terça-feira, 20 de junho de 2023

231 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Nono (Capítulos 23 - 31)


231

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Nono (Capítulos 23 -  31)


 

 

Capítulo 23.

1.      Não têm em si o amor do Pai, porque não acolheram aquele que veio em nome do Pai e, vindo outro no próprio nome, a este receberão. Ao dar glória uns aos outros, não buscam a glória que pertence ao único Deus.

2.      Pode-se entender que Cristo se separa da glória do único Deus, porque não se busca a glória do Deus único, quando o anticristo é recebido e Ele não é acolhido?

3.      Se o repúdio deste representa a negação da glória do Deus único, é forçoso que a glória que é dada ao Deus único glorifique Aquele que deveriam ter acolhido para que fosse dada glória ao Deus único.

4.      Disto o mesmo discurso nos dá testemunho, por conter este exórdio: Para que todos glorifiquem o Filho, assim como glorificam o Pai. Quem não glorifica o Filho, não glorifica o Pai que o enviou (Jo 5,23).

5.      Se a natureza não é a mesma, não há igualdade na glória, e a igualdade na glória não separa os que devem ser glorificados, pois, pelo mistério da natividade, se postula a igualdade.

6.      O Filho deve ser glorificado como o Pai. Quando não se busca a glória daquele que é o único Deus, também não se busca a daquele que tem a mesma glória que o único Deus porque, por não se glorificar o Filho, não se glorifica também o Pai.

7.      Assim, não busca a glória do único Deus, quem não busca também a de Cristo. A glória de Cristo é inseparável da glória de Deus.

8.      Cristo demonstrou ser uma só e a mesma a glória de ambos, quando lhe foi anunciada a enfermidade de Lázaro: Esta enfermidade não é para a morte, mas para a glória de Deus, para que, por Ele, seja glorificado o Filho de Deus (Jo 11,4).

9.      Para a glória de Deus, Lázaro morre, a fim de que o Filho de Deus seja glorificado por meio de Lázaro.

10.  Ainda se duvida de que a glória de Deus consista na glória do Filho de Deus, quando a morte de Lázaro, gloriosa para Deus, dará glória ao Filho de Deus?

11.  Assim se ensina a unidade da natureza de Deus Pai em Cristo pela natividade, já que a enfermidade de Lázaro é para a glória de Deus, e conserva-se o mistério da fé, visto que o Filho de Deus será glorificado por Lázaro.

12.  Por isso, deve-se entender que o Filho de Deus é Deus, de modo que, ao pensar em Deus, deve ser também confessado o Filho, porque quando Deus foi glorificado por Lázaro, foi também glorificado o Filho de Deus.

 

Capítulo 24.

13.  Inseparável do mistério da natureza divina é a natividade do Vivente nascido do Vivente.

14.  O Filho de Deus não sofreu em sua natureza nenhuma mudança que o impedisse de permanecer na realidade da natureza paterna.

15.  As próprias palavras com as quais, confessando um só Deus, pareceria negar estar em si a natureza de Deus, porque se referia ao único Deus, situam-no na unidade de natureza com o Pai, sem negar a fé no único Deus.

16.  Quando o escriba perguntou qual era o principal mandamento da Lei, respondeu: Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor; e amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e com todo o teu entendimento, e com todas as tuas forças. Este é o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a ele: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Maior do que este mandamento não existe (Mc 12,29-31).

17.  Julgaram que se separou da natureza e da honra devida a um só Deus, por ser este o principal mandamento: Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor, e que não se constituiu a si mesmo objeto de veneração no mandamento seguinte, pois a Lei nos convida a amar o próximo, como a crer no único Senhor.

18.  Não se deve negligenciar a resposta do escriba que diz: Falaste bem, Mestre, na verdade, Deus é Um, e não há outro além dele; assim deve ser amado de todo coração e com todas as forças e com toda a alma; e deve-se amar o próximo como a si mesmo. Isto é mais do que todos os holocaustos e sacrifícios (Mc 12,32-33).

19.  Vê-se que a resposta do escriba concorda com as palavras do Senhor quando afirma que se deve amar o único Deus com íntima e profunda caridade e se deve amar o próximo na medida do próprio amor, entendendo estar acima dos sacrifícios e holocaustos o amor a Deus e ao homem. Mas vejamos o que se segue.

 

Capítulo 25.

20.  Vendo Jesus que havia respondido com sabedoria, disse-lhe: “Não estás longe do reino de Deus” (Mc 12,34). Que quer dizer esta resposta tão prudente? Se esta é a fé que leva ao reino dos céus: crer em um só Deus e a Ele amar com toda a alma e com todas as forças e de todo o coração e também amar ao próximo como a si mesmo, por que o escriba ainda não está no reino de Deus, mas somente não está longe do reino de Deus?

21.  Em outras palavras, o reino é dado aos que vestem o nu, alimentam o faminto, dão de beber aos que têm sede e visitam os doentes e encarcerados: Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do reino que para vós foi preparado desde a criação do mundo (Mt 25,34).

22.  Os que têm espírito de pobre receberão a recompensa: Bem-aventurados os pobres em espírito porque deles é o reino dos céus (Mt 5,3). É este o fruto perfeito, a posse absoluta e a entrega certa do reino preparado (cf. Mc 10,20).

23.  Será que o jovem confessava menos que estas coisas? Depois de comparar o amor pelo próximo ao amor de si mesmo, que faltava ainda para a consumação da boa obra?

24.  Ser indulgente e prestativo, só ocasionalmente, não significa a caridade perfeita. A perfeita caridade cumpre inteiramente o dever de amar com uma bondade multiforme, não deixa de fazer tudo o que é devido ao outro nem de dar ao outro o que dá a si mesmo.

25.  O Senhor louva o Escriba por sua profissão de fé, dizendo não estar longe do reino de Deus, no entanto, não o coloca na própria posse da feliz esperança, porque ele ainda se acha tolhido pela ignorância do mistério perfeito.

26.  Tendia, no entanto, para o caminho certo, apesar de sua ignorância, pondo em primeiro lugar o amor a Deus e comparando o amor ao próximo com o amor de si mesmo.

27.  Como antepusera o amor a Deus à caridade para com o próximo, já não se restringia aos holocaustos e sacrifícios prescritos. E com isto não estava longe do mistério evangélico.

 

Capítulo 26.

28.  As próprias palavras do Senhor dão a entender que não está longe do reino de Deus; mas não se diz que estará no reino de Deus, pois continua: Ninguém mais ousava interrogá-lo. E prosseguiu Jesus, ensinando no templo, e disse: Como dizem os escribas que Cristo é o filho de Davi? O próprio Davi diz no Espírito Santo: Disse o Senhor a meu Senhor, senta-te à minha direita até que ponha teus inimigos como escabelo de teus pés’. O próprio Davi o chama de Senhor; como será seu filho?” (Mc 12,34).

29.  O escriba não está longe do reino de Deus, ao confessar o Deus único, que deve ser amado acima de tudo. É, porém, advertido, por causa mesma profissão de fé, pois ignora o mistério da Lei e não sabe que Cristo Senhor é Filho de Deus, pela natureza da natividade, devendo ser confessado na fé em um só Senhor.

30.  Como, na confissão de um único Senhor, conforme a Lei, parece não haver lugar para o Filho de Deus no mistério de um só Senhor, pergunta ao escriba como se pode dizer que Cristo é Filho de Davi, se o próprio Davi declara ser Ele o seu Senhor, e a natureza não admite que seja Filho de tão grande patriarca e, ao mesmo tempo, o seu Senhor.

31.  Disse isso porque o escriba entendia que Ele existia somente segundo a carne e que, pelo parto de Maria, era descendente de Davi.

32.  Queria lembrar-lhe que, segundo o Espírito, Ele é o Senhor de Davi, mais do que seu filho, e que o que foi dito: Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor (Mc 12,29) não afasta Cristo do mistério de um só Senhor, pois um tão grande Patriarca e Profeta declarou ser seu Senhor Aquele que foi gerado do seio do Senhor, antes do astro da manhã, sem esquecer-se da Lei, nem ignorar que nenhum outro deve ser declarado Senhor.

33.  Sabia, porém, que Aquele que, pelo mistério da sua natureza divina, subsiste, vindo do seio do Deus incorpóreo, deve ser compreendido como Senhor, sem violar a fé na Lei, pois o Único que procede do Único, pela natureza do único Senhor, tem em si, por natureza, o ser Senhor.

 

Capítulo 27.

34.  Que lugar existe ainda para a dúvida? O próprio Senhor, ensinando ao escriba ser o primeiro e mais importante mandamento da Lei a confissão e o amor do único Senhor, não apelou para o seu próprio testemunho, mas para o do Profeta, que diz ser Ele Senhor porque é Filho de Deus.

35.  Por isso, permanece no mistério do único Deus pelo nascimento. O que nasce de Deus, tendo em si a natureza de Deus, não dá lugar a outro Deus, por uma natureza diferente.

36.  A verdade da geração não retira do Pai o ser Senhor, nem faz com que o Filho deixe de ser perfeito Senhor. O Pai não perde o senhorio, e o Filho não perde a natureza divina.

37.  Deus Pai é o único Senhor, e o Senhor Deus Unigênito não se separa do Único, porque, como o Único que provém do único Senhor, subsiste como Senhor e ensina, pela Lei, que existe um único Senhor, de tal modo que também o Profeta confirma que Ele é Senhor.

 

Capítulo 28.

38.  Que a fé evangélica possa dar resposta às outras proposições do furor ímpio e as combata, usando as mesmas palavras com as quais é atacada, vencendo com as mesmas armas que procuram destruí-la e mostrando que as palavras do único Espírito são o ensinamento da fé única, pois não há outro Cristo, senão o que anunciamos.

39.  Ele é Deus verdadeiro e permanece na glória do único Deus verdadeiro. Ele mesmo afirmou ser o Senhor, quando a Lei parecia negá-lo.

40.  Também no Evangelho, mostra que é Deus verdadeiro, quando se julga que não o declarou.

41.  Os hereges usam, como desculpa para dizer que Ele não é Deus verdadeiro, estas palavras: É esta a vida eterna, que te conheçam a ti, único verdadeiro Deus, e a quem enviaste, Jesus Cristo (Jo 17,3).

42.  Ao dizer a ti, único verdadeiro Deus, parece separar-se do verdadeiro Deus pela afirmação de que Deus é solitário, já que somente se pode conceber como verdadeiro Deus a um Deus solitário.

43.  Na verdade, a fé apostólica não admite que se creia em dois deuses verdadeiros, porque nada alheio à natureza do Deus único se pode equiparar à realidade de sua natureza.

44.  Deus, portanto, não será realmente um Deus único, se fora da natureza do único Deus verdadeiro existir um Deus verdadeiro de outro gênero, que não possua, por seu nascimento, a mesma natureza.

 

Capítulo 29.

45.  Para que se entenda que, ao dizer isso, Ele afirmou sem ambiguidade ser verdadeiro Deus na mesma natureza do único Deus verdadeiro, nossa resposta deve partir das declarações anteriores ligadas a esta frase, a fim de que, pela demonstração gradual da fé, a confiança de nossa liberdade repouse no próprio ápice que é Cristo, o verdadeiro Deus.

46.  Depois das palavras sobre tão grandes mistérios: Quem me vê, vê também o Pai, e: Não credes em mim, que Eu estou no Pai, e o Pai em mim? As palavras que vos digo, não as digo por mim mesmo, mas o Pai, que permanece em mim, realiza suas obras. Crede em mim, porque Eu estou no Pai, e o Pai está em mim; se não, crede ao menos pelas próprias obras (Jo 14,9-12), vem a resposta dos discípulos: Agora, sim, sabemos que conheces tudo, e não tens necessidade de que alguém te interrogue; nisto cremos que saíste de Deus (Jo 16,30-31).

47.  Pelo poder de Deus que havia nele, os discípulos compreenderam que tinha a natureza divina, pois saber todas as coisas, sem exceção, e conhecer os pensamentos dos corações, não é próprio de um enviado de Deus, mas sim daquele que nasceu de Deus.

48.  Por isso declararam acreditar que saíra de Deus: porque nele estava o poder da natureza de Deus.

 

Capítulo 30.

49.  O Senhor respondeu louvando o entendimento deles, pois, dizendo saíste de Deus, davam testemunho de que tinha nascido do Deus incorpóreo, afirmando, não que tivesse sido enviado, mas que nascera de Deus.

50.  Ele mesmo falara de sua natividade sob a figura de saída, ao dizer: Vós me amais e credes que saí de Deus e, do Pai, vim a este mundo (Jo 16,27-28). Do Pai viera a este mundo, porque saíra de Deus. Para que se entendesse que sua natividade significava a saída, acrescentou que viera da parte do Pai.

51.  E já que viera do Pai, porque saíra de Deus, sua saída de Deus é a absoluta natividade, já que, a seguir, se invoca o nome do Pai.

52.  Entendendo então os Apóstolos este mistério da saída, disse-lhes Ele: Credes agora? Eis que vem a hora, e é agora, em que vos dispersareis cada um para seu lado e me deixareis sozinho; mas não estou só, porque o Pai está comigo (Jo 16,32-33).

53.  Para ensinar que essa saída não é afastamento de Deus Pai, mas que, ao nascer, conservara a natureza de Deus Pai, acrescentou não estar sozinho, mas ter o Pai consigo, certamente pela força e unidade da natureza, já que o Pai estava com Ele e nele permanecia, falando e agindo, quando Ele falava e agia.

54.  Em seguida, para explicar o motivo destas palavras, acrescentou: Isto vos disse, para que em mim tenhais a paz. No mundo, porém, tereis atribulações, mas tende coragem, porque Eu venci o mundo (Jo 16,33).

55.  Falou-lhes assim para que permanecessem nele, em paz, a fim de que a vontade de discutir não os fizesse dissentir nas disputas da fé, porque o que era deixado só não estava só e o que saíra de Deus tinha em si o Deus do qual saíra, e para que, quando fossem ultrajados no mundo, esperassem com paciência o que prometera, porque, saindo de Deus e tendo Deus consigo, vencera o mundo.

 

Capítulo 31.

56.  Finalmente, antes de falar de todo o mistério da fé, elevando aos céus os olhos, disse: Pai, chegou a hora, glorifica teu Filho, a fim de que teu Filho te glorifique. E que pelo poder que tu lhe deste sobre toda a carne, Ele lhe dê a vida a todos os que lhe deste (Jo 17,1-2).

57.  Parece fraco, porque roga para ser glorificado? Seria fraco se não rogasse para ser glorificado para glorificar, Ele mesmo, ao que o glorifica.

58.  Já tratamos, em outro livro, da glória a ser tributada e retribuída. Certamente pede a glória para que Aquele que a concede seja glorificado. Talvez então seja fraco por receber o poder sobre toda a carne. Seria fraqueza receber o poder, se não tivesse o poder de conceder, aos que o recebem, a vida eterna.

59.  Justamente porque recebe, atribuem alguma fraqueza à sua natureza. Admita-se a fraqueza, se Cristo não fosse verdadeiro Deus pela natividade, mas sim pela inascibilidade, porque, se receber o poder indica só a natividade, pela qual recebe aquilo que é, não se pode atribuir à fraqueza a doação, porque ela faz com que Aquele que nasce seja Deus perfeito.

60.  Sendo o Deus Inascível o princípio da perfeita natividade da divina beatitude, para o Deus Unigênito, o mistério do Pai é ser o princípio da natividade.

61.  Receber não supõe nenhuma diminuição, porque daí resulta que o Filho, pela genuína natividade, seja a perfeita imagem do seu princípio.

62.  Ter-lhe sido dado o poder sobre toda a carne, com a finalidade de conceder a vida eterna, significa que o doador é aquele que é Pai e que Aquele que recebe é Deus.

63.  Dar indica o ser Pai e receber. O poder de dar a vida eterna demonstra que o Filho continua sendo Deus. Este poder do Filho de Deus vem de sua natureza e lhe é congênito. Este poder que lhe foi dado não o separa do seu princípio, porque aquilo que lhe foi dado é próprio do Pai, a saber, dar a vida eterna e transformar a corrupção em incorrupção.

64.  O Pai tudo deu e o Filho recebeu tudo. Sobre isso não há dúvida nenhuma, pois disse: Tudo o que é do Pai é meu (Jo 16,15). Esta palavra não indica as diferentes espécies de criaturas, nem as diversas mutações dos elementos, mas, abrindo para nós a glória da feliz e absoluta divindade, revela que se deve reconhecer a Deus no que lhe é próprio: a força, a eternidade, a providência, o poder.

65.  Não se deve pensar que Deus tenha tudo isso como algo exterior a Ele, mas sim que, por meio destas coisas, permite à nossa inteligência limitada saber um pouco quem seja Ele.

66.   Portanto, o Unigênito que subsiste na condição própria do Pai, depois de ter dito que o Espírito Santo iria receber dele, acrescentou: Tudo o que é do Pai é meu, por isso disse: receberá do que é meu (Jo 16,15).

67.  Tudo o que é do Pai é seu, foi-lhe entregue e Ele recebeu. Mas o que lhe foi dado não diminui a sua divindade, porque o faz existir na mesma condição que o Pai.

 

O que você destaca no texto?

Como serve para sua espiritualidade?

O que você destaca na fala do seu irmnão/ã?

 

 


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