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Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Atenágoras de Atenas (†180)
Apelo a favor dos Cristãos – Capítulos 23 - 28
Capítulo XXIII
Vós, porém, que
superais a todos em inteligência, poderíeis objetar: Então por que alguns
ídolos agem, se não existem os deuses em cuja honra erguemos as imagens? Não é
verossímil que estátuas inanimadas e imóveis tenham por si mesmas alguma força
sem que alguém as mova. Desde já, nós mesmos não negamos que em determinados
lugares, cidades e povoados aconteçam algumas operações em nome dos ídolos;
entretanto, porque alguns tenham recebido proveito e outros prejuízo, não vamos
considerar deuses aqueles que agiram em um ou outro sentido, mas investigamos
cuidadosamente o motivo de crerdes que os ídolos têm alguma força e quais são
os que agem, usurpando seus nomes. Antes de tudo, porém, já que quais são os
que agem nos ídolos e que não são deuses, é preciso trazer como testemunhas
também alguns filósofos. Tales, como dizem os que conhecem a fundo suas
doutrinas, foi o primeiro que estabeleceu a divisão entre Deus, demônios e
heróis. Por Deus, ele entende a mente do mundo; por demônios, as substâncias
animadas; por heróis, as almas separadas dos homens, bons as boas, maus as más.
Platão, que em outros pontos se mostra reservado, também distingue entre o Deus
incriado, os astros fixos ou errantes, criados pelo Incriado, para enfeitar o
céu, e os demônios. Ele recusa falar desses demônios, mas quer que se acredite
nos que falaram sobre eles: “Falar da multidão de demônios e conhecer as suas
origens é tarefa que ultrapassa nossas forças, mas deve-se acreditar nos que
falaram anteriormente, já que, como dizem, são descendentes dos próprios
deuses, e é de se supor que conheçam exatamente seus ascendentes. Portanto, é
impossível não crer nos filhos de Deus, mesmo quando falam sem provas
verossímeis ou necessárias, mas, seguindo o costume, deve-se crer neles como em
pessoas que nos certificam estar nos contando a história de sua própria
família. Dessa forma, seguindo a eles, sirva isso também para nós e digamos que
a origem desses deuses é a seguinte: Da terra e do céu nasceram dois filhos: o
Oceano e Tétis; desses nasceram Forco, Cronos, Rea e todo o seu séquito; de
Cronos e Rea nasceram Zeus e Hera e todos os que sabemos que se dizem seus
irmãos, e, por fim, os outros descendentes desses”.
Entretanto, Platão, que
compreendeu o Deus eterno apenas pela inteligência e razão exeqüível; ele, que
explicou os atributos que lhe convêm: seu ser real, sua unidade de natureza, o
bem que dele se derrama, que é a verdade; ele, que falou da “primeira
potência”, e disse: “Em torno do rei de todas as coisas está tudo, por causa
dele tudo existe e ele é a causa de tudo”; e da segunda e terceira: “O segundo
em torno do segundo, e o terceiro em torno do terceiro”; Platão pode considerar
empresa superior às suas forças investigar a verdade sobre os que se dizem ter
nascido de coisas sensíveis do céu e da terra? Não se pode dizer tal coisa. A
verdade é que, como ele entendia ser impossível os deuses gerarem e conceberem,
pois o que nasce tem conseqüentemente fim, mais impossível ainda seria mudar a
convicção do vulgo, que aceita os mitos sem exame ou prova. Por esse motivo,
disse que estava acima de suas forças conhecer e explicar a gênese da multidão
dos demônios, pois não podia compreender, nem explicar como os demônios possam
ter nascimento. A outra passagem sua, em que diz: “Zeus, o grande guia no céu,
lançase à marcha conduzindo o seu carro, e atrás dele segue o exército dos
deuses e demônios”, não deve ser entendida de Zeus, o assim chamado filho de
Crono, pois com o seu nome quer-se significar o Criador do universo. O próprio
Platão deixa isso bem claro. Não tendo outro termo para significar isso, usou o
nome popular como pôde, não como nome próprio de Deus, mas por razão de
clareza, já que não era possível representar para todos o Deus verdadeiro.
Depois acrescentou-lhe o qualificativo de “grande”, para diferenciar o celeste
do terreno, o incriado do criado, este mais jovem que o céu e a terra e até
mais jovem que os cretenses, que o roubaram para que não fosse devorado por seu
pai.
Capítulo XXIV
Que necessidade há de
recordar-vos os poetas e examinar também outras opiniões para vós que
examinastes toda a doutrina? É suficiente acrescentar apenas uma consideração.
Mesmo quando poetas e filósofos não reconheceram que Deus é um só, mas uns
pensaram nos deuses como demônios, outros como matéria, outros como tendo sido
homens, haveria motivo para perseguir-nos, a nós que, com o nosso raciocínio
distinguimos Deus da matéria e as substâncias de um e da outra? De fato, assim
como confessamos Deus, o Filho, que é o seu Verbo, e o Espírito Santo,
identificados segundo o poder, mas distintos segundo a ordem: o Pai, o Filho e
Espírito, porque o Filho é inteligência, Verbo e sabedoria do Pai, e o
Espírito, emanação como luz do fogo, também entendemos que existem outras
potências que rodeiam a matéria e a penetram, e uma contrária a Deus. Não
porque exista algo contrário a Deus, da mesma forma que a discórdia é contrária
à amizade, conforme Empédocles, ou a noite contrária ao dia, entre os fenômenos
naturais - se alguma coisa se enfrentasse assim com Deus, cessaria
completamente de ser, pois a sua substância seria destruída pela potência e
força de Deus -; mas porque o Espírito que rodeia a matéria é contrário à sua
bondade, atributo que lhe é próprio e que coexiste com ele como o calor com o
fogo, sem o qual não pode existir-não que seja parte sua, mas é acompanhamento
necessário, identificado e compenetrado, como o vermelho com o fogo e o azul
com o céu -; Espésito, dizíamos, criado certamente espírito, por Deus, como
foram por ele criados os demais anjos, e ao qual foi confiada a administração
da matéria e das formas da matéria. Com efeito, a substância desses anjos foi
criada por Deus para providência das coisas por ele ordenadas, de modo que Deus
conservaria a providência universal e geral do universo - o domínio e o poder
sobre tudo dependeria dele, e ele dirigiria isso sozinho, indeclinavelmente,
como um navio, com o timão da sua sabedoria-; mas os anjos por ele ordenados se
encarregariam da providência particular. Do mesmo modo, porém, que os homens
têm livre-arbítrio podem optar pela virtude e pela maldade - pois se não
estivesse em seu poder a maldade e a virtude, não honraríeis os bons nem
castigaríeis os maus, quando uns se mostram diligentes e outros desleais
naquilo que lhes confiais -, assim tam bém os anjos. Uns, que foram
imediatamente criados livres por Deus, permaneceram naquilo que Deus os criara
e ordenara; outros se orgulharam tanto de sua natureza, como do império que
exerciam, isto é, esse que é príncipe da matéria e das suas formas, e os outros
encarregados desse primeiro firmamento-e deveis saber que não afirmamos nada
sem testemunhas; expressamos apenas o que foi dito pelos profetas -; estes, por
terem caído em desejo pelas virgens e mostrando-se inferiores à carne; aquele,
por ter sido negligente e mau na administração que lhe fora confiada. Dos que
tiveram relação com virgens nasceram gigantes. Não vos maravilheis, se em parte
os poetas também falam dos gigantes, pois a sabedoria humana e a divina distam
entre si assim como a verdade dista do verossímil. Uma é celeste e outra é
terrena e, segundo o príncipe da matéria, “sabemos dizer muitas mentiras
semelhantes à verdade”.
Capítulo XXV
Portanto, esses anjos
caídos do céu, que rondam em torno do ar e da terra, e que já não são capazes
de subir ao supraceleste, e as almas dos gigantes são os demônios, que andam
errantes ao redor do mundo e produzem movimentos semelhantes; os demônios às
substâncias que receberam, os anjos aos desejos que sentiram. Quanto ao
príncipe da matéria, como se pode ver pela experiência, ele governa e
administra de modo contrário à bondade de Deus: “Muitas vezes, uma preocupação
atravessou a minha alma. Se é o acaso, se é demônio que domina o humano, pois
contra a esperança, contra a justiça, alguns são arrancados de suas casas, sem
Deus, e outros são levados à felicidade.” Se o ser feliz ou desgraçado contra a
esperança e a justiça deixa mudo Eurípedes, de quem será uma administração das
coisas terrenas, diante da qual se pode dizer: “Vendo tudo isso, como diremos
que a raça dos deuses existe ou obedeceremos às leis?” Isso também levou
Aristóteles a dizer que as partes inferiores do céu não são governadas pela
providência, mas a verdade é que a providência eterna de Deus permanece para
nós de modo igual: “A terra, queira ou não queira, por força, produzindo erva,
engorda os meus rebanhos”, e a providência particular chega de fato e não em
aparência para os que são dignos, e os outros são providos conforme a
constituição comum das coisas, por lei da razão. O que acontece é que os
movimentos demoníacos do espírito contrário e suas operações produzem esses
impulsos desordenados que vemos arrastar os homens, uns de um modo, outros de
outro, alguns individualmente, outros por nações, alguns parcialmente, outros
em comum, segundo a razão da matéria e da simpatia com o divino; movimentos do
interior, como do exterior, que obrigaram alguns, cujas opiniões não são
desprezíveis, a pensar que todo este universo não está organizado com ordem,
mas que tudo anda revirado por um acaso irracional. Eles ignoram que, quanto à
constituição do universo, não existe nada desordenado, nem descuidado, mas cada
parte sua foi feita com razão e, por isso, nenhuma transgride a ordem que lhe
foi marcada. Quanto ao homem, se se olha para o seu Criador, também foi feito
ordenadamente: a natureza de sua origem, que tem uma só e comum razão; a
organização de sua formação, que não pode transgredir a lei que a rege; e o
termo de sua vida, que permanece igual e comum para todos, embora, segundo a
razão própria de cada um e a ação do príncipe da matéria que o domina e dos
demônios que o acompanham, cada um se dirija e se mova de modo diverso, apesar
de todos terem em si o raciocínio comum.
Capítulo XVI
Aqueles que os arrastam
aos ídolos são esses demônios dos quais falamos, os que andam em torno do
sangue das vítimas e o lambem; mas os deuses que agradam o vulgo e dão o seu
nome às estátuas foram apenas homens, como se pode averiguar pelas histórias
que deles tratam. A prova de que são os demônios que usurpam seus nomes está na
operação que cada um exerce. De fato, aqueles que cultuam Rea, mutilam o
próprio membro viril; outros, os de Ártemis, fazem cortes ou incisões em si
mesmos; a de Tauros mata estrangeiros. Deixo de falar sobre os que se torturam
com punhais e correias de ossos, e tantas outras espécies de demônios. Não é
próprio de Deus incitar a atos contra a natureza: “Quando um demônio quer fazer
mal a um homem, primeiro lhe prejudica a inteligência.” Deus, porém, que é
absolutamente bom, é eternamente benéfico.
Que sejam uns que agem
e outros em cuja honra se erguem as estátuas, temos uma prova definitiva em
Tróia e Pário. A primeira tem estátuas de Nerilino, contemporâneo nosso; Páris
tem estátuas de Alexandre e Proteu. Há ainda na ágora ou praça pública o
sepulcro e a estátua de Alexandre. Ora, as outras estátuas de Nerilino servem
de ornamento público, se é que com tais coisas se orna uma cidade. Crê-se,
porém, que uma delas dá oráculos e realiza curas e, por isso, os troianos lhe oferecem
sacrifícios, a ungem e a coroam de ouro. Quanto às estátuas de Alexandre e
Proteu (não ignorais que este se atirou ao fogo em Olímpia), diz-se também que
uma emite oráculos, e a estátua de Alexandre - “Páris malfadado, brava figura,
mulherengo” -também são oferecidos sacrifícios e celebradas festas, como a deus
propício. De fato, são Nerilino, Proteu e Alexandre que realizam esses
prodígios nas estátuas ou é a constituição da matéria? Mas a matéria é puro
bronze. Que é que o bronze pode por si mesmo, se se pode transformá-lo em outra
figura, como fez Amásis, segundo Heródoto, com a bacia para os pés? E o que é
que Nerilino, Proteu e Alexandre têm a ver com os enfermos? O que se diz que a
estátua realiza agora, o fazia quando Nerilino vivia e até quando estava
enfermo.
Capítulo XXVII
O que pensar, então?
Primeiramente, os movimentos irracionais e fantásticos da alma sobre as
aparições arrancam da matéria algumas vezes uma imagem, outras vezes outras
imagens, e outras são formadas e geradas por eles mesmos. E isso padece a alma
principalmente quando recebe o espírito material, com ele, e já não olha para
cima, para o celeste e seu Criador, mas para baixo, para o terreno e, para
fazê-lo de modo geral, quando se converte em pura carne e sangue e não em espírito
limpo. Esses movimentos irracionais e fantásticos da alma geram imagens de
frenética idolatria; e quando a alma, delicada e fácil de conduzir, que não
ouviu nem tem experiência de sólidas doutrinas, que não contemplou a verdade
nem compreendeu o Pai e Criador do universo, se imprime em si essas falsas
opiniões sobre si mesma, os demônios que rondam a matéria, gulosos como são de
gordura e sangue das vítimas e enganadores dos homens, apoderando-se desses
movimentos de falsa opinião das almas do vulgo, fazem que fantasias se
infiltrem neles, como se viessem das imagens cujos nomes usurpam, e são eles
que colhem a glória do que a alma por si mesma, imortal como é, e se move
racionalmente, ora para predizer o futuro, ora para curar o presente.
Capítulo XXVIII
Talvez seja necessário,
conforme anteriormente indicado, dizer algo também sobre os nomes. Heródoto e
Alexandre, filho de Filipe, na carta à sua mãe-diz-se que tanto um como o outro
conversaram com os sacerdotes em Heliópolis, Mênfis e Tebas -dizem ter sabido
deles que seus deuses foram homens. Heródoto diz: “Tais demonstraram que eram
aqueles que as estátuas representavam, mas muito diferentes dos deuses; antes
desses homens, os deuses mandaram no Egito, vivendo junto aos humanos, e era
sempre um deles que retinha o poder, e o último rei foi Horo, filho de Osíris,
a quem os gregos chamam de Apolo. Este, tendo destronado Tifão, foi o último
que reinou no Egito. Osíris, em grego, é Dioniso”.
Assim, portanto, tanto
os outros como o último, foram reis do Egito, e os nomes dos deuses vieram dos
egípcios para os gregos. Apolo é filho de Dioniso e de Ísis. O próprio Heródoto
diz: “Dizem que Apolo e Ártemis são filhos de Ísis e que Leto foi sua nutriz e
salvadora”. Daí se vê que os primeiros reis, de origem celeste como eram, seja
por ignorância da verdadeira piedade para com a divindade, seja por gratidão
para com o seu poder, foram tidos, como deuses junto com suas mulheres. “Agora
todos os egípcios sacrificam bois puros, assim como os bezerros; as vacas,
porém, não lhes é lícito sacrificá-las, mas estão sacrificadas a Isis. Com
efeito, a estátua de Ísis, que representa numa mulher, tem chifres, da maneira
como os gregos pintam Io”. E o que se poderia crer melhor ao dizer isso, senão
naqueles que por sucessão de família, o filho do pai, herdam o sacerdócio e
juntamente a história? De fato, não é verossímil que os guardiães dos templos
mintam, que tenham interesse em exaltar seus ídolos, ao apresentá-los como
homens.
Se Heródoto disse que
os egípcios falam de seus deuses como de homens, quando o próprio Heródoto diz:
“Não estou disposto a divulgar os relatos divinos que escutei”, não há a mais
leve razão para não crer nele, como se fosse um inventor de mitos. Mas como
Alexandre e Hermes, o chamado Trismegisto, e tantos outros mais, não fazendo a
enumeração de todos, que uniram suas próprias famílias com os deuses, já não há
razão para não pensar que, sendo homens, foram tidos como deuses. Que eles foram
homens, o manifestam os mais eruditos entre os egípcios, os quais, ao chamar de
deuses o éter, a terra, o sol e a lua, consideram os demais como homens mortais
e os templos como seus sepulcros; isso manifesta também Apolodoro em seu
tratado sobre os deuses. Além disso, Heródoto chama de mistérios os sofrimentos
deles: “Já narrei anteriormente como celebram a festa em honra de Ísis na
cidade de Busíris. Todos, homens e mulheres, se golpeiam depois do sacrifício,
e a fé que milhares de pessoas ali depositam. Todavia, não é piedoso que eu
lhes diga a maneira como se golpeiam”. Se são deuses, são imortais; mas se se
golpeiam e seus sofrimentos são mistérios, são homens. O próprio Heródoto diz:
“Em Sais, no templo de Atenas, por detrás e seguindo ao longo da parede, está o
sepulcro do deus, cujo nome não considero piedoso pronunciar na presente
ocasião. Ali há também, junto ao sepulcro, um lago com bordas de pedra, bem
trabalhado e circular, ao que me parece com a mesma extensão do que em Delos se
chama Trocóides. Nesse lago, durante a noite, fazem-se as representações de
seus sofrimentos, que os egípcios chamam de mistérios”. Não só se expõe o
sepulcro de Osíris, mas também a sua múmia: “Quando se lhes leva um cadáver,
mostramse aos portadores modelos de mortos em madeira, imitados pela pintura; e
dizem que a mais exata delas é a do deus, cujo nome não considero piedoso
pronunciar na presente ocasião.
O que você deseja destacar neste texto?
Como ele serviu para sua espiritualidade?