terça-feira, 22 de setembro de 2020

147 - Cipriano de Cartago (210-258) O Bem da Paciência – 7-10

 

147

Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra

Cipriano de Cartago (210-258)

O Bem da Paciência – 7-10

 


 7. A necessidade da paciência, nascemos para lutar contra as adversidades da vida mortal

A fim de que se conheça mais clara e plenamente, irmãos diletíssimos, o quanto a paciência é útil e necessária, considere-se a sentença de Deus que Adão, esquecido do preceito e transgressor da lei promulgada, recebeu logo no início do mundo e do gênero humano.

Então saberemos o quanto devemos ser pacientes neste mundo, nós que assim nascemos: para aqui lidar em apertos e embates.

Diz [a sentença divina]: “Porque ouviste a voz da tua mulher e comeste daquela árvore, da única da qual te ordenara eu que não comesses, a terra será maldita em todas as tuas obras: com tristeza e lamento, dela comerás todos os dias de tua vida; brotarão para ti espinhos e abrolhos, e comerás erva do campo; com o suor do teu rosto comerás o teu pão, até que voltes à terra da qual foste tirado: porque és terra e irás para a terra”.[ Gn 3,17-19.]

Estamos todos ligados e constrangidos pelos laços dessa sentença, até que, passada a morte, nos retiremos deste mundo. É inevitável que estejamos, todos os dias da nossa vida, na tristeza e no lamento, e também que comamos o pão com o suor do trabalho.

Por isso, cada um de nós, quando nasce e é recebido na hospedagem deste mundo, começa pelas lágrimas. Se bem que ainda de tudo desconhecedor e ignorante, nada se sabe, por ocasião daquele primeiro nascimento, senão chorar.

Por natural providência, a alma recém-nascida, logo nos seus exórdios, lamenta as ansiedades desta vida mortal e testemunha, pelo choro e pelo pranto, as fadigas e as tempestades do mundo, nas quais ingressa.

Com efeito, se sua e se labuta todo o tempo em que se vive por aqui. Não podem vir em socorro dos que suam e se fadigam outros alívios melhores que os da paciência, os quais, enquanto bons e necessários para todos neste mundo, o são mais ainda para nós que, atacados pelo diabo, somos mais molestados.

[Os alívios da paciência são bons e necessários mais ainda] para nós que, encontrando-nos diariamente no combate, somos importunados pelos assaltos de um inimigo experimentado e manhoso.

[Os alívios da paciência são bons e necessários mais ainda] para nós que, além das diversas e frequentes lutas das tentações, também temos, no certame das perseguições, de abandonar as riquezas, de enfrentar o cárcere, de ser postos a ferros, de dar a vida, de suportar, na fé e na virtude da paciência, a espada, as feras, as fogueiras, as cruzes e, finalmente, todas as espécies de tormentos e de penas.

É o próprio Senhor quem nos instrui, dizendo: “Falei-vos essas coisas para que em mim tenhais a paz; no mundo, porém, tereis aflição, mas confiai, porque eu venci o mundo”.[ Jo 16,33.]

Se nós, que renunciamos ao diabo e ao mundo, sofremos com maior frequência e violência os apertos e vexames do diabo e do mundo, tanto mais devemos conservar a paciência, com a qual, como auxiliar e companheira, aguentaremos todas as adversidades.

 

8. Paciência e esperança

É preceito salutar de nosso Senhor e Mestre: “Aquele que aguentar até o fim, este será salvo”.[ Mt 10,22.]

E de novo: “Se permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos, e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. [Jo 8,31-32.]

É preciso aguentar e perseverar, irmãos diletíssimos, a fim de que, uma vez introduzidos na esperança da verdade e da liberdade, possamos alcançar a própria verdade e a própria liberdade. Pois o fato de sermos cristãos é questão de fé e de esperança. Mas para que a esperança e a fé possam chegar ao seu fruto, é preciso paciência.

Com efeito, não procuramos a glória presente, mas a futura, conforme o que o Apóstolo Paulo adverte, dizendo: “Fomos salvos na esperança. Uma esperança, porém, que se vê, não é esperança; o que alguém vê, por que esperá-lo? Se, porém, esperamos o que não vemos, aguardamos na expectativa”.[ Rm 8,24-25.]

Por isto a expectativa e a paciência são necessárias, para completarmos o que começamos, e para nos apossarmos daquilo que, apresentado por Deus, cremos e esperamos.

Depois, noutro lugar, o mesmo Apóstolo instrui e ensina os justos, os laboriosos e os que ocultam para si tesouros celestes graças ao lucro dos juros divinos, para que também sejam pacientes, dizendo: “Por conseguinte, enquanto temos tempo façamos o bem a todos, sobretudo, porém, aos irmãos na fé. Não desanimemos ao fazer o bem; com efeito, a seu tempo colheremos”.[ Gl 6,10.9.]

Adverte para que nenhum impaciente desanime no trabalho, para que ninguém, distraído ou vencido pelas tentações, desista a meio caminho do louvor e da glória, e assim venham a perder-se as obras passadas, por não serem levadas a cabo as que tinham sido começadas, conforme está escrito: “A justiça do justo não o livrará em qualquer dia em que ele se perder”.[ Ez 33,12.] E outra vez: “Segura o que tens, a fim de que outro não tome a tua coroa”.[ Ap 3,11.]

Estas palavras exortam a perseverar corajosa e pacientemente, a fim de que seja coroado na paciência quem se esforça, estando já próxima a glória, por obter a coroa.

 

9. A paciência luta contra o mal

E a paciência, irmãos diletíssimos, não somente con serva as coisas boas, mas também afasta as adversas. Bem disposta ao Espírito Santo e ligada ao que é celestial e divino contra as obras da carne e do corpo, pelas quais é a alma atacada e seduzida, a paciência resiste com a defesa de suas forças.

Consideremos, por conseguinte, alguns dentre muitos casos que há, a fim de que, por esses poucos, [todos] os demais sejam compreendidos.

O adultério, a fraude e o homicídio são pecados mortais: haja uma sólida e constante paciência no coração, e o corpo santificado e feito templo de Deus não será poluído pelo adultério; a inocência consagrada à justiça não será corrompida pelo contágio da fraude; e a mão, depois de trazer a Eucaristia, não será maculada pela espada e pelo sangue.

 

 

 

10. A caridade se une à paciência

A caridade é vínculo de fraternidade, fundamento de paz, vigor e firmeza de unidade; é maior do que a fé e a esperança, sobrepuja as obras boas e os martírios, e, sendo eterna, sempre permanecerá conosco nos reinos celestiais; tire-se-lhe a paciência e, desamparada, não durará. Tire-se-lhe a capacidade de suportar e de aguentar e, sem raízes nem forças, não perseverará.

Com efeito, o Apóstolo, quando falou da caridade, lhe acrescentou a tolerância e a paciência. Diz ele: “A caridade é magnânima, a caridade é benigna, a caridade não inveja, não se envaidece, não se irrita, não pensa o mal, a tudo ama, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”.[ 1Cor 13,4-7.]

Com isso, ele mostra que ela pode perseverar sem desfalecimento, porque sabe suportar tudo. E noutro lugar diz: “Suportando-se mutuamente na caridade, fazendo o possível para conservar a unidade do Espírito na união da paz”.[ Ef 4,3.2.]

Provou que não se pode conservar nem a unidade nem a paz, sem que os irmãos se tratem uns aos outros com mútua tolerância, e guardem, por meio da paciência, o vínculo da concórdia.

 

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terça-feira, 15 de setembro de 2020

146 - Cipriano de Cartago (210-258) O Bem da Paciência – 4-6

 


146

Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra

Cipriano de Cartago (210-258)

O Bem da Paciência – 4-6

 


4. Cristo ensinou a paciência com palavras e obras

Jesus Cristo, irmãos diletíssimos, Senhor e Deus nosso, não ensinou isso somente por palavras, mas também o cumpriu em obras.

E porque dissera ter descido para isto, para fazer a vontade do Pai, entre outros admiráveis prodígios, pelos quais manifestou os sinais da majestade divina, conservou também a paciência paterna pela perseverança da tolerância.

Com efeito, todos os seus atos, a contar da própria chegada, são assinalados pela paciência que os acompanha. Primeiro, descendo daquela altura celeste para as coisas da terra, o Filho de Deus não desdenha revestir-se da carne do homem e, apesar de não ser ele pecador, assumir os pecados alheios. Posta de parte por algum tempo a imortalidade, consente também em se tornar mortal, a fim de, inocente, ser morto para a salvação dos culpados.

O Senhor é batizado pelo servo; e ele, que ia dar a remissão dos pecados, não desdenha lavar o corpo no lavacro da regeneração.

Jejua durante quarenta dias aquele pelo qual os outros são nutridos; sente e passa fome, para que sejam saturados com o pão celeste os que tinham fome da palavra e da graça. Luta com o diabo, que o tenta, e, contente com ter apenas vencido o inimigo, nada empreende além das palavras.

Não dirigiu os discípulos como servos, com domínio de Senhor, mas, benigno e brando, os amou com caridade fraterna.

Dignou-se também a lavar os pés dos Apóstolos, para, com o seu exemplo, já que o Senhor assim age em relação aos servos, ensinar de que modo um servo deve agir em relação aos seus companheiros e semelhantes.

Não é de admirar que se tenha ele mostrado assim entre os obedientes, quando, com longa paciência, pôde suportar Judas até o fim, tomar a refeição com o inimigo, conhecer o comensal hostil sem denunciá-lo claramente, e não recusar o beijo do traidor.

Quanta equanimidade e quanta paciência em tolerar os judeus! Em levar com persuasões os incrédulos para a fé, em acalentar os ingratos com obséquios, em responder afavelmente aos contraditores, em suportar clementemente os soberbos, em retirar-se humildemente diante dos perseguidores, em querer, até a hora da cruz e da paixão, ganhar os matadores dos profetas, sempre rebeldes contra Deus.

Durante a própria paixão e na cruz, antes que se chegasse à crueldade da morte e à efusão do sangue, quanta infâmia afrontosa pacientemente ouvida, quantas irrisões injuriosas toleradas! Recebeu as cusparadas dos que o insultavam aquele que, pouco antes, reconstituíra com a sua saliva os olhos do cego.

Aguentou os açoites aquele em cujo nome e por cujos servos é agora o diabo flagelado com os seus anjos. Foi coroado de espinhos aquele que coroa os mártires com flores eternas. Foi agredido no rosto pelas palmas zombeteiras aquele que dá aos vencedores as verdadeiras palmas.

Foi despojado das vestes terrenas aquele que reveste os outros com o indumento da imortalidade. Foi alimentado com fel aquele que deu um alimento celeste. Àquele que ofereceu o cálice da salvação deram vinagre para beber!

Ele, o inocente, ele, o justo, ou melhor, a própria inocência e a própria justiça, é contado entre os criminosos; a verdade é oprimida por falsos testemunhos; é julgado quem há de julgar; e a Palavra de Deus é conduzida calada para a imolação.

Diante da cruz do Senhor, enquanto os astros ficam desorientados – os elementos se perturbam: a terra treme, a noite põe termo ao dia; o sol, a fim de não ser obrigado a contemplar o crime dos judeus, esconde tanto os seus raios como os seus olhos –, ele não fala, não se move, nem ao menos durante a própria paixão dá a conhecer a sua majestade. Tudo é suportado até o fim com perseverança e sem interrupção, a fim de que a paciência plena

e perfeita seja consumada no Cristo.

Ainda assim, depois disso tudo, acolherá os seus matadores, se a ele voltarem arrependidos; benigno e paciente, com uma salutar paciência para poupar [os homens], a ninguém fecha a sua Igreja.

Mesmo àqueles adversários, àqueles blasfemadores, àqueles perpétuos inimigos de seu nome, se fizerem penitência do pecado, se reconhecerem o crime cometido, não somente dará acesso ao perdão do ato criminoso, mas também ao prêmio do reino celestial.

O que se pode imaginar de mais paciente e de mais benigno? É vivificado pelo sangue do Cristo mesmo aquele que derramou o sangue do Cristo. Tal e tanta é a paciência do Cristo que, se não fosse tal e tão grande, a Igreja nem mesmo teria Paulo como Apóstolo.

 

5. Imitemos o Cristo por estar nele

Ora, se estamos em Cristo, irmãos diletíssimos, se dele nos revestimos, se ele é o caminho da nossa salvação, nós, que seguimos o Cristo nas suas pegadas salutares, caminhemos pelos exemplos do Cristo, conforme o Apóstolo João ensina, dizendo: “Quem diz que permanece em Cristo, deve também caminhar como ele caminhou”.[ 1Jo 2,6.]

Pedro, sobre quem, por escolha do Senhor, foi fundada a Igreja, igualmente dispõe e diz na sua Epístola: “O Cristo padeceu por vós, deixando-vos o exemplo, a fim de que sigais as suas pegadas; ele que não cometeu pecado, e em cuja boca não se encontrou engano; ele que, quando era amaldiçoado, não respondia com maldições; quando padecia, não ameaçava; entregava-se, porém, a quem o julgava injustamente”.[ 1Pd 2,21-23.]

 

6. O exemplo dos patriarcas e dos profetas

Por fim, vemos que os patriarcas, os profetas e todos os justos – que traziam, qual imagem antecipada, a figura do Cristo, para louvor de suas virtudes – nada melhor observaram do que a conservação da paciência com infatigável e estável equanimidade.

Assim, Abel é o primeiro que, inaugurando e consagrando a origem do martírio e o sofrimento do justo, não resiste, nem luta contra o irmão fratricida; mas, humilde e brando, é assassinado pacientemente.

Do mesmo modo Abraão, crendo em Deus e sendo o primeiro a lançar a raiz e o fundamento da fé, tentado a propósito do filho, não duvida nem demora, mas atende aos preceitos de Deus com toda a paciência da devoção.

Também Isaac, prefigurado à semelhança da vítima divina, se revela paciente quando é oferecido pelo pai para ser imolado; e Jacó, expulso de sua terra pelo irmão, pacientemente se retira; e, depois, com a maior paciência, suplicando, leva à concórdia, por meio de dádivas pacíficas, o irmão que se tornara ainda mais ímpio e perseguidor.

José, relegado e vendido pelos irmãos, não só perdoa pacientemente, como também, com largueza e clemência, lhes dá trigo de graça quando a ele recorrem. Moisés é frequentemente desprezado e quase lapidado por um povo ingrato e pérfido; e, no entanto, brando e paciente, por eles roga ao Senhor. Já em Davi, de quem procede o nascimento do Cristo segundo a carne, quão grande, quão admirável e cristã paciência: teve muitas vezes ao seu alcance o poder de matar o rei Saul, que o perseguia e lhe queria tirar a vida; mas, apesar de ter Saul entregue a si e subjugado, preferiu poupá-lo; não pagou ao inimigo na mesma moeda, mas, ainda por cima, o vingou depois de morto!

Finalmente, tantos profetas exterminados, tantos mártires honrados com mortes gloriosas! Todos chegaram às coroas celestiais pela glória da paciência, pois não é possível receber a coroa das dores e dos sofrimentos, sem a precedência da paciência na dor e no sofrimento.

 

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segunda-feira, 7 de setembro de 2020

145 - Cipriano de Cartago (210-258) - O Bem da Paciência – 1 - 3

 Arte Bizantina – Ícones (parte I) | Ramos de Cultura

145

Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra

Cipriano de Cartago (210-258)

O Bem da Paciência – 1 - 3

 


Introdução:

– De bono patientiae (O bem da paciência) foi Inspirada no De patientia de Tertuliano, essa obra pode ter sido escrita em 256, durante a polêmica com Estêvão de Roma sobre o batismo. É um convite a imitar a paciência – que não se confunde com indiferença – de Deus, do Cristo e dos patriarcas.

 

O BEM DA PACIÊNCIA

Cipriano de Cartago

 

1. A paciência, o melhor caminho

Indo falar da paciência, caríssimos irmãos, e pregar sobre sua utilidade e vantagens, por onde melhor começarei, senão pelo que vejo nesse momento, que a paciência vos é necessária também para ouvir-me? Sem paciência, não podeis fazer o que ouvis e aprendeis. Então, só se assimila eficazmente a palavra e a doutrina da salvação se se ouve pacientemente o que é dito.

Não encontro, irmãos caríssimos, entre os demais caminhos da disciplina celeste – pelos quais a comunidade da nossa fé e da nossa esperança é por Deus conduzida para alcançar o prêmio –, um que seja mais útil para a vida ou mais necessário para a glória de nós que nos firmamos nos preceitos do Senhor, com o obséquio do temor e da devoção, do que principalmente conservar a paciência com todo o cuidado.

 

2. A falsa paciência

Também os filósofos professam [ter] a paciência. Mas neles a paciência é tão falsa quanto é falsa a [sua] sabedoria. Com efeito, como poderá ser sábio ou paciente quem não conhece nem a sabedoria nem a paciência de Deus?

Pois ele mesmo, referindo-se aos que se julgam sábios no mundo, admoesta e diz: “Destruirei a sabedoria dos sábios, e rejeitarei a prudência dos prudentes”.[ Is 29,14.]

Igualmente, o bem-aventurado apóstolo Paulo, repleto do Espírito Santo e enviado para converter e instruir os gentios, testemunha e ensina, dizendo: “Estai de sobreaviso para que ninguém vos prejudique com filosofia e com vão engano, segundo a tradição dos homens, segundo os elementos do mundo, e não segundo o Cristo, pois nele habita toda a plenitude da divindade”.[ Cl 2,8-9.]

E noutro lugar, diz: “Que ninguém se iluda. Se entre vós alguém pensa que é sábio, faça-se tolo em relação a este mundo, a fim de se tornar sábio.

Com efeito, a sabedoria deste mundo é tolice diante de Deus. Pois está escrito: ‘Apanharei os sábios na sua própria astúcia’”. E ainda: “O Senhor conhece os pensamentos dos sábios, que são tolos”.[ 1Cor 3,18-20]

Por conseguinte, se sua sabedoria não é verdadeira, verdadeira também não pode ser a paciência.

Pois, se paciente é aquele que é humilde e manso, e vemos que os filósofos não são nem humildes nem mansos, mas muito cheios de si – e desagradam a Deus por isso mesmo, porque se comprazem em si próprios –, é evidente que não se encontra a paciência onde existe o insolente atrevimento de uma liberdade afetada e a imodesta ostentação de um peito descoberto e seminu.

 

3. O cristão imite a paciência de Deus

Nós, porém, irmãos diletíssimos, que somos filósofos não de boca, mas de fato – nós, que trazemos a sabedoria [mostrando-a] não no traje, mas na verdade; que estamos mais habituados à consciência das virtudes que à sua ostentação; que não falamos grandes coisas, mas as vivemos –, demonstremos, em obséquios espirituais, como servos e adoradores de Deus, a paciência que aprendemos nos celestiais ensinamentos.

Com efeito, essa virtude nos é comum com Deus, em quem se origina a paciência, em quem tem início a sua glória e dignidade. A origem e grandeza da paciência procedem da autoria de Deus. Uma coisa que é cara a Deus é para o homem algo que deve ser amado; a majestade divina recomenda o bem que ama.

Se Deus é nosso Senhor e Pai, imitemos a paciência tanto do Senhor como do Pai, pois cabe aos servos serem obedientes, e aos filhos não convém serem degenerados.

Mas qual e quão grande é a paciência em Deus, que pacientissimamente suporta os tempos profanos, os ídolos feitos de pó e os ritos sacrílegos instituídos pelos homens em afronta à sua majestade e à sua honra: ele faz o dia nascer e a luz do sol levantar igualmente sobre os bons e os maus; e, quando rega a terra com as chuvas, ninguém é excluído de seus benefícios, mas concede de igual maneira as mesmas chuvas aos justos

e injustos.

Vemos que, por determinação de Deus, as estações se submetem e os elementos servem tanto aos culpados como aos inocentes, aos religiosos como aos ímpios, aos agradecidos como aos ingratos; os ventos sopram, as fontes jorram, crescem as riquezas das colheitas, crescem os frutos dos vinhedos, carregam-se as árvores de frutos, frondejam os bosques, florescem os prados [para uns como para outros] numa ininterrupta continuidade de paciência.

E ainda que Deus seja provocado por frequentes, ou melhor, por contínuas ofensas, ele modera sua indignação e aguarda pacientemente o dia, determinado [para] uma única vez, do ajuste de contas.

E ainda que tenha a vingança em seu poder, prefere conservar a paciência por muito tempo, isto é, suportando clementemente e contemporizando; para que, assim, a maldade por muito prolongada, sendo possível, algum dia se mude; e o homem, despojado da contaminação dos erros e dos crimes, se volte enfim para Deus, que admoesta, dizendo: “Não quero a morte do pecador, mas que se converta e viva”.[ Ez 33,11.]

E de novo: “Voltai ao Senhor vosso Deus, porque é misericordioso, benigno, paciente, de muita compaixão, abranda a sentença infligida contra as maldades”.[ Jl 2,13.]

O bem-aventurado Apóstolo Paulo também propõe o mesmo; admoestando e chamando o pecador à penitência, diz: “Por acaso desprezas a longanimidade, a paciência e a opulência de sua bondade, ignorando que a paciência e bondade de Deus te conduzem à penitência? Tu, porém, conforme a tua obstinação e o teu coração impenitente, entesouras a ira para ti no dia da ira e da revelação do justo Juízo de Deus, que dará o devido a cada um segundo as suas obras”.[ Rm 2,4-6.]

Disse que o Juízo de Deus é justo por ser tardio, porque é diferido por muito tempo, de modo que, pela dilatada paciência de Deus, o homem se beneficie para a vida. O castigo, então, será aplicado ao ímpio e ao pecador quando já não puder valer o arrependimento do pecado.

E para que possamos compreender melhor, irmãos diletíssimos, que a paciência é realidade divina, e que quem é afável, paciente e brando é imitador de Deus Pai, o Senhor – quando dava, no seu Evangelho, os preceitos para a salvação, e, proferindo divinas advertências, instruía os discípulos na perfeição – determinou, dizendo:

“Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem, para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus, que faz o seu sol levantar-se sobre os bons e os maus, e faz chover sobre os justos e os injustos. Se, pois, amardes aqueles que vos amam, que recompensa tereis? Os publicanos também não fazem assim? E se saudardes somente os vossos irmãos? Que fazeis a mais? Os gentios não fazem também o mesmo? Sede, pois, vós perfeitos, como o vosso Pai celeste é perfeito”.[ Mt 5,43-48.]

Disse que os filhos de Deus assim se tornam perfeitos, mostrou e ensinou que assim os regenerados pela natividade celestial são consumados: se a paciência de Deus Pai permanece em nós, se a semelhança divina, que Adão perdera pelo pecado, se manifesta e brilha nas nossas ações.

Que glória em se tornar semelhante a Deus! Qual e quão grande felicidade em se possuir em virtudes algo que possa ser equiparado aos louvores divinos!

 

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