terça-feira, 4 de outubro de 2022

215 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Sexto (Capítulos 44 - 52).

 


215

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Sexto (Capítulos 44 - 52)

 


Divisão do Tratado

O Tratado está dividido em 12 livros.

O livro I começa autobiografia. Refere-se às heresias e apresenta um plano geral do trabalho.

O livro II é um resumo da doutrina da Trindade.

O livro III trata do mistério da distinção e unidade do Pai e do Filho.

No livro IV o autor apresenta a carta de Ário a Alexandre de Alexandria e demonstra a divindade de Filho a partir de citações tiradas do Antigo Testamento.

O livro V também cita o Antigo Testamento para demonstrar a divindade do Filho, que não é um outro Deus ao lado do Pai.

O livro VI refere-se novamente à carta de Ário e argumenta a partir do Novo Testamento.

 

Capítulo 44.

1.        Nada diferente pregou aquele que, de perseguidor, se tornou Apóstolo e vaso de eleição. Que palavra sua não é uma confissão do Filho? Que epístola não começa pelo mistério desta verdade? Em que nome por ele dito não está contida a indicação desta natureza?

2.        Quando diz: Fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho (Rm 5,10), Deus enviou seu Filho na semelhança da carne de pecado (Rm 8,3), Fiel é Deus, por quem fostes chamados à comunhão com seu Filho (1Cor 1,9), que lugar é deixado aqui para a fraude dos hereges? É seu Filho, não é adoção, não é criatura.

3.        O nome diz a natureza, a propriedade enuncia a verdade, a confissão atesta a fé. Não entendo o que se possa acrescentar à natureza do Filho.

4.        Pois, porque é seu Filho, crê-se ser Ele o seu Pai; não falou de modo pouco claro e sem fundamento aquele que é vaso de eleição, nem deixou o erro de uma doutrina ambígua o Doutor das gentes, o Apóstolo de Cristo.

5.        Sabe quais são os filhos de adoção e os que merecem ser assim chamados pelo mérito de sua fé. Pois diz: Todos quantos são movidos pelo Espírito de Deus, estes são filhos de Deus. Pois não recebestes o espírito de servidão para recair no temor, mas recebestes o Espírito de adoção, no qual clamamos: Abba, Pai (Rm 8,14-15).

6.        Este é o nome de nossa fé, pelo sacramento da regeneração. Nossa profissão nos concede a adoção. As obras que realizamos segundo o Espírito de Deus nos dão o nome de filhos de Deus, e nossa exclamação Abba, Pai ultrapassa aquilo que é próprio de nossa natureza porque a função da palavra vai além do que nos é próprio e ser chamado de filhos não é a mesma coisa que ser filhos.

 

Capítulo 45.

7.        Vamos estudar, positivamente, qual seja a fé do Apóstolo sobre o Filho de Deus. Nos discursos que pronunciou diante de toda a Igreja, para sua doutrina, nunca confessou o Pai sem o Filho; contudo, para mostrar, enquanto a palavra humana pode expressar, a verdade do nome, disse: Que diremos, pois, à vista dessas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós? Ele, que não poupou o próprio Filho, mas o entregou por nós? (Rm 8,31-32).

8.        Como ainda se falará de adoção onde há o nome da natureza? Querendo o Apóstolo mostrar o amor de Deus por nós, para que se conhecesse a magnificência da dileção de Deus por uma comparação, ensinou que Deus não havia poupado nem seu próprio Filho, entregando-o, não como adotado, pelos que iria adotar, nem, como criatura, pelos que foram criados, mas dando o seu em lugar do estranho, o próprio em lugar dos que receberiam o nome de filhos.

9.        Investiga a força das palavras, para poderes entender a magnitude da caridade. Examina com atenção o que significa próprio, não ignores a verdade. Pois aqui o Apóstolo diz: próprio Filho, quando em relação a muitos iria dizer diversas vezes seu ou dele. E embora, em muitos códices, pela fraca compreensão dos tradutores, neste lugar, em vez de próprio Filho, se encontre seu Filho, em grego, língua falada pelo Apóstolo, diz-se próprio, em vez de seu.

10.    Para o modo comum de pensar não há muita diferença entre próprio e seu, e o Apóstolo, em outros escritos, empregou a expressão seu Filho, que em grego é tòn eautoû uiòn; neste lugar, porém, aqui diz que não perdoou a seu próprio Filho (os ge toû ídíou Uiou oùk egeisato).

11.    Estas palavras demonstram que Ele é o Deus Unigênito pela verdade da natureza, de modo que, tendo demonstrado antes que muitos eram filhos pelo Espírito de adoção, agora demonstrou ser o Unigênito o Deus Filho por natureza.

 

Capítulo 46.

12.    Este não é um erro humano, nem é fruto da ignorância negar o Filho de Deus, porque não é possível ignorar o que se nega.

13.    O Filho de Deus é chamado de criatura vinda do nada. Isto nem o Pai declarou, nem o Filho atestou, nem o Apóstolo pregou, e no entanto ousaram dizê-lo; isto não é apenas ignorar a Cristo, mas odiá-lo.

14.    Como o Pai diz a respeito de seu Filho: Este é (Mt 3,17), o Filho diz de si mesmo: É este mesmo que fala contigo (Jo 9,37), Pedro confessa: Tu és (Mt 16,16), João afirma: Este é verdadeiro (1Jo 5,21) e Paulo não deixa de pregar que é próprio, não entendo que se negue, a não ser por ódio, quando o erro da imperícia não é escusa do crime.

15.    É isto que diz, claramente, pela vinda de seus profetas e núncios, aquele mesmo que depois irá falar como anticristo, inquietando a salutar profissão de fé com novas investidas, a fim de, primeiro, arrancar de nossa consciência a ideia de Filho segundo a natureza em que cremos, e excluir, em seguida, por ser adotivo, qualquer outro nome.

16.    Pois para aqueles para quem Cristo é criatura, forçoso é que, junto com eles o próprio Cristo seja o anticristo; porque a criatura não tem a natureza de Filho, e Ele mente, dizendo ser o Filho de Deus. Por isso, segundo aqueles que negam o Filho de Deus, deve-se acreditar que Cristo é o anticristo.

 

Capítulo 47.

17.    Que esperanças, ó inútil furor, aguardas tu? E por que confiança na salvação te esforças em provar com lábios blasfemos ser Cristo criatura e não Filho? Seria vantagem para ti conhecer pelos Evangelhos e manter o mistério desta fé. Pois o Senhor, que tudo pode, quis, no entanto, que cada um dos que lhe pediam um efeito de seu poder o experimentasse pelo mérito da confissão. Não que a confissão do pedinte acrescente a sua virtude, a Ele que é a Virtude de Deus, mas é prêmio da fé merecer tal coisa.

18.    Quando, à Marta, que pede por Lázaro, Ele pergunta se crê que não morrerão aqueles que nele crêem, ela, com fé consciente, diz: Sim, Senhor, eu creio que tu és o Cristo, Filho de Deus, que vieste a este mundo (Jo 11,17).

19.    Esta confissão é a própria eternidade, esta fé não morre. Marta, pedindo a vida de seu irmão, ao ser interrogada se assim acreditava, acreditou. Agora pergunto: quem nega isto, de quem, ou para que vida espera, se somente há vida, se assim se crê? Pois é grande este mistério da fé, e a sua perfeita confissão é a bem-aventurança.

 

Capítulo 48.

20.    O Senhor concedera a visão ao cego de nascença, e o Senhor da natureza desfizera o dano natural. E porque este cego assim nascera para a glória de Deus, para que, em Cristo, se pudesse entender a obra de Deus, não se esperava dele a confissão de fé; mas, porque ignorava o autor do grande dom da visão recuperada, mereceu depois conhecer a fé.

21.    Pois a expulsão da cegueira não conferia a vida eterna. Por este motivo, o Senhor, depois de ter sido ele curado e expulso da sinagoga, o interroga, dizendo: Tu crês no Filho de Deus? (Jo 9,35). Que não julgasse um dano estar privado da sinagoga aquele que, pela confissão da fé, readquiria a imortalidade.

22.    E, quando, ainda inseguro, respondeu: Quem é, Senhor, para que nele eu creia?, não querendo que aquele a quem, depois da recuperação dos olhos, seria concedida tão grande inteligência da fé, permanecesse na ignorância, assim diz o Senhor: Tu o viste, é Ele mesmo o que fala contigo.

23.    Acaso o Senhor pede a este, como aos outros que pediam curas, a confissão de fé para merecerem saúde? Claro que não, pois falou ao cego quando já via, somente para que respondesse: Creio, Senhor (Jo 9,38), porque a fé da resposta não serviria para curar a cegueira, mas para dar a vida.

24.    Estudemos com mais empenho a força deste dito. O Senhor interroga: Tu crês no filho de Deus? Se uma confissão qualquer de fé em Cristo fosse bastante, teria sido dito, Tu crês em Cristo? Mas, como para quase todos os heréticos este nome era só uma palavra usada, para confessarem a Cristo, negando o Filho, o que Cristo pede é próprio à fé, isto é, que se creia no Filho de Deus.

25.    Mas para que serve crer no Filho de Deus, quando se crê na criatura e é pedida a fé em Cristo, não criatura de Deus, mas Filho?

 

Capítulo 49.

26.    Será que os demônios desconheciam o sentido próprio deste nome? É digno de hereges serem convencidos, não já pelas doutrinas dos Apóstolos, mas pela boca dos demônios. Pois estes gritam, e gritam muitas vezes: Que há entre mim e ti, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? (Lc 8,28).

27.    A verdade atraía a confissão feita de má vontade, o sofrimento em obedecer atesta o poder da natureza. Pela força são vencidos, quando abandonam corpos por muito tempo possuídos; prestam honra quando confessam a natureza de Deus, e atestam que Cristo é Deus, pelas obras e pelo nome. Entre estas vozes dos demônios a confessarem, donde tiras, ó herege, o nome de criatura e a benevolência da adoção?

 

Capítulo 50.

28.    Quem seja Cristo, aprende ao menos pelos que o desconhecem, para que tua impiedade seja censurada pela confissão que os ignorantes são forçados a fazer. Pois os Judeus, se não conheciam o Cristo encarnado, conheciam, no entanto, ser Filho de Deus Aquele que deveria aparecer como Cristo.

29.    Como falsas testemunhas não apresentassem nenhuma verdade contra Ele, o Sumo Sacerdote o interroga: Tu és o Cristo, o Filho do Bendito? (Mc 14,61). Ignoravam o mistério, mas não a natureza. E não perguntam se Cristo é filho de Deus, mas se este é o Cristo Filho de Deus. Erra-se quanto ao Homem, não quanto a ser Filho de Deus. Pois não há dúvida de que Cristo seja Filho de Deus e por isso, quando se pergunta se é este, não se nega que o Cristo seja Filho de Deus.

30.    E indago, por qual fé tu negas aquilo que não é negado nem mesmo pelos que o desconhecem? A perfeita ciência sobre Cristo é reconhecer ser ele Filho de Deus, que existe antes dos séculos, e é também Filho da Virgem. Os que não sabem que nasceu de Maria não desconhecem ser Filho de Deus. E vê, ao negar o Filho de Deus, a que companhia da judaica impiedade te misturaste. Pois indicam a causa de sua condenação quando dizem: E de acordo com a Lei deve morrer, porque se diz Filho de Deus (Jo 14,7).

31.    E não é também o que a tua palavra ímpia censura: que se diga Filho, aquele a quem tu garantes ser criatura? Ele, dizendo-se Filho de Deus, é por eles julgado digno de morte; e tu, que negas o Filho de Deus, que julgamento mereces? Pois a afirmação sobre Ele desagrada a ti. Pergunto se ainda manténs opinião diversa da deles, dos quais não diverges pela vontade, pois negas com a mesma impiedade que seja Filho de Deus.

32.    A culpa deles é menor, pois ignoram. Não sabem que o Cristo nasceu de Maria, mas não duvidam de que o Cristo seja Filho de Deus. Tu, que não podes desconhecer que o Cristo nasceu de Maria, pregas que Cristo não é Filho de Deus. Porque não sabem, ainda podem ter assegurada a salvação, se acreditarem.

33.    Para ti, todo caminho para a salvação está fechado, já que negas o que não podes ignorar.

34.    Não ignoras ser Filho de Deus, pois chegas a aceitar o nome de Filho adotivo para dizer com falsidade que é criatura e que, como as demais, é chamado Filho.

35.    Se podes pensar em negar-lhe a natureza, negarias, se te fosse possível, também o nome. E porque isto não te é permitido, não dás ao nome o seu verdadeiro significado, para que não seja verdadeiro Filho de Deus, ao ser chamado de Filho.

 

Capítulo 51.

36.    A confissão daqueles a quem foi devolvida a tranqüilidade, quando o vento estava desencadeado e o mar se agitava, pela ordem de uma palavra, poderia dar-te ocasião de confessá-lo, também, como verdadeiro Filho de Deus, repetindo a palavra deles: Verdadeiramente é Filho de Deus (Mt 14,35).

37.    Mas o mau espírito te arrasta ao naufrágio, te rouba a vida, e domina os movimentos de tua mente, como a procela que irrompe no mar tempestuoso.

 

Capítulo 52.

38.    Se não te parece digna de crédito a fé dos navegantes, porque provém dos Apóstolos, para mim, embora cause menos admiração, tem contudo maior autoridade. Aceita a fé no Filho proclamada até pelos gentios, escuta entre os malvados guardas da cruz, o indômito soldado da coorte romana, movido pela fé. Pois o centurião fala, à vista de tantos prodígios: Verdadeiramente este homem era Filho de Deus (Mt 27,54).

39.    Deram testemunho disto, depois que Jesus entregou o espírito, o véu do Templo rasgado, os mortos ressuscitados, o terremoto, as pedras rachadas, os sepulcros abertos e a confissão de um homem provindo da infidelidade dos gentios.

40.    Reconhece nas obras o poder da natureza divina e proclama, com o nome, a verdade da mesma natureza. A verdade se impõe com tamanha evidência e é tão grande a força da fé que a vontade é vencida pela necessidade da verdade, e nem mesmo o que o tinha crucificado nega que Cristo, Senhor da glória eterna, seja verdadeiramente Filho de Deus.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário