Encontro 182
Atanásio de
Alexandria (285-373)
Sobre a Encarnação
(Capítulo 1)
CAPÍTULO I
OS ANTECEDENTES DA ENCARNAÇÃO DO
VERBO: CRIAÇÃO E QUEDA DO HOMEM
1.
Muitas
e diversas foram as explicações a respeito da produção do mundo e da criação do
universo. Cada qual a descreve a seu bel-prazer. Uns pretendem ter sido produzido
espontânea e fortuitamente; assim os epicureus que inventam não haver providência,
e se exprimem de forma contrária a toda evidência.
2.
Se,
conforme sua opinião, tudo foi resultado de geração espontânea e fora da atuação
da providência, forçosamente os seres todos seriam por inteiro semelhantes, sem
diferença alguma. Então, se houvesse um só corpo celeste, seria todo sol ou
lua, e no homem, o corpo inteiro devia ser mão, olho ou pé. No entanto, assim
não é, e vemos de um lado o sol e de outro a lua ou a terra; igualmente no
corpo humano, distinguem-se o pé, a mão, a cabeça. Essa distribuição leva-nos a
compreender que não existe geração espontânea. Demonstra ter uma causa
presidido à origem dos seres. Daí chegamos a entender que Deus distribuiu e
criou todas as coisas.
3.
Outros,
entre os quais Platão, tão grande entre os gregos, opinam que Deus fez o mundo,
tomando como ponto de partida matéria preexistente e ingênita; Deus nada teria podido
fazer sem esta matéria preexistente, da mesma forma que o carpinteiro necessita
de madeira para poder trabalhar.
4.
Ao
se exprimirem deste modo, não sabem que atribuem fraqueza a Deus. Efetivamente,
se ele não é autor da matéria, mas tudo faz de matéria preexistente, mostra-se
fraco, visto que sem ela é incapaz de fabricar seja o que for, como seria incapacidade
no carpinteiro, sem dúvida alguma, não conseguir fabricar objetos necessários
se não dispuser de madeira.
5.
Segundo
tal hipótese, se não existisse matéria, Deus nada teria feito. E como se diria
ser ele o Criador e o demiurgo, se a possibilidade de criar dependesse de outra
coisa, isto é, da matéria? Se assim fosse, Deus seria apenas artífice e não
Criador que dá o ser, uma vez que trabalharia a matéria dada, e não seria a própria
causa desta matéria. Numa palavra, não se pode afirmar que é Criador, se não cria
a matéria da qual provém as criaturas.
6.
Os
hereges imaginam um demiurgo diferente do Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, dando
provas de extrema cegueira em suas asserções. Pois quando o Senhor disse aos judeus:
“Não lestes que desde o princípio o Criador os fez homem e mulher? e que disse:
Por isso o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher e os dois serão uma
só carne?” (Mt 19,4a). Em seguida assinala o Criador, nesses termos: “Portanto,
que o homem não separe o que Deus uniu” (Mt 19,4s). Como supor uma criação
alheia ao Pai? São João resume tudo numa só palavra: “Tudo foi feito por meio
dele e sem ele nada foi feito” (Jo 1,3). Como haveria outro demiurgo além do
Pai de Cristo?
7.
São
estes os seus mitos; o ensinamento divino, porém, e a fé em Cristo rejeitam, qual
impiedade, esses vãos discursos. Não foi espontaneamente, por falta de
providência, que nasceram os seres, nem de matéria preexistente, devido a
fraqueza em Deus, mas do nada Deus por seu Verbo criou e trouxe à existência
todo o universo, antes inexistente.
8.
Como
disse Moisés: “No princípio, Deus criou o céu e a terra” (Gn 1,1) e o
utilíssimo livro do Pastor: “Antes de tudo, crê haver um só Deus, que criou e
organizou o universo e fez existir o que não era”. Paulo também o indica: “Foi
pela fé que compreendemos que os mundos foram organizados pela Palavra de Deus.
Por isso é que o mundo visível não tem a sua origem em coisas manifestas” (Hb 11,3).
9.
Ora,
Deus é bom, ou antes, é a fonte de toda bondade, e quem é bom a ninguém pode
odiar. Por conseguinte, a ninguém recusaria invejosamente a existência. Criou
do nada todas as coisas por meio de seu próprio Verbo, nosso Senhor Jesus
Cristo.
10. Apiedou-se mais
do gênero humano do que dos demais seres existentes na terra, e vendo que ele era
incapaz, pela lei de sua própria natureza, de subsistir para sempre,
concedeu-lhe algo mais; não se contentou com criar os homens, conforme fizera a
todos os animais irracionais da terra, mas criou-os à sua imagem, fazendo-os
partícipes do poder de seu próprio Verbo.
11. Assim, possuindo
uma espécie de sombra do Verbo, e sendo racionais, os homens poderiam
permanecer na bem-aventurança, vivendo no paraíso a verdadeira vida, que
realmente possuem os santos. Além disso, ciente de que o livre-arbítrio do
homem inclina-se num ou noutro sentido, adiantou-se, e consolidou pela lei e em
determinado lugar, a graça que já lhe havia outorgado. Introduziu-o,
efetivamente, no paraíso e impôs-lhe uma lei.
12. Se os homens
conservassem a graça, permanecendo na virtude, teriam no paraíso vida isenta de
tristeza, dor, preocupações, além da imortalidade prometida nos céus. Se, ao
invés, transgredissem essa lei e dela se desviando se pervertessem, ficassem
sabendo que, de conformidade com a sua própria natureza, esperava-os a
corrupção da morte, deixariam de viver no paraíso, sendo dali expulsos para
morrer e ficariam doravante sujeitos à morte e à corrupção.
13. A Sagrada
Escritura o assinala previamente, referindo a palavra de Deus: “Podes comer de
todas as árvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não
comerás, porque no dia em que dela comeres terás de morrer” (Gn 2,16.17).
“Terás de morrer” não significa apenas: Morrereis, mas permanecereis sujeitos à
corrupção e à morte.
14. Possivelmente
ficarás admirado de que, ao nos propormos falar da encarnação do Verbo,
tratemos agora da origem do homem. Entretanto, o assunto não é estranho à finalidade
de nossa exposição.
15. De fato, ao nos
referirmos à ação do Senhor entre nós, necessariamente temos de falar também da
origem do homem. Assim, ficarás ciente de ter sido nossa condição o motivo de
sua descida, e de que a transgressão atraiu a filantropia do Verbo, de sorte
que o Senhor veio e apareceu entre os homens.
16. O homem foi o
motivo da encarnação, e por sua salvação, o Verbo amou o homem até nascer e
manifestar-se com um corpo.
17. Por conseguinte,
Deus criou o homem, e queria para ele incorruptibilidade perdurável. Mas, os
homens por negligência, abandonaram a contemplação de Deus, e conforme
afirmamos no primeiro livro, conceberam e imaginaram a maldade. Por isso foi proferida
a sentença de morte de que tinham sido ameaçados, e de então em diante cessaram
de subsistir tais quais haviam sido feitos; corromperam-se em seus pensamentos
e a morte subjugou-os, reinando sobre eles. A transgressão do mandamento os
reconduziu ao seu estado natural, e assim como haviam passado do nada ao ser,
era justo que doravante fossem sujeitos no decurso do tempo à corrupção,
propensa ao nada.
18. Uma vez que
antes nada eram por natureza, e a presença e a filantropia do Verbo os chamou
ao ser, consequentemente, alheios ao pensamento de Deus, e voltados para o nada
(pois o mal é não-ser, e o bem é ser, saído das mãos de Deus, que é), os homens
foram privados do ser, que seria eterno. Isto é o que significa, dissolvido o
composto humano, permanecer na morte e na corrupção.
19. Com efeito, por
natureza o homem é mortal, pois foi feito do nada. Mas, se tivesse, pela contemplação
de Deus, conservado a semelhança com aquele que é, teria diminuído a força da
corrupção natural e se conservado incorruptível, conforme assevera a Sabedoria:
“O respeito das leis é garantia de incorruptibilidade” (Sb 6,18). E sendo incorruptível,
teria no futuro vivido como Deus, segundo o indica certa passagem da Sagrada
Escritura: “Eu declarei: ‘Vós sois deuses, todos vós sois filhos do Altíssimo;
20. contudo,
morrereis como homem qualquer, caireis como qualquer dos príncipes’ ” (Sl 82,6-7).
21. Ora, Deus não
apenas nos tirou do nada, mas pela graça do Verbo, fez-nos viver segundo Deus.
Os homens, contudo, se desviaram dos bens eternos, e por instigação do diabo
voltaram-se para as coisas corruptíveis, tornando-se deste modo para si mesmos causa
de morte. Conforme acima assegurei, eram por natureza corruptíveis, mas pela graça
da participação do Verbo, teriam escapado desta condição natural, se tivessem permanecido
bons.
22. Com efeito, pela
presença do Verbo, a corrupção natural não os teria tocado, como afirma a
Sabedoria: “Deus criou o homem para a incorruptibilidade e o fez imagem de sua
própria eternidade; é por inveja do diabo que a morte entrou no mundo” (Sb
2,23-78). Por conseguinte, os homens morreram e a corrupção desencadeou contra
eles desde então toda a sua força; teve contra o gênero humano forças
superiores às da natureza, tanto mais que podia apresentar contra eles o
veredicto divino que pesava sobre a transgressão do mandamento.
23. Os homens,
contudo, ao pecarem, não se detiveram em certos limites, mas avançando pouco a
pouco, ultrapassaram finalmente qualquer medida. No começo, inventaram o mal e
invocaram contra si a morte e a corrupção. Em seguida, se desviaram para a
injustiça e superaram toda espécie de iniquidade. Não se limitaram a um só pecado,
mas inventaram sempre novos delitos de acréscimo, tornando-se insaciáveis relativamente
ao pecado.
24. Difundiram-se
adultérios e roubos e toda a terra se encheu de morticínios e rapinas. Com a
lei, ninguém se preocupava, no atinente à corrupção e à injustiça. Todos, individualmente
e em comum, cometiam toda espécie de pecados. Cidades guerreavam entre si,
nações se insurgiam contra nações, a terra estava dilacerada por sedições e batalhas;
todos rivalizavam em iniquidade.
25. Nem mesmo se
abstinham do que é contra a natureza, conforme afirma o Apóstolo, testemunha de
Cristo: “Suas mulheres mudaram as relações naturais por relações contra a
natureza; igualmente os homens, deixando a relação natural com a mulher,
arderam em desejo uns para com os outros, praticando torpezas homens com homens
e recebendo em si mesmos a paga de sua aberração” (Rm 1,26-27).
26. Ora, a morte
exercia cada vez mais seu poder e a corrupção subsistia no meio dos homens.
Desta forma, o gênero humano encaminhava-se para a perda. O homem racional,
criado à imagem do Verbo, desaparecia e a obra de Deus ia se arruinando.
27. Efetivamente,
como disse, por causa da lei, a morte continuava devastadora; impossível
eliminar a sanção promulgada por Deus, por causa da transgressão. Era, de fato,
absurdo e ao mesmo tempo inconveniente o que sucedia.
28. Seria incoerente
que a palavra de Deus mentisse no caso de que, promulgada com toda certeza a
lei de morte para o homem transgressor do preceito, este não morresse após a
transgressão, mas ficasse sem efeito a sentença divina. Deus não seria
verídico, se após ter declarado que haveríamos de morrer, de fato não
morrêssemos.
29. Por outro lado,
não convinha que, uma vez criados, seres racionais e partícipes do próprio
Verbo perecessem e, corrompidos, voltassem ao nada.
30. Era incompatível
com a bondade de Deus (cf. Rm 2,4s) que seres por ele criados fossem destruídos
porque o diabo os havia enganado.
31. Aliás, teria
sido de todo indigno fosse a arte empregada por Deus ao criar os homens
destruída pela negligência destes, aliada à ilusão dos demônios.
32. Então, o que
faria Deus, que é bom, uma vez que seres racionais pereciam e as obras divinas
se precipitavam na ruína? Deixar a corrupção prevalecer sobre eles e a morte
dominá-los? Mas, então, que necessidade havia de criá-los no começo? Era preferível
não ser do que ser e perecer por abandono.
33. Se Deus se
descuidasse, deixando perecer a obra que criara, manifestaria mais fraqueza do
que bondade, bem mais do que se não houvesse criado o homem no princípio.
34. Se não houvesse
criado, não estaria em causa sua fraqueza; mas visto que criou o homem, deu-lhe
o ser, teria sido completamente absurdo permitir que perecesse sua obra,
sobretudo diante dos olhos do Criador.
35. Por conseguinte,
não convinha deixar os homens serem arrebatados pela corrupção, por ser isto
impróprio e indigno da bondade de Deus.
36. Como, porém,
devia ser assim, era também oportuno, ao invés, manter o princípio da
veracidade de Deus na legislação sobre a morte. Seria impensável que, para
nossa utilidade e conservação, Deus, Pai da verdade, se mostrasse mentiroso.
37. Que devia, pois,
acontecer? Que faria Deus? Exigir dos homens arrependimento da transgressão?
Poder-se-ia afirmar ser isto digno de Deus. Da mesma forma que haviam os homens
passado da transgressão à corrupção, voltassem do arrependimento à incorruptibilidade.
38. Mas, o
arrependimento não salvaguardaria o que a Deus convinha; pois, uma vez mais,
ele não continuaria verídico se os homens não ficassem sob o poder da morte. Além
disso, o arrependimento não liberta das condições naturais, mas apenas põe
termo aos pecados.
39. Se, portanto,
fosse apenas a falta, sem a consequente corrupção, o arrependimento bastaria.
Mas, uma vez que a transgressão adiantou-se e os homens se achavam sob o poder
da corrupção devido a sua natureza, e privados da graça da conformidade com a imagem,
que fazer ainda? De que precisavam os homens, senão do Verbo de Deus, que antes
do começo criara todas as coisas do nada, a fim de obterem tal graça e restauração?
40. Competia-lhe
reconduzir o corruptível à incorrupção, e salvar o que convinha ao Pai em todas
as coisas. Ele, o Verbo de Deus, acima de tudo, era o único, portanto, capaz de
refazer todas as coisas, de sofrer por todos, de ser em favor de todos digno embaixador
junto do Pai.
O que você
destaca no texto?
Como ele serve
para sua espiritualidade?
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