terça-feira, 28 de junho de 2022

205 Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Quarto (Capítulos 15-29)

 


205

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Quarto (Capítulos 15-29)

 


 

Divisão do Tratado

O Tratado está dividido em 12 livros.

O livro I começa autobiografia. Refere-se às heresias e apresenta um plano geral do trabalho.

O livro II é um resumo da doutrina da Trindade.

O livro III trata do mistério da distinção e unidade do Pai e do Filho.

No livro IV o autor apresenta a carta de Ário a Alexandre de Alexandria e demonstra a divindade de Filho a partir de citações tiradas do Antigo Testamento.

 

LIVRO QUARTO

Capítulo 15.

1.      Para eles, o principal argumento é: Conhecemos um só Deus, como disse Moisés: Ouve, Israel, o Senhor teu Deus é um (Dt 6,4). Será que alguém ousou duvidar disto? Ou alguma vez declarou alguém outra coisa, se aqueles que crêem em Deus sabem que não há senão um só Deus, de quem tudo procede, e um só poder inascível, e que é sem início este único poder?

2.      Mas, porque Deus é um só, não se pode negar que o Filho seja Deus. Moisés, ou melhor, Deus, por meio de Moisés, quando o povo, tanto no Egito quanto no deserto, se entregava ao culto de ídolos e daqueles que pensava serem deuses, estabeleceu este mandamento principal: que se cresse em um só Deus; e o estabeleceu com toda a razão.

3.      Na verdade há um só Deus, do qual tudo procede (cf. 1Cor 8,6). Mas vejamos se o mesmo Moisés confessou ser Deus também Aquele por quem tudo existe (cf. 1Cor 8,6). Não se retira do Pai o ser único, se também o Filho é Deus, pois é Deus de Deus, único do único; por isto é o único Deus, porque Deus procede dele.

4.      Porque o Pai é o único Deus, o Filho não é menos Deus, pois é o Filho unigênito de Deus.

5.      Não é inascível, de modo a privar Deus de ser um só, e não é outra coisa, a não ser Deus, porque nasceu de Deus. Embora não se possa duvidar de que, nascendo de Deus, seja Deus, motivo pelo qual, em nossa fé, Deus é um só, vejamos se Moisés, que dissera a Israel: O Senhor teu Deus é um só, teria declarado ser Deus o Filho de Deus.

6.      Será preciso, para confessarmos a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, usar o testemunho daquele por cuja autoridade os hereges, ao confessarem somente um único Deus, julgam dever negar que o Filho seja Deus.

 

Capítulo 16.

7.      De acordo com o Apóstolo, é esta a absoluta e perfeita profissão de fé: Um só Deus Pai, de quem tudo procede, e um só Senhor nosso, Jesus Cristo, por meio de quem todas as coisas foram feitas (1Cor 8,6).

8.      Vejamos a origem do mundo e o que, sobre ela, disse Moisés: E Deus disse: Faça-se o firmamento no meio das águas, e separe umas águas das outras águas. Assim se fez, e Deus fez o firmamento, e Deus dividiu as águas pelo meio (Gn 1,6-7). Tens então o Deus do qual tudo procede e tens o Deus por quem tudo foi feito.

9.      Se negares isto, será preciso que ensines por quem foi feito o que foi feito e demonstres como era obediente a Deus a natureza do que devia ser criado, que, pela ordem: Faça-se o firmamento, firmou-se segundo a palavra de Deus.

10.  Mas isto não concorda com a Divina Escritura, pois, segundo o Profeta, tudo foi feito do nada (cf. 2Mc 7,28) e nenhuma natureza existente se mudou em outra coisa, mas o que não existia foi criado. Por quem foi criado, é evidente.

11.  Ouve o Evangelista: Tudo foi feito por Ele (Jo 1,3). Se indagas: por quem? ouvirás o mesmo Evangelista dizer: No princípio era o Verbo e o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava, no princípio, junto de Deus. Tudo foi feito por Ele.

12.  Se quiseres negar porque parece não ter sido dito pelo Pai: Faça-se o firmamento (Gn 1,6), ouvirás de novo o Profeta dizer: Ele disse, e tudo se fez; Ele ordenou, e tudo foi criado (Sl 148,5).

13.  Portanto, as palavras: Faça-se o firmamento mostram ter sido o Pai quem falou. Quando se acrescenta: E assim se fez, e diz-se que Deus fez, deve-se entender que é indicada a pessoa que fez. As palavras Disse, e tudo foi feito significam que não somente quis e fez; mas ordenou, e tudo foi criado, o que indica que as coisas não começaram a existir simplesmente porque foi do seu agrado, de forma que o ofício de Mediador entre Ele e as coisas que deveriam ser criadas terminasse.

14.  Portanto Deus, de quem tudo procede, disse que se fizesse, e Deus, por quem tudo existe, o fez. O mesmo nome indica quem dizia e quem realizava a obra. Se, porém, ousares dizer que não foi em relação ao Filho que se disse: E Deus fez, então, que significa o que foi dito: Tudo foi feito por Ele, e a afirmação do Apóstolo: um só Senhor nosso Jesus Cristo, por quem tudo foi feito (1Cor 8,6) e Ele disse e tudo se fez (Sl 148,5)?

15.  Mesmo que estas palavras divinas não convençam tua impudência, não se retira do Filho de Deus que seja Deus, pelo fato de ter sido dito: Ouve, Israel, o Senhor teu Deus é um só (Dt 6,4).

16.  Quem assim falou, na própria criação do mundo já proclamou também o Deus Filho. Mas vejamos a quem aproveita esta distinção entre o Deus que ordena e o Deus que faz. Pois, embora o senso comum não aceite, ao ser dito: Ordenou e foi criado, que se deva acreditar referir-se a um solitário e ao mesmo; no entanto, para que não possa haver dúvidas, é preciso explicar o que se seguiu à criação do mundo.

 

Capítulo 167

17.  Quando, terminado o mundo, se devia formar seu habitante, isto foi dito sobre ele: E Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança” (Gn 1,26), e: Deus fez o homem; à imagem de Deus o fez (Gn 1,27).

18.  Pergunto agora se pensas ter Deus sozinho falado consigo mesmo, ou se entendes que esta palavra foi dirigida não a si mesmo, mas a outro.

19.  Se dizes ter sido dirigida ao que estava só, ser-te-á replicado por sua própria voz: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Pois Deus, pelo Legislador (Moisés) em atenção à nossa inteligência falou, com palavras que desejou que usássemos, para conceder-nos o conhecimento daquilo que fez.

20.  Refere-se ao Filho de Deus, por quem tudo foi feito, com as palavras: E Deus disse: “Faça-se o firmamento”, e ainda: E Deus fez o firmamento, para que não se julgasse ser vazia e supérflua a repetição da mesma palavra, como se a tivesse dito a si mesmo, e Ele mesmo tivesse feito, pois que pode haver de mais estranho para aquele que está só que dizer o que deveria fazer, se só com a vontade poderia fazê-lo?

21.  Mas quis que se entendesse, com toda certeza, que esta palavra não se dirigia a Ele só. Ao dizer: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, evitou que se entendesse estar falando de um só, afirmando um consórcio, pois não é possível haver consórcio com um solitário. Como também a solidão do solitário não aceita o façamos e não se diz nossa a um estranho.

22.  Ambas as palavras façamos e nossa não convêm a um mesmo solitário e também não se referem a alguém diferente e estranho a si. Pergunto então, quando ouves falar de solitário, porventura imaginas não ser ele um e o mesmo? Ou quando escutas que ele não é um nem é o mesmo, acaso compreendes que seja apenas solitário? Portanto, no que está só, se reconhece o solitário, no que não é único nem é o mesmo, se encontra o que não é solitário. Assim sendo, convém ao solitário farei e minha e, ao que não é solitário, façamos e nossa.

 

Capítulo 18

23.  Quando lemos: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, já que a palavra se refere a ambos, e não ao solitário, e também não significa ser diferente, não devemos confessá-lo nem como solitário nem como diferente.

24.  As palavras nossa imagem, em vez de nossas imagens, indicam em ambos a qualidade de uma só natureza. Não basta, porém, a prova das palavras, há ainda a execução das obras, seguindo a compreensão dos ditos, pois assim está escrito: E Deus fez o homem, à imagem de Deus o fez (Gn 1,27).

25.  Pergunto, se é solitário e a si mesmo dirigiu a palavra. Que pensas tu? Vejo agora uma tríplice indicação: do que faz, do que foi feito e do exemplo. Quem foi feito é o homem. Deus o fez e à sua imagem. Se o Gênesis houvesse falado de um solitário, certamente teria dito: E o fez à sua imagem. Mas, anunciando o mistério evangélico, falou, não de dois deuses, mas de Deus e Deus, quando disse ter sido o homem feito por Deus à imagem de Deus. Assim se vê que Deus fez o homem à imagem e semelhança, comum a Ele e a Deus, para que nem a indicação de quem realiza admita a idéia de solidão, nem a obra realizada segundo a mesma imagem e semelhança permita entender uma diversidade de divindade.

 

Capítulo 19.

26.  Depois disto, parece supérfluo acrescentar algo, pois quando se trata do que é divino, não é necessário falar muitas vezes, basta apenas falar. Contudo é preciso conhecer o que sobre isto foi dito, embora não tenhamos de fornecer provas às palavras divinas, mas à nossa inteligência.

27.  Entre muitas ordens dadas a Noé, Deus assim disse: Todo o que derramar o sangue humano será castigado com a efusão do próprio sangue; porque fiz o homem à imagem de Deus (Gn 9,6). Também aqui distinguem-se o exemplo, a obra, e o que opera. Deus atesta ter feito o homem à imagem de Deus. Quando o homem iria ser criado, disse de si mesmo, não a si, à nossa imagem, quando o homem já tinha sido criado, disse: Deus fez o homem à imagem de Deus. Certamente não ignorava o valor das palavras, e se falasse a si mesmo, teria dito Fiz à minha imagem. Mas disse para demonstrar a unidade de natureza: Façamos à nossa imagem.

28.  Nem nos leva à confusão, a idéia de solitário e não solitário, pois Deus, fazendo o homem, o fez à imagem de Deus.

 

Capítulo 20.

29.  Se Deus Pai tivesse dito a si mesmo, como solitário, como queres afirmar, se fosse possível admitir que tenha falado a si mesmo como a um outro, e se fosse possível acreditar que com as palavras fiz o homem à imagem de Deus (Gn 9,6) quisesse dar a entender que tinha dito fiz o homem à minha imagem, serias refutado pelo teu próprio testemunho, visto que disseste que tudo vem do Pai, mas por meio do Filho.

30.  Pelo que foi dito: Façamos o homem, compreende-se que a origem provém daquele mesmo do qual vem também a palavra; mas porque Deus fez à imagem de Deus, isto significa também aquele por quem se realizou a obra.

 

Capítulo 21.

31.  Em seguida, para que não te seja permitido mentir, a Sabedoria, que tu mesmo confessaste ser Cristo, te contradirá, dizendo: Quando fazia surgir fontes sob o céu e estabelecia os fortes fundamentos da terra, eu estava junto dele, compondo. Eu era sua alegria. Diariamente eu me alegrava diante dele em todo o tempo, como se alegrava com o orbe perfeito e se alegrava com os filhos dos homens (Pr 8,28-31; LXX).

32.  Todo pretexto está excluído, e todo o erro está obrigado a confessar a verdade. Está presente junto a Deus a Sabedoria, nascida antes dos séculos. Não apenas está presente, mas também compõe. Está, portanto, compondo junto dele. Conhece o ofício de compor e de dispor.

33.  O Pai, só com falar, realiza; o Filho, ao fazer o que é dito para fazer, compõe. Faz-se a distinção das pessoas de tal modo que a obra se refere a ambos. Por ter sido dito Façamos, igualam-se a ordem e a execução, mas: eu estava junto dele compondo significa não ser solitário no trabalho. Alegra-se diante daquele com quem compartilhava a alegria. Diariamente eu me alegrava diante dele em todo o tempo, quando se alegrava pelo orbe perfeito, e alegrava-se com os filhos dos homens (Pr 8,30-31).

34.  A Sabedoria revela a causa de sua alegria. Alegra-se por causa da alegria do Pai, pela perfeição do mundo e pelos filhos dos homens. Pois está escrito: Deus viu que tudo era bom. Alegra-se porque sua obra, feita por ela de acordo com seu preceito, agrada ao Pai.

35.  Proclama provir seu gáudio da alegria do Pai ao ver a obra terminada, e pelos filhos dos homens, porque já no único Adão estava o exórdio de todo o gênero humano.

36.  Portanto, na criação do mundo, não fala para si mesmo um Pai solitário, estando em sua companhia sua Sabedoria cooperando, alegre pela cooperação consumada.

 

Capítulo 22.

37.  Não ignoramos faltarem muitas e importantes evidências para a completa exposição destas palavras, por nós adiadas, não dissimuladas. Reservou-se um tratado para mais plenamente estudar as outras proposições. Agora apenas se responde ao que, na exposição de sua fé, ou antes, da perfídia, é dito pelos ímpios: que somente um Deus foi declarado por Moisés.

38.  E na verdade nos lembramos de que foi pregado que Deus é um, de quem tudo procede, mas nem por isso se deve ignorar que há o Filho de Deus, pois o mesmo Moisés confessou Deus e Deus em todo o corpo de sua obra.

39.  Portanto é preciso ver como, não só a eleição, mas também a Lei afirmaram Deus e Deus, na mesma ordem da sua exposição.

 

Capítulo 23

40.  Depois de Deus ter falado muitas vezes a Abraão, quando Sara o indispunha contra Agar, por invejar a senhora estéril a gravidez da escrava, afastando-se esta de sua presença, assim diz a Escritura, a respeito dela: E o Anjo do Senhor disse a Agar: “Volta para tua senhora, e humilha-te sob sua mão”. E disse-lhe o Anjo do Senhor: “Multiplicarei tua descendência, de tal maneira que não poderá ser contada” (Gn 16,9,10). E ainda: Agar invocou o nome do Senhor que lhe falava: Tu és o Deus que olhaste para mim (Gn 16,13).

41.  O Anjo de Deus fala (mas há dupla significação na palavra Anjo: aquele que é, e aquele de quem é), e não fala algo de acordo com o nome de seu ofício, pois diz: multiplicarei tua descendência, de tal maneira que não poderá ser contada. O poder de multiplicar os povos ultrapassa o ministério de um anjo. Mas, porque então o Anjo de Deus fala daquilo que é próprio só de Deus, atestado pela Escritura? E invocou o nome do Senhor que falava com ela: Tu, Deus, que olhaste para mim.

42.  Primeiro, anjo de Deus, depois, Senhor, pois invocou o nome do Senhor que falava com ela, em seguida, em terceiro lugar, Deus: Tu és o Deus que olhaste para mim.

43.  O mesmo que é dito Anjo de Deus, é Senhor e Deus. Segundo o Profeta, o filho de Deus é Anjo do grande conselho (Is 9,6; LXX).

44.  Para que fosse completa a distinção das pessoas é chamado de Anjo de Deus, pois Aquele que é Deus de Deus é também Anjo de Deus. Para que se lhe preste a devida honra é declarado Senhor e Deus.

 

Capítulo 24

45.  Aqui, primeiro é Anjo, em seguida, o mesmo é Senhor e Deus; porém para Abraão é somente Deus. Já guardada a anterior distinção de pessoas, para que não se insinue o erro do solitário, declara-se o seu nome certo e verdadeiro.

46.  Pois está escrito: E Deus disse a Abraão: “Eis que Sara, tua esposa, te dará um filho: e tu o chamarás de Isaac; estabelecerei com ele minha aliança, como uma aliança perpétua. Em favor de Ismael também eu te ouvi: eu o abençoei, e o farei crescer muito. Gerará doze povos e dele farei uma grande nação” (Gn 17,19-20).

47.  Será possível duvidar de que quem é chamado Anjo de Deus, seja, agora, ele mesmo dito Deus? Igualmente há uma palavra sobre Ismael, neste lugar como pouco antes, e o que fará crescer é o mesmo. E para quem talvez não acredite que seja o mesmo que falara a Agar, a palavra divina o atesta, dizendo: Eu o abençoei e o farei crescer.

48.  A bênção está no passado, já acontecera a palavra a Agar; farei crescer, porém, está no futuro, pois esta é a primeira vez que Deus fala a Abraão sobre Ismael.

49.  A Abraão, é Deus que fala, a Agar, foi o Anjo de Deus quem falou. Portanto, é Deus quem também é Anjo; porque quem é Anjo de Deus é Deus, nascido de Deus. É chamado Anjo de Deus porque é Anjo do Grande Conselho, porém o mesmo depois se mostra como Deus, para que não se creia que quem é Deus seja apenas um anjo.

50.  O discurso segue a ordem dos assuntos. O Anjo do Senhor falou a Agar; ele, como Deus, falou a Abraão; ele dirigiu a palavra a ambos. Ismael é abençoado e é-lhe prometido tornar-se um grande povo.

 

Capítulo 25.

51.  A Escritura também mostra, por meio de Abraão, que era Deus quem falava. O filho Isaac também foi prometido a Abraão. Em seguida, aparecem três homens. Abraão, tendo visto os três, adora a um e declara ser seu Senhor. A Escritura diz que três homens se apresentaram, mas o Patriarca não ignora a quem deve adorar e declarar seu Senhor.

52.  A aparência dos três era a mesma; mas ele, com os olhos da fé e a vista do espírito, reconhece seu Senhor. Depois continua: E disse-lhe: “Voltarei a ti no próximo ano; então tua esposa Sara terá um filho” (Gn 18,10). Depois disto disse-lhe o Senhor: Não ocultarei a Abraão, meu servo, o que irei fazer (Gn 18,17; LXX). Disse então o Senhor: “O Clamor contra Sodoma e Gomorra chegou ao auge, e o seu pecado é muito grande” (Gn 18,20).

53.  Tendo dito muitas outras coisas, que por brevidade omitimos, como Abraão estivesse preocupado por pensar que iriam se perder os justos com os injustos, disse: Longe de ti, que és o juiz da terra, que faças tal coisa. E o Senhor disse: Se encontrar em Sodoma cinqüenta justos na cidade, perdoarei este lugar por causa deles (Gn 18,25-26). E, tendo terminado a história sobre Ló, irmão de Abraão, diz a Escritura: E o Senhor fez chover sobre Sodoma e Gomorra enxofre e fogo, vindos do céu, da parte do Senhor (Gn 19,24), e: O Senhor visitou Sara, como dissera, e fez Deus por Sara como prometera e Sara concebeu e deu à luz um filho a Abraão em sua velhice no tempo que lhe indicara o Senhor (Gn 21,1-2).

54.  Em seguida, quando a escrava expulsa com seu filho da casa de Abraão temia que a criança morresse no deserto, por falta de água, diz a mesma Escritura: Deus ouviu do céu a voz do menino e o Anjo de Deus chamou Agar e disse-lhe: Que tens, Agar? Não temas, pois Deus ouviu a voz do menino do lugar onde está. Levanta-te, pega o menino, e segura-o pela mão, pois dele farei uma grande nação (Gn 21,17-18).

 

Capítulo 26.

55.  Que pérfida cegueira, que coração obtuso, o do incrédulo, que temeridade na impiedade é ignorar ou então desprezar o que não se ignora! Certamente estas coisas foram mencionadas e ditas, a fim de evitar que algum erro ou obscuridade impedisse a compreensão da verdade.

56.  E se ensinamos que não podem ser ignoradas, é, sem dúvida, crime de impiedade negá-las. O Anjo do Senhor começou por dizer a Agar que Ismael cresceria como uma grande nação e que lhe seria dada uma numerosa descendência. A declaração que se ouve ensina ser Ele Senhor e Deus. O discurso começou pelo anjo, mas consiste na confissão de Deus. Deste modo, quem, com a missão de ser núncio do Grande Conselho, é, Ele próprio, Anjo de Deus, pela natureza, como pelo nome, é Deus, pois o nome se conforma à natureza, não a natureza ao nome.

57.  Das mesmas coisas Deus fala a Abraão; diz que Ismael é abençoado e será multiplicado como grande nação: Eu o abençoei, diz (Gn 17,20). Não se referiu a outra pessoa, demonstrando já ter Ele mesmo abençoado.

58.  A Escritura mantém a devida ordem na exposição do mistério e na pregação da verdade; começa pelo anjo de Deus, e depois demonstra ser o próprio Deus quem diz essas coisas.

Capítulo 27.

59.  Completando seu ensinamento, prossegue a palavra divina dizendo que Deus, neste mesmo lugar, fala a Abraão e promete que Sara dará à luz. Depois disto, aparecem diante dele, que estava sentado, três homens; adora a um e o chama de Senhor. O que foi adorado e confessado por ele promete voltar naquela mesma época no futuro, e Deus diz a Abraão que Sara terá, no futuro, um filho.

60.  Sobre estas coisas, o homem por ele visto lhe diz o mesmo. Há apenas a mudança dos nomes, mas nada falta à declaração. Tendo visto um homem, Abraão o adora como Senhor (Gn 18,2,3), ou seja, reconhece o mistério da futura encarnação. Contudo, não faltou o reconhecimento de tão grande fé, pois, no Evangelho, o Senhor diria: Abraão, vosso pai, exultou por ver o meu dia, Ele o viu e se alegrou (Jo 8,56).

61.  O homem que viu promete voltar na mesma época. Vê o efeito da promessa, lembra-te, no entanto, de quem é o homem que promete. Que diz então a Escritura? E o Senhor visitou Sara (Gn 21,1). Portanto, este é o Senhor, realizando o que prometera. Que mais? E fez Deus a Sara o que prometera. É chamado homem ao falar, é indicado como Senhor na visita, é confessado como Deus pelo que fez.

62.  Certamente não ignoras ser um homem aquele que foi visto por Abraão e lhe falou. Como ignorarias ser Deus aquele que a Escritura, que o chamara de homem, confessa ser Deus? Ela mesma disse: E concebeu e deu à luz um filho a Abraão em sua velhice e no tempo que o Senhor indicara (Gn 21,2).

63.  Era um homem o que disse que viria. Crê que seja apenas um homem, a não ser que seja também Deus e Senhor. Considera as circunstâncias. Certamente o homem virá para que Sara conceba e dê à luz. Aprende o que ensina a Fé. O Senhor e Deus vem para que Sara conceba e dê à luz. Com o poder de Deus, o homem falou; com a força de Deus cumpriu a promessa. Deste modo, Deus, falando e agindo, se revela como Deus.

64.  Em seguida, dos três homens presentes, dois vão embora, mas o que permanece sentado é Deus e Senhor. E não só é Senhor e Deus, mas é Juiz. Pois, de pé, diante do Senhor, diz Abraão: Longe de ti fazeres tal coisa: fazer morrer o justo com o pecador, de modo que o justo seja como o pecador. De modo algum: tu, que julgas toda a terra, não farias justiça? (Gn 18,25).

65.  Por conseguinte, em todo este discurso, Abraão demonstra a fé pela qual foi justificado. Entre os três, reconhece o seu Senhor, o único que foi adorado e declarado Senhor e Juiz.

 

Capítulo 28.

66.  Para que talvez não julgues estar contida na confissão de um a honra prestada aos três homens vistos juntos, repara no que dissera Ló à vista dos dois que se afastaram: Assim que os viu, levantou-se, foi a seu encontro, prostrou-se com o rosto em terra e disse: Vinde, senhores, entrai na casa de vosso servo (Gn 19,1,2).

67.  Aqui se manteve o plural na simples visão dos anjos; lá, é confessada a honra de um só pela fé do patriarca. Aqui, a narrativa da divina Escritura indica que, dos três, somente dois eram anjos; lá, proclama um Senhor e Deus, pois diz: Mas Deus disse a Abraão: “Porque Sara ri, dizendo: Vou dar à luz, agora que sou velha? Acaso existe algo impossível para Deus?”. Na mesma época, voltarei a ti no futuro, e Sara terá um filho (Gn 18,13).

68.  Portanto, a Escritura mantém a ordem verdadeira, sem misturar o plural para referir-se Àquele que reconhecia como Deus e Senhor e sem atribuir aos dois anjos a honra que somente a Deus fora prestada, pois Ló chama-os de senhores, mas a Escritura os designa como anjos. Ali, a homenagem própria do homem, aqui, a confissão da verdade.

 

Capítulo 29.

69.  Em seguida vem sobre Sodoma e Gomorra o castigo da justa condenação. E o que há nisso de tão importante? O Senhor fez chover enxofre e fogo vindos do Senhor (Gn 19,24). Com o Senhor do Senhor, não distinguiu pelo nome da natureza aqueles que distinguira pela designação (como não sendo uma só pessoa). Lemos, é verdade, no Evangelho, que o Pai a ninguém julga, mas entregou todo o julgamento ao Filho (Jo 5,22). Por conseguinte o Senhor deu aquilo que o Senhor recebeu do Senhor.

 

 

O que você destaca no texto e colo ele serve para sua espiritualidade?

segunda-feira, 20 de junho de 2022

204 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Quarto (Capítulos 1-14).

 


204

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Quarto (Capítulos 1-14)


 

Divisão do Tratado

O Tratado está dividido em 12 livros.

O livro I começa autobiografia. Refere-se às heresias e apresenta um plano geral do trabalho.

O livro II é um resumo da doutrina da Trindade.

O livro III trata do mistério da distinção e unidade do Pai e do Filho.

No livro IV o autor apresenta a carta de Ário a Alexandre de Alexandria e demonstra a divindade de Filho a partir de citações tiradas do Antigo Testamento.

 

LIVRO QUARTO

Capítulo 1.

1.      Embora pelos livros anteriores, que já há algum tempo escrevemos, julguemos absolutamente conhecidas a fé e a confissão do Pai e do Filho e do Espírito Santo a partir das doutrinas evangélicas e apostólicas, não podemos aceitar que algo nos possa ser comum com os hereges, já que, sem moderação nem boas razões e com ousadia, rejeitam a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo.

2.      Contudo, também em seus livros existe algo que deve ser estudado, para que, por todos os seus sofismas e ditos ímpios, se torne mais perfeito o conhecimento da verdade.

3.      Em primeiro lugar, deve-se conhecer a temeridade de sua doutrina e qual seja o perigo da impiedade, em seguida, quais suas sentenças contra a fé apostólica por nós professada e o que costumam dizer em contrário, qual a ambiguidade das palavras que iludem os simples ouvintes e, finalmente, como, com a arte de suas interpretações, corrompem a verdade e a força das divinas palavras.

 

Capítulo 2.

4.      Não ignoramos que, para explicar o que é de Deus, não pode bastar nem a palavra humana nem a comparação com a natureza. O que é inefável não encontra, de modo algum, palavra que o exprima e o que é espiritual é diferente da imagem e dos exemplos tirados das coisas corpóreas.

5.      Contudo, quando se trata de falar da natureza celeste, deve ser dito o que nossa mente pode compreender por meio das palavras consagradas pelo uso comum, não porque convenham à dignidade de Deus, mas porque são necessárias à fraqueza de nossa inteligência, pois mediante aquilo a que estamos acostumados, temos de falar do que sentimos e compreendemos.

6.      O que atestamos no primeiro livro, agora relembramos por esta razão. Se expressamos algo por meio de comparações humanas, daí não se segue que acreditemos poder pensar sobre Deus como sobre as naturezas corpóreas, nem comparar as coisas espirituais às nossas paixões. Antes, usamos exemplos tirados das coisas visíveis, para poder compreender as invisíveis.

 

Capítulo 3.

7.      Dizem os hereges que Cristo não vem de Deus, isto é, que não é Filho, nascido do Pai, nem é Deus por natureza, mas por criação, e que em seu nome está significada a adoção, porque, assim como são muitos os filhos de Deus, também seria filho, devido à munificência da divindade. Como são muitos os deuses, também Ele seria Deus, sendo maior a indulgência em relação a Ele pelo afeto da adoção e do nome. Seria adotado de preferência a todos os outros e seria maior do que os outros filhos adotivos, tendo sido criado de modo mais excelente que todas as criaturas, ultrapassando todo o criado.

8.      Dizem também alguns deles, que confessam a onipotência de Deus, ter sido criado à semelhança de Deus, a partir do nada, como as outras criaturas, e constituído à imagem do seu eterno Criador. Por uma ordem divina, passou de não existente à existência, porque Deus é poderoso para formar, a partir do nada, alguém semelhante a Ele.

 

Capítulo 4.

9.      Não dizem só isto, mas, ao ouvirem, dito por bispos anteriores, que o Pai e o Filho têm a mesma substância, querem, com sutileza, que se enfraqueça, sob a forma de herética opinião, o significado da palavra consubstancial, que em grego se diz homoousio.

10.  Acrescentam que eles valem-se desta palavra para dizer que o próprio Pai é o mesmo Filho e que, por sua infinidade, Ele se estendeu até a Virgem, assumindo dela um corpo e, neste corpo que assumiu, acrescentou a si mesmo o nome de Filho. É esta a primeira de suas falsidades sobre o homoousio.

11.  A seguinte é a afirmação de que o nome de homoousio significa que os dois têm em comum uma coisa anterior e diferente deles, que já existia antes, como substância ou ousia de uma matéria qualquer, a qual, comunicada aos dois e completamente transformada em um e outro, atesta que um e outro participam da mesma natureza preexistente e da mesma essência. Reprovam por este motivo a profissão de fé do homoousio: porque esta expressão não distingue o Filho do Pai e mostra o Pai como sendo posterior à matéria que é comum a Ele e ao Filho.

12.  Em terceiro lugar, também inventam outro motivo para rejeitarem o termo, pois, de acordo com o significado da palavra, julgam ter vindo o Filho da divisão da substância paterna, como se houvesse um corte, como uma coisa é dividida em duas partes. Dizem ser da mesma natureza porque a parte separada do todo tem a mesma natureza daquilo de que foi separada.

13.  Mas em Deus não pode haver divisão, e, se assim fosse, se tornaria imperfeito, já que sua substância, pelo corte de outra porção, perderia sua perfeição.

 

Capítulo 5.

14.  Julgam poder opor-se com razão à doutrina profética, como também à evangélica e apostólica, ao pregarem a natividade do Filho no tempo.

15.  Por afirmarem que dizemos erroneamente que o Filho sempre existiu, forçoso é que, excluindo que tenha existido sempre, confessem sua natividade a partir do tempo, pois, se houve tempo em que não foi, terá existido um tempo anterior a Ele; porque quem não é sempre, começou a ser no tempo.

16.  O que é livre do tempo não precisa de tempo porque existe sempre. Afirmam então rejeitar que o Filho tenha sido sempre, para que não se acredite que, por ter sempre existido, não tenha nascido; como se, pela afirmação de ter sido sempre, fosse declarado inascível.

 

Capítulo 6.

17.  Que ímpios e estultos temores e que irreligiosa solicitude por Deus! Aquilo que denunciam na significação da palavra homoousion e na afirmação de que o Filho sempre existiu, a Igreja abomina, rejeita, condena.

18.  Reconhece um só Deus, de quem tudo vem, e conhece também um só Senhor nosso, Jesus Cristo, por meio de quem tudo vem. Um de quem tudo procede, Um por meio de quem tudo foi feito; a origem de todas as coisas, que está em um só, e a criação de tudo, por meio de um só.

19.  Naquele que é Um, de quem tudo procede, reconhece o poder da inascibilidade; no que é Um, por meio de quem tudo foi feito, venera o poder, em nada diferente do Criador, pois em relação àquilo que é criado, é comum a autoridade daquele do qual tudo é criado e daquele pelo qual tudo é criado.

20.  Conhece (a Igreja), no Espírito, o Deus Espírito impassível e indivisível, pois aprendeu do Senhor que o Espírito não tem ossos nem carne (cf. Lc 24,39); não se creia, talvez, que possa ser afetado pelos defeitos das paixões corporais.

21.  Conhece o único Deus inascível; conhece também o único Unigênito Filho de Deus. Confessa o Pai eterno e sem origem, confessa a origem do Filho desde a eternidade, não a partir de um início, mas a partir do que não pode ter início. Ele não é por si mesmo, mas procede daquele que sempre existiu sem proceder de ninguém, nascido do Eterno, recebendo da paterna eternidade a natividade.

22.  Portanto nossa fé nada tem a ver com a opinião da herética maldade. Eis a profissão de nossa fé, embora ainda não tenha sido exposta a razão desta profissão.

23.  Contudo, para que não subsista suspeita alguma acerca do emprego desta palavra homoousion pelos Padres, nem a respeito daquilo que sempre foi professado, relembramos que se reconhece subsistir o Filho na substância em que foi gerado pelo Pai e que, da substância do Pai em que permanece, pela natividade do Filho nada foi tirado.

24.  O Filho não é dito homoousion do Pai, por causa dos citados vícios e motivos, pelos santos homens, fervorosos na doutrina de Deus, não fosse alguém julgar que se exclui, com a palavra ousia, o nascimento do Filho unigênito, ao dizer que é homoousion ao Pai.

 

Capítulo 7.

25.  Entendamos o motivo pelo qual se fez necessário empregar tais palavras com vistas à máxima segurança da fé, também contra os hereges que então se agitavam. Julgo que, para responder à perversidade dos hereges, devemos refutar todas as suas estultas e mortíferas instituições que contradizem os testemunhos evangélicos e apostólicos.

26.  Vejamos por que eles pensam poder provar cada uma de suas afirmações, que foram tiradas dos testemunhos dos livros sagrados, mas foram falseadas e, por seu sentido corrompido, somente podem agradar aos ignorantes, pois podem parecer verdadeiras conforme a perversidade dos intérpretes.

 

Capítulo 8.

27.  Celebrando somente a divindade de Deus Pai, esforçam-se por negar que o Filho seja Deus, porque está escrito: Ouve, Israel, o Senhor teu Deus é um só (Dt 6,4), porque, ao doutor da Lei, que o interrogava sobre o maior dos preceitos da Lei, disse o Senhor: Ouve, Israel, o Senhor teu Deus é um só (Mc 12,29) e porque Paulo prega: Pois há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens (1Tm 2,3).

28.  Depois, para provar ser somente Ele o sábio e para não deixar nenhuma sabedoria ao Filho, citam o Apóstolo, que diz: Aquele que é poderoso para vos confirmar segundo o meu evangelho e a pregação de Jesus Cristo, segundo a revelação do mistério escondido desde os séculos eternos, agora, porém, manifestado e, pelas Escrituras proféticas, por disposição do Deus eterno, dado a conhecer a todos os Gentios para levá-los à obediência da fé, a Deus, o único sábio, por meio de Jesus Cristo; a Ele seja dada a glória pelos séculos dos séculos (Rm 16,25-27).

29.  Dizem ainda que é o único inascível e único verdadeiro, porque Isaías disse: Bendigam-te, Deus verdadeiro (65,16), e o mesmo é afirmado nos Evangelhos pelo Senhor, que diz: Esta é a vida eterna, que te conheçam a ti, único e verdadeiro Deus, e a quem enviaste, Jesus Cristo (Jo 17,18).

30.  Dizem que é o único bom, de tal modo que não haja bondade no Filho, pois por Ele foi dito: Ninguém é bom, a não ser o único Deus (Mc 10,18). Dizem, ainda, que é o único poderoso, porque Paulo disse: A quem mostrará nos tempos estabelecidos o Bendito e único Poderoso, o Rei dos reis e Senhor dos senhores (1Tm 6,15).

31.  Em seguida só a Ele reconhecem como inconversível e imutável, pois, pelo Profeta, dissera: Eu sou o Senhor vosso Deus, e não mudo (Ml 3,6), e o apóstolo Tiago escrevera: Em quem não há mudança (Tg 1,17).

32.  A Ele reconhecem como justo Juiz, porque está escrito: Deus justo juiz, forte e paciente (Sl 7,12), a Ele, que de tudo cuida, porque o Senhor disse, ao falar de aves: E vosso Pai celeste as alimenta (Mt 6,26), e ainda: Não se compram dois pardais por um asse? E nenhum deles cai por terra sem o consentimento de vosso Pai. Mas também vossos cabelos estão todos contados (Mt 10,29).

33.  A Ele, que a tudo providencia, como a santa Suzana diz: Deus eterno, conhecedor das coisas ocultas, que sabes todas as coisas antes que aconteçam (Dn 13,42).

34.  A Ele reconhecem também como impossível de ser contido, segundo o que é dito: O céu é o meu trono, e a terra o escabelo de meus pés. Que casa me haveis de edificar, que lugar para meu repouso? Tudo isto foi a minha mão que fez, tudo isto me pertence (Is 66,1).

35.  Dele também afirmam que tudo contém, no dizer de Paulo: Porque nele vivemos e nos movemos e somos (At 17,28), e do Salmista: Para onde ir, longe do teu espírito? Para onde fugir longe de tua face? Se subo aos céus, lá estás, se mergulho no abismo, aí te encontro. Se tomo as asas da aurora para habitar nos limites do mar, mesmo lá é tua mão que me conduz, e tua destra me sustenta (Sl 139.7-10).

36.  A Ele também reconhecem como incorpóreo, porque foi dito: Deus é Espírito, e os que o adoram, em Espírito e verdade devem adorá-lo (Jo 4,24). Reconhecem-no com imortal e invisível, no testemunho de Paulo: Aquele que é o único a possuir a imortalidade, que habita numa luz inacessível, a quem nenhum homem viu nem pode ver (1Tm 6,16), e conforme o Evangelho: Ninguém jamais viu a Deus, a não ser o Filho Unigênito, que está no seio do Pai (Jo 1,18).

37.  Reconhecem-no também como único permanente e inascível, porque foi dito: Eu sou o que sou (Ex 3,14), e: Enviou-me a vós aquele que é, e porque disse Jeremias: Que és o Senhor, ó Senhor (Jr 1,6).

 

Capítulo 9.

38.  Quem não vê que estas citações estão cheias de fraude e de enganos? Embora estejam sutilmente confundidas e misturadas, atestam, no entanto, o artifício malicioso e a astúcia e inépcia da estultice.

39.  Entre outras falsidades, acrescentam que somente ao Pai reconhecem como inascível, como se alguém pudesse duvidar de que Aquele de quem foi gerado Aquele por quem tudo existe, exista sem ter recebido de ninguém aquilo que é. Ele, porque é dito Pai, se mostra como sendo a origem daquele a quem gerou, tendo um nome pelo qual se entende que não provém de outro e que indica de quem o que é gerado recebe a existência.

40.  Portanto, o que é próprio a Deus Pai, deixemo-lhe como próprio, confessando haver nele o inascível poder da eterna virtude.

41.  Julgo que ninguém tem dúvidas acerca do motivo pelo qual, na confissão de Deus Pai, eles mencionam algo como peculiar e próprio, de modo a não ser possível a outro ser participante do que lhe é exclusivo. Pois, quando dizem: único verdadeiro, único sábio, único invisível, único bom, único poderoso, único a possuir a imortalidade, por dizerem que tudo isto só a Ele pertence, separam o Filho da comunhão com os mesmos atributos, pois, segundo dizem, o que é próprio a um só não é partilhado por outro.

42.  Se tudo está somente no Pai e não também no Filho, afirmam que é forçoso que se acredite ser o Filho um Deus falso, ignorante, feito de matérias visíveis e corpóreas, malévolo, fraco e privado da imortalidade. Por tudo isso, já que o Pai é único, deve ser posto de parte.

 

Capítulo 10.

43.  Não julgamos que o que vamos dizer sobre a majestade perfeitíssima e a plena divindade do Filho unigênito de Deus possa levar alguém a considerar que estas palavras tenham por finalidade algum ultraje a Deus Pai, como se o que é dito sobre o Filho diminuísse algo da dignidade do Pai.

44.  Pelo contrário, a honra do Filho é a dignidade paterna e por ela é glorificado Aquele de quem nasce quem é digno de tal glória, pois o Filho nada tem que não lhe advenha do nascimento, e a admiração pela honra do que é gerado resulta em honra para o Genitor.

45.  Afaste-se toda a ideia de ultraje, pois o que se ensina haver na majestade do Filho terá por resultado ampliar o poder daquele que o gerou assim.

 

Capítulo 11.

46. Conhecidas as ideias apresentadas, com o objetivo de inferiorizar o Filho em relação ao Pai, convém ouvir o que sobre o mesmo Filho professam. A fim de responder a cada proposição e demonstrar ser irreligiosa sua doutrina, a partir das palavras divinas, devemos acrescentar ao que foi dito sobre o Pai o que é afirmado sobre o Filho, para que comparando entre si suas afirmações, mantenhamos a mesma ordem na solução de cada proposição.

47. Dizem que: “o Filho de Deus não foi gerado de nenhuma matéria subjacente, porque por Ele tudo foi criado, nem provém de Deus, porque de Deus nada pode ser tirado. Existe a partir do que não existia; é uma perfeita criatura de Deus. Embora não seja criatura como todas as outras, no entanto, é criatura, pois está escrito: O Senhor me criou para o início de seus caminhos (Pr 8,22). É criatura perfeita, mas não é semelhante às outras obras, como diz Paulo: Feito tanto superior aos anjos quanto mais excelente o nome que herdou excede o deles (Hb 1,4), e também: Assim, irmãos santos, participantes da vocação celeste, considerai atentamente a Jesus Cristo, o apóstolo e sumo sacerdote de nossa profissão de fé. É fiel a quem o fez (Hb 3,1).

48.  A fim de diminuir a força, o poder e a divindade do Filho, citam principalmente esta palavra: O Pai é maior do que eu (Jo 14,28). Mesmo assim concedem que não seja uma dentre todas as criaturas, porque está escrito: Tudo foi feito por Ele (Jo 1,3). Concluem então toda a impiedade de sua doutrina com estas palavras (exemplo de sua blasfêmia, que diz ser criatura o filho de Deus):

Capítulo12.

49. Conhecemos um só Deus, único incriado, único eterno, único sem princípio, único verdadeiro, único imortal, único verdadeiramente bom, único poderoso, que cria, ordena e dispõe todas as coisas, inalterável, imutável, justo e inteiramente bom.

50.  Deus da Lei e dos Profetas e do Novo Testamento. Este Deus gerou um Filho unigênito antes de todos os séculos, por meio do qual criou os séculos e todas as coisas, nascido, não em aparência, mas em verdade, obediente à sua vontade, imutável e inalterável, criatura perfeita de Deus, porém não como uma das criaturas, feito por Deus, porém não como as demais obras. O Filho não é, como Valentino pensou, uma prolação do Pai, nem é uma parte da única substância do Pai, como explicou Maniqueu, nem como interpreta Sabélio, que separa a união, que diz que o Filho é o mesmo que o Pai, nem, como quer Hieracas, é luz de luz, ou uma lâmpada dividida em duas partes. Aquele que existia antes não nasceu depois e foi recriado como Filho, como tu mesmo, beatíssimo Pai, no meio da Igreja e na assembleia contradisseste com frequência os que introduzem tais ensinamentos. Mas é, como dissemos, criado pela vontade do Pai antes dos tempos e dos séculos, recebe do Pai a vida e o ser, e o Pai o glorifica ao fazê-lo participar de seu ser. O Pai, ao dar-lhe em herança todas as coisas, não se despojou dos atributos incriados que possui, pois é fonte de todas as coisas.

 

Capítulo 13.

51. Por isso são três as Pessoas (hypostaseis): Pai, Filho e Espírito Santo. Certamente Deus é causa de todas as coisas, absolutamente único e sem começo. O Filho saiu do Pai, fora do tempo, criado e constituído antes dos séculos, não existia antes de nascer, mas nasceu antes de todas as coisas, fora do tempo. Recebe o ser, Ele só, do Pai só. Não é nem eterno, nem coeterno, nem incriado junto com o Pai, nem tem seu ser junto com o Pai, como alguns dizem a respeito de outro, introduzindo dois princípios não nascidos, senão, assim como Deus é a união e princípio de tudo, assim existe anteriormente a tudo. Por isso existe também antes do Filho, como aprendemos de tua pregação no meio da Igreja. Por isso tem de Deus a glória e a vida e tudo lhe foi entregue segundo isto: Deus é seu princípio. E Deus lhe é superior como seu Deus, pois existe antes dele. Se as palavras “dele” (Rm 11,36), “do seio(Sl, 109,3) e “saí do Pai e vim(Jo 16,28) se entendem como se fosse parte de sua única substância ou como uma prolação que se estende, o Pai, segundo eles, seria composto, divisível, mutável e corpóreo e segundo suas próprias palavras, o Deus incorpóreo suportaria as consequências de sua corporeidade”.

 

Capítulo 14.

52. É este o seu erro, é esta a doutrina mortífera. Para confirmar o seu sentido corrompido, usurpando o testemunho das palavras divinas, tecem mentiras sobre elas, graças à humana ignorância.

53. É preciso que ninguém duvide de que, para o conhecimento das coisas divinas, devem ser empregadas as doutrinas divinas.

54. Pois a humana fraqueza não obterá por si mesma a ciência das coisas celestes, e a inteligência das coisas corpóreas não poderá adquirir o conhecimento do que é invisível. Aquilo que foi criado em nós e é carnal e o que por Deus nos foi dado para vivermos nossa vida não poderá, com seu próprio juízo, discernir a natureza do Criador e de sua obra.

55. Nossas inteligências não comportam a ciência celeste, e nossa pequenez não pode conceber, de maneira alguma, o incompreensível poder.

56. Deve-se crer no que Deus diz de si mesmo e aceitar aquilo que nos concede conhecer. Pois, ou, como os gentios, devemos rejeitá-lo, se não são aprovados seus testemunhos, ou, se cremos que é Deus (como realmente é), não podemos entender outra coisa, a não ser o que afirmou a respeito de si mesmo.

57. Cessem, portanto, as opiniões particulares dos homens, e não se estendam para além das divinas disposições os juízos humanos.

58. Seguimos, contra as afirmações irreligiosas e ímpias sobre Deus, o próprio sentido das palavras divinas. Falaremos, valendo-nos da autoridade daquele sobre quem se procura saber, sem enganar e instruir falsamente a ignorância dos ouvintes.

59.  Não uniremos sem razão as palavras, excetuando as causas pelas quais foram enunciadas, visto que se deve apreender o sentido do que é dito a partir das causas pelas quais é dito e não se deve subordinar o sentido à palavra, mas a palavra ao sentido.

60.  Estudaremos tanto as palavras ditas como sua causa e seu sentido e tornaremos a tratar de cada uma segundo a ordem determinada.

 

O que você destaca no texto e colo ele serve para sua espiritualidade?