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Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Cipriano de Cartago (210-258)
Os Lapsos – Partes 7 a 9
7.
A intercessão dos mártires não pode opor-se ao evangelho
Fora disso, se alguém, temerário em sua pressa precipitada,
achar que pode dar o perdão dos pecados ou ousar rescindir os preceitos do
Senhor, este não somente não ajuda, como prejudica os lapsos. Não é tanto por
ter desobedecido a um preceito que foi provocada a ira, nem por achar que não
deva ser pedida a misericórdia do Senhor, mas por presumir, desprezado o
Senhor, seu próprio poder. Por debaixo dos altares de Deus as almas dos
mártires mortos clamam com grande voz: “Até quando, Senhor santo e verdadeiro,
não julgarás e vingarás o nosso sangue contra aqueles que habitam a terra?”.[ Ap 6,10.] E ainda
são mandados a descansar e ter paciência! E se alguém acha que qualquer um,
remetendo e perdoando sumariamente os pecados, possa querer uma coisa boa em
oposição ao juiz, como ele pode defender os outros antes que ele próprio seja
punido?
Os mártires mandam que algo seja feito: e as coisas devem
ser feitas pelo sacerdote de Deus, se são justas, se são lícitas, se não são
contra o próprio Deus, se há o consenso fácil e favorável de quem é obediente,
se há a moderação religiosa de quem pede. Os mártires mandam que algo seja
feito, mas, se aquilo que eles mandam não está escrito na lei do Senhor, antes
devemos saber se eles impetraram de Deus aquilo que pedem, e aí fazer o que
mandam; e não aparece imediatamente se foi concedido pela majestade divina
aquilo que foi prometido pela promessa humana.
De fato, também Moisés intercedeu pelos pecados do povo;
todavia, após ter pedido, não recebeu o perdão para os que tinham pecado.
“Suplico, Senhor – ele diz –, o meu povo cometeu um pecado grande. E agora, se
perdoas a eles este pecado, perdoa; se não, cancela-me do livro que
escreveste”. E disse o Senhor a Moisés: “Se alguém peca diante de mim,
cancelo-o do meu livro”.[ Ex 32,31-33.] Ele, amigo de Deus, ele, que falou frequentemente com o
Senhor face a face, não pôde impetrar aquilo que pediu e não aplacou com a sua
súplica a ofensa ao Senhor indignado.
Deus louva e elogia Jeremias, dizendo: “Antes de ter-te
formado no útero, te conheço, e antes de saíres do útero, te santifiquei e te
coloquei profeta entre os pagãos”;[
Jr 1,5.] e ao mesmo profeta, que mais
frequentemente intercedia e rezava pelos pecados do povo, Deus disse: “Não
queiras rezar por este povo, e não intercedas por eles na súplica e na oração,
porque não escutarei no tempo em que me invocarem, no tempo de sua aflição”. [Jr 11,14.] E quem
mais justo que Noé, que, sendo a terra repleta de pecados, foi o único a ser considerado
justo na terra? E quem mais glorioso que Daniel, quem mais robusto ao enfrentar
os martírios na firmeza da fé e mais feliz na complacência de Deus, ele que tantas
vezes ao lutar venceu e ao vencer sobreviveu? Quem mais preparado que Jó nas obras,
mais forte nas tentações, mais paciente na dor, mais submisso no santo temor, mais
verdadeiro na fé? Nem a eles, se pedissem, Deus disse que teria concedido.
Quando o profeta Ezequiel suplicou pelo pecado do povo, o
Senhor disse: “Qualquer terra que pecar contra mim cometendo um pecado,
estenderei minha mão sobre ela e tirarei a tranquilidade do pão e mandarei a
ela a fome, e tirarei dela homens e ovelhas; e se houver três pessoas no meio
dela, Noé, Daniel e Jó, não livrarão filhos nem filhas: somente eles serão
salvos”.[ Ez 14,13.14.]
Assim, nem tudo que se pede depende da decisão de quem pede,
mas depende do arbítrio de quem dá; e o parecer humano nada usurpa e reivindica
para si sem a anuência também da decisão divina. No evangelho o Senhor fala,
dizendo: “Quem tiver me confessado diante dos homens, eu também o confessarei
diante de meu Pai que está nos céus; e quem tiver me renegado, também eu o
renegarei”.[ Mt 10,32.33.] Se ele não nega aquele que o nega, também não confessa
quem o confessa. Ora, o evangelho não pode em parte afirmar e em parte negar: é
necessário que ou as duas coisas sejam válidas ou as duas coisas percam a força
da verdade. Se os que negam não são réus de pecado, também os que confessam não
recebem o prêmio da virtude. Por isso, se a fé que venceu deve ser coroada,
também a perfídia vencida deve ser punida. Assim, os mártires ou nada podem, se
o evangelho pode ser quebrado, ou, se o evangelho não pode ser quebrado, não podem
agir contra o evangelho, eles que se tornam mártires do evangelho.
Ninguém, irmãos diletíssimos, ninguém infame a dignidade dos
mártires. Ninguém destrua as glórias e as coroas deles. A força da fé
incorrupta permanece intacta. Não pode dizer ou fazer algo contra Cristo aquele
cuja esperança, fé, virtude e glória está toda em Cristo. Aqueles que cumpriram
os preceitos de Deus não podem autorizar, eles mesmos, que pelos bispos se faça
algo contra os preceitos de Deus. Será que há alguém maior que Deus, ou mais
clemente que a divina bondade; que há alguém que queira que seja desfeito
aquilo que Deus transmitiu, ou que pense que nós possamos dispensar a sua ajuda,
quase como que Deus tenha menor poder para proteger a sua Igreja?
8.
As penas temporais pela desobediência
A menos que estas coisas tenham sido realizadas sem o
conhecimento de Deus, ou que todas estas coisas tenham acontecido sem a
permissão dele. Mas ensine os indóceis e advirta os esquecidos a Divina
Escritura, que fala, dizendo: “Quem entregou a direção de Jacó e Israel àqueles
que o saqueavam? Não foi Deus, contra quem pecaram e não queriam caminhar em
seus caminhos, nem ouvir a sua lei, e ele despejou sobre eles a ira da sua
indignação”.[ Is 42,24.25.]
E em outro lugar confirma e diz: “Será que não é capaz a mão
de Deus de salvá-los, ou ficou surdo para não ouvir? Mas os vossos pecados nos
separam
de Deus, e por causa dos vossos pecados virou a sua face de vós para não ter misericórdia”.[ Is 59,1.2.]
Avaliemos melhor os nossos pecados e, examinando nossos atos
e os segredos da alma, ponderemos os valores da consciência. Relembremos de não
ter caminhado nas vias do Senhor, de ter dado as costas à lei de Deus, de nunca
ter querido praticar seus preceitos e suas advertências salutares. O que de bom
poderias pensar de uma pessoa assim, qual temor e qual fé crês que houve num
indivíduo tal, o qual não foi corrigido nem pelo medo e não foi modificado nem
pela própria perseguição?
A testa alta e ereta não se curvou nem por ter caído, o
peito estufado e soberbo não se rompeu nem por ter sido vencido. Jazendo ferido
diante dos firmes e dos íntegros, ele ameaça, e, pelo fato de não receber
imediatamente com mãos sujas o corpo do Senhor e não beber com boca poluída o
sangue do Senhor, ele, sacrílego, se enfurece com os sacerdotes. E ainda – ó,
furioso,
demasiada
demência tua! – te iras contra quem tenta afastar de ti a ira de Deus; ameaças aquele
que impetra em teu favor a misericórdia do Senhor, aquele que sente a tua
ferida como tu não sentes, aquele que derrama por ti as lágrimas que tu,
talvez, não vertes. Tu ainda pioras o pecado e o aumentas e, sendo tu mesmo
implacável contra os prepostos e os sacerdotes, pensas que Deus possa
aplacar-se a teu respeito?
Aceita, pelo contrário, e admite aquilo que estamos falando.
Por que os ouvidos surdos não ouvem os preceitos salutares que aconselhamos?
Por que os olhos cegos não veem o caminho da penitência que mostramos? Por que
a mente fechada e desviada não capta os remédios vitais que aprendemos e
ensinamos das Escrituras celestes? Caso contrário, se alguns incrédulos têm uma
fé menor nas coisas futuras, que sejam aterrorizados pelas coisas presentes.
Eis quais suplícios vimos para os que renegaram, dos quais
os tristes resultados choramos – nem aqui na terra eles podem ficar sem pena,
mesmo que o dia da pena ainda não tenha vindo; são punidos alguns para que os
outros sejam orientados; os tormentos de poucos são exemplos para todos. Um
daqueles que subiram espontaneamente ao Capitólio para renegar, após ter negado
Cristo, ficou mudo. A pena começou onde começou o pecado, de forma a não poder
nem rezar aquele que não tinha palavras para suplicar a misericórdia das preces.
Outra se encontrava nos banhos – faltava ao seu pecado e aos seus males ir logo
aos banhos, ela, que tinha perdido a graça do lavacro vital –; e lá, imunda
possuída pelo espírito imundo, lacerou com os dentes a língua, com a qual se
tinha impiamente nutrido [Isto é,
tinha se servido de comida sacrificada aos deuses.] ou falado. Depois que o alimento perverso foi tomado, a
raiva da boca se ergueu para sua própria ruína: ela própria foi carnífice de
si. Depois não pôde sobreviver por muito tempo: crucificada por dores do ventre
e do corpo, morreu.
Na minha presença como testemunha, escutai o que aconteceu.
Uns pais acidentalmente em fuga, com pouca atenção por causa do medo, deixaram
a pequena filha aos cuidados da nutriz. Esta entregou aos magistrados a pequena
que lhe
foi
deixada. Estes, uma vez que a pequena, pela idade, não podia ainda comer carne,
estando perto do ídolo ao qual o povo confluía, deram-lhe pão misturado com
vinho, que também sobrara da imolação de animais mortos. Mais tarde, a mãe
recebeu de volta a filha. Mas a pequena não pôde falar e contar a crueldade
perpetrada até chegar à idade de entender e se defender.
Na ignorância total do acontecido, ocorreu que a mãe a
trouxesse consigo durante os nossos sacrifícios. [A Eucaristia.]
Mas a pequena, em meio aos santos, começou a ficar impaciente com nossas preces
e orações, a ser agitada pelo choro, a se movimentar como flutuando pelo
desvario da mente, e, como se estivesse sob a coação de um torturador, a rude
alma revelava a consciência do fato com os sinais que podia em idade ainda
simples. Quando, pois, terminadas as cerimônias solenes, o diácono começou a oferecer
aos presentes o cálice e, tendo-o recebido todos, veio a vez da pequena, mas
essa começou, por instinto da divina majestade, a virar o rosto, a premer a
boca com os lábios fechados, a recusar o cálice. O diácono, todavia, insistiu e
infundiu o sacramento do cálice na boca da pequena que recusava. Seguiu-se
singulto (soluço, suspiro) e vômito: a Eucaristia não pôde ficar no corpo e na
boca violada, a bebida santificada no sangue do Senhor espirrou do corpo poluído.
Tanto é o poder de Deus, tanta a sua majestade: os segredos
das trevas são detectados sob sua luz e os pecados mais ocultos não enganaram o
sacerdote de Deus. Isso com relação a uma infante, que ainda não tinha idade
para explicar um crime de outros contra si. Mas houve o caso de uma mulher que,
já mais avançada em idade e nos anos da maturidade, veio furtivamente até nós
enquanto sacrificávamos [Celebrar a Eucaristia.] e, como se estivesse tomando não alimento,[ O pão eucarístico.]
mas uma espada, e ingerindo nas fauces e no peito alguns venenos letais,
começou a sentir-se estrangulada. Em seguida, com a alma fervendo, começou a
comprimir-se e, sofrendo não a pressão da perseguição, mas do seu pecado,
palpitando e tremendo, caiu.
O
pecado de uma consciência enganosa não permaneceu longamente impune nem oculto:
aquela que tinha enganado o homem experimentou Deus vingador. E houve outra
mulher que, quando com mãos indignas tentou abrir o seu estojo,[ Espécie de teca. Era possível levar a sagrada
Eucaristia para os familiares impossibilitados de frequentar as
celebrações.] no qual
esteve o santo [corpo] do Senhor, foi derretida pelo fogo que saiu do estojo,
para que não ousasse tocá-lo.
E outro homem, maculado também esse, após o sacerdote ter
celebrado o sacrifício, ousou furtivamente tomar a comunhão com os outros, mas
não pôde comer e reter o santo [corpo] do Senhor: abrindo as mãos, [A Eucaristia era recebida nas próprias mãos.] ele percebeu que levava cinzas. Pelo exemplo de uma pessoa
é mostrado que o Senhor não recua quando é negado e não serve aos não
merecedores aquilo que é tomado, uma vez que a graça salutar se transforma em
cinza, quando a santidade dissipou-se.
Quantos, a cada dia, repletos de espíritos imundos! Quantos,
insensatos, são sacudidos pelo furor da demência até a insanidade da mente! Não
é necessário ir por casos individuais, pois pelas multiformes iniquidades do
mundo é dado ver que a pena dos pecados é tão vária quanto a numerosa multidão
dos pecadores. Cada um pense não naquilo que o outro padeceu, mas naquilo que
ele próprio mereceria padecer; nem creia ter escapado se a pena somente foi
adiada, pois aquele que a ira de Deus juiz reservou para si deve temer ainda
mais.
9.
O pecado dos que obtiveram ilicitamente um certificado de sacrifício
Não se iludam de ter que fazer menor penitência aqueles que,
ainda que não tenham contaminado as mãos com sacrifícios nefandos, todavia
poluíram a consciência com os libelos. Também essa profissão pertence ao tipo
de quem nega, pois é um atestado de um cristão que recusa aquilo que ele foi;
disse que fez tudo aquilo que outro perpetrou de fato; e como foi escrito: “Não
podeis servir a dois senhores”,[
Mt 6,24.] ele serviu ao senhor secular, se
submeteu ao seu edito; obedeceu mais a uma ordem humana que a Deus.
Como se fosse menor o indecoro ou o pecado diante dos homens
por ter [somente] tornado público aquilo que admitiu ter feito; mas não poderá
evitar Deus juiz ou fugir dele, do momento que o Espírito Santo diz nos Salmos:
“Os teus olhos viram aquilo que é a minha imperfeição e todos os homens serão
escritos no teu livro”;[Sl 138.16] e ainda: “O homem vê na face, Deus no
coração”.[ 1Sm 16,7.] E o próprio Senhor adverte e prescreve dizendo: “E saberão
todas as igrejas que perscruto os rins e os corações”.[ Ap 2,23.] Ele vê
as coisas escondidas, observa as coisas secretas e ocultas, e ninguém pode iludir
os olhos de Deus que diz: “Eu sou um Deus que se aproxima, e não um Deus distante.
Se o homem se esconder nos lugares escondidos, eu não o verei?”.[ Jr 23,23.24.]
Ele vê os peitos e os corações de cada um e se prepara para julgar não somente
os fatos, mas também as nossas palavras e os nossos pensamentos; ele vê as
mentes e as vontades de todos, concebidas nos próprios esconderijos do peito
fechado.
Por fim, quão maior fé e melhor temor possuem aqueles que,
mesmo não sendo culpados de algum pecado de sacrifício ou de libelo, pelo fato,
todavia, de ter apenas pensado nisso, confessam-no com simplicidade e dor aos
sacerdotes de Deus, fazem a confissão da consciência, expõem o peso de sua
alma, examinam o remédio salutar para as feridas ainda que pequenas e poucas,
sabendo que foi escrito: “Deus não será ludibriado”![ Gl 6,7.]
Deus não pode ser ludibriado e logrado, nem pode ser iludido
por alguma astúcia enganosa. Peca ainda mais aquele que, considerando que Deus
pensa como o homem, acha que, apenas por não ter admitido o pecado
publicamente, escapa da pena do pecado. Cristo diz nos seus ensinamentos: “Quem
se envergonhar de mim, o Filho do Homem se envergonhará dele”.[ Mc 8,38.] E como
se considera cristão aquele que tem medo ou se envergonha de ser cristão? Como
pode estar com Cristo aquele que tem vergonha e medo de pertencer a Cristo?
Pecou menos, claro, não vendo os ídolos nem profanando a
santidade da fé sob os olhos de uma multidão circunstante e insultante, não
sujando suas mãos em sacrifícios funestos, nem maculando as bocas com alimentos
celerados. Isso faz com que a culpa seja menor, mas não que a consciência seja
inocente. Neste caso, é mais fácil chegar ao perdão do pecado, mas não se está
imune do pecado. Nem desista ele de fazer penitência e de rogar a misericórdia
do Senhor, para que aquilo que parece ser menor em qualidade de pecado não
fique maior na negligência da reparação.
O que você destaca no texto?
Como ele serve para sua
espiritualidade?
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