terça-feira, 24 de abril de 2018

46 - Teófilo de Antioquia (†181) Primeiro Livro a Autólico (Capítulo 1 ao 5)


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46
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Teófilo de Antioquia (†181)
Primeiro Livro a Autólico (Capítulo 1 ao 5)


Capítulo I – Introdução
Boca eloqüente e dicção agradável fornecem prazer e glória fútil de louvor para os pobres homens que têm o entendimento corrompido; o amante da verdade, porém, não se prende a palavras afetadas, mas examina a eficácia da palavra, o que ela é e de que tipo é. Pois bem, meu amigo: tu me causaste estupor com palavras vãs, vangloriando-te dos teus deuses de pedra e madeira cinzelados e fundidos, esculpidos e pintados, deuses que não vêem nem ouvem (de fato, são imagens e obras de mãos humanas); além disso, tu também me chamas zombeteiramente de cristão, como se eu portasse um nome infame. Quanto a mim, confesso que sou cristão e trago esse nome grato a Deus, e espero ser útil ao mesmo Deus. Não há fundamento, para supores que seja difícil ter o nome de Deus; talvez porque, sendo inútil para Deus, tu pensas dessa maneira sobre Deus.

Capítulo II – Condições morais para o conhecimento de Deus

Mas se tu me dizes: “Mostra-me teu Deus”, eu te poderia responder: “Mostra-me teu homem, e eu te mostrarei o meu Deus”. Mostra-me, portanto, os olhos de tua alma que vejam e os ouvidos do teu coração que ouçam. Com efeito, aqueles que vêem com os olhos do corpo observam aquilo que se passa na vida e sobre a terra, discernindo juntamente as diferenças entre a luz e a escuridão, entre o branco e o negro, entre o disforme e a bela forma, entre o que é harmonioso, bem proporcionado e o que é desarmonioso e desproporcional, desmesurado e truncado; a mesma coisa para aquilo que cai sob o sentido dos ouvidos: sons agudos, graves e suaves. Acontece do mesmo modo com os ouvidos do coração e os olhos da alma aos quais é possível perceber Deus. De fato, Deus é experimentado por aqueles que podem vê-lo, desde que os olhos de sua alma estejam abertos. Todos têm olhos, mas alguns os têm obscurecidos e não percebem a luz do sol; e não é porque os cegos não vêem que a luz do sol deixa de brilhar, mas os cegos devem buscar a causa em si mesmos e em seus olhos.
Do mesmo modo, Ó homem, tu tens os olhos de tua alma obscurecidos por tuas faltas e tuas más ações. O homem deve ter alma pura como espelho brilhante. Quando o espelho fica enferrujado, não se pode mais ver a face do homem no espelho; assim também, quando há falta no homem, esse homem já não pode contemplar a Deus. Mostra-te a ti mesmo, se não és adúltero, se não és devasso se não és pederasta, se não és ladrão, se não és explorador, se não és colérico, se não és invejoso, se não és impostor, se não és soberbo, se não és brutal, se não és amante do dinheiro, se não desobedeces a teus pais, se não vendes teus filhos. Com efeito, Deus não se manifesta àqueles que cometem essas faltas, a não ser que antes se purifiquem de toda mancha. Por isso, tudo é obscuro para ti, como a bandagem que se coloca no olho por não poder contemplar a luz do sol. Assim também, ó homem, tuas impiedades projetam sobre ti trevas e tu não podes ver a Deus.

Capítulo III – Transcendência de Deus
Então me dirás: “Tu que vês, descreve-me o aspecto de Deus”. Escuta, homem: o aspecto de Deus é inefável, inexprimível, e não pode ser visto com os olhos carnais. Por sua glória, ele é sem limite, inigualável por sua grandeza, acima de qualquer idéia por sua altura, incomensurável por sua força, sem igual por sua sabedoria, inimitável por sua bondade, indizível por sua benevolência. Se eu o chamo Luz, é uma de suas criaturas que nomeio; se eu o chamo Verbo, nomeio o seu princípio; seu eu o chamo Razão, nomeio a sua inteligência; se eu o chamo Espírito, nomeio a sua respiração; se eu o chamo Sabedoria, nomeio o que ele gera; se eu o chamo Força, nomeio o seu poder; se eu o chamo Potência, nomeio a sua atividade; se eu o chamo Providência, nomeio a sua bondade; se eu o chamo Soberania, nomeio a sua glória; seu eu o chamo Senhor, digo que é juiz; se eu o chamo Juiz, digo que é justo; se eu o chamo Pai, digo que é tudo; se o chamo Fogo, nomeio a sua ira. Tu me dirás: “Deus fica irado?” Eu respondo: Sim, ele se ira contra aqueles cujas ações são más; no entanto, ele é bom, propício e misericordioso para com aqueles que o amam e o temem; ele é o educador dos fiéis, o pai dos justos, o juiz e castigador dos ímpios.

Capítulo IV – A soberania de Deus
Ele não tem princípio, porque não foi gerado; ele é imutável, porque é imortal. É chamado Deus porque fundou tudo sobre sua própria estabilidade, e ainda através de théein. Théein significa correr, ser ativo, trabalhar, alimentar, prover, governar, dar vida a tudo. Ele é Senhor, porque exerce o senhorio sobre tudo; Pai, porque existe antes de tudo; Fundador e Criador, porque ele criou e fez tudo; Altíssimo, porque ele é superior a todas as coisas; Onipotente, porque ele domina e envolve tudo. As alturas dos céus, as profundezas dos abismos, e os confins da terra estão em sua mão; não há lugar onde esteja suspensa a sua ação. Os céus são obra sua; a terra é realização sua; o mar é criação sua; o homem é figura e imagem sua; o sol, a lua e as estrelas são elementos seus, feitos para medir sinais, medida de tempo, dias e anos, para utilidade e serviço dos homens. E Deus fez tudo do não-ser para o ser, a fim de que por suas obras seja conhecida e compreendida a sua grandeza.

Capítulo V – Condições intelectuais para o conhecimento de Deus
Do mesmo modo como a alma não pode ser vista no homem, pois ela é invisível para os homens, mas pode ser imaginada por causa dos movimentos do corpo, assim também acontece com Deus: ele não pode ser visto pelos olhos humanos, mas pode ser visto e imaginado pela sua providência e pelas suas obras. Quando alguém vê no mar um navio com todo o seu apetrecho, que singra e se aproxima do porto, é evidente que pensa que há um piloto que o dirige; do mesmo modo, deve-se pensar que existe um Deus, que governa tudo, embora os olhos carnais não o vejam, porque ele não é circunscrito. Se o sol, que é o menor elemento existente, não pode ser fixado pelo olhar humano, pois é muito quente e muito forte, como não será muito mais impossível ao homem mortal ver face a face a glória inefável de Deus? A romã possui uma casca que a envolve; dentro tem muitas repartições ou casinhas separadas por membranas e, finalmente, muitos grãos aí alojados. Do mesmo modo, toda a criação está envolvida pelo sopro de Deus, e esse sopro que a envolve está com a criação pela mão de Deus.
Assim como o grão da romã, do interior de seu habitáculo, não pode ver o que está fora da casca, pois está lá dentro, também o homem, que é envolvido com toda a criação pela mão de Deus, não pode contemplar a Deus. Além disso, crê-se que um soberano terrestre existe, embora ninguém o veja: suas leis, seus editos, seus funcionários, suas autoridades, suas estátuas o tornam conhecido. E tu não queres reconhecer Deus pelas suas obras e manifestações de seu poder?

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segunda-feira, 16 de abril de 2018

45 - Teófilo de Antioquia (†182) Biografia


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45
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Teófilo de Antioquia (†182)
Biografia


Teófilo de Antioquia foi teólogo, escritor e apologista. Foi eleito o sexto bispo de Antioquia, na Síria. Seu episcopado durou entre 169 e 182.
Antioquia nasceu em uma família de pagãos. A cidade era próxima ao rio Eufrates, na região mais distante do Império Romano e já mais aproximada da Pérsia. Quando criança, teve importante formação literária. Nesses estudos, acabou conhecendo a Bíblia e se converteu ao cristianismo.
Não há muitas informações sobre a vida de Antioquia, mas há indícios de que ele teria sido o quinto sucessor de Pedro em solo sírio.
Há relatos, citações e comentários do autor. A escrita apologética, dividida em três partes, acabou sendo direcionada a um amigo chamado Autólico – “Três Livros a Autólico”.
A obra defende os representantes do cristianismo que continuavam a ser perseguidos pelo Império Romano.
Na Antiguidade, Autólico nada mais era do que a encarnação das pessoas pagãs que não eram raras ali no final do século II.
A escrita elegante de Antioquia era marcada por linguagem clara e bom debate com as críticas. Ele convidava os leitores a serem mais profundos no que diz respeito à fé cristã.
Defendeu, com veemência, os ideais e morais da fé cristã.

Obra e principais traços literários
Fez um importante comentário ao livro de Gênesis e montou algumas alegorias. Escreveu também o “Comentário aos Evangelhos”.
Dentre os autores cristãos, Teófilo de Antioquia foi o primeiro a querer explicar como os livros do Novo Testamento vieram a partir da inspiração dos autores. Ele comparava tais livros à qualidade do Antigo Testamento.
Em termos de doutrina, sempre foi adepto à doutrina da Santíssima Trindade. Apresentou as distinções entre as Pessoas.
Foi o criador do termo “Τριας” – “Trias”, que quer dizer unidade em três diferentes pessoas divinas. Aqui está a origem do nome Trindade.

Expressões como “Logos endiáthetos” –passou a corresponder a “Logos “imanente” ou “eterno” (“imanente”), significa que está com Deus e em Deus ou Deus-Pai desde a eternidade.
Já o “Logos proforikós”, no seu entender quer dizer “Logos “proferido” ou “emitido” uma espécie de matriz e instrumento da criação bem expresso nos dias iniciais. “Logos encarnado”.
“Logos imanente” significa Jesus na fundação do mundo, eterno, com Deus e em Deus Pai.
“Logos proferido” significa Jesus encarnado, ou a partir da encarnação. Com o corpo formado no ventre da mulher.

Na sua obra contra Autólico, Teófilo procura, com enorme elegância e clareza de linguagem, debater as críticas contra os cristãos e convidar o seu possível leitor a ousar aprofundar os seus conhecimentos acerca da fé cristã, defendendo, ainda, a moral exemplar dos cristãos.
Estamos diante do ao último apologista de renome do século II e o único, dentre eles, elevado ao episcopado.
Eusébio de Cesaréia nos informa que “da Igreja de Antioquia, Teófilo é conhecido como o sexto bispo depois dos apóstolos” (HE, IV,20).
Sua cultura revela que recebera excelente educação grega. Sua família era pagã. Converteu-se ao cristianismo já adulto, através da leitura dos profetas, especialmente.
Exortando seu interlocutor Autólico a crer, revela Teófilo o processo de sua conversão: “Eu também não acreditava que isso existisse, mas agora, depois de refletir muito, eu creio; ao mesmo tempo, li as Sagradas Escrituras dos santos profetas, os quais inspirados pelo Espírito de Deus, predisseram o passado como aconteceu, o presente tal como acontece e o futuro tal como se cumprirá. Por isso, tendo a prova das coisas acontecidas depois de terem sido preditas não sou incrédulo, mas creio e obedeço a Deus” (1,4).
Nada sabemos de sua morte ou de outras circunstâncias de sua vida. Sabemos apenas que por volta de 169-170, já era bispo de Antioquia.
Eusébio de Cesaréia afirma que “De Teófilo que citamos como bispo de Antioquia, possuímos três livros elementares A Autólico e outro intitulado Contra a heresia de Hermógenes, no qual utiliza testemunhos tiradas do Apocalipse de João. Possuímos ainda outros livros catequéticos. Como também naquele tempo, os hereges corrompiam não menos que em outros tempos, como a zizânia, a semente pura do ensinamento apostólico, os pastores da Igreja procuravam afastá-los, por toda parte, das ovelhas de Cristo, como feras selvagens, afastando-as tanto por meio de advertências e de exortações dirigidas aos irmãos, como lutando abertamente contra eles por meio de questões e de refutações orais, face a face, ou então refutando suas opiniões por provas bem precisas por meio de memórias escritas. Teófilo combateu, ao mesmo tempo que os outros, contra os heréticos, como demonstra um trabalho de grande valor composto por ele Contra Marcião. Esta obra foi conservada até o presente com os outros livros dos quais falamos” (HE, IV,24).
Os historiadores desse período costumam invocar, entre outros, também o testemunho de S. Jerônimo. De fato, no seu De viris illustribus 25, acrescenta algumas informações além das de Eusébio que merecem ser explicitadas aqui: “Teófilo, sexto bispo da Igreja de Antioquia, compôs sob o imperador Marco Aurélio Vero um livro Contra Marcião, que até hoje existe. Correm, também seus três volumes A Autólico e um livro Contra a heresia de Hermógenes, e outros breves e elegantes tratados que edificam a Igreja. Li de sua autoria uns comentários ao Evangelho e aos Provérbios de Salomão, que não me parecem afinados com a elegância e estilo dos volumes anteriores”.
Além disso parece ter escrito uma obra apologética Sobre as origens da humanidade segundo a Bíblia e a mitologia.
Escritor de cultura variada, de estilo elegante, ordeiro e claro.
Teófilo foi um cristão que se preocupou com a Bíblia Sagrada e com a moral dos cristãos. Defendeu o cristianismo e exigiu vida íntegra dos cristãos.
Foi um homem santo que serviu a igreja como Bispo e contribuiu para o discipulado cristão através de suas obras.
Estudaremos a sua obra completa a Autólico em três partes e conheceremos seu testemunho e sua espiritualidade cristã.


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segunda-feira, 9 de abril de 2018

44 - Atenágoras de Atenas (†180) Apelo a favor dos Cristãos – Capítulos 29 - 37


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44
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Atenágoras de Atenas (†180)
Apelo a favor dos Cristãos – Capítulos 29 - 37


Capítulo XXIX
Também os sábios gregos, poetas e historiadores, contam a respeito de Héracles: “Cruel! Não respeitou a ira dos deuses, nem a mesa que lhe pusera, e depois matou seu próprio hóspede”, isto é, Ifito. Sendo assim, é natural que fosse louco, natural que acendesse uma fogueira e se queimasse vivo. De Asclépio, Hesíodo conta que: “o pai dos homens e dos deuses se irritou, e acertando-o do Olimpo com raio fuliginoso, matou Letoida, perturbando o coração de Tebo”. E Píndaro diz: “Mas até a sabedoria é atada pelo lucro. Também ele foi desviado pelo ouro que apareceu em sua mão por doce recompensa; mas o filho de Cronos, disparando com suas mãos, arrebatou-lhe velozmente o alento do peito, e o ardente raio feriu o insensato”.
Portanto, ou eram deuses e não se comportavam como homens em relação ao ouro: “Ouro, o mais belo presente para mortais, prazer que nem uma mãe ou os filhos ofereceu”. A divindade não tem necessidade, e está acima do desejo. Também não morreram. Ou, sendo homens, foram maus por ignorância e se deixaram dominar pelo dinheiro. Para que falar amplamente, recordando Cástor e Pólux ou Anfiaseu, os quais, sendo, como se diz, homens de ontem ou anteontem, são considerados deuses? A própria Ino, depois de sua loucura e o que nela sofreu, dizem que se transformou em deusa: “aqueles que caminham errantes pelo Ponto, a chamam Leucotéia”, assim como seu filho: “será chamado augusto Palêmon pelos marinheiros”.

2ª PARTE: REFUTAÇÃO DAS ACUSAÇÕES DE IMORALIDADE, INCESTO E REFEIÇÕES BACANAIS

Capítulo XXX - Razões porque a Divindade foi apontada pelo homem
Ora, se pessoas tão abomináveis e odiosas a Deus alcançaram a reputação de ser deuses, e Semíramis, a filha de Derceto, mulher despudorada e criminosa, foi considerada deusa síria, e os sírios, através de Derceto, cultuam os peixes, e através de Semíramis as pombas - é impossível que uma mulher se transforme em pomba; a fábula aparece em Clésias-, o que há de estranho que aqueles que exerceram poder e tirania fossem chamados deuses por seus súditos? A Sibila (Platão também recor da) diz: “Virá então a décima geração de míseros homens, desde que o dilúvio caiu sobre os primeiros mortais, e reinaram Cronos, Titã e Iapeto, filhos poderosos da terra e do céu, que os homens chamaram de Gaia e Urano, dando-lhes nome por terem sido os primeiros entre os míseros homens”; uns por sua força, como Héracles e Perseu; outros por sua arte, como Asclépio.
Portanto, a uns foram os súditos que tributaram honra divina, a outros foram os governantes; uns por medo e outros por respeito tiveram parte no nome divino (o próprio Antínoco, por benevolência de nossos antepassados para com seus súditos, teve a sorte de ser considerado deus). Depois a posteridade os aceitou sem qualquer prova ou exame: “Cretenses sempre mentirosos. Com efeito, ó rei, os cretenses fabricaram o teu sepulcro. Tu, porém, não morreste”.
Calímaco, tu que crês no nascimento de Zeus recusas crer em sua sepultura, e pensando jogar uma sombra sobre a verdade, não fazes senão anunciar um morto mesmo àqueles que não o conhecem. Se olhas a gruta, te lembras do parto de Rea; mas se te fixas no ataúde, lanças uma sombra sobre o morto e já não sabes que só o Deus incriado é eterno.
Concluindo, ou os mitos do vulgo e dos poetas sobre os deuses são indignos de fé, e então é supérfluo o culto que se lhes tributa, porque não existem aquelas personagens sobre as quais essas fábulas tratam; ou se são verdadeiros seus nascimentos, amores, assassínios, roubos, mutilações e fulminações, também não existem, pois deixaram de existir, uma vez que nasceram por não existirem antes. Com efeito, que razão há para crer em alguns relatos e não crer em outros, quando tudo foi contado pelos poetas, com a finalidade de glorificá-los? De fato, os que foram causa de que fossem considerados deuses ao exaltar suas histórias, não mentiriam contando os seus sofrimentos.
Fica portanto demonstrado, segundo minhas forças, embora não conforme a dignidade do assunto, que não somos ateus ao admitir como o Deus, Criador de todo este universo, e o Verbo que dele procede.

Capítulo XXXI –
Além disso, acusam-nos sobre comidas e uniões ímpias, pretendendo com isso encontrar alguma razão para nos odiar. Pensam que, amedrontando-nos, nos afastarão do nosso propósito de vida; ou, com suas acusações exorbitantes, nos exasperarão e arrumarão intrigas com os governantes. Isso para nós é puro jogo, pois sabemos que esse costume é antigo e não inventado só para o nosso caso e que se realiza por uma espécie e razão divina, isto é, que a maldade faça sempre guerra à virtude. Assim, Pitágoras foi queimado pelo fogo com trezentos companheiros; Heráclito e Demócrito foram exilados, um de Efeso e o outro de Abdera, acusados de loucura; os atenienses condenaram Sócrates à morte. Mas se todos esses não perderam a reputação de virtude por causa da opinião do vulgo, a estúpida calúnia de alguns contra nós não faz nenhuma sombra à retidão de nossa vida, pois temos boa fama diante de Deus. Entretanto, quero também enfrentar essas acusações.
Sei que com o que eu disse estou defendido diante de vós. De fato, superando a todos por vossa inteligência, sabeis que aqueles que tomam a Deus como regra de vida, para que cada um de nós esteja sem culpa e sem mancha em sua presença, não podem ter, em pensamento, o mais leve pecado, e acreditássemos que nada existe além desta vida presente, poder-se-ia suspeitar que pecássemos, submetendo-nos à servidão da carne e do sangue ou sendo dominados pelo lucro e pelo desejo. Sabendo, porém, como sabemos, que Deus vigia nossos pensamentos e nossas palavras, tanto de dia como de noite, e que ele é todo luz e vê até dentro do nosso coração; acreditando, como cremos, que, ao sair desta vida, viveremos outra melhor, contando que permaneçamos com Deus e por Deus inquebrantáveis e superiores às paixões, com alma não carnal, mas com espírito celeste, embora na carne; ou acreditando que, se cairmos como os demais, espera-nos uma vida pior no fogo (porque Deus não nos criou como rebanhos ou bestas de carga, de passagem, só para morrer e desaparecer); crendo nisso, dizíamos, não é lógico que nos entreguemos voluntariamente ao mal e nos joguemos a nós mesmos nas mãos do grande juiz para sermos castigados.

Capítulo XXXII 
Não há nada de surpreendente que falem de nós a mesma coisa que contam sobre seus deuses, pois apresentam suas paixões como mistérios. Contudo, se querem apresentar como crime o unir-se livre e indiferentemente, teriam de começar a rejeitar Zeus, que teve filhos com sua mãe Rea e com sua filha Coré e cuja mulher é a própria irmã, ou rejeitar Orfeu, o inventor de todos esses contos, que tornou Zeus mais ímpio e abominável do que Tiestes; com efeito, este se uniu com a própria filha através de um oráculo e pelo desejo de chegar a reinar e vingar-se. Nós, porém, estamos tão longe de ver isso com indiferença que não nos é lícito sequer olhar com intenção de desejo. De fato, a Escritura diz: “Aquele que olha para uma mulher a fim de desejá-la já cometeu adultério em seu coração”. Como não acreditar que são castos os que nada podem olhar além daquilo para o qual Deus formou os olhos, isto é, para que fossem nossa luz, aqueles que consideram adultério o olhar com prazer, pois os olhos foram criados para outra finalidade, e os que serão julgados até pelos seus pensamentos? Nós nada temos a ver com leis humanas, que qualquer malvado pode burlar (desde o começo, ó soberano, vos assegurei que nossa doutrina era ensinamento de Deus), mas temos uma lei e mandamento, que nos deu a nós mesmos e ao nosso próximo como medida de justiça. Por isso, dependendo da idade, consideramos a uns como filhos e filhas, a outros como irmãos e irmãs, e aos mais velhos tributamos honra de pais e mães. Assim, empenhamo-nos para que aqueles aos quais damos nome de irmãos e irmãs e outras qualificações familiares, permaneçam sem ultraje ou corrupção em seus corpos, como nos diz também a palavra divina: “Se alguém, por ter gostado, dá um segundo beijo…” Portanto, é preciso ser muito exato a respeito do beijo e principalmente na adoração, porque por pouco que manchem nossa mente nos colocam fora da vida eterna.

Capítulo XXXIII - Indissolubilidade do matrimônio
Como temos esperança na vida eterna, desprezamos as coisas da vida presente e até os prazeres da alma, tendo cada um de nós por mulher aquela que tomou conforme as leis estabelecidas por nós e com a finalidade de procriar filhos. Assim como o lavrador, jogada a semente na terra, espera a colheita e não continua semeando, do mesmo modo, para nós, a medida do desejo é a procriação de fïlhos . E até é fácil encontrar muitos dentre nós, homens e mulheres, que chegaram celibatários à velhice, com a esperança de um relacionamento mais íntimo com Deus. Se o viver na virgindade e castração aproxima mais de Deus e só o pensamento e o desejo separa, se fugimos dos pensamentos, quanto mais não recusaremos as obras? Nossa religião não se mede pelos discursos cuidadosos, mas pela demonstração e ensinamento de obras: ou se permanece como nasceu, ou não se contrai mais do que um matrimônio, pois o segundo é um adultério decente. A Escritura diz: “Quem deixa sua mulher e casa com outra, comete adultério”, não permitindo deixar aquela cuja virgindade desfez, nem casar-se novamente. Quem se separa de sua primeira mulher, mesmo quando morreu, é adúltero dissimulado, transgredindo a mão de Deus, pois no princípio Deus formou um só homem e uma só mulher, desfazendo a comunidade da carne com a carne, segundo a unidade para a união dos sexos.

Capítulo XXXIV
Nós que somos assim (por que devo falar o que não pode ser dito?), temos que ouvir o provérbio: “A prostituta para a casta”. Com efeito, os que fazem mercado de prostituição e constroem para os jovens prostíbulos para todo prazer vergonhoso; os que não perdoam nem aos homens, cometendo atos torpes homens com homens; os que ultrajam de mil modos os corpos mais respeitáveis e mais formosos, desonrando a beleza feita por Deus (pois a beleza não nasce espontaneamente da terra, mas é enviada pela mão e desígnio de Deus); esses nos atiram na cara aquilo de que têm consciência, o que eles chamam de deuses, adúlteros e pederastas insultando aos virgens e monógamos. Eles que vivem como peixes (pois devoram quem lhes cai na boca, o mais forte atacando o mais fraco - isso sim é alimentar-se de carnes humanas - e que, tendo leis estabelecidas por vossos antecessores após maduro exame para toda a justiça, violentam-se os homens contra elas, de modo que não são suficientes os governadores mandados por vós para os julgamentos); esses, dizíamos, acusam os que não podem deixar de se apresentar aos que os golpeiam nem de abençoar os que os amaldiçoam. Para nós não basta ser justos - a justiça consiste em dar o mesmo aos iguais - mas nos é proposto que sejamos bons e pacientes.

3ª PARTE: OS CRISTÃOS NÃO SÃO ANTROPÓFAGOS

Capítulo XXXV - Os cristãos detestam e condenam qualquer crueldade
Quem, em plena razão, poderia dizer que, sendo assim, somos assassinos? Não é possível saciar-se de carne humana, se antes não matamos alguém. Se eles mentem quanto ao primeiro ponto, mentem também quanto ao segundo. Com efeito, se lhes é perguntado se viram o que dizem, não existe ninguém tão sem-vergonha que diga ter visto. Entretanto, temos escravos, alguns mais outros menos, para os quais não é possível ocultar-nos. No entanto, nenhum deles chegou a caluniar-nos com semelhantes coisas. De fato, os que sabem que não suportamos ver uma execução com justiça, como vão nos acusar de matar e comer homens? Quem de vós não se entusiasma em ver os espetáculos de gladiadores ou de feras, principalmente os que são organizados por vós? Nós, porém, que consideramos que ver matar está próximo do próprio matar, nos abstemos de tais espetáculos. Portanto, como podemos matar os que não queremos sequer ver para não contrair mancha ou impureza em nós? Afirmamos que as mulheres que tentam o aborto cometem homicídio e terão que dar contas a Deus por ele 4; então, por que iríamos matar alguém? Não se pode pensar que aquele que a mulher leva no ventre é um ser vivente e objeto, consequentemente, da providência de Deus e em seguida matar aquele que já tem anos de vida; não expor o nascido, crendo que expor os filhos equivale a matá-los, e tirar a vida ao que já foi criado. Não! Nós somos em tudo e sempre iguais e concordes com nós mesmos, pois servimos à razão e não a violentamos.

Capítulo XXXVI
Além disso, quem crê na ressurreição quererá oferecer-se como sepultura dos corpos que hão de ressuscitar? Não é possível alguém acreditar que nossos corpos ressuscitarão e, ao mesmo tempo, os coma, como se não devessem ressuscitar; pensar que a terra devolverá seus próprios mortos e, ao mesmo tempo, pensar que aqueles que engoliu não reclamarão. É mais verossímil o contrário, aqueles que pensam que não se terá de dar conta desta vida, tanto faz se é boa ou má, e que não haverá ressurreição, mas que julgam que com o corpo perece também a alma e esta como que se apaga; é natural, dizíamos, que esses não se abstenham de nenhum atrevimento, creem que nada ficará sem ser examinado diante de Deus e que juntamente com a alma será castigado o corpo que cooperou com seus impulsos e desejos irracionais, quanto a esses não há razão para que cometam o mais leve pecado. Se para alguém parece pura charlatanice que um corpo apodrecido, desfeito e desaparecido torne a organizar-se, não poderia por parte daqueles que não creem na ressurreição imputar-nos maldade, mas ingenuidade. De fato, se nos enganamos a nós mesmos com essas razões, não causamos prejuízo a ninguém. Entretanto, não somos apenas nós que admitimos a ressurreição dos corpos, mas muitos filósofos também estão conosco. Contudo, seria ocioso demonstrar-vos isso agora, a não ser que introduzíssemos raciocínios estranhos ao nosso objetivo, falando do inteligível, do sensível, da constituição de um e de outro, que o incorporal é anterior aos corpos, que inteligível precede o sensível, embora não seja isso o que primeiro encontramos, pois os corpos são constituídos de elementos incorpóreos, conforme a acumulação do inteligível, e o sensível é constituído de elementos inteligíveis. Segundo a doutrina de Pitágoras e de Platão, nada impede que, realizada a dissolução dos corpos, voltem depois a organizar-se com os mesmos elementos dos quais eram constituídos no princípio.

Capítulo XXXVII
Reservemos, porém, para outra ocasião o discurso sobre a ressurreição. Quanto a vós que, em tudo e por tudo, por natureza e educação, sois bons, moderados, humanos e dignos do império, inclinai vossa imperial cabeça diante de quem desfez todas as acusações e demonstrou que somos piedosos, modestos e puros em nossas almas. Quais são os que merecem, com mais justiça, conseguir o que pedem senão nós que rogamos por vosso império, para que o herdeis, como é de estrita justiça, de pai para filho, que cresça e acresça, através da submissão de todos os homens? Isso também redunda em proveito nosso, para que, levando uma vida tranquila e pacífica, cumpramos animadamente tudo quanto nos é mandado.

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segunda-feira, 2 de abril de 2018

43 - Atenágoras de Atenas (†180) Apelo a favor dos Cristãos – Capítulos 23 - 28


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43
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Atenágoras de Atenas (†180)
Apelo a favor dos Cristãos – Capítulos 23 - 28


Capítulo XXIII
Vós, porém, que superais a todos em inteligência, poderíeis objetar: Então por que alguns ídolos agem, se não existem os deuses em cuja honra erguemos as imagens? Não é verossímil que estátuas inanimadas e imóveis tenham por si mesmas alguma força sem que alguém as mova. Desde já, nós mesmos não negamos que em determinados lugares, cidades e povoados aconteçam algumas operações em nome dos ídolos; entretanto, porque alguns tenham recebido proveito e outros prejuízo, não vamos considerar deuses aqueles que agiram em um ou outro sentido, mas investigamos cuidadosamente o motivo de crerdes que os ídolos têm alguma força e quais são os que agem, usurpando seus nomes. Antes de tudo, porém, já que quais são os que agem nos ídolos e que não são deuses, é preciso trazer como testemunhas também alguns filósofos. Tales, como dizem os que conhecem a fundo suas doutrinas, foi o primeiro que estabeleceu a divisão entre Deus, demônios e heróis. Por Deus, ele entende a mente do mundo; por demônios, as substâncias animadas; por heróis, as almas separadas dos homens, bons as boas, maus as más. Platão, que em outros pontos se mostra reservado, também distingue entre o Deus incriado, os astros fixos ou errantes, criados pelo Incriado, para enfeitar o céu, e os demônios. Ele recusa falar desses demônios, mas quer que se acredite nos que falaram sobre eles: “Falar da multidão de demônios e conhecer as suas origens é tarefa que ultrapassa nossas forças, mas deve-se acreditar nos que falaram anteriormente, já que, como dizem, são descendentes dos próprios deuses, e é de se supor que conheçam exatamente seus ascendentes. Portanto, é impossível não crer nos filhos de Deus, mesmo quando falam sem provas verossímeis ou necessárias, mas, seguindo o costume, deve-se crer neles como em pessoas que nos certificam estar nos contando a história de sua própria família. Dessa forma, seguindo a eles, sirva isso também para nós e digamos que a origem desses deuses é a seguinte: Da terra e do céu nasceram dois filhos: o Oceano e Tétis; desses nasceram Forco, Cronos, Rea e todo o seu séquito; de Cronos e Rea nasceram Zeus e Hera e todos os que sabemos que se dizem seus irmãos, e, por fim, os outros descendentes desses”.
Entretanto, Platão, que compreendeu o Deus eterno apenas pela inteligência e razão exeqüível; ele, que explicou os atributos que lhe convêm: seu ser real, sua unidade de natureza, o bem que dele se derrama, que é a verdade; ele, que falou da “primeira potência”, e disse: “Em torno do rei de todas as coisas está tudo, por causa dele tudo existe e ele é a causa de tudo”; e da segunda e terceira: “O segundo em torno do segundo, e o terceiro em torno do terceiro”; Platão pode considerar empresa superior às suas forças investigar a verdade sobre os que se dizem ter nascido de coisas sensíveis do céu e da terra? Não se pode dizer tal coisa. A verdade é que, como ele entendia ser impossível os deuses gerarem e conceberem, pois o que nasce tem conseqüentemente fim, mais impossível ainda seria mudar a convicção do vulgo, que aceita os mitos sem exame ou prova. Por esse motivo, disse que estava acima de suas forças conhecer e explicar a gênese da multidão dos demônios, pois não podia compreender, nem explicar como os demônios possam ter nascimento. A outra passagem sua, em que diz: “Zeus, o grande guia no céu, lançase à marcha conduzindo o seu carro, e atrás dele segue o exército dos deuses e demônios”, não deve ser entendida de Zeus, o assim chamado filho de Crono, pois com o seu nome quer-se significar o Criador do universo. O próprio Platão deixa isso bem claro. Não tendo outro termo para significar isso, usou o nome popular como pôde, não como nome próprio de Deus, mas por razão de clareza, já que não era possível representar para todos o Deus verdadeiro. Depois acrescentou-lhe o qualificativo de “grande”, para diferenciar o celeste do terreno, o incriado do criado, este mais jovem que o céu e a terra e até mais jovem que os cretenses, que o roubaram para que não fosse devorado por seu pai.

Capítulo XXIV
Que necessidade há de recordar-vos os poetas e examinar também outras opiniões para vós que examinastes toda a doutrina? É suficiente acrescentar apenas uma consideração. Mesmo quando poetas e filósofos não reconheceram que Deus é um só, mas uns pensaram nos deuses como demônios, outros como matéria, outros como tendo sido homens, haveria motivo para perseguir-nos, a nós que, com o nosso raciocínio distinguimos Deus da matéria e as substâncias de um e da outra? De fato, assim como confessamos Deus, o Filho, que é o seu Verbo, e o Espírito Santo, identificados segundo o poder, mas distintos segundo a ordem: o Pai, o Filho e Espírito, porque o Filho é inteligência, Verbo e sabedoria do Pai, e o Espírito, emanação como luz do fogo, também entendemos que existem outras potências que rodeiam a matéria e a penetram, e uma contrária a Deus. Não porque exista algo contrário a Deus, da mesma forma que a discórdia é contrária à amizade, conforme Empédocles, ou a noite contrária ao dia, entre os fenômenos naturais - se alguma coisa se enfrentasse assim com Deus, cessaria completamente de ser, pois a sua substância seria destruída pela potência e força de Deus -; mas porque o Espírito que rodeia a matéria é contrário à sua bondade, atributo que lhe é próprio e que coexiste com ele como o calor com o fogo, sem o qual não pode existir-não que seja parte sua, mas é acompanhamento necessário, identificado e compenetrado, como o vermelho com o fogo e o azul com o céu -; Espésito, dizíamos, criado certamente espírito, por Deus, como foram por ele criados os demais anjos, e ao qual foi confiada a administração da matéria e das formas da matéria. Com efeito, a substância desses anjos foi criada por Deus para providência das coisas por ele ordenadas, de modo que Deus conservaria a providência universal e geral do universo - o domínio e o poder sobre tudo dependeria dele, e ele dirigiria isso sozinho, indeclinavelmente, como um navio, com o timão da sua sabedoria-; mas os anjos por ele ordenados se encarregariam da providência particular. Do mesmo modo, porém, que os homens têm livre-arbítrio podem optar pela virtude e pela maldade - pois se não estivesse em seu poder a maldade e a virtude, não honraríeis os bons nem castigaríeis os maus, quando uns se mostram diligentes e outros desleais naquilo que lhes confiais -, assim tam bém os anjos. Uns, que foram imediatamente criados livres por Deus, permaneceram naquilo que Deus os criara e ordenara; outros se orgulharam tanto de sua natureza, como do império que exerciam, isto é, esse que é príncipe da matéria e das suas formas, e os outros encarregados desse primeiro firmamento-e deveis saber que não afirmamos nada sem testemunhas; expressamos apenas o que foi dito pelos profetas -; estes, por terem caído em desejo pelas virgens e mostrando-se inferiores à carne; aquele, por ter sido negligente e mau na administração que lhe fora confiada. Dos que tiveram relação com virgens nasceram gigantes. Não vos maravilheis, se em parte os poetas também falam dos gigantes, pois a sabedoria humana e a divina distam entre si assim como a verdade dista do verossímil. Uma é celeste e outra é terrena e, segundo o príncipe da matéria, “sabemos dizer muitas mentiras semelhantes à verdade”.

Capítulo XXV
Portanto, esses anjos caídos do céu, que rondam em torno do ar e da terra, e que já não são capazes de subir ao supraceleste, e as almas dos gigantes são os demônios, que andam errantes ao redor do mundo e produzem movimentos semelhantes; os demônios às substâncias que receberam, os anjos aos desejos que sentiram. Quanto ao príncipe da matéria, como se pode ver pela experiência, ele governa e administra de modo contrário à bondade de Deus: “Muitas vezes, uma preocupação atravessou a minha alma. Se é o acaso, se é demônio que domina o humano, pois contra a esperança, contra a justiça, alguns são arrancados de suas casas, sem Deus, e outros são levados à felicidade.” Se o ser feliz ou desgraçado contra a esperança e a justiça deixa mudo Eurípedes, de quem será uma administração das coisas terrenas, diante da qual se pode dizer: “Vendo tudo isso, como diremos que a raça dos deuses existe ou obedeceremos às leis?” Isso também levou Aristóteles a dizer que as partes inferiores do céu não são governadas pela providência, mas a verdade é que a providência eterna de Deus permanece para nós de modo igual: “A terra, queira ou não queira, por força, produzindo erva, engorda os meus rebanhos”, e a providência particular chega de fato e não em aparência para os que são dignos, e os outros são providos conforme a constituição comum das coisas, por lei da razão. O que acontece é que os movimentos demoníacos do espírito contrário e suas operações produzem esses impulsos desordenados que vemos arrastar os homens, uns de um modo, outros de outro, alguns individualmente, outros por nações, alguns parcialmente, outros em comum, segundo a razão da matéria e da simpatia com o divino; movimentos do interior, como do exterior, que obrigaram alguns, cujas opiniões não são desprezíveis, a pensar que todo este universo não está organizado com ordem, mas que tudo anda revirado por um acaso irracional. Eles ignoram que, quanto à constituição do universo, não existe nada desordenado, nem descuidado, mas cada parte sua foi feita com razão e, por isso, nenhuma transgride a ordem que lhe foi marcada. Quanto ao homem, se se olha para o seu Criador, também foi feito ordenadamente: a natureza de sua origem, que tem uma só e comum razão; a organização de sua formação, que não pode transgredir a lei que a rege; e o termo de sua vida, que permanece igual e comum para todos, embora, segundo a razão própria de cada um e a ação do príncipe da matéria que o domina e dos demônios que o acompanham, cada um se dirija e se mova de modo diverso, apesar de todos terem em si o raciocínio comum.

Capítulo XVI
Aqueles que os arrastam aos ídolos são esses demônios dos quais falamos, os que andam em torno do sangue das vítimas e o lambem; mas os deuses que agradam o vulgo e dão o seu nome às estátuas foram apenas homens, como se pode averiguar pelas histórias que deles tratam. A prova de que são os demônios que usurpam seus nomes está na operação que cada um exerce. De fato, aqueles que cultuam Rea, mutilam o próprio membro viril; outros, os de Ártemis, fazem cortes ou incisões em si mesmos; a de Tauros mata estrangeiros. Deixo de falar sobre os que se torturam com punhais e correias de ossos, e tantas outras espécies de demônios. Não é próprio de Deus incitar a atos contra a natureza: “Quando um demônio quer fazer mal a um homem, primeiro lhe prejudica a inteligência.” Deus, porém, que é absolutamente bom, é eternamente benéfico.
Que sejam uns que agem e outros em cuja honra se erguem as estátuas, temos uma prova definitiva em Tróia e Pário. A primeira tem estátuas de Nerilino, contemporâneo nosso; Páris tem estátuas de Alexandre e Proteu. Há ainda na ágora ou praça pública o sepulcro e a estátua de Alexandre. Ora, as outras estátuas de Nerilino servem de ornamento público, se é que com tais coisas se orna uma cidade. Crê-se, porém, que uma delas dá oráculos e realiza curas e, por isso, os troianos lhe oferecem sacrifícios, a ungem e a coroam de ouro. Quanto às estátuas de Alexandre e Proteu (não ignorais que este se atirou ao fogo em Olímpia), diz-se também que uma emite oráculos, e a estátua de Alexandre - “Páris malfadado, brava figura, mulherengo” -também são oferecidos sacrifícios e celebradas festas, como a deus propício. De fato, são Nerilino, Proteu e Alexandre que realizam esses prodígios nas estátuas ou é a constituição da matéria? Mas a matéria é puro bronze. Que é que o bronze pode por si mesmo, se se pode transformá-lo em outra figura, como fez Amásis, segundo Heródoto, com a bacia para os pés? E o que é que Nerilino, Proteu e Alexandre têm a ver com os enfermos? O que se diz que a estátua realiza agora, o fazia quando Nerilino vivia e até quando estava enfermo.

Capítulo XXVII
O que pensar, então? Primeiramente, os movimentos irracionais e fantásticos da alma sobre as aparições arrancam da matéria algumas vezes uma imagem, outras vezes outras imagens, e outras são formadas e geradas por eles mesmos. E isso padece a alma principalmente quando recebe o espírito material, com ele, e já não olha para cima, para o celeste e seu Criador, mas para baixo, para o terreno e, para fazê-lo de modo geral, quando se converte em pura carne e sangue e não em espírito limpo. Esses movimentos irracionais e fantásticos da alma geram imagens de frenética idolatria; e quando a alma, delicada e fácil de conduzir, que não ouviu nem tem experiência de sólidas doutrinas, que não contemplou a verdade nem compreendeu o Pai e Criador do universo, se imprime em si essas falsas opiniões sobre si mesma, os demônios que rondam a matéria, gulosos como são de gordura e sangue das vítimas e enganadores dos homens, apoderando-se desses movimentos de falsa opinião das almas do vulgo, fazem que fantasias se infiltrem neles, como se viessem das imagens cujos nomes usurpam, e são eles que colhem a glória do que a alma por si mesma, imortal como é, e se move racionalmente, ora para predizer o futuro, ora para curar o presente.
Capítulo XXVIII
Talvez seja necessário, conforme anteriormente indicado, dizer algo também sobre os nomes. Heródoto e Alexandre, filho de Filipe, na carta à sua mãe-diz-se que tanto um como o outro conversaram com os sacerdotes em Heliópolis, Mênfis e Tebas -dizem ter sabido deles que seus deuses foram homens. Heródoto diz: “Tais demonstraram que eram aqueles que as estátuas representavam, mas muito diferentes dos deuses; antes desses homens, os deuses mandaram no Egito, vivendo junto aos humanos, e era sempre um deles que retinha o poder, e o último rei foi Horo, filho de Osíris, a quem os gregos chamam de Apolo. Este, tendo destronado Tifão, foi o último que reinou no Egito. Osíris, em grego, é Dioniso”.
Assim, portanto, tanto os outros como o último, foram reis do Egito, e os nomes dos deuses vieram dos egípcios para os gregos. Apolo é filho de Dioniso e de Ísis. O próprio Heródoto diz: “Dizem que Apolo e Ártemis são filhos de Ísis e que Leto foi sua nutriz e salvadora”. Daí se vê que os primeiros reis, de origem celeste como eram, seja por ignorância da verdadeira piedade para com a divindade, seja por gratidão para com o seu poder, foram tidos, como deuses junto com suas mulheres. “Agora todos os egípcios sacrificam bois puros, assim como os bezerros; as vacas, porém, não lhes é lícito sacrificá-las, mas estão sacrificadas a Isis. Com efeito, a estátua de Ísis, que representa numa mulher, tem chifres, da maneira como os gregos pintam Io”. E o que se poderia crer melhor ao dizer isso, senão naqueles que por sucessão de família, o filho do pai, herdam o sacerdócio e juntamente a história? De fato, não é verossímil que os guardiães dos templos mintam, que tenham interesse em exaltar seus ídolos, ao apresentá-los como homens.
Se Heródoto disse que os egípcios falam de seus deuses como de homens, quando o próprio Heródoto diz: “Não estou disposto a divulgar os relatos divinos que escutei”, não há a mais leve razão para não crer nele, como se fosse um inventor de mitos. Mas como Alexandre e Hermes, o chamado Trismegisto, e tantos outros mais, não fazendo a enumeração de todos, que uniram suas próprias famílias com os deuses, já não há razão para não pensar que, sendo homens, foram tidos como deuses. Que eles foram homens, o manifestam os mais eruditos entre os egípcios, os quais, ao chamar de deuses o éter, a terra, o sol e a lua, consideram os demais como homens mortais e os templos como seus sepulcros; isso manifesta também Apolodoro em seu tratado sobre os deuses. Além disso, Heródoto chama de mistérios os sofrimentos deles: “Já narrei anteriormente como celebram a festa em honra de Ísis na cidade de Busíris. Todos, homens e mulheres, se golpeiam depois do sacrifício, e a fé que milhares de pessoas ali depositam. Todavia, não é piedoso que eu lhes diga a maneira como se golpeiam”. Se são deuses, são imortais; mas se se golpeiam e seus sofrimentos são mistérios, são homens. O próprio Heródoto diz: “Em Sais, no templo de Atenas, por detrás e seguindo ao longo da parede, está o sepulcro do deus, cujo nome não considero piedoso pronunciar na presente ocasião. Ali há também, junto ao sepulcro, um lago com bordas de pedra, bem trabalhado e circular, ao que me parece com a mesma extensão do que em Delos se chama Trocóides. Nesse lago, durante a noite, fazem-se as representações de seus sofrimentos, que os egípcios chamam de mistérios”. Não só se expõe o sepulcro de Osíris, mas também a sua múmia: “Quando se lhes leva um cadáver, mostramse aos portadores modelos de mortos em madeira, imitados pela pintura; e dizem que a mais exata delas é a do deus, cujo nome não considero piedoso pronunciar na presente ocasião.

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