Atanásio
de Alexandria (285-373)
Sobre a Encarnação
(Capítulo 4 – 1ª Parte)
CAPÍTULO IV
O VALOR SALVÍFICO DA ENCARNAÇÃO DO
VERBO A UNIÃO DO LOGOS
E DO CORPO HUMANO
Com efeito, o
Verbo não estava circunscrito ao corpo; estava no corpo, sem deixar de estar
simultaneamente em outras partes. Não movimentava apenas este corpo e deixava o
universo privado de seu poder e de sua providência. Maior maravilha é que, sendo
o Verbo, não era contido por um ser qualquer; ou melhor, ele próprio continha a
todos. Desta forma, presente em toda a criação, por essência acha-se fora de
tudo, mas em tudo está por seu poder. Estabelece a ordem em todas as coisas,
estendendo a tudo e por tudo sua providência. Vivifica simultaneamente a cada
um e a todos. Contém o universo e por ele não é contido. Somente no Pai, está
todo inteiro e sob todos os pontos de vista.
Igualmente,
estando em seu corpo humano e dando-lhe a vida, vivificava também todos os
seres. Estava em todos, e fora de todos. Fazia-se conhecido por seu corpo através
das obras, e no entanto não era menos visível em sua operação sobre todos os seres.
É peculiar à alma
contemplar pelo pensamento até mesmo o que está fora do corpo, mas não agir
fora do corpo, nem mover por sua presença o que se acha longe deste corpo. Com
efeito, jamais um homem, pensando em algo que esteja longe, fá-lo mover-se ou
deslocar-se. Se alguém está sentado diante de sua casa e fica pensando no firmamento,
não vai por isso mover o sol, nem fazer girar o céu. Sem dúvida, ele vê seu movimento
e sua existência, mas continua incapaz de produzi-los.
Tal não era o
Verbo de Deus na natureza humana. Ele não estava ligado pelo corpo; ao invés,
dominava-o, de sorte que estava no corpo e em todos os seres, mas era exterior
a todos e somente no Pai repousava.
Mais admirável era
que vivia como homem; enquanto Verbo, porém, dava a vida a todos os seres e
enquanto Filho estava junto do Pai. Assim, quando a virgem o gerou, nada
sofreu, nem a presença num corpo o manchou; ao contrário, também santificou o corpo.
Nem pelo fato de
estar presente no universo, participa do bem de todos os seres, mas são eles,
ao invés, que recebem do Verbo vida e nutrição.
Quando o sol, que
ele criou e nós contemplamos, gira no céu, não é manchado pelos corpos
terrestres que toca, nem some por causa das trevas; ao contrário, ele ilumina e
purifica esses corpos. Com maior razão o santíssimo Verbo de Deus, criador e dono
do sol, não foi maculado pelo corpo no qual se dava a conhecer; antes, sendo incorruptível,
santificava e purificava o corpo mortal, pois, “ele não cometeu pecado, mentira
nenhuma foi achada em sua boca” (1Pd 2,22).
Quando, pois, os
teólogos narram que ele foi gerado, comeu, bebeu, saiba ter sido o corpo,
enquanto tal, que foi gerado e nutrido de alimentos adequados. Entretanto, o Verbo,
que é Deus, unido ao corpo, dispunha em ordem o universo e pelas obras realizadas
corporalmente, não se distinguia como homem, e sim como o Verbo que é Deus. No
entanto, dele se diz tudo isso, porque não pertencia a outrem o corpo que comia,
nascia, sofria, mas era do Senhor. Uma vez que se fizera homem, convinham-lhe essas
expressões apropriadas ao homem, a fim de se mostrar possuidor de corpo verdadeiro,
não imaginário.
Mas, assim como
pelas obras percebia-se estar ele corporalmente presente, igualmente nas obras
realizadas pelo corpo dava-se a conhecer como Filho de Deus. Por esta razão,
ele clamava aos judeus incrédulos: “Se não faço as obras de meu Pai, não acrediteis
em mim; mas se as faço, mesmo que não acrediteis em mim, crede nas obras, a fim
de conhecerdes e conhecerdes sempre mais que o Pai está em mim e eu no Pai” (Jo
10,37-38).
Invisível, é
notado através das obras da criação; de igual modo, feito homem, mesmo se
corporalmente se subtraísse aos olhares, verificar-se-ia através das obras que não
era simples homem, mas o Poder, o Verbo de Deus que as realizava.
Efetivamente, dar
ordens aos demônios e exorcizá-los não constitui obra humana, mas divina. Pois,
ao curar as doenças a que o gênero humano está sujeito, como julgá-lo ainda
homem e não Deus? Com efeito, purificava os leprosos, fazia andarem os coxos, abria
os ouvidos aos surdos, dava a vista aos cegos; em suma, afastava para bem longe
dos homens doenças e fraquezas, de sorte que qualquer podia contemplar a sua divindade.
Quem, de fato, ao vê-lo suprir deficiências congênitas, abrir os olhos de cego de
nascença, não compreenderia que os nascimentos dos homens dependem dele, o demiurgo
e artífice? Quem pode suprimir deficiências inatas, evidentemente é Senhor também
da geração dos homens.
Por isso, ao
descer ao meio de nós, no começo, de uma virgem plasma para si corpo, a fim de
oferecer a todos notável prova de sua divindade, pois quem o plasmou é também o
artífice de outros corpos. Diante deste corpo nascido só de virgem, sem concurso
de homem, quem não concluiria ser aquele que nele se manifesta também o artífice
e senhor de outros corpos?
Ao presenciar a
substância da água transmutar-se em vinho, como não pensar ser o autor deste
milagre o Senhor e Criador da substância das águas? Por isso, ele como dono caminha
sobre o mar, passeia como em terra, oferecendo assim aos espectadores prova de
seu domínio universal. E quando com pequena quantidade de alimento nutriu multidão,
que da indigência passou à abundância, a tal ponto que saciou com cinco pães cinco
mil homens e ainda sobejou outro tanto, demonstrava não ser outro senão o Senhor
com sua providência universal.
Sem dúvida,
convinha perfeitamente ao Senhor agir deste modo, a fim de que os homens, ignaros
de sua providência relativa a todos os seres, e não conhecendo sua divindade
através da criação, olhassem ao menos as obras por ele corporalmente realizadas,
e daí extraíssem uma noção acerca do Pai, remontando, conforme já referi, do
pormenor das obras à providência universal.
Ao notarem seu
poder sobre os demônios e estes confessarem ser ele seu Senhor, quem duvidaria
ainda de que ele é efetivamente Filho de Deus, sua Sabedoria e seu Poder?
Sequer à criação
ele permitiu manter-se em silêncio, mas (coisa estupenda!), por ocasião de sua
morte, ou antes em vista do troféu alcançado sobre a morte, isto é, a cruz,
toda a criação confessa não ser simplesmente homem aquele que corporalmente se manifesta
e sofre, e sim o Filho de Deus (cf. Mc 5,7) e Salvador de todos. Quando o sol se
escondeu, a terra tremeu, as montanhas se fenderam (cf. Mt 27,45.51), todos
ficaram apavorados. Esses prodígios mostravam que o crucificado era Cristo
Deus, a criação era sua serva, enquanto o temor que sentiam atestava a presença
do Senhor.
Assim, portanto, o
Verbo que é Deus se revelou aos homens por meio das obras. Seria consequente
narrarmos agora o fim de sua vida e atividade corporais e expor de que maneira
morreu. Tanto mais que se trata de ponto capital de nossa fé, comentado incessantemente
pelo mundo inteiro. Ficarás ciente de que ainda aqui o Cristo se revelou igualmente
como Deus e Filho de Deus.
A
redenção mediante o sacrifício da cruz
Expusemos, de
fato, só parcialmente e quanto pudemos compreender, a causa e a espécie de sua
manifestação corporal. O Salvador que no começo tudo fizera do nada, era o
único que podia restituir a incorruptibilidade ao ser corruptível. Ninguém mais
era capaz de restaurar os homens segundo a imagem a não ser quem é a Imagem do
Pai. A nenhum outro competia transformar um ser mortal em imortal, senão ao que
é a própria Vida, nosso Senhor Jesus Cristo. Nenhum outro podia ensinar quem
era o Pai e eliminar o culto dos ídolos, senão o Verbo que estabelecera a ordem
no universo, único e verdadeiro Filho unigênito do Pai.
Restava, contudo,
ainda saldar a dívida de todos, pois todos, conforme mencionamos acima, deviam
morrer, e esta foi a causa principal de sua vinda à terra. Por isso, após ter
revelado sua divindade pelas obras, restava ainda oferecer o sacrifício por todos,
entregando por todos à morte o templo de seu corpo (cf. Hb 9,12.24), a fim de suprimir
os obstáculos e libertá-los da antiga transgressão (cf. Ap 12,9). Desta
maneira, mostrar-se-ia mais forte que a morte, exibindo em seu corpo
incorruptível as primícias da ressurreição universal.
Não te surpreenda
o fato de repetirmos frequentemente a mesma coisa. Uma vez que nos referimos à
benevolência de Deus, expressamos igual conceito por muitas palavras, para não
parecermos omissos e incorrermos na censura de termos feito exposição
insuficiente. É preferível expor-se à crítica de sempre repetir as mesmas
coisas a omitir o que for necessário escrever.
Na verdade, o
corpo de Cristo era de substância idêntica à dos demais homens. Era corpo
humano, e embora por novo prodígio nascido somente de uma virgem, era todavia mortal,
e teve a sorte comum a seus semelhantes. Mas, por causa do advento do Verbo, não
estava sujeito à corrupção, conforme as exigências da natureza. Com efeito,
pela inabitação do Verbo de Deus, estava isento da corrupção.
Assim,
encontram-se no mesmo ser dois prodígios: a morte de todos se cumpria no corpo
do Senhor, e de outro lado a morte e a corrupção eram destruídas pelo Verbo unido
a este corpo. Necessária era a morte, forçoso advir para todos, a fim de que a dívida
comum fosse saldada.
Ora, conforme
disse, o Verbo, na impossibilidade de morrer — era imortal —, assumiu um corpo
capaz de morrer, a fim de por todos oferecer o que lhe era próprio, e através
dos padecimentos por todos em sua encarnação, reduzir a nada “o dominador da morte,
isto é, o diabo, e libertar os que passaram toda a vida em estado de servidão,
pelo temor da morte” (cf. Hb 2,14b-15).
Sem dúvida, uma
vez que o comum Salvador de todos por nós morreu, nós, os fiéis de Cristo, não
sofremos mais a morte, como outrora sob a ameaça da lei, pois a sentença
condenatória foi abolida. Além disso, tendo cessado e desaparecido a corrupção,
por obra da graça da ressurreição, resulta que, segundo a condição do corpo mortal,
a decomposição corporal durará somente o tempo fixado por Deus para cada um,
a fim de podermos obter “uma ressurreição
melhor” (Hb 11,35).
Com efeito, à
guisa de sementes lançadas na terra, não perecemos na dissolução, mas somos
semeados para ressuscitar, pois a morte foi abolida pela graça do Salvador (1Cor
15,42.44). Em consequência, São Paulo, fiador geral da ressurreição, declarou:
“É necessário que este ser corruptível revista a incorruptibilidade, e que este
ser mortal revista a incorruptibilidade e este ser mortal a imortalidade, então
se cumprirá a palavrada Escritura: ‘A morte foi absorvida na vitória. Ó morte,
onde está o teu aguilhão?” (1Cor 15,53-55).
Pode, contudo,
alguém interrogar: Se era necessário que por todos Cristo entregasse o corpo à
morte, por que não o deixou normalmente como homem, mas chegou ao ponto de ser
crucificado? Mais condizente seria sair do corpo cercado de honras do que
sofrer o ultraje de tal morte.
Examina outra vez
se esta objeção não será demasiada humana. Os acontecimentos acerca do Salvador
são verdadeiramente divinos, e de variadas formas dignos de sua divindade.
Primeiro, porque a morte que sobrevém aos outros provém de fraqueza natural.
Eles não podem durar muito e com o correr do tempo desfalecem. Por conseguinte,
ocorrem doenças, eles se debilitam e morrem. O Senhor, porém, não é fraco. Ou
antes, é o Poder de Deus, o Verbo de Deus, a própria Vida.
Se, pois, saísse
do corpo de modo reservado no leito, conforme os demais, julgar-se-ia derivar o
evento de fraqueza natural, sem que ele nada mais possuísse que os restantes.
Mas, sendo ele a Vida, o Verbo de Deus que havia de morrer por todos, enquanto
Vida e Poder fortalecia o corpo por si mesmo.
Mas, a morte devia
ocorrer. Então, aproveitou a oportunidade de oferecer um sacrifício, não por
si, mas pelos outros. Não ficaria bem que adoecesse o Salvador, se ele curava
as doenças dos outros, nem que enfraquecesse o corpo, por meio do qual ele fortificava
os debilitados.
Por que, então,
não impediu a morte como evitara a doença? Porque havia assumido corpo com esta
finalidade e não seria oportuno impedir a morte para não criar igualmente
obstáculo à ressurreição. Também não seria adequado fosse a morte precedida por
doença, para que não se atribuísse fraqueza ao que estava neste corpo. Entretanto,
não sentiu fome? Sim, sentiu a fome peculiar ao corpo, e no entanto, o Senhor
que sustentava esse corpo não deixou que lhe sobreviesse a morte por inédia (abstinência).
Então, morreu para resgate de todos, mas não experimentou a corrupção. O corpo ressuscitou
intacto, visto pertencer ao que é a própria vida.
Ora, dirá alguém,
competia-lhe furtar-se à conjuração dos judeus, a fim de conservar imortal o
corpo. Ouça esse contraditor que nem isso convinha ao Senhor. Seria indigno do
Verbo de Deus, a própria Vida, ocasionar ele próprio a sua morte corporal. Também
não lhe convinha fugir da morte infligida por outrem; seria antes o caso de procurá-la
para eliminá-la. Por conseguinte, agiu bem por não sair do corpo de iniciativa
própria e de outro lado, não fugir das
ciladas dos judeus.
Tal conduta não
assinalava fraqueza no Verbo, antes fazia com que fosse reconhecido como
Salvador e Vida, pois ele aguardava a morte para destruí-la e apressava-se em
prol da salvação de todos para consumar a morte que lhe seria infligida.
Aliás, o Salvador
vinha pôr termo à morte dos seres humanos e não à que lhe era destinada. Não deixou
o corpo por morte natural a si (coisa impossível, sendo ele a própria Vida),
mas acolheu a morte das mãos dos homens, a fim de eliminar completamente a
morte que lhe atacara o corpo.
Além disso,
conclui-se daí ser bem apropriado tal fim ao corpo do Senhor. Visava sobretudo
à ressurreição que havia de operar em seu corpo. Assim, era erguer o troféu da
vitória sobre a morte manifestar aos homens todos a ressurreição.
Assegurou-lhes que acabaria com a corrupção e doravante os corpos tornar-se-iam
incorruptíveis. Qual penhor e prova da futura ressurreição geral, conservava
seu próprio corpo incorruptível.
Seria, ao invés,
inoportuno que o corpo houvesse adoecido e o Verbo de Deus dele se separasse à
vista de todos pois, tendo curado as doenças alheias, deixaria sucumbir por
moléstia o instrumento de seus milagres. Quem acreditaria ter ele sanado as enfermidades
alheias, se o templo de seu corpo se debilitasse? Ou ele se exporia ao ridículo
por ser incapaz de curar a doença, ou se pudesse curar e não o fizesse, seria considerado
pouco humano até mesmo relativamente ao próximo.
Se, portanto,
Cristo houvesse morrido sem doença, nem dor, em particular, sozinho num canto
ou lugar deserto, ou em casa, ou tivesse conservado o corpo oculto em qualquer
lugar e em seguida reaparecido subitamente, dizendo ter ressuscitado dos mortos,
tudo isso assemelhar-se-ia antes a uma fábula. Com mais razão, não se lhe daria
crédito se falasse de ressurreição, ponderando-se que absolutamente ninguém lhe
presenciara a morte. Importa que a morte preceda a ressurreição, pois jamais
houve ressurreição sem morte prévia. Igualmente se o corpo morresse de certo
modo oculto, e se a morte fora invisível e sem testemunhas, a ressurreição
também teria sido invisível e não atestada.
Por que uma vez
ressuscitado havia de anunciar abertamente esta ressurreição, se tivesse
deixado a morte se realizar em segredo? Por que teria podido aos olhos de todos
expulsar demônios, dar a vista ao cego de nascença, transformar a água em vinho,
e por esses fatos, tornar crível ser o Filho de Deus, e não teria podido
perante todos igualmente mostrar incorruptível seu corpo mortal, a fim de se
acreditar que ele é a Vida?
Como teria sido
possível aos discípulos pregar audaciosamente a ressurreição, se primeiro não
lhes fosse facultado afirmar que ele morrera? Ou como se lhes daria crédito ao
afirmarem primeiro a morte e em seguida a ressurreição, se não houvessem encontrado
testemunhas da morte entre os mesmos aos quais falavam com tanta audácia? Se
mesmo assim, apesar de ter sido a morte e ressurreição realizadas à vista de todos,
os fariseus contemporâneos recusaram crer e ainda forçaram as testemunhas oculares
da ressurreição a negá-la, se tudo isso se tivesse realizado secretamente, que pretextos
não teriam imaginado para defender a sua incredulidade?
Mas, então, de que
forma mostraria ele o término do domínio da morte e sua vitória sobre ela, se
primeiro não a houvesse convocado ao tribunal publicamente a fim de provar pela
incorrupção de seu corpo estar ela doravante morta e aniquilada?
Cabe-nos responder
de antemão às prováveis réplicas. Ora, talvez ainda se afirme o seguinte: Se
devia a morte suceder diante dos olhos de todos e de determinadas testemunhas
para dar crédito à ressurreição, também deveria ele excogitar uma espécie de
morte gloriosa, para ao menos escapar da ignomínia da cruz.
Mas, se assim
agisse, prestar-se-ia à suspeita de não ser bastante poderoso contra qualquer
espécie de morte, mas somente contra a que excogitasse para si, e não faltaria novamente
pretexto para negar a ressurreição. Consequentemente adveio ao corpo não um
tipo de morte inventado por ele próprio, e sim pelas maquinações dos inimigos,
a fim de que ele destruísse precisamente a morte que estes infligiram ao
Salvador. Qual genuíno atleta, grande pela prudência e valor, não escolheu os
adversários, a fim de não incorrer na suspeita de covardia diante de alguns
deles, mas deixou a escolha aos espectadores, principalmente se hostis, para esmagar
o que eles de comum acordo lhe opõem, e ser considerado o mais forte de todos.
Igualmente, nosso Salvador e Senhor, Cristo, Vida do mundo, não inventou um
gênero de morte para si, evitando a aparência de estar com medo de outrem, mas
aceitou e suportou a morte ocasionada por outros, sobretudo seus inimigos,
morte por esses considerada temível, ignominiosa e abominável, a morte de cruz.
E assim, destruindo-a, induziu a crer ser ele a Vida, que aniquilaria inteiramente
o poder da morte.
Aconteceu, portanto,
algo de admirável e espantoso: a morte ignominiosa que eles queriam lhe
infligir tornou-se o troféu da vitória contra a morte. Não quis morte como a de
João por decapitação, nem ser partido ao meio como Isaías, querendo conservar mesmo
após a morte o corpo inteiro e indiviso, a fim de não dar pretexto aos que tentassem
dividir a Igreja (cf. Jo 19,23-24).
Esses argumentos
são para os de fora, que acumulam raciocínios sobre raciocínios. Mas, se alguns
dos nossos pergunta, não guiado por espírito contencioso, mas desejoso de se
instruir, por que motivo Cristo não suportou outra espécie de morte que a da
cruz, saiba que nenhuma outra nos seria mais proveitosa; por conseguinte, foi esta
justamente que o Senhor padeceu por nós.
Se vinha carregar
a maldição que sobre nós pesava, de que modo ter-se-ia tornado maldição (cf. Gl
3,13), se não sofresse a morte dos malditos? Tal é, efetivamente, a morte na
cruz, pois está escrito: “Maldito todo aquele que é suspenso no madeiro” (Dt 21,23;
Gl 3,13).
Além disso, se a
morte do Senhor é redenção (cf. Mt 20,28; Mc 10,45) para todos, se esta morte
derruba o muro de separação (cf. Ef 2,14) e realiza a vocação dos gentios, como
nos teria ele chamado se não tivesse sido crucificado? De fato, somente na cruz
se morre com as mãos estendidas.
Era conveniente
que o Senhor suportasse esta espécie de morte e estendesse as mãos. Com uma
atrairia o antigo povo de Deus e com a outra os gentios, reunindo os dois povos
em si mesmo.
Ele próprio o asseverou,
dando a entender por qual morte resgataria os homens: “E quando eu for elevado
da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,32).
Ademais, o inimigo
do gênero humano, o diabo, caído do céu (cf. Lc 10,18), erra pelas regiões
inferiores do ar, exerce o império sobre os outros demônios, que se lhe assemelham
pela desobediência, e por intermédio destes, produz fantasmas para os que se
deixam seduzir e tenta impedir os que procuram subir. O Apóstolo afirma sobre
esse assunto: “Conforme o Príncipe do poder do ar, o espírito que agora opera
nos filhos da desobediência” (Ef 2,2).
O Senhor,
portanto, veio abater o diabo, purificar o ar, abrir-nos o caminho para a
subida ao céu, conforme afirma o Apóstolo: “através do véu” (Hb 10,20), isto é,
sua carne. Sua morte o realizou. Mas, qual morte senão a morte nos ares, isto
é, a da cruz? Morre nos ares apenas quem morre crucificado. Por conseguinte,
foi razoável que o Senhor sofresse tal morte. Desta sorte, elevado nas alturas,
purificou o ar das maquinações do diabo e dos demônios: “Eu via Satanás cair do
céu como um relâmpago!” (Lc 10,18) e reabriu para nós o caminho ascendente para
o céu, dizendo ainda: “Ó príncipes, levantai vossas portas, elevai-vos antigas
portas” (Sl 23,7). Ora, o Verbo não necessitava que se lhe abrissem as portas,
pois é o Senhor de tudo. Criatura alguma está fechada diante do Criador. Nós,
contudo, precisávamos desta abertura e então ele nos transportou ao céu, por
meio de seu próprio corpo. Da mesma forma que por todos entregou o corpo à morte,
também abriu a estrada que conduz às alturas dos céus.
O que você destaca
no texto?
Como serva para
sua espiritualidade?
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