terça-feira, 14 de setembro de 2021

Encontro 182

 


Encontro 182

Atanásio de Alexandria (285-373)

Sobre a Encarnação (Capítulo 1)

CAPÍTULO I

OS ANTECEDENTES DA ENCARNAÇÃO DO VERBO: CRIAÇÃO E QUEDA DO HOMEM

1.      Muitas e diversas foram as explicações a respeito da produção do mundo e da criação do universo. Cada qual a descreve a seu bel-prazer. Uns pretendem ter sido produzido espontânea e fortuitamente; assim os epicureus que inventam não haver providência, e se exprimem de forma contrária a toda evidência.

2.      Se, conforme sua opinião, tudo foi resultado de geração espontânea e fora da atuação da providência, forçosamente os seres todos seriam por inteiro semelhantes, sem diferença alguma. Então, se houvesse um só corpo celeste, seria todo sol ou lua, e no homem, o corpo inteiro devia ser mão, olho ou pé. No entanto, assim não é, e vemos de um lado o sol e de outro a lua ou a terra; igualmente no corpo humano, distinguem-se o pé, a mão, a cabeça. Essa distribuição leva-nos a compreender que não existe geração espontânea. Demonstra ter uma causa presidido à origem dos seres. Daí chegamos a entender que Deus distribuiu e criou todas as coisas.

3.      Outros, entre os quais Platão, tão grande entre os gregos, opinam que Deus fez o mundo, tomando como ponto de partida matéria preexistente e ingênita; Deus nada teria podido fazer sem esta matéria preexistente, da mesma forma que o carpinteiro necessita de madeira para poder trabalhar.

4.      Ao se exprimirem deste modo, não sabem que atribuem fraqueza a Deus. Efetivamente, se ele não é autor da matéria, mas tudo faz de matéria preexistente, mostra-se fraco, visto que sem ela é incapaz de fabricar seja o que for, como seria incapacidade no carpinteiro, sem dúvida alguma, não conseguir fabricar objetos necessários se não dispuser de madeira.

5.      Segundo tal hipótese, se não existisse matéria, Deus nada teria feito. E como se diria ser ele o Criador e o demiurgo, se a possibilidade de criar dependesse de outra coisa, isto é, da matéria? Se assim fosse, Deus seria apenas artífice e não Criador que dá o ser, uma vez que trabalharia a matéria dada, e não seria a própria causa desta matéria. Numa palavra, não se pode afirmar que é Criador, se não cria a matéria da qual provém as criaturas.

6.      Os hereges imaginam um demiurgo diferente do Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, dando provas de extrema cegueira em suas asserções. Pois quando o Senhor disse aos judeus: “Não lestes que desde o princípio o Criador os fez homem e mulher? e que disse: Por isso o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher e os dois serão uma só carne?” (Mt 19,4a). Em seguida assinala o Criador, nesses termos: “Portanto, que o homem não separe o que Deus uniu” (Mt 19,4s). Como supor uma criação alheia ao Pai? São João resume tudo numa só palavra: “Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito” (Jo 1,3). Como haveria outro demiurgo além do Pai de Cristo?

7.      São estes os seus mitos; o ensinamento divino, porém, e a fé em Cristo rejeitam, qual impiedade, esses vãos discursos. Não foi espontaneamente, por falta de providência, que nasceram os seres, nem de matéria preexistente, devido a fraqueza em Deus, mas do nada Deus por seu Verbo criou e trouxe à existência todo o universo, antes inexistente.

8.      Como disse Moisés: “No princípio, Deus criou o céu e a terra” (Gn 1,1) e o utilíssimo livro do Pastor: “Antes de tudo, crê haver um só Deus, que criou e organizou o universo e fez existir o que não era”. Paulo também o indica: “Foi pela fé que compreendemos que os mundos foram organizados pela Palavra de Deus. Por isso é que o mundo visível não tem a sua origem em coisas manifestas” (Hb 11,3).

9.      Ora, Deus é bom, ou antes, é a fonte de toda bondade, e quem é bom a ninguém pode odiar. Por conseguinte, a ninguém recusaria invejosamente a existência. Criou do nada todas as coisas por meio de seu próprio Verbo, nosso Senhor Jesus Cristo.

10.  Apiedou-se mais do gênero humano do que dos demais seres existentes na terra, e vendo que ele era incapaz, pela lei de sua própria natureza, de subsistir para sempre, concedeu-lhe algo mais; não se contentou com criar os homens, conforme fizera a todos os animais irracionais da terra, mas criou-os à sua imagem, fazendo-os partícipes do poder de seu próprio Verbo.

11.  Assim, possuindo uma espécie de sombra do Verbo, e sendo racionais, os homens poderiam permanecer na bem-aventurança, vivendo no paraíso a verdadeira vida, que realmente possuem os santos. Além disso, ciente de que o livre-arbítrio do homem inclina-se num ou noutro sentido, adiantou-se, e consolidou pela lei e em determinado lugar, a graça que já lhe havia outorgado. Introduziu-o, efetivamente, no paraíso e impôs-lhe uma lei.

12.  Se os homens conservassem a graça, permanecendo na virtude, teriam no paraíso vida isenta de tristeza, dor, preocupações, além da imortalidade prometida nos céus. Se, ao invés, transgredissem essa lei e dela se desviando se pervertessem, ficassem sabendo que, de conformidade com a sua própria natureza, esperava-os a corrupção da morte, deixariam de viver no paraíso, sendo dali expulsos para morrer e ficariam doravante sujeitos à morte e à corrupção.

13.  A Sagrada Escritura o assinala previamente, referindo a palavra de Deus: “Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres terás de morrer” (Gn 2,16.17). “Terás de morrer” não significa apenas: Morrereis, mas permanecereis sujeitos à corrupção e à morte.

14.  Possivelmente ficarás admirado de que, ao nos propormos falar da encarnação do Verbo, tratemos agora da origem do homem. Entretanto, o assunto não é estranho à finalidade de nossa exposição.

15.  De fato, ao nos referirmos à ação do Senhor entre nós, necessariamente temos de falar também da origem do homem. Assim, ficarás ciente de ter sido nossa condição o motivo de sua descida, e de que a transgressão atraiu a filantropia do Verbo, de sorte que o Senhor veio e apareceu entre os homens.

16.  O homem foi o motivo da encarnação, e por sua salvação, o Verbo amou o homem até nascer e manifestar-se com um corpo.

17.  Por conseguinte, Deus criou o homem, e queria para ele incorruptibilidade perdurável. Mas, os homens por negligência, abandonaram a contemplação de Deus, e conforme afirmamos no primeiro livro, conceberam e imaginaram a maldade. Por isso foi proferida a sentença de morte de que tinham sido ameaçados, e de então em diante cessaram de subsistir tais quais haviam sido feitos; corromperam-se em seus pensamentos e a morte subjugou-os, reinando sobre eles. A transgressão do mandamento os reconduziu ao seu estado natural, e assim como haviam passado do nada ao ser, era justo que doravante fossem sujeitos no decurso do tempo à corrupção, propensa ao nada.

18.  Uma vez que antes nada eram por natureza, e a presença e a filantropia do Verbo os chamou ao ser, consequentemente, alheios ao pensamento de Deus, e voltados para o nada (pois o mal é não-ser, e o bem é ser, saído das mãos de Deus, que é), os homens foram privados do ser, que seria eterno. Isto é o que significa, dissolvido o composto humano, permanecer na morte e na corrupção.

19.  Com efeito, por natureza o homem é mortal, pois foi feito do nada. Mas, se tivesse, pela contemplação de Deus, conservado a semelhança com aquele que é, teria diminuído a força da corrupção natural e se conservado incorruptível, conforme assevera a Sabedoria: “O respeito das leis é garantia de incorruptibilidade” (Sb 6,18). E sendo incorruptível, teria no futuro vivido como Deus, segundo o indica certa passagem da Sagrada Escritura: “Eu declarei: ‘Vós sois deuses, todos vós sois filhos do Altíssimo;

20.  contudo, morrereis como homem qualquer, caireis como qualquer dos príncipes’ ” (Sl 82,6-7).

21.  Ora, Deus não apenas nos tirou do nada, mas pela graça do Verbo, fez-nos viver segundo Deus. Os homens, contudo, se desviaram dos bens eternos, e por instigação do diabo voltaram-se para as coisas corruptíveis, tornando-se deste modo para si mesmos causa de morte. Conforme acima assegurei, eram por natureza corruptíveis, mas pela graça da participação do Verbo, teriam escapado desta condição natural, se tivessem permanecido bons.

22.  Com efeito, pela presença do Verbo, a corrupção natural não os teria tocado, como afirma a Sabedoria: “Deus criou o homem para a incorruptibilidade e o fez imagem de sua própria eternidade; é por inveja do diabo que a morte entrou no mundo” (Sb 2,23-78). Por conseguinte, os homens morreram e a corrupção desencadeou contra eles desde então toda a sua força; teve contra o gênero humano forças superiores às da natureza, tanto mais que podia apresentar contra eles o veredicto divino que pesava sobre a transgressão do mandamento.

23.  Os homens, contudo, ao pecarem, não se detiveram em certos limites, mas avançando pouco a pouco, ultrapassaram finalmente qualquer medida. No começo, inventaram o mal e invocaram contra si a morte e a corrupção. Em seguida, se desviaram para a injustiça e superaram toda espécie de iniquidade. Não se limitaram a um só pecado, mas inventaram sempre novos delitos de acréscimo, tornando-se insaciáveis relativamente ao pecado.

24.  Difundiram-se adultérios e roubos e toda a terra se encheu de morticínios e rapinas. Com a lei, ninguém se preocupava, no atinente à corrupção e à injustiça. Todos, individualmente e em comum, cometiam toda espécie de pecados. Cidades guerreavam entre si, nações se insurgiam contra nações, a terra estava dilacerada por sedições e batalhas; todos rivalizavam em iniquidade.

25.  Nem mesmo se abstinham do que é contra a natureza, conforme afirma o Apóstolo, testemunha de Cristo: “Suas mulheres mudaram as relações naturais por relações contra a natureza; igualmente os homens, deixando a relação natural com a mulher, arderam em desejo uns para com os outros, praticando torpezas homens com homens e recebendo em si mesmos a paga de sua aberração” (Rm 1,26-27).

26.  Ora, a morte exercia cada vez mais seu poder e a corrupção subsistia no meio dos homens. Desta forma, o gênero humano encaminhava-se para a perda. O homem racional, criado à imagem do Verbo, desaparecia e a obra de Deus ia se arruinando.

27.  Efetivamente, como disse, por causa da lei, a morte continuava devastadora; impossível eliminar a sanção promulgada por Deus, por causa da transgressão. Era, de fato, absurdo e ao mesmo tempo inconveniente o que sucedia.

28.  Seria incoerente que a palavra de Deus mentisse no caso de que, promulgada com toda certeza a lei de morte para o homem transgressor do preceito, este não morresse após a transgressão, mas ficasse sem efeito a sentença divina. Deus não seria verídico, se após ter declarado que haveríamos de morrer, de fato não morrêssemos.

29.  Por outro lado, não convinha que, uma vez criados, seres racionais e partícipes do próprio Verbo perecessem e, corrompidos, voltassem ao nada.

30.  Era incompatível com a bondade de Deus (cf. Rm 2,4s) que seres por ele criados fossem destruídos porque o diabo os havia enganado.

31.  Aliás, teria sido de todo indigno fosse a arte empregada por Deus ao criar os homens destruída pela negligência destes, aliada à ilusão dos demônios.

32.  Então, o que faria Deus, que é bom, uma vez que seres racionais pereciam e as obras divinas se precipitavam na ruína? Deixar a corrupção prevalecer sobre eles e a morte dominá-los? Mas, então, que necessidade havia de criá-los no começo? Era preferível não ser do que ser e perecer por abandono.

33.  Se Deus se descuidasse, deixando perecer a obra que criara, manifestaria mais fraqueza do que bondade, bem mais do que se não houvesse criado o homem no princípio.

34.  Se não houvesse criado, não estaria em causa sua fraqueza; mas visto que criou o homem, deu-lhe o ser, teria sido completamente absurdo permitir que perecesse sua obra, sobretudo diante dos olhos do Criador.

35.  Por conseguinte, não convinha deixar os homens serem arrebatados pela corrupção, por ser isto impróprio e indigno da bondade de Deus.

36.  Como, porém, devia ser assim, era também oportuno, ao invés, manter o princípio da veracidade de Deus na legislação sobre a morte. Seria impensável que, para nossa utilidade e conservação, Deus, Pai da verdade, se mostrasse mentiroso.

37.  Que devia, pois, acontecer? Que faria Deus? Exigir dos homens arrependimento da transgressão? Poder-se-ia afirmar ser isto digno de Deus. Da mesma forma que haviam os homens passado da transgressão à corrupção, voltassem do arrependimento à incorruptibilidade.

38.  Mas, o arrependimento não salvaguardaria o que a Deus convinha; pois, uma vez mais, ele não continuaria verídico se os homens não ficassem sob o poder da morte. Além disso, o arrependimento não liberta das condições naturais, mas apenas põe termo aos pecados.

39.  Se, portanto, fosse apenas a falta, sem a consequente corrupção, o arrependimento bastaria. Mas, uma vez que a transgressão adiantou-se e os homens se achavam sob o poder da corrupção devido a sua natureza, e privados da graça da conformidade com a imagem, que fazer ainda? De que precisavam os homens, senão do Verbo de Deus, que antes do começo criara todas as coisas do nada, a fim de obterem tal graça e restauração?

40.  Competia-lhe reconduzir o corruptível à incorrupção, e salvar o que convinha ao Pai em todas as coisas. Ele, o Verbo de Deus, acima de tudo, era o único, portanto, capaz de refazer todas as coisas, de sofrer por todos, de ser em favor de todos digno embaixador junto do Pai.

 

O que você destaca no texto?

Como ele serve para sua espiritualidade?

 

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