domingo, 31 de julho de 2022

208 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Quinto (Capítulos 11-22).

 

208
Hilário de Poitiers (315-368)
O Tratado da Santíssima Trindade
Livro Quinto (Capítulos 11-22)

 

Divisão do Tratado

O Tratado está dividido em 12 livros.

O livro I começa autobiografia. Refere-se às heresias e apresenta um plano geral do trabalho.

O livro II é um resumo da doutrina da Trindade.

O livro III trata do mistério da distinção e unidade do Pai e do Filho.

No livro IV o autor apresenta a carta de Ário a Alexandre de Alexandria e demonstra a divindade de Filho a partir de citações tiradas do Antigo Testamento.

O livro V também cita o Antigo Testamento para demonstrar a divindade do Filho, que não é um outro Deus ao lado do Pai.

 

Capítulo 11.

1.      Continuemos agora a trajetória de nossa pregação, com o que a Lei santa ensinou sobre Deus. O Anjo de Deus fala a Agar e o mesmo Anjo é Deus. Mas talvez não seja Deus verdadeiro, porque é Anjo de Deus.

2.      Este nome, com efeito, parece indicar uma natureza inferior, e, onde a designação é de gênero diverso, aí se julga não estar a verdade do mesmo gênero.

3.      No entanto, já o livro anterior mostrou a futilidade desta questão. Anjo deve dar a entender antes o ofício do que a natureza. E o Profeta me é testemunha ao dizer: Que faz dos espíritos seus anjos e, do fogo ardente, seus ministros (Sl 103,4).

4.      O fogo ardente são os seus ministros, e os espíritos são seus anjos. Demonstra-se assim, ou a natureza, ou a força dos enviados, que são chamados de anjos e de ministros.

5.      Aqui faz-se anjo o espírito, ali, fogo ardente, o ministro de Deus, e sua natureza recebe o ofício de enviado e de servo.

6.      Querendo então a Lei, ou melhor, Deus, pela Lei, dar a conhecer a pessoa de nome paterno, chamou de Anjo de Deus o Filho Deus, isto é, seu enviado. No enviado se atesta a indicação do ofício; porém a verdade da natureza se confirmou pelo nome, quando foi chamada de Deus.

7.      Aqui, porém, tratase da ordem da Economia, não da essência. Pois não pregamos outro Deus, a não ser Pai e Filho e, assim, igualamos natureza e nomes, de forma que, na verdade de Deus, se fundamente a natividade do Deus Unigênito, que procede do Deus Inascível.

8.      Os termos enviado e o que envia não indicam senão o Pai e o Filho; além disso, a verdade da natureza não é negada e, no Filho, não desaparece a propriedade da divindade que Ele possui por natureza, porque não há dúvida de que a natureza do Pai se comunica no nascimento do Filho, de modo que, procedendo do que é Um, tem consistência no que é Um o que, por ser Um, não pode separar-se do que é Um e, assim, são uma só coisa, porque o que é Um procede do que é Um.

 

Capitulo 12.

9.      Ó impaciente ardor da fé e silêncio que não contém a palavra desejada! Já no livro anterior ultrapassamos a medida determinada para a pregação, quando contradizíamos o ímpio dito dos hereges sobre o único Deus; ensinávamos Deus e Deus pregado por Moisés e passamos com piedosa, embora inconsiderada pressa, à confissão verdadeira e religiosa do único Deus.

10.  Agora também, demorando-nos em tratar de outra questão; não mantivemos a ordem estabelecida e, enquanto falávamos sobre Deus, verdadeiro Filho de Deus, no ardor do espírito fervoroso, precipitamo-nos em confessar o Deus verdadeiro no Pai e no Filho.

11.  A verdade de nossa fé estava reservada para seu tratado específico, mas, já que foi iniciada, será explicada e inteiramente terminada, para segurança do leitor e desespero do contraditor.

 

Capítulo 13.

12.  Não traz mudança alguma à natureza o nome do ofício. Aquele que é Anjo de Deus é Deus. De modo algum seria Deus verdadeiro, se não falasse do que é próprio de Deus nem o fizesse.

13.  Ismael cresceria como um grande povo, e a seu nome foi prometida a multiplicação de povos.

14.  Pergunto agora: é isto obra de Anjo? Se, ao contrário, é poder de Deus, por que negas a verdade da natureza divina Àquele a quem não tiras o poder desta verdadeira natureza?

15.  O poder da natureza garante nossa fé em sua verdadeira divindade e, ao realizar os mistérios da salvação do mundo, não pode acontecer que o que é verdadeiro Deus se mostre alguma vez como não sendo Deus.

 

Capítulo 14.

16.  Em primeiro lugar indago o que significa Deus verdadeiro e Deus não verdadeiro, pois não consigo entender, quando alguém me diz: é fogo, que não seja verdadeiro fogo, ou, é água, que não seja água verdadeira.

17.  Pergunto em que a verdadeira natureza difere da verdadeira natureza. Aquilo que é fogo não pode deixar de ser verdadeiro fogo, e a natureza que nele existe não pode deixar de ser verdadeira. Retira da água aquilo pelo que ela é água e assim poderás negar que seja verdadeira água. Mas se permanece água, é forçoso que seja verdadeira. Pode até desaparecer a natureza, se não continuar a existir, mas não pode deixar de ser verdadeira, enquanto houver natureza.

18.  Ou o Filho de Deus é verdadeiro Deus para que seja Deus, ou, se não é verdadeiro Deus, não pode também ser o que Deus é, porque, se não há a natureza, não lhe compete o nome da natureza; se, porém, existe nele o nome da natureza, não pode deixar de haver nele a verdade da natureza.

 

Capítulo 15.

19.  Talvez, ao chamar de Deus o Anjo de Deus tenha havido uma sorte de condescendência, empregando-se este nome por indulgência, e talvez seja apenas um simples modo de falar e não a verdade. Se, ao ser chamado Anjo de Deus, pouco ensinou sobre a natureza de Deus em si, no que se seguiu, vê que a manifestou em natureza inferior à dos Anjos.

20.  Pois a Abraão, o homem falou, mas Abraão adorou a Deus. Contudo, ó pestilento herege, Abraão confessou a Deus a quem tu negas ser Deus. Que bênçãos prometidas a Abraão tu esperas, ó ímpio? Pois ele não é pai para ti, como é pai dos povos, nem te tornas, renascido, membro da família de sua raça pelas bênçãos da fé. Não serás suscitado das pedras como filho para Abraão, mas és da nação das víboras, como inimigo de sua confissão. Não és Israel de Deus, não és sucessor de Abraão, não és justificado pela fé, porque não creste em Deus. Pois por esta mesma fé Abraão foi justificado e constituído pai dos povos.

21.  Por ela adorou a Deus, em quem acreditava. Na verdade, adorou a Deus, aquele bem-aventurado e fiel patriarca (Gn 18,14).

22.  Quanto a ti, aceita, como verdadeiro, o Deus para quem, como Ele próprio disse, a respeito de si mesmo, nenhuma palavra é impossível. Ou, por acaso, não é apenas para Deus que nenhuma palavra é impossível? Ou, pergunto, o que falta para ser verdadeiro Deus Àquele para quem é possível toda palavra?

 

Capítulo 16.

23.  Indago aqui quem é o Deus destruidor de Sodoma e Gomorra. Se o Senhor fez chover enxofre e fogo, vindos do Senhor (cf. Gn 19,24), não será o verdadeiro Senhor que faz chover, vindo do verdadeiro Senhor? Ou que outro a não ser o Senhor, vindo do Senhor? Que outro significado dar a esta palavra, senão o de pessoa, ao Senhor e Senhor?

24.  E lembra-te de que Aquele a quem conheces como único verdadeiro, a este mesmo declaraste justo juiz. E entende que o Senhor que faz chover da parte do Senhor, que não mata o justo com o ímpio, julgando toda a terra, não só é o Senhor, mas também é justo juiz, e faz chover enxofre e fogo, vindos do Senhor.

25.  A quem chamas único justo juiz? Quero saber. Pois o Senhor faz chover, vindo do Senhor. Abraão, de pai dos povos, porém não dos infiéis, disse: Longe de ti fazeres tal coisa: fazer morrer o justo com o pecador, de modo que o justo seja tratado como pecador! De modo algum, tu que julgas a terra, farás esta injustiça! (Gn 18,25).

26.  Por conseguinte é preciso que este Deus justo juiz também seja verdadeiro Deus. A ti, ó ímpio, apanhado em tua mentira, ainda não proclamo, segundo os Evangelhos, o Deus juiz.

27.  A mim a Lei já mostrou a Deus como juiz. Retira do Filho que seja juiz, para que suprimas ser Deus verdadeiro. Pois somente é o único Deus verdadeiro Aquele que declaraste único justo juiz e não podes negar ser Deus verdadeiro Aquele que ensinas ser justo juiz.

28.  Aquele que é juiz é o Senhor, poderoso em toda palavra, e o que prometeu as bênçãos eternas é o juiz dos pios e dos ímpios, é o Deus de Abraão, por ele adorado. Inventa ao menos alguma coisa com essa insolência ímpia e estulta de tua palavra, para provar que não é verdadeiro.

Capítulo 17.

29.  Os mistérios da celeste misericórdia não destroem a verdade da natureza, como também as imagens que se adaptam à visão da fé não enganam a fé dos santos.

30.  Os sacramentos da Lei prefiguram o mistério da Economia evangélica; aquilo que o patriarca vê e crê, o Apóstolo contempla e prega.

31.  Já que a Lei é a sombra das coisas futuras, a imagem da sombra expressa a verdade do corpo.

32.  Deus não só é visto e crido, mas também adorado no Homem, naquele que, na plenitude dos tempos, iria ser gerado como Homem, pois o que é visto assume a figura da verdade prefigurada.

33.  Mas então (sob a Lei) somente foi visto Deus no homem, não (ainda) nascido; mas depois, o que foi visto também nasceu.

34.  A aparição em forma humana nos ajuda a contemplar a realidade do que iria nascer. Lá, em vista de nossa fraqueza, é assumida por Deus a aparência de homem, para ser visto; agora, conforme a fraqueza de nossa natureza, nasce Aquele que fora apenas visto.

35.  A sombra recebe um corpo, a aparência adquire realidade, a visão tem existência. Não que Deus mude em si mesmo, quando, por nós, como Homem, é visto ou nasce, pelas propriedades como a da natividade e da aparição.

36.  Como nasceu, foi visto, como foi visto, nasceria. E por não ser ainda ocasião para nós de um confronto evangélico e profético, continuemos, por enquanto, pela Lei, a ordem instituída.

37.  Depois se provará pelos Evangelhos que o verdadeiro Filho de Deus nasceu como Homem, e foi visto antes, pelos Patriarcas, na forma de Homem. Agora ensinamos o Filho de Deus, Deus verdadeiro, pela Lei. Pois, por Abraão, foi visto como Homem, e é também adorado como Deus e declarado Juiz. Quando o Senhor faz chover, vindo do Senhor, a Lei fala para indicar o Pai e o Filho e não se deve julgar que o Patriarca ignorasse ser Deus verdadeiro Aquele a quem adorava como Deus.

 

Capítulo 18.

38.  A pérfida impiedade encontra não pequena dificuldade em compreender a verdadeira fé. A instrução da doutrina religiosa não penetra no acanhado entendimento da irreligiosidade. Daí vem que aquilo que Deus, nascendo homem, realizou, para mistério da salvação humana, a mente irreligiosa não entenda, porque não entende que a obra de sua salvação vem do poder de Deus.

39.  Ao contemplar o parto no nascimento, a debilidade da infância, a evolução da puerícia, a idade juvenil, os sofrimentos do corpo, a paixão e morte na cruz, em tudo isso não conseguem enxergar o Deus verdadeiro.

40.   Assumiu para fazê-las sua natureza estas coisas que não lhe eram próprias, sem perder a verdade da natureza.

41.  Feito homem, não deixou de ser Deus e começou a ser o que não era, sem, no entanto, deixar de ser o que era, pois a assunção da natureza fraca não existiu a não ser pela poderosa virtude da natureza que fez com que permanecesse o que era e pudesse começar a ser o que não era.

42.  Ó herética imprudência e estulta sabedoria do mundo, que não percebe ser o opróbrio de Cristo virtude de Deus e não entende ser a estultice da fé a sabedoria de Deus!

43.  Por isso, para ti Cristo não é Deus, porque o que era nasceu, porque o que é imutável cresceu pela idade, porque o impassível padece, porque o vivo morre, porque, morto, vive, porque tudo nele é contra a natureza!

44.  Pergunto-te o que significa tudo isto, senão que é onipotente, porque é Deus? E ainda não me sirvo de vós, ó veneráveis e sagrados Evangelhos, para fazer ver, com vossas palavras, que Cristo, mesmo em seus sofrimentos, é Deus.

45.  Porém, procedeis da Lei e é preciso que ela ensine que, pela assunção da fraqueza, Aquele que é Deus não deixa de ser Deus. Pois a Lei, pela força de sua revelação, dá testemunho do mistério da nossa fé.

 

Capítulo 19.

46.  Esteja agora comigo, contra o envenenado silvo da infidelidade, o espírito de tua fé, ó santo e bem-aventurado patriarca Jacó, e, prevalecendo na luta contra o homem, com mais força roga-lhe que te bendiga (Gn 32,26).

47.  Que é isto que pedes ao fraco, que esperas do que está sem forças? Rogas as bênçãos daquele a quem esmagas com teu braço mais forte.

48.  A ação de teu espírito não concorda com o gesto de teu corpo; o que tu sentes é diferente daquilo que fazes. Prendes, no gesto de tua luta, um homem fraco, mas este homem para ti é o Deus verdadeiro, não pelo nome, mas pela natureza.

49.  Não pedes para ser abençoado com bênçãos de quem é Deus por adoção, ó patriarca, mas com bênçãos do Deus verdadeiro. Com um homem lutaste, mas vês a Deus face a face. Não vês com os olhos de teu corpo, vês aquele que percebes com o olhar de tua fé. Em teu parecer, é fraco o homem, mas tua alma, por ter visto a Deus, é salva. Na luta és Jacó, depois de crer e pedir a bênção, és Israel.

50.  Submete-se a ti, segundo a carne, o homem, prefigurando o mistério da paixão na carne; na fraqueza da carne conheces a Deus, para alcançar o sacramento da bênção no Espírito.

51.  Nem a aparência impede que a fé permaneça, nem a fraqueza é obstáculo para que seja pedida a bênção; e não a dá o homem, a não ser que o homem seja Deus e que Deus seja o Deus verdadeiro, porque não pode deixar de ser Deus verdadeiro, aquele que é Deus, não só abençoando, mas mudando o teu nome.

 

Capítulo 20.

52.  A sombra da Lei ainda oculta os mistérios evangélicos e, êmula da verdade, prefigura a verdade da doutrina apostólica. Na visão do sonho, o bem-aventurado Jacó viu a Deus (cf. Gn 28,13). No sonho há a revelação do mistério, não a contemplação corporal. Pois, pela escada, se demonstrou a descida e a subida dos anjos ao céu. No alto da escada, apoiado nela, aparece Deus, e a interpretação da visão profetiza a revelação do sonho. Pelas palavras do Patriarca: casa de Deus e porta do céu, se indica ser este o lugar da visão. Depois de narrar muitas de suas ações, continua: Deus disse a Jacó: “Levanta-te! Sobe a Betel e fixa ali tua morada. Erguerás um altar a Deus, que te apareceu quando fugias da presença de teu irmão Esaú” (Gn 35,1).

53.  Se a fé evangélica passa por Deus Filho para chegar a Deus Pai e não se pode entender Deus a não ser por Deus, ensinanos por que não é Deus verdadeiro o que solicita a honra para o Deus que está apoiado na escada do céu. Se em ambos há diversidade de natureza, donde lhes vem terem um só e o mesmo nome de natureza?

54.  Deus é visto, Deus fala do Deus que foi visto. Deus não pode ser entendido senão por Deus, assim como Deus não é honrado a não ser por Deus, pois não se compreenderia dever ser honrado, a menos que Ele ensinasse dever ser honrado, e Deus não é conhecido, se Ele não for reconhecido como Deus.

55.  A Economia dos mistérios tem sua ordem. Por meio de Deus, aprendemos a honrar a Deus. A natureza tem um nome que é seu: não é outro nome, a não ser Deus. Na única natureza do Pai e do Filho há um só nome. Pergunto como o Deus Filho poderia degenerar de si mesmo, de forma a não ser verdadeiro.

 

Capítulo 21.

56.  Não se deve pensar sobre Deus usando os juízos humanos. Não pertence à nossa natureza, por suas próprias forças, levar-nos ao conhecimento do que é celeste. É preciso aprender de Deus o que sobre Deus é dado compreender, porque não se conhece o Autor, senão por Ele mesmo.

57.  Apresente-se uma elaborada instrução da doutrina mundana, apresente-se a inocência da vida; estas, na verdade, aproveitam à satisfação da consciência, contudo não dão o conhecimento de Deus. Moisés, adotado como filho pela rainha, e erudito em todas as doutrinas dos egípcios (cf. At 7,22), quando, pelo sentimento natural, vingou com a morte do egípcio a injúria aos hebreus (cf. Ex 2,12), ainda não conhecia o Deus das bênçãos paternas. Por medo do propalado assassínio, abandonando o Egito, foi para a terra de Madiã como pastor de ovelhas e, ao ver a sarça arder sem que o fogo a consumisse, ouviu a Deus, perguntou por seu nome e conheceu sua natureza (cf. Ex 3,1-16).

58.  Porque o que é de Deus não pode ser conhecido a não ser por Deus, não se deve falar sobre Deus de modo diferente do que Ele próprio falou, sobre si mesmo, para nosso conhecimento.

 

Capítulo 22.

59.  O Anjo de Deus foi aquele que apareceu no fogo da sarça. Da sarça, Deus fala no fogo. Tens, no Anjo, uma manifestação exterior, porque no Anjo está o ministério, não a natureza. No nome da natureza, tens a Deus, porque o Anjo de Deus é Deus. Mas talvez não seja verdadeiro. Acaso não é verdadeiro o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, e o Deus de Jacó?

60.  Ao falar deles na sarça, o Anjo é o Deus eterno. Para que não aproveites a ocasião para imaginar ser o nome adotivo, fala a Moisés aquele Deus que é. Pois assim está escrito: Disse o Senhor a Moisés: “Eu sou o que sou. E disse: “Assim dirás aos filhos de Israel: O que é me enviou a vós” (Ex 3,14).

61.  A palavra começou pelo Anjo de Deus, para que se entendesse o mistério da salvação humana no Filho; é o mesmo Deus de Abraão, o Deus de Isaac, e o Deus de Jacó, de modo que o nome de sua natureza lhe seja dado; em seguida, o Deus que é envia Moisés a Israel, para que se entendesse ser verdadeiramente Deus.

 

O que você destaca no texto e colo ele serve para

sua espiritualidade?

quarta-feira, 27 de julho de 2022

207 Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Quinto (Capítulos 1 - 10)

 

207
Hilário de Poitiers (315-368)
O Tratado da Santíssima Trindade
Livro Quinto (Capítulos 1 - 10)

Divisão do Tratado
O Tratado está dividido em 12 livros.
O livro I começa autobiografia. Refere-se às heresias e apresenta um plano geral do trabalho.
O livro II é um resumo da doutrina da Trindade.
O livro III trata do mistério da distinção e unidade do Pai e do Filho.
No livro IV o autor apresenta a carta de Ário a Alexandre de Alexandria e demonstra a divindade de Filho a partir de citações tiradas do Antigo Testamento.
O livro V também cita o Antigo Testamento para demonstrar a divindade do Filho, que não é um outro Deus ao lado do Pai.

 LIVRO QUINTO

Capítulo 1.

1.      Respondendo, nos livros anteriores, às insensatas afirmações dos hereges, não ignorávamos que, levados pela necessidade de contradizê-las, nossa resposta, tanto quanto nosso silêncio, poderiam abalar os ouvintes.

2.      Quando a afirmação profana do infiel diz ser Deus um só, a fé autêntica não pode, piedosamente, negar que haja um só Deus. A consciência também não pode falar sobre Ele sem perigo, pois corre o risco de antes confirmar do que negar a impiedade.

3.      A opinião da mente humana certamente julgará inepto e sem razão pensar que negar o irreligioso possa ser, ao mesmo tempo, confessarse irreligioso, já que a piedade em confessar condena a impiedade em negar, e não concorda com a razão, que se afirme com proveito o que, com proveito, se destrói.

4.      A mente humana, no entanto, não tendo a prudência necessária para compreender a sabedoria divina, sendo estulta, se comparada com a prudência celeste, só percebe na medida de sua fragilidade e aprova segundo a incapacidade de sua natureza. Que ela se torne estulta para poder apreciar a Deus e, reconhecendo a sua própria indigência e consentindo na sabedoria de Deus, não seja prudente segundo a sabedoria humana, mas aceite o que é aprovado segundo Deus, passando da reconhecida estultice do mundo para a sabedoria de Deus.

5.      A herética sutileza da estulta sabedoria, servindo-se da ocasião de enganar, confessa um só Deus, baseando-se na autoridade da Lei e dos Evangelhos, onde se diz: Ouve, Israel, o Senhor teu Deus é um só (Dt 6,4; Mc 12,29). Não ignora quão grande é o perigo, tanto da resposta quanto do silêncio, por esperar de ambos a oportunidade para a impiedade, já que, se o silêncio conivente confirmasse a santidade da afirmação, usurpada infielmente, de que Deus é um só, o Filho de Deus não seria Deus, pois Deus é e permanece um; porém se se contradissesse esta sua ímpia declaração, a resposta, sem a afirmação, não conservaria a verdade da fé evangélica, já que, conforme a profissão de nossa fé, Deus é um; assim recairíamos na impiedade da outra heresia ao declarar que o Deus uno é Pai e Filho.

6.      Desta forma, a sabedoria do mundo, que para Deus é estultice, enganaria sob a capa de branda e pestífera simplicidade, pois isto serviria de base para sua profissão de fé, que, impiamente, ou aceitaríamos, ou negaríamos.

7.      Por isso, há perigo de obterem de nós a confissão de que o Filho de Deus não seja Deus, porque Deus é um só, ou exigirem a necessária heresia, se parecêssemos pregar, ao confessar Deus Pai e Deus Filho, um único Deus, conforme a ímpia opinião de Sabélio.

8.      E assim, neste seu modo de pregar um só Deus, ou se excluiria o outro, ou não seria, por causa do outro, um só, ou apenas seriam um pelo nome, porque a unidade desconheceria um outro e um outro não permitiria a unicidade e não seria possível que dois fossem um.

 

Capítulo 2.

9.      Mas nós, tendo alcançado a sabedoria de Deus que, para o mundo, é loucura, começamos em ordem nossa resposta, tendo em vista a confissão salutar e sincera da fé do Senhor e a fim de manifestar a fraudulência da doutrina viperina.

10.  Para conseguir uma abertura para a demonstração da verdade, sem nos enredarmos no perigo de uma ímpia declaração, conduzimo-nos com moderação entre ambos os extremos sem negar o Deus único e proclamando a Deus e Deus, pela autoridade daquele pelo qual foi anunciado o Deus uno.

11.  Ensinamos que Deus é Um, porém não é uma só pessoa. Não o dividimos numa diversidade de deuses, mas também não professamos a distinção só pelos nomes.

12.  Demonstramos que existe Deus e Deus, embora tenhamos adiado o estudo mais completo da unidade para mais tarde.

13.  Os Evangelhos atestam muito bem que o único Deus foi pregado retamente por Moisés. Por outro lado, Moisés, que prega o Deus único, dá a garantia de que nos Evangelhos se ensina fielmente haver Deus e Deus.

14.  Assim não se contradiz a autoridade, pois a resposta decorrente da autoridade é que não é lícito negar que o Filho seja Deus, pelo fato de, para Israel, Deus ser um só, já que quem confessa ser Deus o Filho de Deus é o mesmo autor da prescrição de se pregar um só Deus.

 

Capítulo 3.

15.  Segue, portanto, a ordem das questões a mesma ordem dos temas propostos, já que é esta a sentença de ímpia sedução apresentada: Conhecemos um único Deus verdadeiro, aqui também, neste segundo livro, a pergunta consiste em saber se o Filho de Deus é verdadeiro Deus. Pois, sem dúvida, a sutileza do engenho herético se adaptou a esta ordem, dizendo primeiro: único Deus, em seguida, confessando único verdadeiro Deus, para, com isto, afastar o filho de Deus da natureza e da verdade de Deus, já que, se a verdadeira natureza existe em um só, esta natureza não poderia pertencer senão a um só.

16.  Portanto, não há nenhum lugar para a ambigüidade, e estou certo de que, pregando Moisés um único Deus, deve-se entender ter ele indicado, a respeito do Filho, que era Deus.

17.  Tornemos a estudar as declarações das mesmas autoridades e indaguemos se teria Moisés ensinado que deveríamos entender que é Deus verdadeiro Aquele a quem indicou como Deus.

18.  Ninguém duvida de que a natureza e as propriedades demonstram a verdade das coisas, como, por exemplo, se diz que o verdadeiro trigo é aquele disposto em espiga, cercado de praganas e folículos cruzados, moído como farinha, cozido como pão, tomado como alimento, dando-se na natureza de pão e de dom.

19.  Portanto, já que o poder da natureza demonstra a verdade, vejamos se é Deus verdadeiro Aquele a quem Moisés indicou como Deus.

20.  Depois falaremos do Deus uno, que é o Deus verdadeiro, e mencionaremos o tema anunciado: a confirmação de que Deus uno e verdadeiro existe no Pai e no Filho que subsistem pessoalmente, para que não se interponha uma perigosa suspeita e a expectativa ansiosa não traga cansaço.

 

Capítulo 4.

21.  Depois de termos recebido, por meio dela, o conhecimento de Deus, a criação do mundo indica ser Deus o Filho de Deus. Pergunto, então, por que ainda se nega ser Ele verdadeiro Deus. Não há dúvida de que pelo Filho tudo existe. Segundo o Apóstolo: Tudo por Ele, e nele (Cl 1,16).

22.  Se tudo é por Ele, e tudo veio do nada, e nada existe a não ser por Ele, quero saber onde falta a verdade de Deus naquele em quem não falta nem a natureza nem o poder de Deus. Pois usou o poder de sua natureza para que existissem os seres que não existiam e fossem feitos aqueles que lhe agradassem. Porque Deus viu que tudo era bom (cf. Gn 1,25).

 

Capítulo 5.

23.  A Lei não emprega outra indicação a não ser a das pessoas, ao dizer: E disse Deus: “Faça-se o firmamento” (Gn 1,6), e ao acrescentar: E Deus fez o firmamento (Gn 1,7). No restante, nem distinguiu a virtude, nem separou a natureza, nem mudou o nome, quanto dava, apenas, o conhecimento de quem dizia para indicar quem fazia.

24.  A designação do que fala não o priva da verdade da natureza e do poder, pelo contrário, sublinha com mais propriedade a sua verdade.

25.  Dar eficácia à palavra pertence à natureza, pela qual o que faz pode realizar aquilo que diz. Mas por que não será verdadeiro o que faz, se é verdadeiro o que diz, quando, à verdade da palavra, se segue a realidade da obra? É Deus o que diz, é Deus o que faz. Se na palavra (naquilo que diz) há a verdade, pergunto por que negá-la na obra (naquilo que faz), a não ser, talvez, que seja verdadeiro ao dizer e não seja verdadeiro ao fazer.

26.  Temos então em Deus, Filho de Deus, a verdade da natureza. É Deus, é Criador, é filho de Deus, pode tudo. É pouco que possa o que quer, porque o poder pertence sempre à vontade, mas, além disso, também pode fazer aquilo que lhe é dito, pois pertence ao perfeito poder que a natureza do que faz possa aquilo mesmo que indica a palavra do que fala.

27.  Se algo pode ser dito, o mesmo também pode ser realizado, e a operação que se identifica com as palavras possui a natureza da verdade. Na verdade, o Filho de Deus não é um Deus falso, nem um Deus adotivo, nem é Deus somente pelo nome, mas é verdadeiro Deus.

28.  Não há necessidade de apresentar algum argumento diferente daquele do adversário que deseja provar que não seja verdadeiro Deus; para mim, é bastante que tenha a natureza e o nome de Deus, porque é Deus, por quem tudo foi feito.

29.  Isto a criação do mundo me revelou sobre Ele. Deus se iguala ao nome de Deus, a verdade se identifica com a obra da verdade. Como se dá a conhecer o Deus poderoso pela palavra, assim também se dá a conhecer o Deus poderoso nos seus feitos.

30.  Depois disto, pergunto, na confissão do Pai e do Filho, com que autoridade se nega a verdade da natureza de quem possui em plenitude o poder do nome e o nome do poder?

 

Capítulo 6.

31.  É preciso que o leitor se lembre de que, ao calar-me agora sobre isto, não o faço por me esquecer ou ter receio do que os hereges costumam objetar, apresentando as palavras: O Pai é maior do que Eu (Jo 14,28) e outras semelhantes, que, ou são ignoradas ou são compreendidas de tal forma que por elas se entende não estar no Filho a natureza do verdadeiro Deus.

32.  Convém à ordem de nossas respostas começar pelas proposições contrárias, para que, calcando as pegadas da ímpia crença com os passos da pia pregação e, passando por este caminho profano e irreligioso, apaguem-se as marcas deixadas pela mentirosa doutrina.

33.  Adiadas, portanto, e reservadas para o fim as mensagens evangélicas e apostólicas, a luta contra os ímpios se concentra sobre a Lei e os Profetas, para que seja repelida a invenção da falaz perversidade pelos mesmos ditos com que tentam enganar.

34.  Não há meio de se entender a verdade, a não ser que se descubra ser falso o que se objeta contra a verdade. E isto, para a absoluta desonra dos mentirosos, se as próprias mentiras servirem à verdade.

35.  É parecer geral do senso comum não se unir o falso ao verdadeiro, nem poder ficar juntos, por mútuo assentimento, estes gêneros de coisas, porque, pela diferença dos gêneros, havendo naturezas contrárias, nunca as coisas discordes se unem, nem concordam as que são diversas, nem é comum a ambas o que lhes é estranho.

 

Capítulo 7.

36.  Se há um Deus verdadeiro e um falso, pergunto: como se entenderá a palavra: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança (Gn 1,26)? As palavras enunciam o sentido, o sentido é o movimento da razão, a verdade incita o movimento da razão.

37.  Pelas palavras seguimos o sentido, pelo sentido entendemos a razão, pela razão apreendemos a verdade. Pergunto em que não será verdadeiro, à semelhança daquele que diz para si mesmo, Aquele a quem foi dito: Façamos, o homem à nossa imagem e semelhança, pois sem dúvida este dito brota do afeto e da intenção do que diz.

38.  Aquele que diz: Façamos, refere-se ao que não discute com Ele o que irá fazer, por não ser estranho, nem fraco, mas poderoso para fazê-lo. Daí a palavra. Sem dúvida o que falava entendia que seria compreendido aquilo que disse.

 

Capítulo 8.

39.  Para que a verdade da natureza e da operação seja manifestada mais plenamente, Aquele que, pelas palavras, expressava seu pensamento, submeteu, segundo a razão natural, o sentido à verdade, dizendo: à nossa imagem e semelhança.

40.  Onde está aqui o falso Deus, a quem o verdadeiro Deus diz: à nossa imagem e semelhança? Nossa não significa unicidade de pessoa, não diz diversidade, não diz diferença. Pois o homem foi feito à comum imagem, de acordo com a verdade da declaração.

41.  A união do falso e do verdadeiro não existe. Deus, que fala, fala a Deus: o homem é criado à imagem do Pai e do Filho. O nome não discorda, a natureza não é diferente.

42.  É uma só a forma da imagem segundo a qual foi o homem criado. E no meio disto, onde desaparece a verdade, se permanece entre ambos a comunhão na obra, assim como a verdade da comum imagem?

43.  Para mim, ainda não chegou o tempo de resolver esta questão; mais tarde demonstraremos segundo que imagem de Deus Pai e de Deus Filho foi criado o homem. Por enquanto veremos se não é verdadeiro Deus aquele a quem o verdadeiro Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança.

44.  Distingue, se puderes, nesta comunhão de imagem o verdadeiro e o falso e, com herético furor, divide o que é indivisível. Pois são Um e o homem, criado à sua imagem e semelhança, é um.

 

Capítulo 9.

45.  Prossigamos em ordem a leitura, para que a verdade, sempre coerente consigo mesma, não seja mudada pelos tropeços da falsidade. E Deus fez o homem, à imagem de Deus o fez (Gn 1,27). A imagem é comum: Deus fez o homem à imagem de Deus. A quem nega ser o Filho de Deus verdadeiro Deus, pergunto à imagem de que Deus entende ter sido o homem feito por Deus.

46.  Contudo, lembre-se sempre: tudo pelo Filho, não aconteça que, por herética compreensão, se atribua a operação só a Deus Pai. Se, portanto, à imagem de Deus Pai, por meio de Deus Filho, o homem foi criado, será também criado à imagem do Filho, porque ninguém recusa ao Filho as palavras: à nossa imagem e semelhança.

47.  A palavra divina manteve nas palavras a verdade da divindade que as obras confirmavam nas ações, para que o homem, criado à imagem de Deus, figurasse Deus e significasse Deus, sem privar Deus de sua verdade, já que, na comunhão da imagem, é Deus verdadeiro Aquele que, na realização da obra, é reconhecido como Deus Filho.

 

Capítulo 10.

48.  Ó extrema insensatez da mente desesperada! Ó estulta temeridade da cega impiedade! Se ouves Deus e Deus, se ouves nossa imagem, por que subordinas o verdadeiro ao não verdadeiro? Por que misturas o natural e o falso? Por que, sob o nome de religião, destróis a religião? Por que, ao afirmar um só Deus, e um Deus verdadeiro, tentas fazer com que o Deus verdadeiro não seja senão um (uma só pessoa)?

49.  Ainda não faço calar teus discursos insensatos com as palavras evangélicas e apostólicas; nestas o Pai e o Filho, não pela pessoa, mas por natureza, são Um e verdadeiro Deus; mas, enquanto isto, a Lei, por si só, te dá a morte.

50.  Acaso diz ela que existe um Deus verdadeiro e um Deus não verdadeiro? Acaso, em relação a ambos, emprega um nome diferente do nome de natureza? Disse: Deus e Deus, aquela Lei que declarou que há um só Deus. Mas por que digo somente disse?

51.  Proclamou Deus verdadeiro e Deus verdadeiro, pela verdade da imagem. Serviu-se, primeiro, para designá-lo, do nome da natureza. Depois se referiu à verdade da natureza segundo sua essência. Pois, como o que foi feito foi criado segundo a imagem de ambos, não pode consistir a partir do não verdadeiro, porque ambos são o Deus verdadeiro.

 

O que você destaca no texto e colo ele serve para sua espiritualidade?