Divisão do Tratado
O Tratado está dividido em 12 livros.
O
livro I começa autobiografia. Refere-se às heresias e apresenta um plano geral
do trabalho.
O
livro II é um resumo da doutrina da Trindade.
O
livro III trata do mistério da distinção e unidade do Pai e do Filho.
No
livro IV o autor apresenta a carta de Ário a Alexandre de Alexandria e
demonstra a divindade de Filho a partir de citações tiradas do Antigo
Testamento.
O
livro V também cita o Antigo Testamento para demonstrar a divindade do Filho,
que não é um outro Deus ao lado do Pai.
O
livro VI refere-se novamente à carta de Ário e argumenta a partir do Novo
Testamento.
Capítulo 44.
1.
Nada diferente pregou
aquele que, de perseguidor, se tornou Apóstolo e vaso de eleição. Que palavra
sua não é uma confissão do Filho? Que epístola não começa pelo mistério desta
verdade? Em que nome por ele dito não está contida a indicação desta natureza?
2.
Quando diz: Fomos
reconciliados com Deus pela morte de seu Filho (Rm 5,10), Deus enviou
seu Filho na semelhança da carne de pecado (Rm 8,3), Fiel é Deus, por
quem fostes chamados à comunhão com seu Filho (1Cor 1,9), que lugar é deixado
aqui para a fraude dos hereges? É seu Filho, não é adoção, não é criatura.
3.
O nome diz a natureza, a
propriedade enuncia a verdade, a confissão atesta a fé. Não entendo o que se
possa acrescentar à natureza do Filho.
4.
Pois, porque é seu Filho,
crê-se ser Ele o seu Pai; não falou de modo pouco claro e sem fundamento aquele
que é vaso de eleição, nem deixou o erro de uma doutrina ambígua o Doutor das gentes,
o Apóstolo de Cristo.
5.
Sabe quais são os filhos de
adoção e os que merecem ser assim chamados pelo mérito de sua fé. Pois diz: Todos
quantos são movidos pelo Espírito de Deus, estes são filhos de Deus. Pois não
recebestes o espírito de servidão para recair no temor, mas recebestes o
Espírito de adoção, no qual clamamos: Abba, Pai (Rm 8,14-15).
6.
Este é o nome de nossa fé,
pelo sacramento da regeneração. Nossa profissão nos concede a adoção. As obras
que realizamos segundo o Espírito de Deus nos dão o nome de filhos de Deus, e
nossa exclamação Abba, Pai ultrapassa aquilo que é próprio de nossa natureza
porque a função da palavra vai além do que nos é próprio e ser chamado de filhos
não é a mesma coisa que ser filhos.
Capítulo 45.
7.
Vamos estudar, positivamente,
qual seja a fé do Apóstolo sobre o Filho de Deus. Nos discursos que pronunciou
diante de toda a Igreja, para sua doutrina, nunca confessou o Pai sem o Filho;
contudo, para mostrar, enquanto a palavra humana pode expressar, a verdade do
nome, disse: Que diremos, pois, à vista dessas coisas? Se Deus é por nós, quem
será contra nós? Ele, que não poupou o próprio Filho, mas o entregou por nós? (Rm
8,31-32).
8.
Como ainda se falará de
adoção onde há o nome da natureza? Querendo o Apóstolo mostrar o amor de Deus
por nós, para que se conhecesse a magnificência da dileção de Deus por uma
comparação, ensinou que Deus não havia poupado nem seu próprio Filho,
entregando-o, não como adotado, pelos que iria adotar, nem, como criatura,
pelos que foram criados, mas dando o seu em lugar do estranho, o
próprio em lugar dos que receberiam o nome de filhos.
9.
Investiga a força das
palavras, para poderes entender a magnitude da caridade. Examina com atenção o
que significa próprio, não ignores a verdade. Pois aqui o Apóstolo diz: próprio
Filho, quando em relação a muitos iria dizer diversas vezes seu ou dele.
E embora, em muitos códices, pela fraca compreensão dos tradutores, neste
lugar, em vez de próprio Filho, se encontre seu Filho, em grego,
língua falada pelo Apóstolo, diz-se próprio, em vez de seu.
10. Para o modo comum de pensar não há muita diferença entre próprio
e seu, e o Apóstolo, em outros escritos, empregou a expressão seu
Filho, que em grego é tòn eautoû uiòn; neste lugar, porém, aqui diz
que não perdoou a seu próprio Filho (os ge toû ídíou Uiou oùk egeisato).
11. Estas palavras demonstram que Ele é o Deus Unigênito pela verdade
da natureza, de modo que, tendo demonstrado antes que muitos eram filhos pelo
Espírito de adoção, agora demonstrou ser o Unigênito o Deus Filho por natureza.
Capítulo 46.
12. Este não é um erro humano, nem é fruto da ignorância negar o Filho
de Deus, porque não é possível ignorar o que se nega.
13. O Filho de Deus é chamado de criatura vinda do nada. Isto nem o
Pai declarou, nem o Filho atestou, nem o Apóstolo pregou, e no entanto ousaram
dizê-lo; isto não é apenas ignorar a Cristo, mas odiá-lo.
14. Como o Pai diz a respeito de seu Filho: Este é (Mt 3,17), o
Filho diz de si mesmo: É este mesmo que fala contigo (Jo 9,37), Pedro
confessa: Tu és (Mt 16,16), João afirma: Este é verdadeiro (1Jo
5,21) e Paulo não deixa de pregar que é próprio, não entendo que se
negue, a não ser por ódio, quando o erro da imperícia não é escusa do crime.
15. É isto que diz, claramente, pela vinda de seus profetas e núncios,
aquele mesmo que depois irá falar como anticristo, inquietando a salutar
profissão de fé com novas investidas, a fim de, primeiro, arrancar de nossa
consciência a ideia de Filho segundo a natureza em que cremos, e excluir, em
seguida, por ser adotivo, qualquer outro nome.
16. Pois para aqueles para quem Cristo é criatura, forçoso é que,
junto com eles o próprio Cristo seja o anticristo; porque a criatura não tem a
natureza de Filho, e Ele mente, dizendo ser o Filho de Deus. Por isso, segundo
aqueles que negam o Filho de Deus, deve-se acreditar que Cristo é o anticristo.
Capítulo 47.
17. Que esperanças, ó inútil furor, aguardas tu? E por que confiança
na salvação te esforças em provar com lábios blasfemos ser Cristo criatura e
não Filho? Seria vantagem para ti conhecer pelos Evangelhos e manter o mistério
desta fé. Pois o Senhor, que tudo pode, quis, no entanto, que cada um dos que
lhe pediam um efeito de seu poder o experimentasse pelo mérito da confissão.
Não que a confissão do pedinte acrescente a sua virtude, a Ele que é a Virtude
de Deus, mas é prêmio da fé merecer tal coisa.
18. Quando, à Marta, que pede por Lázaro, Ele pergunta se crê que não
morrerão aqueles que nele crêem, ela, com fé consciente, diz: Sim, Senhor,
eu creio que tu és o Cristo, Filho de Deus, que vieste a este mundo (Jo
11,17).
19. Esta confissão é a própria eternidade, esta fé não morre. Marta,
pedindo a vida de seu irmão, ao ser interrogada se assim acreditava, acreditou.
Agora pergunto: quem nega isto, de quem, ou para que vida espera, se somente há
vida, se assim se crê? Pois é grande este mistério da fé, e a sua perfeita
confissão é a bem-aventurança.
Capítulo 48.
20. O Senhor concedera a visão ao cego de nascença, e o Senhor da natureza
desfizera o dano natural. E porque este cego assim nascera para a glória de
Deus, para que, em Cristo, se pudesse entender a obra de Deus, não se esperava
dele a confissão de fé; mas, porque ignorava o autor do grande dom da visão
recuperada, mereceu depois conhecer a fé.
21. Pois a expulsão da cegueira não conferia a vida eterna. Por este
motivo, o Senhor, depois de ter sido ele curado e expulso da sinagoga, o
interroga, dizendo: Tu crês no Filho de Deus? (Jo 9,35). Que não
julgasse um dano estar privado da sinagoga aquele que, pela confissão da fé,
readquiria a imortalidade.
22. E, quando, ainda inseguro, respondeu: Quem é, Senhor, para que
nele eu creia?, não querendo que aquele a quem, depois da recuperação dos
olhos, seria concedida tão grande inteligência da fé, permanecesse na
ignorância, assim diz o Senhor: Tu o viste, é Ele mesmo o que fala contigo.
23. Acaso o Senhor pede a este, como aos outros que pediam curas, a
confissão de fé para merecerem saúde? Claro que não, pois falou ao cego quando
já via, somente para que respondesse: Creio, Senhor (Jo 9,38), porque a
fé da resposta não serviria para curar a cegueira, mas para dar a vida.
24. Estudemos com mais empenho a força deste dito. O Senhor interroga:
Tu crês no filho de Deus? Se uma confissão qualquer de fé em Cristo fosse
bastante, teria sido dito, Tu crês em Cristo? Mas, como para quase todos
os heréticos este nome era só uma palavra usada, para confessarem a Cristo,
negando o Filho, o que Cristo pede é próprio à fé, isto é, que se creia no Filho
de Deus.
25. Mas para que serve crer no Filho de Deus, quando se crê na
criatura e é pedida a fé em Cristo, não criatura de Deus, mas Filho?
Capítulo 49.
26. Será que os demônios desconheciam o sentido próprio deste nome? É
digno de hereges serem convencidos, não já pelas doutrinas dos Apóstolos, mas
pela boca dos demônios. Pois estes gritam, e gritam muitas vezes: Que há
entre mim e ti, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? (Lc 8,28).
27. A verdade atraía a confissão feita de má vontade, o sofrimento em
obedecer atesta o poder da natureza. Pela força são vencidos, quando abandonam
corpos por muito tempo possuídos; prestam honra quando confessam a natureza de
Deus, e atestam que Cristo é Deus, pelas obras e pelo nome. Entre estas vozes
dos demônios a confessarem, donde tiras, ó herege, o nome de criatura e a benevolência
da adoção?
Capítulo 50.
28. Quem seja Cristo, aprende ao menos pelos que o desconhecem, para
que tua impiedade seja censurada pela confissão que os ignorantes são forçados
a fazer. Pois os Judeus, se não conheciam o Cristo encarnado, conheciam, no
entanto, ser Filho de Deus Aquele que deveria aparecer como Cristo.
29. Como falsas testemunhas não apresentassem nenhuma verdade contra
Ele, o Sumo Sacerdote o interroga: Tu és o Cristo, o Filho do Bendito? (Mc
14,61). Ignoravam o mistério, mas não a natureza. E não perguntam se Cristo é
filho de Deus, mas se este é o Cristo Filho de Deus. Erra-se quanto ao Homem, não
quanto a ser Filho de Deus. Pois não há dúvida de que Cristo seja Filho de Deus
e por isso, quando se pergunta se é este, não se nega que o Cristo seja Filho
de Deus.
30. E indago, por qual fé tu negas aquilo que não é negado nem mesmo
pelos que o desconhecem? A perfeita ciência sobre Cristo é reconhecer ser ele
Filho de Deus, que existe antes dos séculos, e é também Filho da Virgem. Os que
não sabem que nasceu de Maria não desconhecem ser Filho de Deus. E vê, ao negar
o Filho de Deus, a que companhia da judaica impiedade te misturaste. Pois
indicam a causa de sua condenação quando dizem: E de acordo com a Lei deve
morrer, porque se diz Filho de Deus (Jo 14,7).
31. E não é também o que a tua palavra ímpia censura: que se diga
Filho, aquele a quem tu garantes ser criatura? Ele, dizendo-se Filho de Deus, é
por eles julgado digno de morte; e tu, que negas o Filho de Deus, que
julgamento mereces? Pois a afirmação sobre Ele desagrada a ti. Pergunto se
ainda manténs opinião diversa da deles, dos quais não diverges pela vontade,
pois negas com a mesma impiedade que seja Filho de Deus.
32. A culpa deles é menor, pois ignoram. Não sabem que o Cristo nasceu
de Maria, mas não duvidam de que o Cristo seja Filho de Deus. Tu, que não podes
desconhecer que o Cristo nasceu de Maria, pregas que Cristo não é Filho de
Deus. Porque não sabem, ainda podem ter assegurada a salvação, se acreditarem.
33. Para ti, todo caminho para a salvação está fechado, já que negas o
que não podes ignorar.
34. Não ignoras ser Filho de Deus, pois chegas a aceitar o nome de
Filho adotivo para dizer com falsidade que é criatura e que, como as demais, é
chamado Filho.
35. Se podes pensar em negar-lhe a natureza, negarias, se te fosse
possível, também o nome. E porque isto não te é permitido, não dás ao nome o seu
verdadeiro significado, para que não seja verdadeiro Filho de Deus, ao ser
chamado de Filho.
Capítulo 51.
36. A confissão daqueles a quem foi devolvida a tranqüilidade, quando
o vento estava desencadeado e o mar se agitava, pela ordem de uma palavra,
poderia dar-te ocasião de confessá-lo, também, como verdadeiro Filho de Deus,
repetindo a palavra deles: Verdadeiramente é Filho de Deus (Mt 14,35).
37. Mas o mau espírito te arrasta ao naufrágio, te rouba a vida, e
domina os movimentos de tua mente, como a procela que irrompe no mar
tempestuoso.
Capítulo 52.
38. Se não te parece digna de crédito a fé dos navegantes, porque
provém dos Apóstolos, para mim, embora cause menos admiração, tem contudo maior
autoridade. Aceita a fé no Filho proclamada até pelos gentios, escuta entre os
malvados guardas da cruz, o indômito soldado da coorte romana, movido pela fé. Pois
o centurião fala, à vista de tantos prodígios: Verdadeiramente este homem
era Filho de Deus (Mt 27,54).
39. Deram testemunho disto, depois que Jesus entregou o espírito, o
véu do Templo rasgado, os mortos ressuscitados, o terremoto, as pedras
rachadas, os sepulcros abertos e a confissão de um homem provindo da infidelidade
dos gentios.
40. Reconhece nas obras o poder da natureza divina e proclama, com o
nome, a verdade da mesma natureza. A verdade se impõe com tamanha evidência e é
tão grande a força da fé que a vontade é vencida pela necessidade da verdade, e
nem mesmo o que o tinha crucificado nega que Cristo, Senhor da glória eterna,
seja verdadeiramente Filho de Deus.
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