domingo, 25 de junho de 2023

232 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Nono (Capítulos 32 - 40 ).

 


232

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Nono (Capítulos 32 - 40 )


 


Dia 08 de julho de 2023

Capítulo 32.

1.      O Senhor usou uma progressão no seu ensinamento para fazer-nos compreender quem Ele era. Ensinou ter saído de Deus, disse que o Pai estava junto dele, afirmou ter vencido o mundo, disse que, quando fosse glorificado pelo Pai, iria glorificar o Pai e declarou que usaria o poder que recebera para dar a vida eterna a toda carne.

2.      Concluiu assim o seu discurso: A vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o Deus único verdadeiro, e aquele que enviaste, Jesus Cristo (Jo 17,3).

3.      Aprende, ó herege, a proclamar a fé que dá a vida eterna e nela crer. E separa, se puderes, o Cristo de Deus, o Filho do Pai, o Deus que está acima de tudo do Deus verdadeiro, o Único Deus do Único Senhor (pois há um só Senhor Jesus Cristo [1Cor 8,6]), se a vida eterna consiste em crer no único Deus verdadeiro, sem Cristo.

4.      No entanto, não se chega à vida eterna pela confissão do único Deus verdadeiro, quando se separa Cristo do único Deus verdadeiro.

5.      Assim, não compreendo como se pode separar de Deus, quanto à fé, o que não pode ser separado dele em vista da salvação.

 

Capítulo 33.

6.      Embora saiba que estas explicações demoradas de tão difíceis questões se tornam um peso para os leitores desejosos de aprender, julgo necessário adiar um pouco a plena demonstração da verdade.

7.      É com proveito para a fé que devo lutar contra ti, ó herege, usando as mesmas sentenças evangélicas.

8.      Ouves a declaração do Senhor: A vida eterna é esta, que te conheçam a ti, único Deus verdadeiro, e Aquele que enviaste, Jesus Cristo (Jo 17,3).

9.      Indago o que te leva a pensar que Cristo não seja verdadeiro Deus. Não existe nenhuma outra indicação do que deves crer sobre Cristo; não tens nada, a não ser Jesus Cristo, nem Filho do Homem, como costumava chamar a si mesmo, nem Filho de Deus, como se declarou várias vezes, nem pão vivo descido dos céus, como se chamou com frequência, para escândalo de muitos.

10.  Ao dizer: a ti, único Deus verdadeiro, e Aquele que enviaste, Jesus Cristo, abandona todo nome e cognome seu, seja natural, seja assumido. E como só dá a vida eterna Aquele que deve ser proclamado único e verdadeiro Deus e Jesus Cristo, não há dúvida de que se fala de Jesus Cristo, como Deus.

 

Capítulo 34.

11.  Talvez por dizer a ti, único, separe-se da comunhão e unidade com Deus. Separar-se-ia, sim, se não houvesse logo acrescentado: e Aquele que enviaste, Jesus Cristo.

12.  Pergunto ao bom senso do ouvinte o que se deve crer a respeito de Jesus Cristo, se, assim como se deve crer que o Pai é o único Deus verdadeiro, também se deve crer que Cristo o seja.

13.  Mas, talvez, pelo fato de ser o Pai o Único Deus verdadeiro, não se admita que Cristo seja Deus. Assim seria, certamente, se o único Deus Pai não deixasse Cristo ser o único Senhor (cf. 1Cor 8,6).

14.  Se o fato de ser o Pai o único Deus não retira de Cristo Jesus o ser o único Senhor, igualmente o fato de ser o Pai o único Deus verdadeiro não impede que Cristo seja Deus verdadeiro. Logo, o que permite merecer a vida eterna é que, ao crer no único Deus verdadeiro, se creia também em Cristo.

 

 

Capítulo 35.

15.  Pergunto, ó herege, quem é, segundo a tua ideia estulta, o Cristo em quem se deve crer. Quem é o Cristo que concede a vida eterna, que, sendo glorificado pelo Pai, glorificou o Pai, que venceu o mundo, que, abandonado, não está só, mas tem junto de si o Pai, que saiu de Deus e veio do Pai?

16.  Que natureza e que realidade atribuis a quem, com tão grande poder, nasceu de Deus?

17.  Creremos inutilmente no Pai, único e verdadeiro Deus, se não crermos também naquele que Ele enviou, Jesus Cristo.

18.  Por que duvidas? Ensina-nos o que deve ser professado a respeito de Cristo, pois, se negas aquilo que está escrito, que te restará, senão crer no que não está escrito?

19.  Ó infeliz vontade, ó falsidade que resistis à verdade! Se Cristo está unido à fé e à confissão do verdadeiro Deus Pai, pergunto com que fé se negará ser Ele Deus verdadeiro e se dirá ser criatura, já que não há fé alguma em crer no único Deus verdadeiro sem Cristo.

20.  O teu acanhado senso, ó herege, é incapaz do divino Espírito e não se abre às palavras celestes.

21.  Inspirado pelo erro viperino, não reconheces o Cristo como verdadeiro Deus, na fé no único Deus verdadeiro, que deve ser confessado com vistas à vida eterna.

 

Capítulo 36.

22.  A fé da Igreja, confessando o único verdadeiro Deus Pai, confessa também a Cristo. Ao confessar a Cristo como verdadeiro Deus, não deixa de confessar o Pai, único Deus verdadeiro, e ao confessar o único verdadeiro Deus Pai, não deixa de confessar também a Cristo.

23.  Confessa que Cristo é Deus verdadeiro porque confessa que o Pai é o único Deus verdadeiro. Porque o Pai é o único Deus verdadeiro, se confirma que também Cristo é Deus verdadeiro.

24.  A natividade segundo a natureza não acarretou, para o Deus Unigênito, mudança de natureza. Aquele que procede do Deus subsistente subsiste, como Deus, pela natureza da divina geração, e não pode ser separado daquele que é o único Deus verdadeiro, pela realidade da natureza.

25.  A natureza conserva sua realidade, de modo que a verdade da natureza acarreta a verdade da natividade e o Deus Uno não dá origem a um Deus de gênero diferente do seu.

26.  O mistério de Deus não consiste na solidão nem na diversidade, pois não se pode pensar que Aquele que recebeu de Deus o seu ser, com a propriedade de sua natureza, seja um outro Deus.

27.  Aquele que a verdade da natividade ensina que deve ser confessado como Pai não existe na unicidade de pessoa.

28.  Deus que nasceu de Deus possui as propriedades de sua natureza e, pelo poder de sua natureza, vive naquele cuja natureza possui pela natividade. Nele, Deus não mudou nem se degenerou, porque, se a natividade acarretasse alguma deficiência, isto ofenderia antes a natureza, pela qual subsiste o que nasceu.

29.  O que existe a partir desta natureza teria deixado de ter o que lhe pertence, e a mudança não teria corrompido Aquele que nasceu como uma nova subsistência, mas sim Aquele que, ao gerar o Filho,  se mostrou impotente para manter a imutabilidade da sua natureza, gerando algo diferente e exterior a si mesmo.

 

Capítulo 37.

30.  Não existem, na unidade de Deus Pai e Deus Filho, as imperfeições que lhe pode atribuir o modo humano de pensar, como já dissemos muitas vezes.

31.  Não se trata de extensão, sucessão ou emanação, como a fonte produz o regato como sua origem, como a árvore sustém o ramo no tronco ou o fogo irradia seu calor no ambiente.

32.  Estas coisas existem como uma extensão inseparável de sua origem, em vez de existirem por si mesmas. O calor está no fogo, o ramo, na árvore, o regato, na fonte. Existem como uma coisa só, em vez de procederem umas das outras, porque a árvore não é diferente do ramo, nem o fogo do calor, nem o regato da fonte.

33.  Ao contrário, o Deus Unigênito, pela perfeita e inenarrável natividade, é Deus subsistente, verdadeira progênie do Deus Inascível, geração incorpórea da natureza incorpórea, Deus vivo e verdadeiro do Deus vivo e verdadeiro. É Deus inseparável de Deus por natureza.

34.  A verdadeira natividade não fez dele um Deus de outra natureza, nem a geração que produz a sua subsistência mudou a natureza da substância em seu gênero.

 

Capítulo 38.

35.  Pela economia da Encarnação e pela obediência do que se esvazia da forma de Deus, Cristo, nascido Homem, assumiu para si nova natureza, não em prejuízo de sua força e natureza, mas pela mudança do seu modo de ser.

36.  Esvaziando-se da forma de Deus, recebeu, ao nascer, a forma de servo, mas, com a assunção da carne, a natureza do Pai, com a qual tinha unidade de natureza, não foi atingida.

37.  Embora Ele permanecesse na força da natureza divina, a nova condição assumida no tempo perdera, com a forma de Deus, no que diz respeito à humanidade assumida, a unidade de natureza divina.

38.  Chega-se ao auge do desígnio de salvação: agora todo o Filho, isto é, Homem e Deus, pela indulgência da vontade paterna, permanece na unidade da natureza paterna e, permanecendo na força da natureza, permanece também no modo de ser desta natureza, e ao homem é concedido o ser Deus.

39.  O homem assumido não poderia existir na unidade com Deus de modo algum, a não ser que chegasse à unidade de natureza com Ele, pela união com a divindade. Porque o Deus Verbo existia na natureza de Deus, também o Verbo feito carne podia existir na natureza de Deus e assim o Homem Jesus Cristo podia estar na glória de Deus Pai, visto que a carne estava unida à glória do Verbo.

40.  O Verbo feito carne retornaria então à unidade da natureza paterna, também enquanto Homem, porque a carne assumida recebera a glória do Verbo.

41.  A unidade com o Pai deveria ser, de novo, dada ao Filho, para que Aquele que nascera da natureza do Pai voltasse a ser glorificado nele, porque a novidade da Economia da salvação pusera um obstáculo à unidade, e a unidade não poderia ser perfeita como antes, se a carne assumida não fosse glorificada nele.

Capítulo 39.

42.  Por isso, depois de ter preparado por tanto tempo a inteligência dos discípulos para entender o sentido desta verdade de fé, ao dizer: A vida eterna é esta: que te conheçam a ti, único Deus verdadeiro, e Aquele que enviaste, Jesus Cristo (Jo 17,3), acrescentou, referindo-se à obediência da Encarnação: Eu te glorifiquei na terra, conclui a obra que me encarregaste de realizar (Jo 17,4).

43.  Depois, para que entendêssemos a razão desta obediência e o mistério da Economia da salvação, continuou: E agora, glorifica-me, Pai, junto de ti, com a glória que Eu tinha junto de ti antes que o mundo existisse (Jo 17,5).

44.  Quem nega que Cristo permanece na mesma natureza de Deus e não crê que Ele seja inseparável e não diferente do único Deus verdadeiro, responda qual o motivo do pedido: E agora glorifica-me tu, Pai, junto de ti.

45.  Qual o motivo para que o Pai o glorifique junto de si? Qual é a significação desta palavra? Que se deduz daí? O Pai não carece de glória, nem se esvaziou da forma de sua glória. Como, então, o Filho será glorificado junto dele, com a glória que possuía junto dele antes da criação do mundo? Qual é o sentido de: ter junto dele?

46.  Não disse: a glória que eu tinha antes que o mundo existisse, quando estava junto de ti; mas: a glória que eu tinha junto de ti, porque estar junto de ti significa seu ser subsistente, porém, ter junto de ti revela o mistério da natureza.

47.  Glorifica-me junto de ti não é o mesmo que glorifica-me. Não pede apenas para ser glorificado, como se rogasse algo da glória para si próprio, mas pede ao Pai para ser glorificado junto dele mesmo.

48.  Para que permanecesse em sua unidade, como permanecia antes, o Pai devia glorificá-lo junto de si, porque, pela obediência própria à economia da salvação, a unidade da glória havia desaparecido e, pela glorificação, estaria de novo naquela natureza à qual estava unido pelo mistério da divina natividade e seria glorificado pelo Pai, junto dele.

49.  Continuaria a ter o que possuía antes junto dele. Assumir a forma de servo não o separaria da natureza da forma de Deus, mas, em si mesmo, iria ser glorificada a forma de servo, para permanecer na forma de Deus, porque Aquele que antes permanecera na forma de Deus era o mesmo que estava na forma de servo.

50.  E quando fosse glorificada a forma de servo, para converter-se na forma de Deus, seria glorificada junto daquele mesmo em cuja forma a condição própria da forma servil devia ser glorificada.

 

Capítulo 40.

51.  Não é nova, nem aparece agora pela primeira vez, nas doutrinas evangélicas, esta palavra do Senhor.

52.  O mistério do Deus Pai que glorifica o Filho em si mesmo foi comprovado por aquela belíssima expressão de alegria e esperança do Senhor, logo depois de Judas ter saído para entregá-lo.

53.  No gáudio (alegria extrema) que sentia por ver que estava para ser consumada sua obra salvífica, diz o seguinte: Agora o Filho do Homem foi glorificado e Deus foi glorificado nele. Se Deus foi glorificado nele, também Deus o glorificará em si mesmo e logo o glorificará (Jo 13,31-32).

54.  Por que nós, com nossas almas carregadas com o peso de corpos de barro, as consciências manchadas de pecados, as mentes infectas e lamacentas, nos ensoberbeceremos a ponto de julgar aquilo que Deus declara sobre si mesmo, e arvorando-nos em árbitros da natureza celeste nos rebelamos contra Deus, com as ímpias disputas de nossa má-fé?

55.  O Senhor usou palavras simples e adaptou o quanto pôde as palavras à nossa inteligência, à medida que a fraqueza de nossa natureza podia suportá-la, mesmo que não tenha dito nada de menos digno da majestade de sua natureza.

56.  Julgo não ser ambíguo o significado de suas palavras: Agora o Filho do Homem foi glorificado, pois toda a glória era concedida, não ao Verbo, mas à carne, isto é, não ao Deus nascido de Deus, mas ao Homem nascido segundo a economia.

57.  Quanto ao que se segue, pergunto o que significa: E Deus foi glorificado nele. Deus foi glorificado nele, é o que escuto, mas o que isto significa para o teu entendimento, ó herege, ignoro.

58.  Deus foi glorificado nele, isto é, no Filho do Homem. Desejo saber se o Filho do Homem é o mesmo Filho de Deus. E como não é um o Filho do Homem e outro o Filho de Deus, pois o Verbo se fez carne (Jo 14) e como Aquele que é Filho de Deus, este mesmo é Filho do Homem, pergunto qual é o Deus que foi glorificado neste Filho do Homem, que é também Filho de Deus. Porque Deus foi glorificado no Filho do Homem que é também Filho de Deus.

 

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terça-feira, 20 de junho de 2023

231 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Nono (Capítulos 23 - 31)


231

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Nono (Capítulos 23 -  31)


 

 

Capítulo 23.

1.      Não têm em si o amor do Pai, porque não acolheram aquele que veio em nome do Pai e, vindo outro no próprio nome, a este receberão. Ao dar glória uns aos outros, não buscam a glória que pertence ao único Deus.

2.      Pode-se entender que Cristo se separa da glória do único Deus, porque não se busca a glória do Deus único, quando o anticristo é recebido e Ele não é acolhido?

3.      Se o repúdio deste representa a negação da glória do Deus único, é forçoso que a glória que é dada ao Deus único glorifique Aquele que deveriam ter acolhido para que fosse dada glória ao Deus único.

4.      Disto o mesmo discurso nos dá testemunho, por conter este exórdio: Para que todos glorifiquem o Filho, assim como glorificam o Pai. Quem não glorifica o Filho, não glorifica o Pai que o enviou (Jo 5,23).

5.      Se a natureza não é a mesma, não há igualdade na glória, e a igualdade na glória não separa os que devem ser glorificados, pois, pelo mistério da natividade, se postula a igualdade.

6.      O Filho deve ser glorificado como o Pai. Quando não se busca a glória daquele que é o único Deus, também não se busca a daquele que tem a mesma glória que o único Deus porque, por não se glorificar o Filho, não se glorifica também o Pai.

7.      Assim, não busca a glória do único Deus, quem não busca também a de Cristo. A glória de Cristo é inseparável da glória de Deus.

8.      Cristo demonstrou ser uma só e a mesma a glória de ambos, quando lhe foi anunciada a enfermidade de Lázaro: Esta enfermidade não é para a morte, mas para a glória de Deus, para que, por Ele, seja glorificado o Filho de Deus (Jo 11,4).

9.      Para a glória de Deus, Lázaro morre, a fim de que o Filho de Deus seja glorificado por meio de Lázaro.

10.  Ainda se duvida de que a glória de Deus consista na glória do Filho de Deus, quando a morte de Lázaro, gloriosa para Deus, dará glória ao Filho de Deus?

11.  Assim se ensina a unidade da natureza de Deus Pai em Cristo pela natividade, já que a enfermidade de Lázaro é para a glória de Deus, e conserva-se o mistério da fé, visto que o Filho de Deus será glorificado por Lázaro.

12.  Por isso, deve-se entender que o Filho de Deus é Deus, de modo que, ao pensar em Deus, deve ser também confessado o Filho, porque quando Deus foi glorificado por Lázaro, foi também glorificado o Filho de Deus.

 

Capítulo 24.

13.  Inseparável do mistério da natureza divina é a natividade do Vivente nascido do Vivente.

14.  O Filho de Deus não sofreu em sua natureza nenhuma mudança que o impedisse de permanecer na realidade da natureza paterna.

15.  As próprias palavras com as quais, confessando um só Deus, pareceria negar estar em si a natureza de Deus, porque se referia ao único Deus, situam-no na unidade de natureza com o Pai, sem negar a fé no único Deus.

16.  Quando o escriba perguntou qual era o principal mandamento da Lei, respondeu: Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor; e amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e com todo o teu entendimento, e com todas as tuas forças. Este é o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a ele: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Maior do que este mandamento não existe (Mc 12,29-31).

17.  Julgaram que se separou da natureza e da honra devida a um só Deus, por ser este o principal mandamento: Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor, e que não se constituiu a si mesmo objeto de veneração no mandamento seguinte, pois a Lei nos convida a amar o próximo, como a crer no único Senhor.

18.  Não se deve negligenciar a resposta do escriba que diz: Falaste bem, Mestre, na verdade, Deus é Um, e não há outro além dele; assim deve ser amado de todo coração e com todas as forças e com toda a alma; e deve-se amar o próximo como a si mesmo. Isto é mais do que todos os holocaustos e sacrifícios (Mc 12,32-33).

19.  Vê-se que a resposta do escriba concorda com as palavras do Senhor quando afirma que se deve amar o único Deus com íntima e profunda caridade e se deve amar o próximo na medida do próprio amor, entendendo estar acima dos sacrifícios e holocaustos o amor a Deus e ao homem. Mas vejamos o que se segue.

 

Capítulo 25.

20.  Vendo Jesus que havia respondido com sabedoria, disse-lhe: “Não estás longe do reino de Deus” (Mc 12,34). Que quer dizer esta resposta tão prudente? Se esta é a fé que leva ao reino dos céus: crer em um só Deus e a Ele amar com toda a alma e com todas as forças e de todo o coração e também amar ao próximo como a si mesmo, por que o escriba ainda não está no reino de Deus, mas somente não está longe do reino de Deus?

21.  Em outras palavras, o reino é dado aos que vestem o nu, alimentam o faminto, dão de beber aos que têm sede e visitam os doentes e encarcerados: Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do reino que para vós foi preparado desde a criação do mundo (Mt 25,34).

22.  Os que têm espírito de pobre receberão a recompensa: Bem-aventurados os pobres em espírito porque deles é o reino dos céus (Mt 5,3). É este o fruto perfeito, a posse absoluta e a entrega certa do reino preparado (cf. Mc 10,20).

23.  Será que o jovem confessava menos que estas coisas? Depois de comparar o amor pelo próximo ao amor de si mesmo, que faltava ainda para a consumação da boa obra?

24.  Ser indulgente e prestativo, só ocasionalmente, não significa a caridade perfeita. A perfeita caridade cumpre inteiramente o dever de amar com uma bondade multiforme, não deixa de fazer tudo o que é devido ao outro nem de dar ao outro o que dá a si mesmo.

25.  O Senhor louva o Escriba por sua profissão de fé, dizendo não estar longe do reino de Deus, no entanto, não o coloca na própria posse da feliz esperança, porque ele ainda se acha tolhido pela ignorância do mistério perfeito.

26.  Tendia, no entanto, para o caminho certo, apesar de sua ignorância, pondo em primeiro lugar o amor a Deus e comparando o amor ao próximo com o amor de si mesmo.

27.  Como antepusera o amor a Deus à caridade para com o próximo, já não se restringia aos holocaustos e sacrifícios prescritos. E com isto não estava longe do mistério evangélico.

 

Capítulo 26.

28.  As próprias palavras do Senhor dão a entender que não está longe do reino de Deus; mas não se diz que estará no reino de Deus, pois continua: Ninguém mais ousava interrogá-lo. E prosseguiu Jesus, ensinando no templo, e disse: Como dizem os escribas que Cristo é o filho de Davi? O próprio Davi diz no Espírito Santo: Disse o Senhor a meu Senhor, senta-te à minha direita até que ponha teus inimigos como escabelo de teus pés’. O próprio Davi o chama de Senhor; como será seu filho?” (Mc 12,34).

29.  O escriba não está longe do reino de Deus, ao confessar o Deus único, que deve ser amado acima de tudo. É, porém, advertido, por causa mesma profissão de fé, pois ignora o mistério da Lei e não sabe que Cristo Senhor é Filho de Deus, pela natureza da natividade, devendo ser confessado na fé em um só Senhor.

30.  Como, na confissão de um único Senhor, conforme a Lei, parece não haver lugar para o Filho de Deus no mistério de um só Senhor, pergunta ao escriba como se pode dizer que Cristo é Filho de Davi, se o próprio Davi declara ser Ele o seu Senhor, e a natureza não admite que seja Filho de tão grande patriarca e, ao mesmo tempo, o seu Senhor.

31.  Disse isso porque o escriba entendia que Ele existia somente segundo a carne e que, pelo parto de Maria, era descendente de Davi.

32.  Queria lembrar-lhe que, segundo o Espírito, Ele é o Senhor de Davi, mais do que seu filho, e que o que foi dito: Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor (Mc 12,29) não afasta Cristo do mistério de um só Senhor, pois um tão grande Patriarca e Profeta declarou ser seu Senhor Aquele que foi gerado do seio do Senhor, antes do astro da manhã, sem esquecer-se da Lei, nem ignorar que nenhum outro deve ser declarado Senhor.

33.  Sabia, porém, que Aquele que, pelo mistério da sua natureza divina, subsiste, vindo do seio do Deus incorpóreo, deve ser compreendido como Senhor, sem violar a fé na Lei, pois o Único que procede do Único, pela natureza do único Senhor, tem em si, por natureza, o ser Senhor.

 

Capítulo 27.

34.  Que lugar existe ainda para a dúvida? O próprio Senhor, ensinando ao escriba ser o primeiro e mais importante mandamento da Lei a confissão e o amor do único Senhor, não apelou para o seu próprio testemunho, mas para o do Profeta, que diz ser Ele Senhor porque é Filho de Deus.

35.  Por isso, permanece no mistério do único Deus pelo nascimento. O que nasce de Deus, tendo em si a natureza de Deus, não dá lugar a outro Deus, por uma natureza diferente.

36.  A verdade da geração não retira do Pai o ser Senhor, nem faz com que o Filho deixe de ser perfeito Senhor. O Pai não perde o senhorio, e o Filho não perde a natureza divina.

37.  Deus Pai é o único Senhor, e o Senhor Deus Unigênito não se separa do Único, porque, como o Único que provém do único Senhor, subsiste como Senhor e ensina, pela Lei, que existe um único Senhor, de tal modo que também o Profeta confirma que Ele é Senhor.

 

Capítulo 28.

38.  Que a fé evangélica possa dar resposta às outras proposições do furor ímpio e as combata, usando as mesmas palavras com as quais é atacada, vencendo com as mesmas armas que procuram destruí-la e mostrando que as palavras do único Espírito são o ensinamento da fé única, pois não há outro Cristo, senão o que anunciamos.

39.  Ele é Deus verdadeiro e permanece na glória do único Deus verdadeiro. Ele mesmo afirmou ser o Senhor, quando a Lei parecia negá-lo.

40.  Também no Evangelho, mostra que é Deus verdadeiro, quando se julga que não o declarou.

41.  Os hereges usam, como desculpa para dizer que Ele não é Deus verdadeiro, estas palavras: É esta a vida eterna, que te conheçam a ti, único verdadeiro Deus, e a quem enviaste, Jesus Cristo (Jo 17,3).

42.  Ao dizer a ti, único verdadeiro Deus, parece separar-se do verdadeiro Deus pela afirmação de que Deus é solitário, já que somente se pode conceber como verdadeiro Deus a um Deus solitário.

43.  Na verdade, a fé apostólica não admite que se creia em dois deuses verdadeiros, porque nada alheio à natureza do Deus único se pode equiparar à realidade de sua natureza.

44.  Deus, portanto, não será realmente um Deus único, se fora da natureza do único Deus verdadeiro existir um Deus verdadeiro de outro gênero, que não possua, por seu nascimento, a mesma natureza.

 

Capítulo 29.

45.  Para que se entenda que, ao dizer isso, Ele afirmou sem ambiguidade ser verdadeiro Deus na mesma natureza do único Deus verdadeiro, nossa resposta deve partir das declarações anteriores ligadas a esta frase, a fim de que, pela demonstração gradual da fé, a confiança de nossa liberdade repouse no próprio ápice que é Cristo, o verdadeiro Deus.

46.  Depois das palavras sobre tão grandes mistérios: Quem me vê, vê também o Pai, e: Não credes em mim, que Eu estou no Pai, e o Pai em mim? As palavras que vos digo, não as digo por mim mesmo, mas o Pai, que permanece em mim, realiza suas obras. Crede em mim, porque Eu estou no Pai, e o Pai está em mim; se não, crede ao menos pelas próprias obras (Jo 14,9-12), vem a resposta dos discípulos: Agora, sim, sabemos que conheces tudo, e não tens necessidade de que alguém te interrogue; nisto cremos que saíste de Deus (Jo 16,30-31).

47.  Pelo poder de Deus que havia nele, os discípulos compreenderam que tinha a natureza divina, pois saber todas as coisas, sem exceção, e conhecer os pensamentos dos corações, não é próprio de um enviado de Deus, mas sim daquele que nasceu de Deus.

48.  Por isso declararam acreditar que saíra de Deus: porque nele estava o poder da natureza de Deus.

 

Capítulo 30.

49.  O Senhor respondeu louvando o entendimento deles, pois, dizendo saíste de Deus, davam testemunho de que tinha nascido do Deus incorpóreo, afirmando, não que tivesse sido enviado, mas que nascera de Deus.

50.  Ele mesmo falara de sua natividade sob a figura de saída, ao dizer: Vós me amais e credes que saí de Deus e, do Pai, vim a este mundo (Jo 16,27-28). Do Pai viera a este mundo, porque saíra de Deus. Para que se entendesse que sua natividade significava a saída, acrescentou que viera da parte do Pai.

51.  E já que viera do Pai, porque saíra de Deus, sua saída de Deus é a absoluta natividade, já que, a seguir, se invoca o nome do Pai.

52.  Entendendo então os Apóstolos este mistério da saída, disse-lhes Ele: Credes agora? Eis que vem a hora, e é agora, em que vos dispersareis cada um para seu lado e me deixareis sozinho; mas não estou só, porque o Pai está comigo (Jo 16,32-33).

53.  Para ensinar que essa saída não é afastamento de Deus Pai, mas que, ao nascer, conservara a natureza de Deus Pai, acrescentou não estar sozinho, mas ter o Pai consigo, certamente pela força e unidade da natureza, já que o Pai estava com Ele e nele permanecia, falando e agindo, quando Ele falava e agia.

54.  Em seguida, para explicar o motivo destas palavras, acrescentou: Isto vos disse, para que em mim tenhais a paz. No mundo, porém, tereis atribulações, mas tende coragem, porque Eu venci o mundo (Jo 16,33).

55.  Falou-lhes assim para que permanecessem nele, em paz, a fim de que a vontade de discutir não os fizesse dissentir nas disputas da fé, porque o que era deixado só não estava só e o que saíra de Deus tinha em si o Deus do qual saíra, e para que, quando fossem ultrajados no mundo, esperassem com paciência o que prometera, porque, saindo de Deus e tendo Deus consigo, vencera o mundo.

 

Capítulo 31.

56.  Finalmente, antes de falar de todo o mistério da fé, elevando aos céus os olhos, disse: Pai, chegou a hora, glorifica teu Filho, a fim de que teu Filho te glorifique. E que pelo poder que tu lhe deste sobre toda a carne, Ele lhe dê a vida a todos os que lhe deste (Jo 17,1-2).

57.  Parece fraco, porque roga para ser glorificado? Seria fraco se não rogasse para ser glorificado para glorificar, Ele mesmo, ao que o glorifica.

58.  Já tratamos, em outro livro, da glória a ser tributada e retribuída. Certamente pede a glória para que Aquele que a concede seja glorificado. Talvez então seja fraco por receber o poder sobre toda a carne. Seria fraqueza receber o poder, se não tivesse o poder de conceder, aos que o recebem, a vida eterna.

59.  Justamente porque recebe, atribuem alguma fraqueza à sua natureza. Admita-se a fraqueza, se Cristo não fosse verdadeiro Deus pela natividade, mas sim pela inascibilidade, porque, se receber o poder indica só a natividade, pela qual recebe aquilo que é, não se pode atribuir à fraqueza a doação, porque ela faz com que Aquele que nasce seja Deus perfeito.

60.  Sendo o Deus Inascível o princípio da perfeita natividade da divina beatitude, para o Deus Unigênito, o mistério do Pai é ser o princípio da natividade.

61.  Receber não supõe nenhuma diminuição, porque daí resulta que o Filho, pela genuína natividade, seja a perfeita imagem do seu princípio.

62.  Ter-lhe sido dado o poder sobre toda a carne, com a finalidade de conceder a vida eterna, significa que o doador é aquele que é Pai e que Aquele que recebe é Deus.

63.  Dar indica o ser Pai e receber. O poder de dar a vida eterna demonstra que o Filho continua sendo Deus. Este poder do Filho de Deus vem de sua natureza e lhe é congênito. Este poder que lhe foi dado não o separa do seu princípio, porque aquilo que lhe foi dado é próprio do Pai, a saber, dar a vida eterna e transformar a corrupção em incorrupção.

64.  O Pai tudo deu e o Filho recebeu tudo. Sobre isso não há dúvida nenhuma, pois disse: Tudo o que é do Pai é meu (Jo 16,15). Esta palavra não indica as diferentes espécies de criaturas, nem as diversas mutações dos elementos, mas, abrindo para nós a glória da feliz e absoluta divindade, revela que se deve reconhecer a Deus no que lhe é próprio: a força, a eternidade, a providência, o poder.

65.  Não se deve pensar que Deus tenha tudo isso como algo exterior a Ele, mas sim que, por meio destas coisas, permite à nossa inteligência limitada saber um pouco quem seja Ele.

66.   Portanto, o Unigênito que subsiste na condição própria do Pai, depois de ter dito que o Espírito Santo iria receber dele, acrescentou: Tudo o que é do Pai é meu, por isso disse: receberá do que é meu (Jo 16,15).

67.  Tudo o que é do Pai é seu, foi-lhe entregue e Ele recebeu. Mas o que lhe foi dado não diminui a sua divindade, porque o faz existir na mesma condição que o Pai.

 

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