O livro IX refuta os argumentos arianos
sobre a inferioridade do Filho. Hilário demonstra que é preciso distinguir em
Cristo as duas naturezas e os diversos estágios, antes da encarnação, na sua
vida terrena e depois da ressurreição.
Capítulo
23.
1.
Não têm em si o amor do Pai, porque não
acolheram aquele que veio em nome do Pai e, vindo outro no próprio nome, a este
receberão. Ao dar glória uns aos outros, não buscam a glória que pertence ao
único Deus.
2.
Pode-se entender que Cristo se separa
da glória do único Deus, porque não se busca a glória do Deus único, quando o
anticristo é recebido e Ele não é acolhido?
3.
Se o repúdio deste representa a negação
da glória do Deus único, é forçoso que a glória que é dada ao Deus único
glorifique Aquele que deveriam ter acolhido para que fosse dada glória ao Deus
único.
4.
Disto o mesmo discurso nos dá testemunho,
por conter este exórdio: Para que todos glorifiquem o Filho, assim como glorificam
o Pai. Quem não glorifica o Filho, não glorifica o Pai que o enviou (Jo 5,23).
5.
Se a natureza não é a mesma, não há
igualdade na glória, e a igualdade na glória não separa os que devem ser
glorificados, pois, pelo mistério da natividade, se postula a igualdade.
6.
O Filho deve ser glorificado como o
Pai. Quando não se busca a glória daquele que é o único Deus, também não se
busca a daquele que tem a mesma glória que o único Deus porque, por não se
glorificar o Filho, não se glorifica também o Pai.
7.
Assim, não busca a glória do único
Deus, quem não busca também a de Cristo. A glória de Cristo é inseparável da
glória de Deus.
8.
Cristo demonstrou ser uma só e a mesma
a glória de ambos, quando lhe foi anunciada a enfermidade de Lázaro: Esta
enfermidade não é para a morte, mas para a glória de Deus, para que, por Ele,
seja glorificado o Filho de Deus (Jo 11,4).
9.
Para a glória de Deus, Lázaro morre, a
fim de que o Filho de Deus seja glorificado por meio de Lázaro.
10. Ainda
se duvida de que a glória de Deus consista na glória do Filho de Deus, quando a
morte de Lázaro, gloriosa para Deus, dará glória ao Filho de Deus?
11. Assim
se ensina a unidade da natureza de Deus Pai em Cristo pela natividade, já que a
enfermidade de Lázaro é para a glória de Deus, e conserva-se o mistério da fé,
visto que o Filho de Deus será glorificado por Lázaro.
12. Por
isso, deve-se entender que o Filho de Deus é Deus, de modo que, ao pensar em
Deus, deve ser também confessado o Filho, porque quando Deus foi glorificado
por Lázaro, foi também glorificado o Filho de Deus.
Capítulo
24.
13. Inseparável
do mistério da natureza divina é a natividade do Vivente nascido do Vivente.
14. O
Filho de Deus não sofreu em sua natureza nenhuma mudança que o impedisse de
permanecer na realidade da natureza paterna.
15. As
próprias palavras com as quais, confessando um só Deus, pareceria negar estar
em si a natureza de Deus, porque se referia ao único Deus, situam-no na unidade
de natureza com o Pai, sem negar a fé no único Deus.
16. Quando
o escriba perguntou qual era o principal mandamento da Lei, respondeu: Ouve,
Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor; e amarás o Senhor teu Deus de
todo o teu coração, de toda a tua alma e com todo o teu entendimento, e com todas
as tuas forças. Este é o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a ele: Amarás
o teu próximo como a ti mesmo. Maior do que este mandamento não existe (Mc
12,29-31).
17. Julgaram
que se separou da natureza e da honra devida a um só Deus, por ser este o
principal mandamento: Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor, e
que não se constituiu a si mesmo objeto de veneração no mandamento seguinte,
pois a Lei nos convida a amar o próximo, como a crer no único Senhor.
18. Não se
deve negligenciar a resposta do escriba que diz: Falaste bem, Mestre, na
verdade, Deus é Um, e não há outro além dele; assim deve ser amado de todo
coração e com todas as forças e com toda a alma; e deve-se amar o próximo como
a si mesmo. Isto é mais do que todos os holocaustos e sacrifícios (Mc
12,32-33).
19. Vê-se
que a resposta do escriba concorda com as palavras do Senhor quando afirma que
se deve amar o único Deus com íntima e profunda caridade e se deve amar o
próximo na medida do próprio amor, entendendo estar acima dos sacrifícios e
holocaustos o amor a Deus e ao homem. Mas vejamos o que se segue.
Capítulo
25.
20. Vendo
Jesus que havia respondido com sabedoria, disse-lhe: “Não estás longe do reino
de Deus” (Mc 12,34). Que quer dizer esta resposta tão
prudente? Se esta é a fé que leva ao reino dos céus: crer em um só Deus e a Ele
amar com toda a alma e com todas as forças e de todo o coração e também amar ao
próximo como a si mesmo, por que o escriba ainda não está no reino de Deus, mas
somente não está longe do reino de Deus?
21. Em
outras palavras, o reino é dado aos que vestem o nu, alimentam o faminto, dão
de beber aos que têm sede e visitam os doentes e encarcerados: Vinde,
benditos de meu Pai, tomai posse do reino que para vós foi preparado desde a
criação do mundo (Mt 25,34).
22. Os que
têm espírito de pobre receberão a recompensa: Bem-aventurados os pobres em
espírito porque deles é o reino dos céus (Mt 5,3). É este o fruto perfeito,
a posse absoluta e a entrega certa do reino preparado (cf. Mc 10,20).
23. Será
que o jovem confessava menos que estas coisas? Depois de comparar o amor pelo
próximo ao amor de si mesmo, que faltava ainda para a consumação da boa obra?
24. Ser
indulgente e prestativo, só ocasionalmente, não significa a caridade perfeita.
A perfeita caridade cumpre inteiramente o dever de amar com uma bondade
multiforme, não deixa de fazer tudo o que é devido ao outro nem de dar ao outro
o que dá a si mesmo.
25. O
Senhor louva o Escriba por sua profissão de fé, dizendo não estar longe do
reino de Deus, no entanto, não o coloca na própria posse da feliz esperança,
porque ele ainda se acha tolhido pela ignorância do mistério perfeito.
26. Tendia,
no entanto, para o caminho certo, apesar de sua ignorância, pondo em primeiro
lugar o amor a Deus e comparando o amor ao próximo com o amor de si mesmo.
27. Como
antepusera o amor a Deus à caridade para com o próximo, já não se restringia
aos holocaustos e sacrifícios prescritos. E com isto não estava longe do
mistério evangélico.
Capítulo
26.
28. As
próprias palavras do Senhor dão a entender que não está longe do reino de Deus;
mas não se diz que estará no reino de Deus, pois continua: Ninguém mais
ousava interrogá-lo. E prosseguiu Jesus, ensinando no templo, e disse: “Como
dizem os escribas que Cristo é o filho de Davi? O próprio Davi diz no Espírito
Santo: ‘Disse o Senhor a meu Senhor, senta-te à minha direita até que
ponha teus inimigos como escabelo de teus pés’. O próprio Davi o chama de
Senhor; como será seu filho?” (Mc 12,34).
29. O
escriba não está longe do reino de Deus, ao confessar o Deus único, que deve ser
amado acima de tudo. É, porém, advertido, por causa mesma profissão de fé, pois
ignora o mistério da Lei e não sabe que Cristo Senhor é Filho de Deus, pela
natureza da natividade, devendo ser confessado na fé em um só Senhor.
30. Como,
na confissão de um único Senhor, conforme a Lei, parece não haver lugar para o
Filho de Deus no mistério de um só Senhor, pergunta ao escriba como se pode
dizer que Cristo é Filho de Davi, se o próprio Davi declara ser Ele o seu
Senhor, e a natureza não admite que seja Filho de tão grande patriarca e, ao
mesmo tempo, o seu Senhor.
31. Disse
isso porque o escriba entendia que Ele existia somente segundo a carne e que,
pelo parto de Maria, era descendente de Davi.
32. Queria
lembrar-lhe que, segundo o Espírito, Ele é o Senhor de Davi, mais do que seu
filho, e que o que foi dito: Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único
Senhor (Mc 12,29) não afasta Cristo do mistério de um só Senhor, pois um
tão grande Patriarca e Profeta declarou ser seu Senhor Aquele que foi gerado do
seio do Senhor, antes do astro da manhã, sem esquecer-se da Lei, nem ignorar
que nenhum outro deve ser declarado Senhor.
33. Sabia,
porém, que Aquele que, pelo mistério da sua natureza divina, subsiste, vindo do
seio do Deus incorpóreo, deve ser compreendido como Senhor, sem violar a fé na
Lei, pois o Único que procede do Único, pela natureza do único Senhor, tem em
si, por natureza, o ser Senhor.
Capítulo
27.
34. Que
lugar existe ainda para a dúvida? O próprio Senhor, ensinando ao escriba ser o primeiro
e mais importante mandamento da Lei a confissão e o amor do único Senhor, não
apelou para o seu próprio testemunho, mas para o do Profeta, que diz ser Ele Senhor
porque é Filho de Deus.
35. Por
isso, permanece no mistério do único Deus pelo nascimento. O que nasce de Deus,
tendo em si a natureza de Deus, não dá lugar a outro Deus, por uma natureza
diferente.
36. A
verdade da geração não retira do Pai o ser Senhor, nem faz com que o Filho
deixe de ser perfeito Senhor. O Pai não perde o senhorio, e o Filho não perde a
natureza divina.
37. Deus
Pai é o único Senhor, e o Senhor Deus Unigênito não se separa do Único, porque,
como o Único que provém do único Senhor, subsiste como Senhor e ensina, pela
Lei, que existe um único Senhor, de tal modo que também o Profeta confirma que
Ele é Senhor.
Capítulo
28.
38. Que a
fé evangélica possa dar resposta às outras proposições do furor ímpio e as combata,
usando as mesmas palavras com as quais é atacada, vencendo com as mesmas armas
que procuram destruí-la e mostrando que as palavras do único Espírito são o ensinamento
da fé única, pois não há outro Cristo, senão o que anunciamos.
39. Ele é
Deus verdadeiro e permanece na glória do único Deus verdadeiro. Ele mesmo
afirmou ser o Senhor, quando a Lei parecia negá-lo.
40. Também
no Evangelho, mostra que é Deus verdadeiro, quando se julga que não o declarou.
41. Os
hereges usam, como desculpa para dizer que Ele não é Deus verdadeiro, estas
palavras: É esta a vida eterna, que te conheçam a ti, único verdadeiro Deus,
e a quem enviaste, Jesus Cristo (Jo 17,3).
42. Ao dizer
a ti, único verdadeiro Deus, parece separar-se do verdadeiro Deus pela
afirmação de que Deus é solitário, já que somente se pode conceber como
verdadeiro Deus a um Deus solitário.
43. Na
verdade, a fé apostólica não admite que se creia em dois deuses verdadeiros,
porque nada alheio à natureza do Deus único se pode equiparar à realidade de
sua natureza.
44. Deus,
portanto, não será realmente um Deus único, se fora da natureza do único Deus
verdadeiro existir um Deus verdadeiro de outro gênero, que não possua, por seu
nascimento, a mesma natureza.
Capítulo
29.
45. Para
que se entenda que, ao dizer isso, Ele afirmou sem ambiguidade ser verdadeiro Deus
na mesma natureza do único Deus verdadeiro, nossa resposta deve partir das declarações
anteriores ligadas a esta frase, a fim de que, pela demonstração gradual da fé,
a confiança de nossa liberdade repouse no próprio ápice que é Cristo, o
verdadeiro Deus.
46. Depois
das palavras sobre tão grandes mistérios: Quem me vê, vê também o Pai, e:
Não credes em mim, que Eu estou no Pai, e o Pai em mim? As palavras que vos digo,
não as digo por mim mesmo, mas o Pai, que permanece em mim, realiza suas obras.
Crede em mim, porque Eu estou no Pai, e o Pai está em mim; se não, crede ao menos
pelas próprias obras (Jo 14,9-12), vem a resposta dos discípulos: Agora,
sim, sabemos que conheces tudo, e não tens necessidade de que alguém te
interrogue; nisto cremos que saíste de Deus (Jo 16,30-31).
47. Pelo
poder de Deus que havia nele, os discípulos compreenderam que tinha a natureza
divina, pois saber todas as coisas, sem exceção, e conhecer os pensamentos dos
corações, não é próprio de um enviado de Deus, mas sim daquele que nasceu de
Deus.
48. Por
isso declararam acreditar que saíra de Deus: porque nele estava o poder da
natureza de Deus.
Capítulo
30.
49. O
Senhor respondeu louvando o entendimento deles, pois, dizendo saíste de
Deus, davam testemunho de que tinha nascido do Deus incorpóreo, afirmando,
não que tivesse sido enviado, mas que nascera de Deus.
50. Ele
mesmo falara de sua natividade sob a figura de saída, ao dizer: Vós me amais
e credes que saí de Deus e, do Pai, vim a este mundo (Jo 16,27-28). Do Pai
viera a este mundo, porque saíra de Deus. Para que se entendesse que sua
natividade significava a saída, acrescentou que viera da parte do Pai.
51. E já
que viera do Pai, porque saíra de Deus, sua saída de Deus é a absoluta
natividade, já que, a seguir, se invoca o nome do Pai.
52. Entendendo
então os Apóstolos este mistério da saída, disse-lhes Ele: Credes agora? Eis
que vem a hora, e é agora, em que vos dispersareis cada um para seu lado e me
deixareis sozinho; mas não estou só, porque o Pai está comigo (Jo
16,32-33).
53. Para
ensinar que essa saída não é afastamento de Deus Pai, mas que, ao nascer,
conservara a natureza de Deus Pai, acrescentou não estar sozinho, mas ter o Pai
consigo, certamente pela força e unidade da natureza, já que o Pai estava com Ele
e nele permanecia, falando e agindo, quando Ele falava e agia.
54. Em
seguida, para explicar o motivo destas palavras, acrescentou: Isto vos
disse, para que em mim tenhais a paz. No mundo, porém, tereis atribulações, mas
tende coragem, porque Eu venci o mundo (Jo 16,33).
55. Falou-lhes
assim para que permanecessem nele, em paz, a fim de que a vontade de discutir
não os fizesse dissentir nas disputas da fé, porque o que era deixado só não
estava só e o que saíra de Deus tinha em si o Deus do qual saíra, e para que, quando
fossem ultrajados no mundo, esperassem com paciência o que prometera, porque,
saindo de Deus e tendo Deus consigo, vencera o mundo.
Capítulo
31.
56. Finalmente,
antes de falar de todo o mistério da fé, elevando aos céus os olhos, disse: Pai,
chegou a hora, glorifica teu Filho, a fim de que teu Filho te glorifique. E que
pelo poder que tu lhe deste sobre toda a carne, Ele lhe dê a vida a todos os
que lhe deste (Jo 17,1-2).
57. Parece
fraco, porque roga para ser glorificado? Seria fraco se não rogasse para ser
glorificado para glorificar, Ele mesmo, ao que o glorifica.
58. Já
tratamos, em outro livro, da glória a ser tributada e retribuída. Certamente
pede a glória para que Aquele que a concede seja glorificado. Talvez então seja
fraco por receber o poder sobre toda a carne. Seria fraqueza receber o poder,
se não tivesse o poder de conceder, aos que o recebem, a vida eterna.
59. Justamente
porque recebe, atribuem alguma fraqueza à sua natureza. Admita-se a fraqueza,
se Cristo não fosse verdadeiro Deus pela natividade, mas sim pela
inascibilidade, porque, se receber o poder indica só a natividade, pela qual recebe
aquilo que é, não se pode atribuir à fraqueza a doação, porque ela faz com que Aquele
que nasce seja Deus perfeito.
60. Sendo
o Deus Inascível o princípio da perfeita natividade da divina beatitude, para o
Deus Unigênito, o mistério do Pai é ser o princípio da natividade.
61. Receber
não supõe nenhuma diminuição, porque daí resulta que o Filho, pela genuína
natividade, seja a perfeita imagem do seu princípio.
62. Ter-lhe
sido dado o poder sobre toda a carne, com a finalidade de conceder a vida
eterna, significa que o doador é aquele que é Pai e que Aquele que recebe é
Deus.
63. Dar
indica o ser Pai e receber. O poder de dar a vida eterna demonstra que o Filho
continua sendo Deus. Este poder do Filho de Deus vem de sua natureza e lhe é congênito.
Este poder que lhe foi dado não o separa do seu princípio, porque aquilo que
lhe foi dado é próprio do Pai, a saber, dar a vida eterna e transformar a
corrupção em incorrupção.
64. O Pai
tudo deu e o Filho recebeu tudo. Sobre isso não há dúvida nenhuma, pois disse: Tudo
o que é do Pai é meu (Jo 16,15). Esta palavra não indica as diferentes
espécies de criaturas, nem as diversas mutações dos elementos, mas, abrindo
para nós a glória da feliz e absoluta divindade, revela que se deve reconhecer
a Deus no que lhe é próprio: a força, a eternidade, a providência, o poder.
65. Não se
deve pensar que Deus tenha tudo isso como algo exterior a Ele, mas sim que, por
meio destas coisas, permite à nossa inteligência limitada saber um pouco quem
seja Ele.
66. Portanto, o Unigênito que subsiste na condição
própria do Pai, depois de ter dito que o Espírito Santo iria receber dele,
acrescentou: Tudo o que é do Pai é meu, por isso disse: receberá do que é
meu (Jo 16,15).
67. Tudo o
que é do Pai é seu, foi-lhe entregue e Ele recebeu. Mas o que lhe foi dado não
diminui a sua divindade, porque o faz existir na mesma condição que o Pai.
O que você destaca no texto?
Como serve para sua
espiritualidade?
O que você destaca na fala do
seu irmnão/ã?
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