domingo, 17 de outubro de 2021

Encontro 186 - Atanásio de Alexandria (285-373) - Sobre a Encarnação (Capítulo 4 – 2ª Parte)

 


Encontro 186

Atanásio de Alexandria (285-373)

Sobre a Encarnação (Capítulo 4 – 2ª Parte)

 

CAPÍTULO IV

O VALOR SALVÍFICO DA ENCARNAÇÃO DO VERBO A UNIÃO DO LOGOS E DO CORPO HUMANO

 

A ressurreição de Cristo e o dom da incorruptibilidade

1.      Sua morte por nós na cruz foi, portanto, perfeitamente conveniente e adaptada. Vê-se ter tido causa inteiramente racional e perfeitamente justificada. Não existia modo melhor de operar a salvação do mundo que a cruz. Assim sendo, não quis ficar invisível na cruz, mas tomou a criação inteira por testemunha da presença de seu demiurgo. Não deixou o templo de seu corpo aguardar muito tempo, mas comprovada a morte após a luta, logo o ressuscitou, ao terceiro dia, erguendo qual troféu da vitória sobre a morte a incorruptibilidade e impassibilidade obtidas neste corpo.

2.      Teria podido, sem dúvida, imediatamente ressuscitar o corpo morto e apresentá-lo vivo, mas o Salvador não o quis, por sábia previdência. No caso de manifestar imediatamente a ressurreição, alguém poderia replicar que não estivera inteiramente morto, ou que a morte não o tocara de modo algum.

3.      Se morte e ressurreição se sucedessem sem intervalo, a glória da incorruptibilidade permaneceria incerta. Por isso, no intuito de demonstrar que o corpo estava bem morto, o Verbo deixou passar um dia intermediário e no terceiro apresentou-se a todos incorrupto.

4.      Querendo provar a morte do corpo, ressuscitou-o ao terceiro dia.

5.      Ora, se houvesse esperado mais tempo para ressuscitar um corpo já totalmente corrompido, suscitaria talvez incredulidade, como se não se tratasse de seu corpo, mas de outro. Provavelmente, decorrido algum tempo, surgiria recusa de credibilidade na aparição e esquecimento do sucedido. Por esse motivo, não tardou além de três dias, nem deixou aguardarem por muito tempo os que o haviam ouvido referir-se à ressurreição.

6.      Ora, enquanto eles tinham ainda nos ouvidos o som de sua voz, os olhos ainda o buscavam, os espíritos se mantinham em suspenso, enquanto viviam ainda na terra e nos mesmos lugares os que o mataram e podiam atestar a morte corporal do Senhor, o Filho de Deus apresentou imortal e incorrupto o corpo que estivera sem vida pelo espaço de três dias. Evidenciou-se que se estivera inanimado não fora por fraqueza do Verbo que o

7.      inabitava, e sim para ser nele destruída a morte por virtude do Salvador.

8.      Prova notável e testemunho evidente da destruição da morte e de representar a cruz a vitória por ele obtida sobre a morte, já sem vigor, verdadeiramente morta, é a seguinte: Todos os discípulos de Cristo a desprezam, marcham contra ela, sem temor, e pelo sinal da cruz e a fé em Cristo, calcam-na aos pés, como a um cadáver.

9.      Outrora, antes do advento divino do Salvador, os defuntos eram chorados porque destinados à corrupção. Entretanto, após ter o Salvador ressuscitado seu corpo, ela cessou de ser pavorosa. Os fiéis de Cristo calcam-na aos pés como um nada, e preferem morrer a renegar a fé em Cristo. Estão cientes de que ao falecerem não perecem, mas vivem, e a ressurreição os fará incorruptíveis.

10.  E o diabo, que outrora pela morte insultava malignamente os homens, agora, uma vez supressas as dores da morte (cf. At 2,24) é o único verdadeiramente morto. Comprova tal afirmação o seguinte fato: Antes de crerem em Cristo, os homens olhavam a morte qual coisa terrível e dela tinham pavor. Ao contrário, uma vez acolhidas a fé e a doutrina, de tal modo desprezam a morte que se lançam ardorosamente para ela, e tornam-se testemunhas da vitória do Salvador sobre a morte através da ressurreição. Apesar da idade, as crianças apressam-se para a morte, exercitam-se para ela não somente homens, mas também mulheres.

11.  A morte de tal forma se enfraqueceu que as próprias mulheres, outrora por ela iludidas, riem-se dela, como de ser inanimado e inerme. Se um tirano, vencido por rei valoroso, acha-se ligado de mãos e pés, os transeuntes dele zombam, batem-no, maltratam-no, sem qualquer receio de sua raiva e crueldade, por causa do rei vencedor; assim também a morte, uma vez vencida e desonrada pelo Salvador, de mãos e pés amarrada, é pisoteada pelos que caminham em Cristo os quais lhe prestando testemunho, zombam da morte e insultam-na, repetindo as palavras da Escritura: “Morte, onde está a tua vitória? Inferno, onde está o teu

12.  aguilhão?” (1Cor 15,55).

13.  Seria prova insignificante da fraqueza da morte? Ou demonstração falha da vitória alcançada sobre elas pelo Salvador o fato de que crianças e jovens em Cristo menosprezam a vida presente, prontas para morrer?

14.  O homem naturalmente receia a morte e a decomposição do corpo. Coisa estupenda! Quem se revestiu da fé na cruz, despreza este sentimento natural, e por causa de Cristo não tem medo da morte.

15.  O fogo tem naturalmente a propriedade de queimar: mas conta-se que existe uma matéria que não teme a labareda do fogo, mas lhe demonstra antes a fraqueza, como se diz do amianto dos indianos; e se alguém, permanecendo cético diante deste propósito, quer fazer a experiência do que foi dito, revestirá a substância não-inflamável e se lançará ao fogo, e doravante crerá imediatamente na fraqueza do fogo.

16.  Ou se alguém deseja ver o tirano aprisionado, deve necessariamente fazer-se presente no país e no reino do vencedor, para ver privado de sua força aquele que os outros temiam. Semelhantemente, se alguém é incrédulo, mesmo após provas importantes, após tantos mártires suscitados no Cristo, após a derrisão (riso de desprezo) preparada cotidianamente à morte por aqueles que se honram no Cristo; se ele hesita ainda a se pronunciar a respeito da destruição da morte e de seu fim, faz bem de se admirar de semelhante coisa, contanto que não se endureça na descrença e que não tenha a imprudência de negar os fatos tão evidentes.

17.  Mas como aquele que usou o amianto reconhece que este é não-inflamável, e aquele que quer ver o tirano aprisionado passe no reino do vencedor, do mesmo modo aquele que não crê na vitória sobre a morte, que receba a fé do Cristo, e se põe à sua escola: ele verá a impotência da morte e a vitória alcançada sobre ela. Numerosos são aqueles que permaneceram, de início, incrédulos e zombeteiros, depois se tornaram crentes e desprezaram a morte a ponto de se tornarem mártires de Cristo.

18.  Mas se, graças ao sinal da cruz e à fé no Cristo, a morte é calcada aos pés, é manifesto ao julgamento da verdade que nenhum outro senão Cristo em pessoa não alcançou estes troféus e estas vitórias contra a morte, e que ele a reduziu à impotência.

19.  Se a morte atormentava, no começo, e por isso era temível, mas que no presente, após a vinda do Salvador, a morte de seu corpo e sua ressurreição, esta morte se encontra desprezada, é visível que ela foi arruinada e vencida pelo Cristo elevado sobre a cruz.

20.  Quando, após a noite, o sol aparece e ilumina toda a face da terra, não há nenhuma razão de duvidar que este sol que espalha por toda parte a luz, é também aquele que expulsou as trevas e tudo iluminou. Assim, pois que a morte é desprezada e calcada aos pés desde a manifestação salutar do Salvador no corpo e sua morte sobre a cruz, é evidente que é o mesmo Salvador, que apareceu num corpo, destruiu a morte e cada dia faz ver em seus discípulos, seus troféus contra ela.

21.  Com efeito, ao notar que homens, naturalmente fracos, lançam-se na morte, sem se deixarem intimidar pela corrupção do túmulo, nem temerem a descida aos infernos, e além disso desejarem ardentemente a morte, sem temor das torturas e por Cristo preferirem à vida presente, esse impulso para a morte, quando se observam homens e mulheres, jovens e crianças acorrerem rapidamente à morte, pela fé em Cristo, quem seria bastante tolo ou incrédulo, quem teria espírito tão cego para não compreender e refletir que é Cristo, a quem esses prestam testemunho, quem dá e obtém para cada um a vitória sobre a morte, destruindo seu poder em cada um dos que nele têm fé e trazem o sinal da cruz?

22.  Quem vê uma serpente calcada aos pés, sobretudo se conhece sua anterior crueldade, não duvida de que esteja morta, ou tenha perdido as forças, a menos que se trate de perturbado mental, ou que nem mesmo seus sentidos corporais estejam sadios. Quem ainda, ao ver crianças desafiarem um leão, não compreenderá que ele está morto e perdeu o vigor?

23.  Vê-se com os próprios olhos que tal é a realidade. Assim, se os fiéis em Cristo desafiam e desprezam a morte, ninguém duvide nem recuse crer ter Cristo aniquilado a morte, cortando e arruinando a corrupção.

24.  Nossas palavras contêm prova ponderável de ter sido eliminada a morte e constituir a cruz do Senhor troféu contra ela. Cristo, Salvador comum e verdadeira Vida, ressuscitou seu corpo, doravante imortal. A demonstração extraída dos fatos é mais clara que todos os discursos para os que conservam em bom estado os olhos espirituais.

25.  Se, conforme as conclusões de nossa reflexão, a morte foi eliminada e todos por Cristo a pisoteiam, com maior razão ele próprio, em seu corpo, calcou-a aos pés e a venceu. Se a morte por ele pereceu, que lhe restava senão ressuscitar o corpo, qual troféu de vitória? Como apareceria a derrota da morte se o corpo do Senhor não tivesse ressuscitado? Se não se julgar ser esta demonstração suficiente da ressurreição, é possível confirmar nossas palavras por fatos evidentes.

26.  Um morto nada mais pode fazer. Sua lembrança vai até o túmulo e logo se extingue. Aos vivos somente pertencem ação e influência sobre os homens. A quem quiser é possível essa constatação; se julgar de acordo com o que vê, confessará que é verdade.

27.  Se o Salvador de tal forma age entre os homens e invisivelmente persuade todos os dias, em toda a parte, grande multidão de gregos e bárbaros a nele crer e a escutar sua doutrina, como seria possível ainda hesitarmos e perguntarmos se o Salvador ressuscitou, se Cristo está vivo, ou melhor, se ele é a própria Vida?

28.  Seria um morto capaz de penetrar no coração dos homens, fazer com que renegassem as leis de seus pais, e abraçassem a doutrina de Cristo? Ou se não age, o que é próprio de defunto, como pode fazer com que homens vivos e ativos parem de agir, o adúltero cesse de adulterar, o homicida deixe de assassinar, o injusto desista de sua cupidez, o ímpio se transforme em piedoso? Se Cristo não ressuscitou, se não passa de defunto, como consegue expulsar, perseguir, derrubar os falsos deuses que os ímpios afirmam serem vivos e os demônios por eles adorados?

29.  Nomeiem-se Cristo e a fé nele e logo a idolatria é arruinada, as ilusões demoníacas são refutadas. Demônio algum suporta este nome; basta ouvi-lo e é afugentado. Tudo isso não é obra de morto; ao contrário, é próprio de vivo e até mesmo de Deus.

30.  Aliás, seria ridículo afirmar serem vivos os demônios por ele afugentados, os ídolos derrubados e declarar morto quem os expulsa, por seu poder fá-los desaparecer e é reconhecido por todos como Filho de Deus.

31.  Levantam contra si mesmos grave argumento os que recusam crer na ressurreição, se os demônios e deuses por ele adorados não perseguem esse Cristo que eles asseveram estar morto; mas ao invés, é Cristo quem comprova estarem todos eles mortos.

32.  É verdade que um morto nada pode fazer; no entanto, o Salvador opera diariamente tantos prodígios, atrai à piedade, persuade à prática da virtude, ensina a imortalidade, conduz ao desejo do céu, revela o conhecimento do Pai, inspira força contra a morte, mostra-se a cada um e destrói a impiedade dos ídolos. Tais coisas não fazem os deuses e demônios dos infiéis, enquanto, ao invés, apenas a presença de Cristo faz deles uns mortos, que apenas têm aparência vã e oca, pois o sinal da cruz elimina toda magia, reduz a nada os encantamentos. Os ídolos são abandonados e menosprezados, cessam os prazeres desordenados e todos olham da terra para o céu. De quem se afirmará que está morto? Cristo, que fez tudo isso? Mas, um morto não age. Ou se trata de alguém que não tem atividade alguma, jaz inanimado? Tal é o caso dos demônios e dos ídolos, semelhantes a seres mortos.

33.  O Filho de Deus, porém, vivo e atuante (cf. Hb 4,12) opera cada dia, realizando a salvação de todos. Entretanto, a morte está condenada a perder cada dia mais seu vigor, os ídolos e os demônios assemelham-se cada vez mais a seres mortos, e ninguém pode mais ficar na incerteza sobre a ressurreição do corpo de Cristo.

34.  4. Se alguém recusasse crer na ressurreição do corpo do Senhor, mostraria ignorar o poder do Verbo, da Sabedoria de Deus. Se o Verbo assumiu corpo e fê-lo seu de modo consequente e racional, conforme demonstrou nossa exposição, que havia de fazer o Senhor de seu corpo? Ou qual devia ser o fim desse corpo em que o Verbo entrara?

35.  Impossível não morrer, por ser mortal e haver sido entregue à morte pela salvação de todos; era justamente para isso que o Salvador o plasmara. Permanecer na morte, porém, não era possível ponderando-se que se tornara o templo da Vida. Assim, morreu, enquanto ser mortal, mas ressurgiu por causa da vida que nele estava, e suas obras são o sinal de sua ressurreição.

36.  Quem recusar crer na ressurreição porque não o vê, cuide de que neguem também os incrédulos o que está na natureza das coisas. Pois, é próprio de Deus ser invisível, mas através das obras dá-se a conhecer, segundo mencionado mais acima.

37.  Se as obras não existem, eles têm razão de não acreditar no que é invisível. Mas, se estas obras clamam e claramente o demonstram, por que negam propositadamente a vida revelada com tamanha evidência pela ressurreição? Se têm o espírito obcecado, ao menos verifiquem com os sentidos externos o incontestável poder de Cristo e sua divindade (Rm 1,20).

38.  O cego não vê o sol, mas ao menos recebe seu calor, sabe que existe um sol acima da terra. De forma semelhante, nossos contraditores, que não querem crer, cegos no cume do espírito em relação à verdade, ao menos ao notarem com que força os outros creem, não neguem a divindade de Cristo e a ressurreição de que é autor.

39.  É evidente que se Cristo estivesse morto, não afugentaria os demônios, nem despojaria os ídolos. Os demônios não obedeceriam a morto. Como basta seu nome para visivelmente pô-los em fuga, é claro que não está morto, tanto mais que os demônios, vendo o que os homens não veem, podem verificar se Cristo é defunto e não lhe obedecerem. Agora, porém os demônios veem o que os ímpios não creem, que ele é Deus. Por isso, todos fogem, caem a seus pés, repetindo as frases que gritavam quando ele ainda estava nesta vida: “Sei quem tu és: O Santo de Deus” (Lc 4,34), e ainda: “Que existe entre mim e ti, Filho de Deus? Peço-te que não me atormentes” (Mc 5,7; cf. Lc 8,26).

40.  Uma vez que os demônios o reconhecem e suas obras atestam a seu favor todos os dias, é claro — e ninguém devia resistir com impudência à verdade — que o Salvador ressuscitou seu próprio corpo e que é o verdadeiro Filho de Deus. De Deus saiu, como Verbo nascido do Pai, Sabedoria e Poder, que assumiu nos últimos tempos um corpo em prol da salvação de todos e ministrou à terra inteira ensinamentos acerca do Pai, destruiu a morte, deu a todos a graça da incorruptibilidade, prometendo a ressurreição, ressuscitando seu corpo qual primícias e exibindo-o qual troféu da vitória sobre a morte e a corrupção, pelo sinal da cruz.

 

O que você destaca no texto?

Como serva para sua espiritualidade?

 

 

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