriosos pelos méritos da virtude e da fé; cingindo-os
com santos beijos, os abraçamos com inesgotável ardor, eles, tão longamente
desejados.
Aí está a cândida legião dos soldados de Cristo, os quais,
com firme união, quebraram a ferocidade turbulenta de uma perseguição bravia,
preparados para o sofrimento do cárcere, armados para suportar a morte.
Resististes bravamente ao mundo, destes a Deus um espetáculo
glorioso, fostes de exemplo aos irmãos que vos seguirão.
Uma voz religiosa pronunciou Cristo e confessou que nele
acreditou de uma vez por todas. As mãos ilustres, que estavam acostumadas somente
às obras divinas, se recusaram aos sacrifícios sacrílegos; as bocas
santificadas com alimentos celestiais pelo Corpo e Sangue do Senhor cuspiram os
contatos profanos e as relíquias dos ídolos; a vossa testa permaneceu livre do
véu ímpio e celerado, com o qual eram cobertas as testas cativas dos que
ofereciam sacrifícios; a fronte pura com a marca de Deus não pôde carregar a
coroa do diabo e se preservou para a coroa do Senhor.
Ó, como vos recebe alegremente em seu seio a Mãe Igreja, vós
que retornais da batalha! Quão feliz, quão jubilosa ela abre suas portas para
que entreis em fileiras compactas, levantando os troféus tirados do inimigo
vencido!
Junto com os homens triunfantes vêm também as mulheres, que
venceram, além do mundo, também o sexo. Também vêm as virgens, com a dupla
glória da sua batalha, e vêm os meninos, que, com suas virtudes, foram além de
seus anos.
Também a restante multidão dos que permanecem firmes segue a
vossa glória e acompanha os vossos passos com insígnias de louvor bem próximas
e quase idênticas.
É a mesma, nestes, a sinceridade do coração, é a mesma a
integridade da fé tenaz. Estes, fincados nas raízes inabaláveis dos
ensinamentos celestes e fortificados pelas tradições evangélicas, não temeram
os possíveis tormentos, nem as penas da propriedade e do corpo. [Penas da propriedade: o confisco dos bens. Penas do corpo: a tortura].
Os dias da provação da fé estavam com prazo delimitado: mas
aquele que lembra de ter renunciado ao mundo desconhece o dia do mundo, e já
não estima os tempos terrenos aquele que espera de Deus a eternidade.
Ninguém, irmãos, ninguém mutile esta glória, ninguém diminua
com crítica maldosa a firmeza incorrupta dos que permanecem firmes na fé. Tendo
passado o tempo previsto para a negação, todo
aquele que, neste tempo, não se apresentou, confessou ser cristão.
Mas o detento que, sob as mãos dos pagãos, confessa Deus tem
a primeira honra para a vitória.
Aquele que ficou escondido em cauto recesso para preservar-se
para Deus tem um degrau inferior para a glória. [
Provável referência à própria fuga.]
Aquela é uma confissão pública, esta é privada; aquele vence
o juiz do mundo, este, contente de Deus como seu juiz, guarda a consciência
pura pela integridade do coração; lá a fortaleza é mais pronta, aqui a cautela
é mais segura.
Aquele, aproximando-se a sua hora, já foi encontrado maduro;
este, talvez, teve sua hora adiada, mas, deixado o patrimônio, se escondeu não porque
teria negado: sem dúvida teria confessado, se também ele tivesse sido detento.
2.
O pecado dos lapsos é resultado do laxismo na fé
Uma só tristeza aflige estas coroas celestes dos mártires,
estas glórias espirituais dos confessores, estas virtudes máximas e exímias dos
irmãos que permaneceram firmes na fé: o fato de o violento inimigo do seu
próprio povo ter matado uma parte arrancada de nossas vísceras.
O que vou fazer aqui, irmãos caríssimos, desvairando num
delírio contínuo da mente, o que e como dizê-lo? Necessita-se mais de lágrimas
que de palavras para expressar a dor com que deve ser chorada a ferida do nosso
corpo, com que deve ser lamentada a multíplice perda de um povo já numeroso.
Quem é tão duro e insensível, quem é tão esquecido do amor
fraterno que – encontrando-se entre as multiformes perdas e os restos lúgubres
e esqualidamente deformes dos seus – consiga manter os olhos secos e,
irrompendo imediatamente o choro, não extravase os seus gemidos mais com
lágrimas que com palavras?
Sofro, irmãos, sofro convosco; nem a minha própria
integridade física e a minha
saúde
ajudam a mitigar minhas dores, pois na ferida do seu rebanho o pastor é ferido mais
ainda. Junto o meu peito com cada um, partilho os fúnebres pesos da dor e do
luto.
Choro com os que choram, soluço com os que soluçam, sinto-me
morto com os mortos.
Por aquelas flechas do inimigo furioso foram golpeados ao
mesmo tempo os meus membros, as espadas cruéis transpassaram as minhas
vísceras.
O espírito não conseguiu ficar imune e livre da incursão da
perseguição, pois o afeto prostrou também a mim nos irmãos prostrados.
Deve permanecer, porém, irmãos diletíssimos, o senso da
verdade; nem a tenebrosa escuridão da feroz perseguição deve ter cegado a mente
e o sentimento a tal ponto que nada tenha sobrado de luz e de iluminação, pelas
quais os ensinamentos divinos possam ser percebidos.
Quando se conhece a causa da desventura, encontra-se também o
remédio da ferida. O Senhor quis pôr à prova a sua família; e, já que uma longa
paz tinha corrompido a disciplina transmitida a nós divinamente, a reprovação
celeste reergueu uma fé acomodada e, diria, quase adormecida; e, malgrado
merecêssemos mais pelos nossos pecados, o Senhor clementíssimo ordenou as
coisas de tal forma que isso tudo que aconteceu parecesse mais um exame que uma
perseguição.
Cada um por si, todos procuravam aumentar o patrimônio e,
esquecidos daquilo que os crentes ou fizeram no tempo dos apóstolos ou sempre
deveriam ter feito, dedicavam-se a ampliar as riquezas com o ardor insaciável
da cobiça.
Não havia nos sacerdotes a religião devota, nem nos ministérios
a fé íntegra, nem nas obras a misericórdia, nem nos costumes a disciplina.
A barba era deturpada nos homens; nas mulheres, a forma era
afetada. Eram adulterados os olhos feitos pelas mãos de Deus; os cabelos eram
coloridos com falsidade.
As fraudes eram astuciosas para enganar os corações dos
simples, as intenções eram enganosas para lograr os irmãos.
Contraíam o vínculo matrimonial com infiéis, prostituíam aos
pagãos os membros de Cristo.
Não tinham receio apenas de jurar, mas até de perjurar. Criticavam
os superiores com orgulho soberbo, amaldiçoavam-se com boca envenenada,
discordavam uns dos outros com ódios obstinados.
Muitíssimos
bispos, que deveriam servir de exortação e exemplo aos outros, desprezada a
missão divina, tornavam-se agentes das coisas mundanas: deixado o magistério,
abandonado o povo e vagando por terras alheias, procuravam os mercados semanais
do negócio lucrativo. Enquanto na comunidade eclesial os irmãos passavam fome,
eles queriam ter dinheiro mais abundantemente.
Roubavam os fundos com fraudes insidiosas, aumentavam a
renda com usuras que se multiplicavam.
Sendo tais, o que não
mereceríamos sofrer por pecados desse tipo, uma vez que já antigamente a
censura divina alertou e ensinou: “Se abandonarem a minha Lei e não viverem nos
meus julgamentos, se profanarem os meus estatutos e não observarem os meus
preceitos, visitarei as ofensas deles com a vara e os seus delitos com os
flagelos”? [Sl 88.31-33].
O que destaco no texto?
O que o texto me diz?
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