sábado, 22 de outubro de 2022

217 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Sétimo (Capítulos 7 - 13)

 


217

Hilário de Poitiers (315-368)
O Tratado da Santíssima Trindade
Livro Sétimo (Capítulos 7 - 13)


 


Divisão do Tratado

O Tratado está dividido em 12 livros.

O livro I começa autobiografia. Refere-se às heresias e apresenta um plano geral do trabalho.

O livro II é um resumo da doutrina da Trindade.

O livro III trata do mistério da distinção e unidade do Pai e do Filho.

No livro IV o autor apresenta a carta de Ário a Alexandre de Alexandria e demonstra a divindade de Filho a partir de citações tiradas do Antigo Testamento.

O livro V também cita o Antigo Testamento para demonstrar a divindade do Filho, que não é um outro Deus ao lado do Pai.

O livro VI refere-se novamente à carta de Ário e argumenta a partir do Novo Testamento.

O livro VII demonstra, também a partir do testemunho da Escritura, que o Pai e o Filho são um só Deus porque têm a mesma natureza.

 

Capítulo 7.

1.     Pela vitória de nossa fé, Ébion (que é o mesmo que Fotino) vence e é vencido, enquanto censura Sabélio por negar ser Homem o Filho de Deus, enquanto é rebatido pelos ariomanitas, porque, no Homem, não vê o Filho de Deus.

2.     Contra Sabélio, se defende com os Evangelhos que falam do filho de Maria; os Evangelhos não estão a favor de Ário, porque não falam só do filho de Maria.

3.     Opondo-se a Sabélio, que nega o Filho, Fotino aceita um homem como Filho. Como desconhece a existência do Filho antes dos séculos, Ário nega, em oposição a ele, que o Filho proceda simplesmente dos homens.

4.     Vençam como quiserem, porque vencendo-se mutuamente, são mutuamente vencidos.

5.     Enquanto estes que agora existem (os arianos) são refutados pelo que diz respeito à natureza de Deus, Sabélio é repelido pelo mistério do Filho, e Fotino é censurado por ignorar ou negar o Filho de Deus, nascido antes dos séculos.

6.     Em meio a tudo isso, a fé da Igreja, pela doutrina fundada nos Evangelhos e nos Apóstolos, mantém, contra Sabélio, a confissão do Filho, contra Ário, a natureza de Deus e contra Fotino, o Criador dos séculos; e isto com tanto maior verdade, quanto estas coisas não são negadas por eles em cada caso.

7.     A natureza de Deus é pregada por Sabélio, por causa das obras, mas ele não conhece o Filho que opera.

8.     Os outros falam do Filho, mas não confessam haver nele a verdadeira natureza de Deus.

9.     Fotino, por sua vez, aceita o homem, mas neste homem aceito ignora a natividade de Deus antes dos séculos. Com isto, por suas defesas e condenações, mostram a verdade de nossa fé, que defende ou condena o que está ou não de acordo com esta mesma fé.

 

Capítulo 8.

10.  Se alguma coisa foi por mim demonstrada, não o foi pelo desejo de atingir a totalidade, mas por motivo de cautela.

11. Em primeiro lugar, para que se soubesse que tudo o que vem dos hereges é incerto e que eles só conhecem idéias errôneas. Quando não concordam entre eles, é em nosso favor.

12. Em seguida, quis opor-me às blasfêmias de suas declarações, afirmando o Deus Pai e o Filho de Deus que é Deus, para que ninguém pense que, professando a Deus Pai e Deus Filho, tenha eu caído no erro de professar dois deuses ou, ao contrário, que professe um Deus solitário.

13. Ao opor-me às blasfêmias daqueles que aí estão (isto é, os arianos) confesso a Deus Pai e Deus Filho, que têm o mesmo nome e natureza na única divindade, pois não se pode reconhecer uma só pessoa ao confessar o Pai e o Filho, e a demonstração de sua natureza indiferenciada não significa diversidade de deuses.

14. Agora, porque no livro anterior já foi dada a resposta, segundo o Evangelho, aos que negam que o Filho de Deus procede de Deus pela natividade, devemos demonstrar que é verdadeiramente Filho de Deus por natureza e é verdadeiro Deus, para que nossa fé não seja corrompida pela confissão de um Deus isolado ou pela confissão de um outro Deus.

15. A fé não prega um Deus único, solitário, nem um Deus não solitário que não seja único.

 

Capítulo 9.

16. Conhecemos Nosso Senhor Jesus Cristo como Deus por estes modos: nome, natividade, natureza, poder, testemunho.

17. Quanto ao nome, penso não haver ambigüidade, pois lemos: No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus (Jo 1,1). Por que a má-fé insiste em dizer que Ele não é tal como é chamado? Acaso o nome não é indicação da natureza? E porque toda contradição tem uma causa, pergunto aqui pela causa de se negar a Deus, pois a designação é simples e não há suspeita de ser um nome alheio acrescentado.

18. O Verbo que se fez carne não é outro, senão Deus. Não resta nenhuma suspeita de que seja um nome atribuído ou adotado, de modo a se pensar que Ele tenha outro nome por natureza, senão o nome de Deus.

 

Capítulo 10.

19. Considera as outras denominações, tanto dadas como assumidas. Foi dito a Moisés: Eu te constituí deus para o Faraó (Ex 7,1). Não estará indicada a causa da denominação, quando se diz para o Faraó? Acaso lhe foi acrescentada a natureza de Deus, ou não foi, antes, para encher de terror os egípcios, quando a serpente de Moisés devorou as serpentes mágicas, voltando logo a ser vara, quando tirou as moscas que havia feito aparecer com grandíssimo poder, quando fez parar o granizo que fizera chover, quando nas suas obras os magos confessam estar o dedo de Deus (cf. Ex 7,12; 8,31; 9,33; 10,19; 8,19)?

20. Moisés foi dado ao Faraó como deus, ao ser temido, ao orar, ao punir, ao curar. Mas uma coisa é ser tido por deus, outra, ser Deus.

21. Foi dito deus para o Faraó; não lhe pertencem nem a natureza nem o nome, para que seja Deus.

22. Lembro-me também de outra designação, quando se diz: Eu disse: sois deuses (Sl 81,6), mas aí trata-se de nome de condescendência.

23. E onde se diz: eu disse, é antes a palavra do que fala, e não o próprio nome do ser; porque o nome do ser indica seu sentido, enquanto a atribuição voluntária do nome vem de outro.

24. Quando o autor é indicado com o mesmo nome atribuído ao outro, podemos ver que se trata somente de uma maneira de falar e não do nome que corresponde à natureza do que é nomeado.

 

Capítulo 11.

25. Aqui, no entanto, o Verbo é Deus; o ser existente, no Verbo, o ser do Verbo é enunciado pelo nome.

26. A designação de Verbo como Filho de Deus lhe pertence pelo mistério da natividade, assim como também o nome de Sabedoria e Poder.

27. Estas realidades, que existem no Deus Filho pela subsistência da verdadeira natividade, não faltam a Deus Pai como próprias, embora, vindo dele, nasçam para ser Deus.

28. Com freqüência já dissemos não haver divisão no mistério do Filho, mas nascimento. Não houve separação imperfeita, mas geração perfeita, porque a natividade não traz detrimento ao que gera, embora traga proveito ao que nasce.

29. Por isso, tais cognomes são bem adequados ao Deus Unigênito, porque o constituem como pessoa subsistente pelo fato de seu nascimento; contudo, estão no Pai em virtude da natureza imutável.

30. O Deus Unigênito é o Verbo, mas o Pai inascível absolutamente não existe sem o Verbo, não que o Filho seja emissão de voz, mas, sim, Deus vindo de Deus, subsistente pela verdade do nascimento, como é próprio do Pai por ter a mesma natureza do Pai.

31. É designado pela palavra Verbo para indicar que vem do Pai como Filho próprio do Pai por ter a mesma natureza do Pai, inseparável dele.

32. Cristo é a Sabedoria e a Força de Deus, mas isto não deve ser entendido como se fosse o poder interno ou o impulso eficaz da mente.

33. Sua natureza, que possui, em virtude do nascimento, uma substância real, é indicada com os nomes destas faculdades internas.

34. Aquele que tem por nascimento uma subsistência própria não pode ser considerado como algo interior a outro.

35. Para que não se pense que o Filho Unigênito, nascido de Deus Pai, para ser uma pessoa divina subsistente, seja alheio à natureza do Pai, foi mostrado como subsistente por meio das propriedades que não faltam naquele de quem recebeu a existência.

36. Portanto, aquele que é Deus não é outra coisa senão Deus. Quando ouço: E o Verbo era Deus, não apenas ouço ser o Verbo chamado Deus, mas com preendo estar demonstrado ser realmente Deus.

37. Moisés foi cognominado deus e também outros foram cognominados deuses, porque esse nome lhes foi acrescentado. Aqui, porém, quando se diz era Deus, o que é significado pertence à substância, porque ser não é nome do acidente, mas da realidade subsistente, do ser permanente, e propriedade que corresponde à natureza.

 

Capítulo 12.

38. E vejamos se concorda com esta pregação do Evangelho a confissão do Apóstolo Tomé, quando diz: Meu Senhor e meu Deus (Jo 20,28).

39. É seu Deus aquele a quem confessa ser Deus. Ele certamente não ignorava ter sido dito pelo Senhor: Ouve, Israel, o Senhor teu Deus é um só (Dt 6,4). Como a fé do Apóstolo não se lembraria do principal mandamento, ao confessar Cristo Deus, se a vida está na confissão do único Deus?

40. Mas o Apóstolo, compreendendo todo o mistério da fé, pela força da ressurreição, tendo ouvido com freqüência: Eu e o Pai somos Um; e: Tudo o que é de meu Pai, é meu; e: Eu estou no Pai, e o Pai está em mim (Jo 10,50; 16,15; 14,11), já sem perigo para a fé, confessou o nome da natureza porque, pela confissão do Filho de Deus como Deus, sua fé não desapareceria pela confissão de outro Deus, visto que só se crê no Filho de Deus por causa da verdade da natureza paterna.

41. Nem mesmo pela ímpia confissão de um segundo Deus a fé numa só natureza seria abalada, porque a perfeita natividade não produziu a natureza de um outro Deus.

42. Por conseguinte, entendendo a verdade do mistério evangélico, Tomé confessou ser Ele o seu Deus e o seu Senhor.

43. Aqui não se trata de nome de honra, mas de confissão da natureza. Pelos próprios fatos e pelo seu poder, acreditou ser Ele Deus.

44. O Senhor ensinou que esta venerável profissão não era apenas uma honra, mas profissão de fé, ao dizer: Porque viste, creste; bem-aventurados aqueles que não viram e creram (Jo 20,29).

45. Porque Tomé viu, creu. Mas em que ele creu? – perguntas. Em que outra coisa creu senão naquilo que confessou: Meu Senhor e meu Deus? Pois só a natureza de Deus poderia, por si mesma, ter ressuscitado dos mortos para a vida.

46. A fé em que acreditou afirmou que é Deus. E seria possível pensar que o nome de Deus não corresponde à natureza, quando a confissão do nome se segue à fé na natureza?

47. Certamente, este Filho fiel, que não desejava fazer sua vontade, mas a daquele que o enviara, que não procurava a sua honra, mas a daquele de quem viera, recusaria a honra deste nome, para não negar o Deus Uno que pregara.

48. Mas, confirmando o mistério da fé apostólica e aceitando para si o nome da natureza paterna, declarou serem bem-aventurados aqueles que, mesmo sem tê-lo visto ressuscitado dos mortos, iriam crer ser Ele Deus, por acreditarem na ressurreição.

 

Capítulo 13.

49. O nome da natureza está, portanto, sempre presente na profissão de nossa fé; pois o nome que designa cada coisa indica também o seu gênero e já não são duas coisas, mas uma coisa do mesmo gênero.

50. Sendo assim, o Filho de Deus é Deus, e isto é indicado pelo nome. Não se nomeiam, com um só nome, dois deuses, porque Deus é o nome único de uma só e indistinta natureza.

51. Se o Pai é Deus e o Filho é Deus, em ambos há o nome próprio da natureza divina.

52. Ambos são Um porque o Filho, subsistindo pelo nascimento que corresponde a sua natureza, conserva pelo nome a unidade da natureza.

53. A natividade do Filho não obriga a fé dos crentes a confessar dois deuses, porque o Pai e o Filho, sendo uma só natureza, são também designados por um só nome. Portanto, pela natividade, o nome pertence ao Filho de Deus.

54. Este é para nós o segundo grau da demonstração: que seja Deus pela natividade. Embora, para provar o sentido do nome, ainda falte citar a autoridade apostólica, continuemos a tratar por enquanto da palavra evangélica.

 

O que você destaca no texto?

Como ele serve para sua espiritualidade?

domingo, 9 de outubro de 2022

216 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Sétimo (Capítulos 1 - 6)

 

216
Hilário de Poitiers (315-368)
O Tratado da Santíssima Trindade
Livro Sétimo (Capítulos 1 - )

Divisão do Tratado
O Tratado está dividido em 12 livros.
O livro I começa autobiografia. Refere-se às heresias e apresenta um plano geral do trabalho.
O livro II é um resumo da doutrina da Trindade.
O livro III trata do mistério da distinção e unidade do Pai e do Filho.
No livro IV o autor apresenta a carta de Ário a Alexandre de Alexandria e demonstra a divindade de Filho a partir de citações tiradas do Antigo Testamento.
O livro V também cita o Antigo Testamento para demonstrar a divindade do Filho, que não é um outro Deus ao lado do Pai.
O livro VI refere-se novamente à carta de Ário e argumenta a partir do Novo Testamento.

LIVRO SÉTIMO

Capítulo 1.

1.     Este sétimo livro, que escrevemos contra a insensata temeridade da nova heresia, é posterior, pela ordem, aos anteriores, mas, para a perfeita compreensão do mistério da fé, é o primeiro e mais importante.

2.     Não ignoramos quão árduo e difícil seja o caminho da doutrina evangélica, pelo qual pretendemos subir. Embora o temor de nossa bem conhecida fraqueza nos incite a voltar atrás, estimulados pelo fervor da fé, abalados pela loucura dos hereges, e perturbados pelo perigo que ameaça os ignorantes, não podemos deixar de dizer o que não ousamos falar, sem saber o que seria melhor para a verdade desamparada, se o silêncio ou a defesa.

3.     A sutileza herética, com incríveis artifícios de um pensamento corrupto, dá muitas voltas, primeiro, para fingir piedade, depois, para abalar com suas palavras a certeza dos ouvintes mais simples, igualando-se à prudência do mundo e, finalmente, para subverter a compreensão da verdade a pretexto de dar-lhe razão.

4.     Sua profissão de fé a respeito de Um só Deus é falsa piedade. Ao confessar o Filho de Deus, engana os ouvintes pelo uso do nome; dizendo não ter existido o Filho antes de nascer, satisfaz a sabedoria do mundo; confessando o Deus imutável e incorpóreo, exclui a natividade de Deus vindo de Deus; valendo-se de um malicioso argumento, usa, contra nós, as nossas doutrinas e luta contra a Igreja, utilizando-se da fé da Igreja.

5.     Expõe-nos, assim, a gravíssimos perigos, quer optemos pela resposta, quer optemos pelo silêncio, visto que, por aquilo que não se nega, afirma-se o que é negado.

 

Capítulo 2.

6.     Lembramos que, nos livros anteriores, advertimos os leitores de que, ao estudar a blasfêmia herética, devíamos ter em mente que os hereges se esforçam unicamente porimpor a crença de que Nosso Senhor Jesus Cristo nem é Filho de Deus nem é Deus, concedendo apenas que estes nomes lhe tenham sido dados por adoção.

7.     Negam ao Filho a natureza de Deus e afirmam que, sendo Deus imutável e incorpóreo – o que é verdade – não há Filho nascido de Deus. Somente Deus Pai é professado por eles como Deus Uno, para que Cristo não possa ser Deus, conforme professa a nossa fé. Para eles, a natureza incorpórea não admite a idéia de nascimento, e a fé no Deus Uno exclui a confissão do Deus de Deus.

8.     Já nos livros anteriores, provando pela Lei e os Profetas ser mentirosa e inútil sua pregação, sustentamos, em nossa resposta, que a afirmação de Deus que procede de Deus e a confissão de um só Deus verdadeiro não levam a afirmar a unicidade de pessoa nem a admitir, por outro lado, a fé em outro Deus, pois, em nossa profissão de fé, nem Deus é solitário, nem há dois Deuses.

9.     Assim, sem negar nem confessar que Deus seja Uno, fica preservada a integridade da fé, porquanto a unidade se refere a ambos, mas um e outro não são o mesmo.

10. Quisemos em primeiro lugar entregar aos ouvintes este indissolúvel mistério da perfeita fé, haurido das doutrinas evangélicas e apostólicas: que o Filho de Deus, por sua verdadeira natividade, é um ser subsistente e que o Filho, nascido de Deus, não provém de outro princípio, nem procede do nada.

11. Disto, de acordo com o que foi dito no livro anterior, não se pode duvidar, já que, excluído o nome de adotivo, é verdadeiro Filho, pela verdade da natividade.

12. Com base nos Evangelhos, declaramos que o Filho verdadeiro é verdadeiro Deus, porque não seria verdadeiro Filho, se não fosse também verdadeiro Deus, e não pode ser verdadeiro Deus, se não for também verdadeiro Filho.

 

Capítulo 3.

13. Nada é mais oneroso para a natureza humana do que a consciência do perigo, pois aquilo que é ignorado, ou surge de modo repentino, demonstra, certamente, que a segurança é enganadora, mas não leva a ter medo do futuro.

14. Para quem é consciente do que pode acontecer, a própria ansiedade já é sofrimento doloroso. Não faço sair o navio do porto desconhecendo o perigo do naufrágio, não caminho por bosques sabendo estarem eles infestados de ladrões, não atravesso as areias da Líbia sem saber que em toda a parte há escorpiões, cobras e basiliscos.

15. Nada escapa à minha preocupação, nada está fora da minha consciência. Sob a vigilância de todos os hereges à espreita de cada palavra saída de minha boca, todo o caminho de meu discurso é cortado por desfiladeiros ou está cheio de armadilhas e laços escondidos.

16. De que seja árduo e difícil o caminho, pouco me queixo, pois não subo pelos meus próprios degraus, mas pelos dos Apóstolos. Porém, estou sempre em perigo, temendo perder-me nos desfiladeiros, cair nas covas ou enredar-me numa armadilha.

17. Se começo a pregar o Deus Uno, conforme a Lei, os Profetas e os Apóstolos, aparece Sabélio, devorando-me como alimento delicioso, com detestável mordida, por causa de minhas palavras.

18. Ao negar, contra Sabélio, o Deus único, confessando o Deus Filho, verdadeiro Deus, espera-me nova heresia, que me censura por pregar dois deuses.

19. Quando digo que o Filho de Deus é também Filho de Maria, Ébion, ou seja, Fotino, se apresenta, buscando confirmação para sua mentira, na profissão da verdade.

20. Sobre os outros, prefiro calar-me, pois não se ignora estarem fora da Igreja. Hoje, porém, embora tenha sido já condenado e rechaçado, freqüentemente o mal ainda se acha no interior da Igreja.

21. Com impiedade, a Galácia nutriu muitos para a profissão ímpia de um só Deus.

22. Alexandria difundiu por quase todo o orbe da terra a doutrina dos dois deuses, que ela nega com falsidade.

23. Panônia defende, de modo pestífero, ter Jesus Cristo nascido de Maria.

24. E a Igreja, em meio a todos estes erros, corre o risco de não manter a verdade, enquanto mantém a verdade.

25. Não podemos pregar piedosamente um só Deus, se dissermos que está só, já que não haverá lugar para o Deus Filho, se acreditarmos em um Deus solitário.

26. Ao contrário, pregando ser o Filho de Deus verdadeiro Deus, como de fato o é, arriscamo-nos a não manter a fé em um só Deus.

27. Há o mesmo perigo em negar o Deus Uno que em confessá-lo solitário.

28. A estas questões o mundo não percebe como estultas, pois parece que não se pode pensar em um não solitário que seja um, nem entender que o que é Um não seja não solitário.

 

Capítulo 4.

29. Como espero, a Igreja também lança a luz de sua doutrina contra a imprudência do século, para que esta, mesmo não aceitando o mistério da fé, entenda contudo ser pregada por nós, contra os hereges, a verdade deste mistério.

30. Pois grande é a força da verdade que, embora possa ser entendida por si mesma, refulge quando a combatem, de modo que, permanecendo imóvel em sua natureza, adquira firmeza ao ser diariamente atacada.

31. É próprio da Igreja vencer ao ser ferida, ser entendida quando é acusada, triunfar ao ser desamparada, pois deseja ter a todos, junto e dentro de si, sem expulsar ninguém de seu tranqüilíssimo regaço, nem perder os que se tornam indignos de tão grande Mãe.

32. Sabe que os hereges que se afastam, ou são por ela afastados, perdem a ocasião de obter a salvação que vem por ela mas têm, ao mesmo tempo, assegurada a convicção de que a felicidade só vem por meio dela.

33. Isto se torna mais do que evidente, pelo próprio empenho dos hereges. Pois, sendo a Igreja instituída pelo Senhor e confirmada pelos Apóstolos, uma entre todas as que o insensato erro dela afastou por diversas formas de impiedade, não se pode negar que a separação aconteceu por causa do vício de má compreensão, tendo havido dissídio da fé, pois se adapta o que se lê às próprias idéias em lugar de submeter a opinião própria ao que se lê.

34. Enquanto os partidos se combatem mutuamente, deve-se reconhecer a Igreja, não apenas pelas suas doutrinas, mas também pelas dos adversários, visto que, estando todas contra uma só, justamente por ser uma só e una, refuta e repele o ímpio erro de todas.

35. Todos os hereges se levantam contra a Igreja, mas, enquanto todos se vencem mutuamente, não vencem para si mesmos. A vitória deles é o triunfo da Igreja sobre todos; lutando cada heresia contra outra, a fé de Igreja condena a todas, pois nada existe de comum entre os hereges que, enquanto lutam entre si, afirmam nossa fé.

 

Capítulo 5.

36. Sabélio prega um só Deus, negando a natividade do Filho, mas, pelo poder da natureza que operava no Homem, não duvida de que seja Deus. Ignorando, porém, o mistério do Filho, pela admiração por suas obras perdeu a fé na verdadeira geração, e ao ouvir: Quem me vê, vê também o Pai (Jo 14,9), apressa-se em afirmar impiamente a unicidade, no Pai e no Filho, de uma só natureza indivisível e em nada diferente, sem entender que, quando se fala de nascimento, se demonstra a unidade de natureza.

37. Porque no Filho é visto o Pai, fica confirmada a divindade, sem que se negue a natividade.

38. Conhecer um é conhecer o outro porque não é diferente a natureza de um e do outro. Como não existe diferença, pode-se considerar indiferentemente o que é próprio da natureza. Não se pode duvidar de que Aquele que existia na forma de Deus mostrasse em si a imagem da forma de Deus.

39. O furor insensato da perversa opinião que nega o Filho apóia-se também neste dito do Senhor: Eu e o Pai somos Um (Jo 10,30), aproveitando-se da declaração de haver a unidade de natureza, em tudo idêntica, para afirmar impiamente a unicidade de pessoa.

40. Interpretar esta frase como referida a um único poder não faz justiça ao seu sentido. Pois Eu e o Pai somos Um não indica um solitário, visto que a conjunção e, que indica o Pai, não admite que se entenda um só, e somos não se refere a um singular.

41. A expressão somos um não exclui a natividade, mas não distingue a natureza, pois um não se diz da diversidade, nem somos, de um só.

 

Capítulo 6.

42. A insensatez dos hereges atuais (Arianos) vai de encontro à deles. Afirmam, contra Sabélio, ter lido: O Pai é maior do que eu (Jo 14,28) e, sem entender nada do mistério da natividade nem do mistério de um Deus que se esvazia de si, nem da carne assumida, sustentam que a natureza do Filho é inferior porque Ele proclama que o Pai é maior.

43. Combatem Sabélio, afirmando que o Filho existe e é menor do que o Pai, porque pede para ser reconduzido à glória anterior, porque tem medo de morrer e porque morreu.

44. Sabélio, contrariamente, defende a natureza divina, pelas ações. Como esta nova heresia, para não crer que o Filho seja Deus, não negar o Único Deus, Sabélio, afirmando o Deus Uno, não admite absolutamente um Filho.

45. Um (Ário) valoriza as obras do Filho, o outro (Sabélio) retruca dizendo que Deus está presente nas obras. Um afirma a unicidade, o outro a nega. Sabélio se defende dizendo: “As suas obras não se realizaram a não ser pela natureza de Deus. Perdoar os pecados, curar os enfermos, fazer andar os coxos, dar a vista aos cegos, restituir a vida aos mortos pertence somente a Deus. Nenhuma outra natureza, diferente da que está cônscia de si, poderia dizer: Eu e o Pai somos Um (Jo 10,30). Por que me forçar a crer em uma substância diferente? Por que me atraís para a crença em outro Deus? Os atos que são próprios de Deus, só o Deus uno os realizou”.

46. Clamarão contra estas coisas os que pregam um Filho diferente de Deus Pai, com lábios não menos viperinos dizendo: “Não reconheces o mistério da salvação. Deve-se crer no Filho, por quem foram feitos os séculos, por quem foi formado o homem. Foi Ele que, por meio de anjos, deu a Lei, nasceu de Maria, foi enviado pelo Pai, foi crucificado, morto e sepultado e ressurgiu dos mortos, está à direita do Pai e é o juiz dos vivos e dos mortos. Nele iremos renascer, a Ele se deve confessar, dele é o reino a ser merecido”.

47. Ambos, sendo hostis à Igreja, ajudam a Igreja. Sabélio, enquanto prega ser Deus por natureza, afirma a natureza divina de quem age. Os outros confessam o Filho de Deus a partir do mistério da fé.

 

O que você destaca no texto?

Como ele serve para sua espiritualidade?