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Hilário de
Poitiers (315-368)
O Tratado da Santíssima Trindade
Livro Quarto
(Capítulos 15-29)
Divisão do Tratado
O Tratado está dividido em 12
livros.
O livro I começa autobiografia. Refere-se
às heresias e apresenta um plano geral do trabalho.
O livro II é um resumo da
doutrina da Trindade.
O livro III trata do mistério da
distinção e unidade do Pai e do Filho.
No livro IV o autor apresenta a carta de Ário a Alexandre de Alexandria
e demonstra a divindade de Filho a partir de citações tiradas do Antigo
Testamento.
Capítulo
15.
1.
Para
eles, o principal argumento é: Conhecemos um só Deus, como disse Moisés:
Ouve, Israel, o Senhor teu Deus é um (Dt 6,4). Será que alguém
ousou duvidar disto? Ou alguma vez declarou alguém outra coisa, se aqueles que
crêem em Deus sabem que não há senão um só Deus, de quem tudo procede, e um só
poder inascível, e que é sem início este único poder?
2.
Mas,
porque Deus é um só, não se pode negar que o Filho seja Deus. Moisés, ou
melhor, Deus, por meio de Moisés, quando o povo, tanto no Egito quanto no
deserto, se entregava ao culto de ídolos e daqueles que pensava serem deuses,
estabeleceu este mandamento principal: que se cresse em um só Deus; e o
estabeleceu com toda a razão.
3.
Na
verdade há um só Deus, do qual tudo procede (cf. 1Cor 8,6). Mas vejamos se o
mesmo Moisés confessou ser Deus também Aquele por quem tudo existe (cf. 1Cor
8,6). Não se retira do Pai o ser único, se também o Filho é Deus, pois é Deus
de Deus, único do único; por isto é o único Deus, porque Deus procede dele.
4.
Porque
o Pai é o único Deus, o Filho não é menos Deus, pois é o Filho unigênito de
Deus.
5.
Não
é inascível, de modo a privar Deus de ser um só, e não é outra coisa, a não ser
Deus, porque nasceu de Deus. Embora não se possa duvidar de que, nascendo de
Deus, seja Deus, motivo pelo qual, em nossa fé, Deus é um só, vejamos se
Moisés, que dissera a Israel: O Senhor teu Deus é um só, teria declarado
ser Deus o Filho de Deus.
6.
Será
preciso, para confessarmos a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, usar o
testemunho daquele por cuja autoridade os hereges, ao confessarem somente um
único Deus, julgam dever negar que o Filho seja Deus.
Capítulo
16.
7. De acordo com o Apóstolo, é esta
a absoluta e perfeita profissão de fé: Um só Deus Pai, de quem tudo procede,
e um só Senhor nosso, Jesus Cristo, por meio de quem todas as coisas foram
feitas (1Cor 8,6).
8. Vejamos a origem do mundo e o
que, sobre ela, disse Moisés: E Deus disse: Faça-se o firmamento no meio das
águas, e separe umas águas das outras águas. Assim se fez, e Deus fez o
firmamento, e Deus dividiu as águas pelo meio (Gn 1,6-7). Tens então
o Deus do qual tudo procede e tens o Deus por quem tudo foi feito.
9. Se negares isto, será preciso
que ensines por quem foi feito o que foi feito e demonstres como era obediente
a Deus a natureza do que devia ser criado, que, pela ordem: Faça-se o
firmamento, firmou-se segundo a palavra de Deus.
10. Mas isto não concorda com a
Divina Escritura, pois, segundo o Profeta, tudo foi feito do nada (cf. 2Mc
7,28) e nenhuma natureza existente se mudou em outra coisa, mas o que não
existia foi criado. Por quem foi criado, é evidente.
11. Ouve o Evangelista: Tudo foi
feito por Ele (Jo 1,3). Se indagas: por quem? ouvirás o mesmo
Evangelista dizer: No princípio era o Verbo e o Verbo estava junto de Deus,
e o Verbo era Deus. Ele estava, no princípio, junto de Deus. Tudo foi feito por
Ele.
12. Se quiseres negar porque parece
não ter sido dito pelo Pai: Faça-se o firmamento (Gn 1,6), ouvirás de
novo o Profeta dizer: Ele disse, e tudo se fez; Ele ordenou, e tudo foi
criado (Sl 148,5).
13. Portanto, as palavras: Faça-se
o firmamento mostram ter sido o Pai quem falou. Quando se acrescenta: E
assim se fez, e diz-se que Deus fez, deve-se entender que é indicada a pessoa
que fez. As palavras Disse, e tudo foi feito significam que não
somente quis e fez; mas ordenou, e tudo foi criado, o que indica que as
coisas não começaram a existir simplesmente porque foi do seu agrado, de forma
que o ofício de Mediador entre Ele e as coisas que deveriam ser criadas
terminasse.
14. Portanto Deus, de quem tudo
procede, disse que se fizesse, e Deus, por quem tudo existe, o fez. O mesmo
nome indica quem dizia e quem realizava a obra. Se, porém, ousares dizer que
não foi em relação ao Filho que se disse: E Deus fez, então, que
significa o que foi dito: Tudo foi feito por Ele, e a afirmação do
Apóstolo: um só Senhor nosso Jesus Cristo, por quem tudo foi feito (1Cor
8,6) e Ele disse e tudo se fez (Sl 148,5)?
15. Mesmo que estas palavras divinas
não convençam tua impudência, não se retira do Filho de Deus que seja Deus,
pelo fato de ter sido dito: Ouve, Israel, o Senhor teu Deus é um só (Dt
6,4).
16. Quem assim falou, na própria
criação do mundo já proclamou também o Deus Filho. Mas vejamos a quem aproveita
esta distinção entre o Deus que ordena e o Deus que faz. Pois, embora o senso
comum não aceite, ao ser dito: Ordenou e foi criado, que se deva
acreditar referir-se a um solitário e ao mesmo; no entanto, para que não possa
haver dúvidas, é preciso explicar o que se seguiu à criação do mundo.
Capítulo
167
17. Quando, terminado o mundo, se
devia formar seu habitante, isto foi dito sobre ele: E Deus disse: “Façamos
o homem à nossa imagem e semelhança” (Gn 1,26), e: Deus fez o homem; à
imagem de Deus o fez (Gn 1,27).
18. Pergunto agora se pensas ter
Deus sozinho falado consigo mesmo, ou se entendes que esta palavra foi dirigida
não a si mesmo, mas a outro.
19. Se dizes ter sido dirigida ao
que estava só, ser-te-á replicado por sua própria voz: Façamos o homem à
nossa imagem e semelhança. Pois Deus, pelo Legislador (Moisés) em atenção à
nossa inteligência falou, com palavras que desejou que usássemos, para
conceder-nos o conhecimento daquilo que fez.
20. Refere-se ao Filho de Deus, por
quem tudo foi feito, com as palavras: E Deus disse: “Faça-se o firmamento”, e
ainda: E Deus fez o firmamento, para que não se julgasse ser vazia e
supérflua a repetição da mesma palavra, como se a tivesse dito a si mesmo, e
Ele mesmo tivesse feito, pois que pode haver de mais estranho para aquele que
está só que dizer o que deveria fazer, se só com a vontade poderia fazê-lo?
21. Mas quis que se entendesse, com
toda certeza, que esta palavra não se dirigia a Ele só. Ao dizer: Façamos o
homem à nossa imagem e semelhança, evitou que se entendesse estar falando
de um só, afirmando um consórcio, pois não é possível haver consórcio com um
solitário. Como também a solidão do solitário não aceita o façamos e não
se diz nossa a um estranho.
22. Ambas as palavras façamos e
nossa não convêm a um mesmo solitário e também não se referem a alguém
diferente e estranho a si. Pergunto então, quando ouves falar de solitário,
porventura imaginas não ser ele um e o mesmo? Ou quando escutas que ele não é
um nem é o mesmo, acaso compreendes que seja apenas solitário? Portanto, no que
está só, se reconhece o solitário, no que não é único nem é o mesmo, se
encontra o que não é solitário. Assim sendo, convém ao solitário farei e
minha e, ao que não é solitário, façamos e nossa.
Capítulo
18
23. Quando lemos: Façamos o homem
à nossa imagem e semelhança, já que a palavra se refere a ambos, e não ao
solitário, e também não significa ser diferente, não devemos confessá-lo nem
como solitário nem como diferente.
24. As palavras nossa imagem, em
vez de nossas imagens, indicam em ambos a qualidade de uma só natureza.
Não basta, porém, a prova das palavras, há ainda a execução das obras, seguindo
a compreensão dos ditos, pois assim está escrito: E Deus fez o homem, à
imagem de Deus o fez (Gn 1,27).
25. Pergunto, se é solitário e a si
mesmo dirigiu a palavra. Que pensas tu? Vejo agora uma tríplice indicação: do
que faz, do que foi feito e do exemplo. Quem foi feito é o homem. Deus o fez e
à sua imagem. Se o Gênesis houvesse falado de um solitário, certamente teria
dito: E o fez à sua imagem. Mas, anunciando o mistério evangélico,
falou, não de dois deuses, mas de Deus e Deus, quando disse ter sido o homem
feito por Deus à imagem de Deus. Assim se vê que Deus fez o homem à
imagem e semelhança, comum a Ele e a Deus, para que nem a indicação de quem
realiza admita a idéia de solidão, nem a obra realizada segundo a mesma imagem
e semelhança permita entender uma diversidade de divindade.
Capítulo
19.
26. Depois disto, parece supérfluo
acrescentar algo, pois quando se trata do que é divino, não é necessário falar
muitas vezes, basta apenas falar. Contudo é preciso conhecer o que sobre isto
foi dito, embora não tenhamos de fornecer provas às palavras divinas, mas à
nossa inteligência.
27. Entre muitas ordens dadas a Noé,
Deus assim disse: Todo o que derramar o sangue humano será castigado com a
efusão do próprio sangue; porque fiz o homem à imagem de Deus (Gn 9,6).
Também aqui distinguem-se o exemplo, a obra, e o que opera. Deus atesta ter
feito o homem à imagem de Deus. Quando o homem iria ser criado, disse de si
mesmo, não a si, à nossa imagem, quando o homem já tinha sido criado,
disse: Deus fez o homem à imagem de Deus. Certamente não ignorava o
valor das palavras, e se falasse a si mesmo, teria dito Fiz à minha imagem.
Mas disse para demonstrar a unidade de natureza: Façamos à nossa imagem.
28. Nem nos leva à confusão, a idéia
de solitário e não solitário, pois Deus, fazendo o homem, o fez à imagem de
Deus.
Capítulo
20.
29. Se Deus Pai tivesse dito a si
mesmo, como solitário, como queres afirmar, se fosse possível admitir que tenha
falado a si mesmo como a um outro, e se fosse possível acreditar que com as
palavras fiz o homem à imagem de Deus (Gn 9,6) quisesse dar a entender
que tinha dito fiz o homem à minha imagem, serias refutado pelo teu
próprio testemunho, visto que disseste que tudo vem do Pai, mas por meio do
Filho.
30. Pelo que foi dito: Façamos o
homem, compreende-se que a origem provém daquele mesmo do qual vem também a
palavra; mas porque Deus fez à imagem de Deus, isto significa também
aquele por quem se realizou a obra.
Capítulo
21.
31. Em seguida, para que não te seja
permitido mentir, a Sabedoria, que tu mesmo confessaste ser Cristo, te
contradirá, dizendo: Quando fazia surgir fontes sob o céu e estabelecia os
fortes fundamentos da terra, eu estava junto dele, compondo. Eu era sua
alegria. Diariamente eu me alegrava diante dele em todo o tempo, como se
alegrava com o orbe perfeito e se alegrava com os filhos dos homens (Pr
8,28-31; LXX).
32. Todo pretexto está excluído, e
todo o erro está obrigado a confessar a verdade. Está presente junto a Deus a
Sabedoria, nascida antes dos séculos. Não apenas está presente, mas também
compõe. Está, portanto, compondo junto dele. Conhece o ofício de compor e de
dispor.
33. O Pai, só com falar, realiza; o
Filho, ao fazer o que é dito para fazer, compõe. Faz-se a distinção das pessoas
de tal modo que a obra se refere a ambos. Por ter sido dito Façamos,
igualam-se a ordem e a execução, mas: eu estava junto dele compondo significa
não ser solitário no trabalho. Alegra-se diante daquele com quem compartilhava a
alegria. Diariamente eu me alegrava diante dele em todo o tempo, quando se
alegrava pelo orbe perfeito, e alegrava-se com os filhos dos homens (Pr
8,30-31).
34. A Sabedoria revela a causa de
sua alegria. Alegra-se por causa da alegria do Pai, pela perfeição do mundo e
pelos filhos dos homens. Pois está escrito: Deus viu que tudo era bom.
Alegra-se porque sua obra, feita por ela de acordo com seu preceito, agrada ao
Pai.
35. Proclama provir seu gáudio da
alegria do Pai ao ver a obra terminada, e pelos filhos dos homens,
porque já no único Adão estava o exórdio de todo o gênero humano.
36. Portanto, na criação do mundo,
não fala para si mesmo um Pai solitário, estando em sua companhia sua Sabedoria
cooperando, alegre pela cooperação consumada.
Capítulo
22.
37. Não ignoramos faltarem muitas e
importantes evidências para a completa exposição destas palavras, por nós
adiadas, não dissimuladas. Reservou-se um tratado para mais plenamente estudar
as outras proposições. Agora apenas se responde ao que, na exposição de sua fé,
ou antes, da perfídia, é dito pelos ímpios: que somente um Deus foi declarado
por Moisés.
38. E na verdade nos lembramos de
que foi pregado que Deus é um, de quem tudo procede, mas nem por isso se deve
ignorar que há o Filho de Deus, pois o mesmo Moisés confessou Deus e Deus em
todo o corpo de sua obra.
39. Portanto é preciso ver como, não
só a eleição, mas também a Lei afirmaram Deus e Deus, na mesma ordem da sua
exposição.
Capítulo
23
40. Depois de Deus ter falado muitas
vezes a Abraão, quando Sara o indispunha contra Agar, por invejar a senhora
estéril a gravidez da escrava, afastando-se esta de sua presença, assim diz a
Escritura, a respeito dela: E o Anjo do Senhor disse a Agar: “Volta para tua
senhora, e humilha-te sob sua mão”. E disse-lhe o Anjo do Senhor:
“Multiplicarei tua descendência, de tal maneira que não poderá ser contada” (Gn
16,9,10). E ainda: Agar invocou o nome do Senhor que lhe falava: Tu
és o Deus que olhaste para mim (Gn 16,13).
41. O Anjo de Deus fala (mas há
dupla significação na palavra Anjo: aquele que é, e aquele de quem é), e
não fala algo de acordo com o nome de seu ofício, pois diz: multiplicarei
tua descendência, de tal maneira que não poderá ser contada. O poder de
multiplicar os povos ultrapassa o ministério de um anjo. Mas, porque então o
Anjo de Deus fala daquilo que é próprio só de Deus, atestado pela Escritura? E
invocou o nome do Senhor que falava com ela: Tu, Deus, que olhaste para mim.
42. Primeiro, anjo de Deus, depois,
Senhor, pois invocou o nome do Senhor que falava com ela, em seguida, em
terceiro lugar, Deus: Tu és o Deus que olhaste para mim.
43. O mesmo que é dito Anjo de Deus,
é Senhor e Deus. Segundo o Profeta, o filho de Deus é Anjo do grande
conselho (Is 9,6; LXX).
44. Para que fosse completa a
distinção das pessoas é chamado de Anjo de Deus, pois Aquele que é Deus de Deus
é também Anjo de Deus. Para que se lhe preste a devida honra é declarado Senhor
e Deus.
Capítulo
24
45. Aqui, primeiro é Anjo, em
seguida, o mesmo é Senhor e Deus; porém para Abraão é somente Deus. Já guardada
a anterior distinção de pessoas, para que não se insinue o erro do solitário,
declara-se o seu nome certo e verdadeiro.
46. Pois está escrito: E Deus
disse a Abraão: “Eis que Sara, tua esposa, te dará um filho: e tu o chamarás de
Isaac; estabelecerei com ele minha aliança, como uma aliança perpétua. Em favor
de Ismael também eu te ouvi: eu o abençoei, e o farei crescer muito. Gerará
doze povos e dele farei uma grande nação” (Gn 17,19-20).
47. Será possível duvidar de que
quem é chamado Anjo de Deus, seja, agora, ele mesmo dito Deus? Igualmente há
uma palavra sobre Ismael, neste lugar como pouco antes, e o que fará crescer é
o mesmo. E para quem talvez não acredite que seja o mesmo que falara a Agar, a
palavra divina o atesta, dizendo: Eu o abençoei e o farei crescer.
48. A bênção está no passado, já
acontecera a palavra a Agar; farei crescer, porém, está no futuro, pois
esta é a primeira vez que Deus fala a Abraão sobre Ismael.
49. A Abraão, é Deus que fala, a
Agar, foi o Anjo de Deus quem falou. Portanto, é Deus quem também é Anjo;
porque quem é Anjo de Deus é Deus, nascido de Deus. É chamado Anjo de Deus
porque é Anjo do Grande Conselho, porém o mesmo depois se mostra como Deus,
para que não se creia que quem é Deus seja apenas um anjo.
50. O discurso segue a ordem dos
assuntos. O Anjo do Senhor falou a Agar; ele, como Deus, falou a Abraão; ele
dirigiu a palavra a ambos. Ismael é abençoado e é-lhe prometido tornar-se um
grande povo.
Capítulo
25.
51. A Escritura também mostra, por
meio de Abraão, que era Deus quem falava. O filho Isaac também foi prometido a
Abraão. Em seguida, aparecem três homens. Abraão, tendo visto os três, adora a
um e declara ser seu Senhor. A Escritura diz que três homens se apresentaram,
mas o Patriarca não ignora a quem deve adorar e declarar seu Senhor.
52. A aparência dos três era a
mesma; mas ele, com os olhos da fé e a vista do espírito, reconhece seu Senhor.
Depois continua: E disse-lhe: “Voltarei a ti no próximo ano; então tua
esposa Sara terá um filho” (Gn 18,10). Depois disto disse-lhe o
Senhor: Não ocultarei a Abraão, meu servo, o que irei fazer (Gn 18,17;
LXX). Disse então o Senhor: “O Clamor contra Sodoma e Gomorra chegou ao
auge, e o seu pecado é muito grande” (Gn 18,20).
53. Tendo dito muitas outras coisas,
que por brevidade omitimos, como Abraão estivesse preocupado por pensar que
iriam se perder os justos com os injustos, disse: Longe de ti, que és o juiz
da terra, que faças tal coisa. E o Senhor disse: Se encontrar em Sodoma
cinqüenta justos na cidade, perdoarei este lugar por causa deles (Gn
18,25-26). E, tendo terminado a história sobre Ló, irmão de Abraão, diz
a Escritura: E o Senhor fez chover sobre Sodoma e Gomorra enxofre e fogo,
vindos do céu, da parte do Senhor (Gn 19,24), e: O Senhor visitou
Sara, como dissera, e fez Deus por Sara como prometera e Sara concebeu e deu à
luz um filho a Abraão em sua velhice no tempo que lhe indicara o Senhor (Gn
21,1-2).
54. Em seguida, quando a escrava
expulsa com seu filho da casa de Abraão temia que a criança morresse no
deserto, por falta de água, diz a mesma Escritura: Deus ouviu do céu a voz
do menino e o Anjo de Deus chamou Agar e disse-lhe: Que tens, Agar? Não temas,
pois Deus ouviu a voz do menino do lugar onde está. Levanta-te, pega o menino,
e segura-o pela mão, pois dele farei uma grande nação (Gn 21,17-18).
Capítulo
26.
55. Que pérfida cegueira, que
coração obtuso, o do incrédulo, que temeridade na impiedade é ignorar ou então
desprezar o que não se ignora! Certamente estas coisas foram mencionadas e
ditas, a fim de evitar que algum erro ou obscuridade impedisse a compreensão da
verdade.
56. E se ensinamos que não podem ser
ignoradas, é, sem dúvida, crime de impiedade negá-las. O Anjo do Senhor começou
por dizer a Agar que Ismael cresceria como uma grande nação e que lhe seria
dada uma numerosa descendência. A declaração que se ouve ensina ser Ele Senhor
e Deus. O discurso começou pelo anjo, mas consiste na confissão de Deus. Deste
modo, quem, com a missão de ser núncio do Grande Conselho, é, Ele próprio, Anjo
de Deus, pela natureza, como pelo nome, é Deus, pois o nome se conforma à
natureza, não a natureza ao nome.
57. Das mesmas coisas Deus fala a
Abraão; diz que Ismael é abençoado e será multiplicado como grande nação: Eu
o abençoei, diz (Gn 17,20). Não se referiu a outra pessoa, demonstrando já
ter Ele mesmo abençoado.
58. A Escritura mantém a devida
ordem na exposição do mistério e na pregação da verdade; começa pelo anjo de
Deus, e depois demonstra ser o próprio Deus quem diz essas coisas.
Capítulo
27.
59. Completando seu ensinamento,
prossegue a palavra divina dizendo que Deus, neste mesmo lugar, fala a Abraão e
promete que Sara dará à luz. Depois disto, aparecem diante dele, que estava
sentado, três homens; adora a um e o chama de Senhor. O que foi adorado e
confessado por ele promete voltar naquela mesma época no futuro, e Deus diz a
Abraão que Sara terá, no futuro, um filho.
60. Sobre estas coisas, o homem por
ele visto lhe diz o mesmo. Há apenas a mudança dos nomes, mas nada falta à declaração.
Tendo visto um homem, Abraão o adora como Senhor (Gn 18,2,3), ou seja,
reconhece o mistério da futura encarnação. Contudo, não faltou o reconhecimento
de tão grande fé, pois, no Evangelho, o Senhor diria: Abraão, vosso pai,
exultou por ver o meu dia, Ele o viu e se alegrou (Jo 8,56).
61. O homem que viu promete voltar
na mesma época. Vê o efeito da promessa, lembra-te, no entanto, de quem é o
homem que promete. Que diz então a Escritura? E o Senhor visitou Sara (Gn
21,1). Portanto, este é o Senhor, realizando o que prometera. Que mais? E
fez Deus a Sara o que prometera. É chamado homem ao falar, é indicado como
Senhor na visita, é confessado como Deus pelo que fez.
62. Certamente não ignoras ser um
homem aquele que foi visto por Abraão e lhe falou. Como ignorarias ser Deus
aquele que a Escritura, que o chamara de homem, confessa ser Deus? Ela mesma
disse: E concebeu e deu à luz um filho a Abraão em sua velhice e no tempo
que o Senhor indicara (Gn 21,2).
63. Era um homem o que disse que
viria. Crê que seja apenas um homem, a não ser que seja também Deus e Senhor.
Considera as circunstâncias. Certamente o homem virá para que Sara conceba e dê
à luz. Aprende o que ensina a Fé. O Senhor e Deus vem para que Sara conceba e
dê à luz. Com o poder de Deus, o homem falou; com a força de Deus cumpriu a
promessa. Deste modo, Deus, falando e agindo, se revela como Deus.
64. Em seguida, dos três homens
presentes, dois vão embora, mas o que permanece sentado é Deus e Senhor. E não
só é Senhor e Deus, mas é Juiz. Pois, de pé, diante do Senhor, diz Abraão: Longe
de ti fazeres tal coisa: fazer morrer o justo com o pecador, de modo que o
justo seja como o pecador. De modo algum: tu, que julgas toda a terra, não
farias justiça? (Gn 18,25).
65. Por conseguinte, em todo este
discurso, Abraão demonstra a fé pela qual foi justificado. Entre os três,
reconhece o seu Senhor, o único que foi adorado e declarado Senhor e
Juiz.
Capítulo
28.
66. Para que talvez não julgues
estar contida na confissão de um a honra prestada aos três homens vistos
juntos, repara no que dissera Ló à vista dos dois que se afastaram: Assim
que os viu, levantou-se, foi a seu encontro, prostrou-se com o rosto em terra e
disse: Vinde, senhores, entrai na casa de vosso servo (Gn 19,1,2).
67. Aqui se manteve o plural na
simples visão dos anjos; lá, é confessada a honra de um só pela fé do
patriarca. Aqui, a narrativa da divina Escritura indica que, dos três, somente
dois eram anjos; lá, proclama um Senhor e Deus, pois diz: Mas Deus disse a
Abraão: “Porque Sara ri, dizendo: Vou dar à luz, agora que sou velha? Acaso
existe algo impossível para Deus?”. Na mesma época, voltarei a ti no futuro, e
Sara terá um filho (Gn 18,13).
68. Portanto, a Escritura mantém a
ordem verdadeira, sem misturar o plural para referir-se Àquele que reconhecia
como Deus e Senhor e sem atribuir aos dois anjos a honra que somente a Deus
fora prestada, pois Ló chama-os de senhores, mas a Escritura os designa como
anjos. Ali, a homenagem própria do homem, aqui, a confissão da verdade.
Capítulo
29.
69. Em seguida vem sobre Sodoma e
Gomorra o castigo da justa condenação. E o que há nisso de tão importante? O
Senhor fez chover enxofre e fogo vindos do Senhor (Gn 19,24). Com o
Senhor do Senhor, não distinguiu pelo nome da natureza aqueles que
distinguira pela designação (como não sendo uma só pessoa). Lemos, é verdade,
no Evangelho, que o Pai a ninguém julga, mas entregou todo o julgamento ao
Filho (Jo 5,22). Por conseguinte o Senhor deu aquilo que o Senhor recebeu
do Senhor.
O que você destaca no texto e colo ele serve para sua
espiritualidade?