segunda-feira, 29 de junho de 2020

140 - Cipriano de Cartago (210-258) Os Lapsos – Partes 3 a 6


 140

Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Cipriano de Cartago (210-258)
Os Lapsos – Partes 3 a 6



3. O esquecimento das palavras divinas, causa do decaimento da fé e do levar outros
a fazê-lo
Estas coisas nos foram preanunciadas e preditas. Mas nós, esquecidos da Lei dada e de sua observância, nos comportamos em nossos pecados de tal forma que, enquanto desrespeitamos os mandamentos do Senhor, chegamos à correção dos pecados e à provação da fé com remédios bem mais severos. Nem, pelo menos, retornamos tarde ao temor de Deus, para suportarmos pacientemente e fortemente esta nossa correção e provação divina. Logo aos primeiros anúncios do inimigo ameaçador, um número altíssimo de irmãos negaram a sua fé e não foram vencidos pela violência da perseguição, mas derrotaram a si mesmos em lapso voluntário.
O que, vos peço, de inaudito, o que de novo tinha acontecido, para que o juramento de Cristo fosse desfeito com temeridade precipitada, como se tivessem aparecido coisas incógnitas e inesperadas? Não predisseram estas coisas primeiro os profetas e depois os apóstolos? Não ensinaram sempre, cheios de Espírito Santo, as opressões dos justos e as injúrias dos pagãos? Não diz a Escritura Divina, sempre fortificando a nossa fé e corroborando com voz celeste os servos de Deus: “Adorarás o Senhor teu Deus e servirás somente a ele”?[Dt 6,13]. Não diz ela novamente, mostrando a ira da indignação divina e advertindo sobre o medo da pena: “Adoraram os ídolos que seus dedos fizeram, e o homem se curvou e o varão se humilhou, e não os perdoarei”?[ Is 2,8ss.] E não diz Deus ainda: “Quem sacrifica aos ídolos, e não somente a Deus, será extirpado”?[ Ex 22,19.] E em seguida, também no Evangelho, o Senhor, doutor em palavras e praticante nos fatos, ensinando o que deveria ser feito e fazendo tudo aquilo que ensinou, não advertiu sobre tudo aquilo que acontece e acontecerá? Não reservou de antemão os suplícios eternos aos que negam e os prêmios salutares aos que confessam?
Para alguns, todas estas coisas perderam-se como algo nefasto, saíram da sua memória. Nem ao menos esperaram, uma vez presos, subir os degraus para negar sob interrogatório. Muitos foram vencidos antes da batalha: prostrados antes do ataque, nem se permitiram parecer que sacrificavam aos ídolos contra a vontade; pelo contrário, correram espontaneamente para o tribunal, aproximaram-se livremente da morte, quase querendo abraçar a oportunidade dada, pela qual optariam com prazer. Quantos foram mandados embora pelos magistrados em razão do cair da noite, quantos até tiveram que suplicar para que a morte não fosse diferida! Qual força exterior tal pessoa pode alegar como desculpa do seu pecado, quando ele próprio fez força maior para perecer?
Aconteceu, por acaso, que, após ter chegado espontaneamente ao Capitólio, e após ter se aproximado à observância do terrível delito do sacrifício, o passo vacilou, o rosto empalideceu, as vísceras tremeram, os braços caíram? Aconteceu, por acaso, que os sentidos paralisaram, a língua ficou presa, faltou a palavra? Podia estar ali o servo de Deus e falar e renunciar a Cristo, após ter já renunciado ao diabo e ao mundo? Não foram aqueles altares, dos quais se aproximou para morrer, um rogo para ele? Não devia ele detestar e fugir do altar do diabo, que tinha visto fumaçar e cheirar de um fedor repugnante, quase fosse o enterro e a pira da sua vida? Por que, miserável, trazes uma vítima contigo, porque colocas uma vítima para sacrificar? Tu mesmo és uma hóstia para os altares, tu mesmo vieste como vítima; ali imolaste a tua salvação, a tua esperança; ali queimaste a tua fé com aqueles fogos funestos.
Mas a muitos não bastou a sua própria ruína: com exortações mútuas o povo foi impulsionado para a destruição, a morte foi administrada reciprocamente com veneno letal. E, para que nada faltasse à perfeição do crime, até as crianças, carregadas ou trazidas pelas mãos dos pais, pequenas como eram, perderam aquilo que tinham recebido nos primeiros momentos do nascimento.[ Isto é, o batismo, e – talvez – também a Eucaristia, cuja administração a criancinhas já seria comum.]
Não dirão estas crianças, quando chegar o dia do julgamento: “nós nada fizemos, não deixando a comida e a bebida do Senhor, nem nos aproximamos espontaneamente dos contágios pagãos; nos arruinou a maldade dos outros, sentimos os pais como parricidas; foram eles que negaram a Igreja Mãe e Deus Pai para que, enquanto pequenos e desprovidos e ignaros do mal, fôssemos anexados ao consórcio do crime e caíssemos na armadilha pela fraude dos outros”?

4. O decaimento da fé por amor aos próprios bens
Não há, infelizmente, qualquer causa justa e grave que desculpe tanto pecado: devia ser abandonada a pátria e suportado o dano do patrimônio. Quem, na hora de nascer e de morrer, não deve deixar a pátria e perder o seu patrimônio cedo ou tarde? Cristo não seja deixado; tema-se a perda da salvação e da habitação eterna! Eis que o
Espírito Santo clama pelo Profeta: “Ide embora, ide embora, saiais daí e não toqueis o imundo. Saiais do meio dele, separai-vos, vós que levais os vasos do Senhor”.[ Is 52,11.]
E aqueles que são os vasos do Senhor e o templo de Deus não saem do meio do imundo e retrocedem, para não serem coagidos a tocá-lo e a serem poluídos e violados por alimentos mortais? E também em outro lugar se ouve a voz do céu advertindo os servos de Deus sobre aquilo que é conveniente fazer: “Sai daí, povo meu, para que não sejas partícipe dos seus delitos e não fiques atado às suas desgraças”.[ Ap 18,4.]
Quem se afasta e recua não se torna partícipe do pecado; mas fica atrelado às desgraças aquele que é encontrado sócio do pecado. E assim o Senhor mandou retirar-se e fugir na perseguição e, para que isto aconteça, o ensinou e o fez. Com efeito, quando descer a coroa por concessão de Deus – e esta não poderia ser recebida se não fosse a hora de recebê-la –, todo aquele que, permanecendo em Cristo, se retira interinamente, este não renega a fé, mas espera o tempo oportuno; quem, ao contrário, caiu por não ter se retirado, permaneceu para renegar.
A verdade, irmãos, não pode ser dissimulada, nem a matéria e a causa da nossa ferida devem ser omitidas: o amor cego do patrimônio enganou muitos; e não puderam estar preparados ou prontos para se esconderem aqueles que às suas próprias riquezas, como algemas, mantiveram-se presos. Elas foram as correntes dos que ficaram para trás, elas foram as algemas daqueles cuja virtude estava retardada, a fé pesada, a mente vencida e a alma fechada, de modo a se tornarem presa e alimento da serpente –
condenada por Deus a devorar a terra – aqueles que estiverem presos às coisas terrestres.
Por essa razão, o Senhor, mestre dos bons, também prevenindo o futuro, diz: “Se queres ser perfeito, vende tudo e dá aos pobres, e terás um tesouro nos céus; e vem, e segue-me”.[ Mt 19,21.] Se os ricos fizessem isso, não pereceriam pelas riquezas: depositando o tesouro no céu, eles não teriam agora um inimigo e um expugnador (aquele que impor derrota a; abater, vencer) doméstico; estariam no céu o coração, a alma e o corpo, se o tesouro estivesse no céu; nem poderia ser vencido pelo mundo aquele que não tivesse no mundo pelo que ser vencido. Ele seguiria o Senhor desimpedido e livre, como fizeram os apóstolos e muitos no tempo dos apóstolos e alguns que, deixadas as suas coisas e os parentes, aderiram a Cristo com laços indivisíveis.
Como, porém, podem seguir Cristo aqueles que são presos pelo vínculo do patrimônio? Ou, como se encaminham para o céu e ascendem para as coisas sublimes e altas aqueles que são sobrecarregados pelas cobiças terrenas? Creem que possuem, mas são mais possuídos, servos da sua riqueza; e mais que senhores da riqueza, eles são vendidos à riqueza. É este tempo e são esses homens que o apóstolo indica quando diz: “Aqueles que ambicionam tornar-se ricos caem nas armadilhas do demônio e em muitos desejos insensatos e nocivos, que precipitam os homens no abismo da ruína e da perdição. Porque a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro. Acossados pela cobiça, alguns se desviaram da fé e se enredaram em muitas aflições”.[ 1Tm 6,9.10.]
O Senhor, ao contrário, com quais prêmios nos invita ao desprezo das coisas familiares! Com quais retribuições ele recompensa as pequenas e exíguas perdas desta vida! “Ninguém há – ele diz – que tenha abandonado, por amor do Reino de Deus, sua casa, sua mulher, seus irmãos, seus pais ou seus filhos, que não receba muito mais neste mundo e, no mundo vindouro, a vida eterna”.[ Lc 18,19ss.]
Conhecendo essas coisas e certos da verdade da promessa do Senhor, essa perda deve ser não apenas não temida, mas até desejada. O próprio Senhor novamente diz e adverte: “Bem--aventurados sereis quando os homens vos perseguirem e vos separarem e vos expulsarem, e maldizerem o vosso nome como infame por causa do Filho do Homem! Alegrai--vos naquele dia e exultai, porque grande é o vosso galardão no céu”.[ Lc 6,22ss.]

5. As torturas não são desculpas para quem não as sofreu
Mais tarde, porém, tinham vindo os tormentos, e graves sofrimentos ameaçavam os que resistiam.[ o a dois momentos na perseguição: mais brando o primeiro, mais violento o segundo.] Pode queixar-se dos tormentos aquele que foi derrotado pelos tormentos, pode pleitear a desculpa da dor aquele que na dor foi vencido. Ele pode pedir e dizer: “Quis fortemente lutar e, lembrado do meu juramento, peguei as armas da devoção e da fé, mas, enquanto eu lutava no ataque, os vários sofrimentos e os longos suplícios me venceram. A mente ficou firme e a fé forte, e minha alma lutou longamente, inamovível contra as penas furiosas.
Mas – quando, recrudescendo a sevícia de um juiz duríssimo, ora os flagelos ainda laceravam a mim já fatigado, ora os bastões contundiam, ora a roda esticava, ora o alicate escavava, ora a flama torrava – a carne me abandonou na luta, a fraqueza do corpo cedeu, e não a alma, mas o corpo se rendeu na dor”. Com certeza tal alegação pode ajudar para o perdão, tal tipo de justificação é de se admirar.
Foi assim que o Senhor um dia perdoou Casto e Emílio: foi assim que, vencidos no primeiro ataque, eles se tornaram vencedores na segunda luta, para que se tornassem mais fortes nas chamas aqueles que às chamas tinham cedido e lá, de onde tinham sido vencidos, ora vencessem. Eles intercediam com o argumento não das lágrimas, mas das feridas, e não apenas com voz lamentosa, mas com a laceração do corpo e com a dor: emanava sangue ao invés de choro, e jorrava no lugar das lágrimas o sangue de corpos quase queimados.
No nosso caso, porém, quais feridas os vencidos podem mostrar, quais chagas das vísceras abertas, quais tormentos dos membros, uma vez que não foi a fé atacada que cedeu, mas a covardia que antecipou a luta? A inevitabilidade do crime não justifica a pessoa coagida, quando se trata de um crime voluntário. E não digo isso para onerar a situação dos irmãos, mas mais para instigar os irmãos à oração de expiação. Como foi
escrito: “Aqueles que dizem que sois felizes vos encaminham para o erro e perturbam o caminho dos vossos pés”.[ Is 3,12.]
Aquele que alivia o pecador com bajulações lisonjeiras aumenta o instinto do pecado; não faz diminuir os delitos, mas os alimenta; mas aquele que com conselhos mais fortes repreende e, ao mesmo tempo, ensina, impulsiona o irmão para a salvação: “Aqueles que amo – diz o Senhor – os repreendo e castigo”.[ Ap 3,19.]
É necessário que o sacerdote do Senhor não engane com adulações enganosas, mas cuide com remédios salutares. É incompetente o médico que palpa com mão delicada as superfícies inchadas das feridas e, mantendo fechado o veneno no mais profundo do corpo, o faz aumentar. A ferida deve ser aberta, secada e, amputadas as podridões, curada com um remédio mais forte. Mesmo que o doente vocifere e grite, não suportando a dor, ele agradecerá depois, sentindo a saúde.


6. Os lapsos não sejam readmitidos à comunhão sem a devida penitência
Emergiu, irmãos diletíssimos, um novo tipo de luta e, quase como que a tempestade da perseguição não tenha enfurecido o bastante, um mal enganoso e uma calamidade sedutora chegaram ao mais alto nível, sob as aparências da misericórdia. Contra o vigor do Evangelho, contra a Lei do Senhor e Deus, devido à temeridade de alguns, a distribuição da comunhão é estendida aos insensatos: paz falsa e vã, perigosa para quem a dá e nada proveitosa para quem a recebe.
Estes últimos não procuram a paciência da saúde, nem o verdadeiro remédio do arrependimento: a penitência foi expulsa dos peitos e a memória do pecado gravíssimo e extremo foi eliminada. As feridas dos moribundos ficam abertas e a doença letal, instalada no mais profundo das vísceras, fica escondida sob uma dor fingida. Retornando dos altares do diabo, se aproximam do santo lugar de Deus com mãos sujas e infectadas de fedor. Ainda arrotando os alimentos mortíferos dos ídolos, ainda exalando da garganta o seu pecado e cheirando os contatos funestos, invadem o corpo do Senhor, não obstante a Escritura resista e clame e diga: “Somente a pessoa limpa comerá a carne; e qualquer alma que coma a carne do sacrifício salutar, que é do Senhor, mas a sua imundície ainda está nela, perecerá aquela alma fora do seu povo”.[ Lv 7,19s.] E o apóstolo diz e afirma o mesmo: “Não podeis beber o cálice do Senhor e o cálice dos demônios, não podeis comungar na mesa do Senhor e na mesa dos demônios”.[ 1Cor 10,20.]
O mesmo apóstolo ameaça aos teimosos e insubordinados e denuncia dizendo: “Quem comer o pão e beber o cálice do Senhor indignamente, será réu do corpo e do sangue do Senhor”.[ 1Cor 11,27.] Tendo desdenhado e desprezado isso tudo, é feita violência ao corpo e sangue do Senhor, e eles pecam contra o Senhor com as mãos e a boca, mais agora do que quando renegaram o Senhor. Antes de ter expiado os pecados, antes de ter feito a confissão do crime, antes de ter purificado a consciência com o sacrifício e pelas mãos do sacerdote, antes de ter aplacado a ofensa ao Senhor indignado e ameaçante, acham que é paz esta que alguns vendem com palavras falazes: essa não é paz, mas guerra; não se agrega à Igreja aquele que se separa do evangelho.
Por que chamam a ofensa de benefício? Por que aqueles que devem chorar continuamente e suplicar ao seu Senhor mediante o arrependimento da penitência fingem comungar? Estes lapsos são como granizo para os frutos do campo, estrela tempestuosa para as árvores, peste destrutiva para os rebanhos, tempestade enfurecida para os navios. Eles coíbem a consolação da esperança, subvertem radicalmente, serpeiam para o contágio letal com discurso mórbido, arremetem o navio contra as rochas, para que não chegue ao porto. Essa atitude fácil não dá a paz, mas a tira; não oferece a comunhão, mas impede a salvação.
Esta é outra perseguição e outra tentação, pela qual o inimigo astuto se alastra com devastação secreta para atacar os lapsos, para que o arrependimento se acalme e a dor silencie, para que a memória do pecado esvaeça, para que se reprima o gemido do coração e cesse o choro dos olhos, nem se suplique com longa e plena penitência o Senhor gravemente ofendido, quando está escrito: “Lembra onde caíste e se arrependa”.[ Ap 2,5.]
Ninguém se iluda, ninguém se engane: somente o Senhor pode se compadecer. Pode conceder o perdão dos pecados cometidos contra ele somente aquele que carregou os nossos pecados, que sofreu por nós, que Deus entregou pelos nossos pecados. O homem não pode ser maior que Deus, nem pode o servo remeter e perdoar por sua própria indulgência aquilo que foi cometido com pecado mais grave contra o Senhor, para que não seja aumentado o pecado do lapso, por desconhecer que foi profetizado: “Maldito o homem que põe a esperança no homem”.[ Jr 17,5.]
O Senhor deve ser suplicado, o Senhor deve ser aplacado com a nossa reparação; ele, que disse renegar aquele que o nega; ele, que recebeu do Pai todo o poder de julgar. Cremos, sim, que os méritos dos mártires e as obras dos justos são de grande valia junto ao juiz, mas somente quando virá o dia do juízo, quando, após o ocaso deste tempo e deste mundo, o seu povo estará diante do tribunal de Cristo.

O que você destaca no texto?
Como ele serve para sua espiritualidade?



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