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Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Irineu de Lyon (130-202)
Demonstração
da Pregação Apostólica (Cap. 88 - 100)
Salvação
no nome de Cristo
88. Depois da
Ascensão, [Cristo] foi elevado obre todas as criaturas, e ninguém pode ser
comparado ou assimilado a ele. Disse Isaías: “Quem é julgado? Apresente-se.
Quem é justificado? Aproxime-se do Filho do Senhor. Ai de vós, que vos consumis
como uma roupa e que a traça devorará. Todo homem será humilhado e abatido. Só
o Senhor será elevado com aqueles que serão enaltecidos”. Isaías reafirmava que
aqueles que servem a Deus serão salvos no final [dos tempos] pela força do seu
nome: “Os meus servos terão um nome diferente [novo]. Quem quiser uma bênção
neste país, é pelo Deus verdadeiro que há de pedir”. Novamente Isaías anuncia
que ele mesmo e em pessoa devia salvar-nos por esta bênção: “Em todas as suas
agruras, não foi mensageiro ou anjo, mas a própria face que os salvou. No seu
amor e na sua misericórdia, ele mesmo os resgatou: ergueu-se e carregou-os,
durante todo o tempo passado”.
O
Espírito sobre a face da terra
89. Os que
foram, assim, libertados, Deus não quer conduzi-los sob a Lei de Moisés; pois,
de fato, a Lei foi cumprida por Cristo, mas [quer] que caminhemos livres na novidade
dada pela fé no Filho de Deus, na renovação da Palavra, como disse Isaías: “Não
fiqueis a lembrar coisas passadas, não vos preocupeis com acontecimentos
antigos. Eis que farei uma coisa nova, ela já vem despontando: não a percebeis?
Com efeito, estabelecerei um caminho no deserto, e rios em lugares ermos [...]
a fim de dar de beber ao meu povo, o meu eleito. O povo que formei para mim
proclamará o meu louvor”. “Deserto” e “terra seca” eram precedentemente o
chamado aos gentios, porque o Verbo não havia passado entre eles, nem lhes
havia dado a beber o Espírito Santo, que preparou o novo caminho da piedade e
da justiça. O Verbo fez brotar rios abundantes, ou seja, disseminou o Espírito
Santo sobre a terra, como prometeu por meio dos profetas, que efundiria o
Espírito sobre a face da terra até o fim dos tempos.
A
vida nova no Espírito
‘90. A nossa
vocação, então, vem da “novidade do Espírito, e não da caducidade da letra”,
como profetizou Jeremias: “Eis que dias virão – oráculo de Iahweh – em que concluirei
com a casa de Israel e com a casa de Judá uma aliança nova. Não como a aliança
que concluí com seus pais, no dia em que os tomei pela mão para fazê-los sair
da terra do Egito – minha aliança que eles próprios romperam, embora eu fosse o
seu Senhor, oráculo de Iahweh! Porque esta é a aliança que concluirei com a
casa de Israel depois desses dias, oráculo de Iahweh. Porei minhas leis no
fundo de seu ser e a escreverei em seu coração. Então serei seu Deus, e eles
serão o meu povo. Eles não terão que instruir seu próximo ou seu irmão,
dizendo: ‘Conhece a Iahweh!’. Porque todos me conhecerão, dos maiores aos
menores – oráculo de Iahweh –, porque perdoarei sua culpa e não me lembrarei
mais do seu pecado”.
O
lugar dos pagãos na Igreja
91. Isaías
recordava que essas promessas deviam ser herdadas no tempo do chamado aos
gentios, aos quais foi inaugurada uma nova aliança: “Naquele dia o homem atentará
para o seu criador e os seus olhos se voltarão para o Santo de Israel. Ele não tornará
a atentar para os altares, obra das suas mãos, objeto que os seus dedos fabricaram;
ele não voltará a olhar para as estelas sagradas, nem para os altares de incenso”.
Evidentemente, isso foi dito àqueles que abandonaram os ídolos e creem em Deus,
nosso criador, graças ao Santo de Israel. O Santo de Israel é o Cristo; tendo
sido manifestado aos homens – e nós o contemplamos com atenção – não colocamos
mais a nossa esperança nos altares, nem nas obras de nossas mãos.
92. Que devesse
manifestar-se em meio a nós, que o Filho de Deus se tornasse Filho do homem,
que devesse ser encontrado entre nós que antes o ignorávamos, o mesmo Verbo o
afirma através de Isaías: “Consenti em ser buscado por aqueles que não
perguntavam por mim, consenti em ser encontrado por aqueles que não me
procuravam. A uma nação que não invocava o meu nome”.
93. Que esse
povo fosse destinado a ser um povo santo, foi predito por Oseias, um dos doze
profetas: “Chamarei meu povo àquele que não é meu povo e amada àquela que não é
amada. E acontecerá que, no lugar onde lhes foi dito: vós não sois meu povo, lá
serão chamados filhos do Deus vivo”. Isso foi repetido por João Batista:
“destas pedras, Deus pode suscitar filhos de Abraão”. De fato, depois de serem
arrancados pela fé do culto das pedras, os nossos corações veem a Deus, e se
tornam filhos de Abraão, “o homem é justificado pela fé”. Por isso, Deus disse
pela boca do profeta Ezequiel: “Eu lhes darei um só coração, porei no seu
íntimo um espírito novo: removerei do seu corpo o coração de pedra, e lhes
darei um coração de carne, a fim de que andem de acordo com os meus estatutos e
guardem as minhas normas e as cumpram. Então serão o meu povo e eu serei o seu
Deus”.
A
Igreja e a sinagoga
94. Então, com o
novo chamado se realiza uma troca dos corações entre os gentios, por meio do
Verbo de Deus, que “se encarnou e morou com os homens”, como disse o seu discípulo
João: “o Verbo se fez carne e veio morar entre nós”. Por isso a Igreja gera um
grande número de salvos, porque não é mais um intercessor, Moisés, ou um
enviado, Elias, que nos salvam, mas o Senhor mesmo, que gera mais filhos à
Igreja que à sinagoga do passado, como predisse Isaías nestes termos: “Canta, ó
estéril, tu que não
mais dás à luz!” – e estéril é a Igreja
que, nos primeiros tempos, não deu filhos a Deus – “Entoa alegre canto, ó
estéril, que deste à luz; ergue gritos de alegria, exulta, tu que não sentiste
as dores de parto, porque mais numerosos são os filhos da abandonada do que os
filhos da esposa, diz Iahweh”. E a antiga sinagoga tinha a Lei por marido.
A
incorporação dos gentios
95. Moisés disse
no Deuteronômio que os gentios estarão à cabeça, e o povo incrédulo à cauda, e
ainda: “Provocaram meu ciúme com deus falso, e me irritaram com seus ídolos
vazios; pois vou provocar seu ciúme com um povo falso, vou irritá-los com uma nação
idiota!”. De fato, abandonaram o verdadeiro Deus, adoraram falsos deuses, mataram
os profetas de Deus, e profetizaram por meio de Baal, que era um ídolo dos cananeus;
desprezaram o verdadeiro Filho de Deus, escolhendo Barrabás, um bandido preso
em flagrante homicídio; renegaram o Rei eterno, reconhecendo César como rei. Por
isso, Deus decidiu passar a sua herança aos estultos gentios e àqueles que não
eram cidadãos de Deus e não conheciam quem é Deus. Ora, graças a esse chamado,
foi-nos dada a vida, e Deus restaurou em nós a fé de Abraão nele, e não devemos
voltar
atrás, quero dizer, à legislação
precedente. Nós, de fato, acolhemos o Senhor da Lei, o Filho de Deus e,
mediante a fé nele, aprendemos a “amar a Deus com todo o coração e o próximo
como a nós mesmos”. Ora, o amor a Deus exclui qualquer pecado, e o amor ao próximo
não faz mal a ninguém.
A
superação da Lei
96. Portanto,
não temos necessidade da Lei, como pedagogo; eis que nós falamos com o Pai e
estamos face a face com ele nos tornando crianças sem malícia, e fortes em toda
justiça e honestidade. A Lei, de fato, não dirá mais: “Não cometerás adultério”
àquele que não concebeu o desejo pela mulher alheia; ou “Não cobiçarás a casa
do teu próximo. Não cobiçarás a mulher de teu próximo, nem o seu escravo, nem a
sua escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença a
teu próximo” àquele que não tem interesse pelas coisas da terra, mas faz provisão
para o céu; nem “olho por olho e dente por dente” àquele que não tem inimigos e
trata todos como próximo, e por isso não levanta as mãos para vingar-se; não
exigirá o dízimo de quem consagrou a Deus todos os seus bens e deixou pai, mãe,
toda a família, para seguir o Verbo de Deus. Não mandará mais reservar um dia
de repouso àquele que todo dia observa o sábado, ou seja, que rende culto a
Deus no templo de Deus, que é o corpo do homem, e pratica sempre a justiça.
“Porque é amor que eu quero e não sacrifícios, conhecimento de Deus mais do que
holocaustos”. Mas [é] ímpio “o que sacrifica um cordeiro ou destronca o pescoço
de um cão, o que oferece uma oblação – isto é, sangue de porco”. “Porque todo
aquele que invocar o nome do Senhor será salvo”, e nenhum outro nome foi dado
sob o céu, no qual os homens “são salvos”, mas o de Deus, que é Jesus Cristo,
Filho de Deus, a quem obedecem também os demônios, os espíritos maus e todas as
potências rebeldes.
A
invocação do nome de Jesus
97. Pela
invocação do nome de Jesus Cristo, crucificado sob Pôncio Pilatos, Satanás foi afastado
definitivamente dos homens. Ali onde existe alguém que, acreditando nele e fazendo
a sua vontade, o recordará e o invocará, ele estará ao seu lado e ouve as
súplicas de quem o invoca com coração puro. Tendo, assim, obtido a salvação,
nós estamos em constante ação de graças a Deus, nosso Senhor, pela sua grande e
insondável sabedoria, e arauto da redenção do céu, pela vinda visível de nosso
Senhor, isto é, a sua vida humana que, deixados a nós mesmos, não poderíamos
conseguir. Mas “As coisas impossíveis aos homens são possíveis a Deus”. A esse
propósito, Jeremias disse: “Quem subiu ao céu e apoderou-se dela, e a fez
descer do alto das nuvens? Quem atravessou o mar e a encontrou, quem a trará a
preço de ouro refinado? Não há quem conheça o seu caminho, nem quem se dê conta
da sua vereda. Aquele que sabe todas as coisas, porém, a conhece, pois
descobriu-a com a sua inteligência; aquele que preparou a terra para duração
eterna e a encheu de animais quadrúpedes; aquele que envia luz e ela parte, que
a chama de volta, e ela, tremendo, obedece; brilham em seus postos as estrelas,
palpitantes de alegria; ele as chama e elas respondem: ‘Aqui estamos’,
cintilando com alegria para aquele que as fez. É ele o nosso Deus, e nenhum
outro se contará ao lado dele. Foi ela quem escavou todo o caminho do
conhecimento e o mostrou a Jacó, seu servo, e a Israel, seu bem-amado. Depois
disso ela apareceu sobre a terra e no meio dos homens conviveu. Ela é o livro
dos preceitos de Deus, a Lei que subsiste para sempre: todos os que a ela se
agarram destinam-se à vida, e os que a abandonarem perecerão”. Ele chama “Jacó”
e “Israel” o Filho de Deus, que recebeu do Pai o poder sobre a nossa vida e,
depois de ter recebido a vida, a fez descer sobre nós que estamos longe dele,
quando foi visto sobre a terra e conversou com os homens, misturando e unindo o
Espírito de Deus Pai com o corpo plasmado por Deus, para que o homem se tornasse
imagem e semelhança de Deus.
Conclusão
98. Esta é, meu
querido amigo, a pregação da verdade e a imagem de nossa salvação: assim é o
caminho da vida que os profetas anunciaram, o que Cristo instituiu, que os apóstolos
consignaram e que a Igreja transmite a seus filhos por toda a terra. Deve ser
custodiada e com vontade decidida para agradar a Deus com as boas obras e com
um modo sadio de pensar.
Os
desvios dos hereges
99. Portanto,
que ninguém pense que existe outro Deus Pai distinto de nosso Criador, como
imaginam os hereges, que depreciam o Deus verdadeiro e fazem de Deus um ídolo,
criando um pai acima de nosso Criador e o têm para si. Na verdade, todos esses são
ímpios e blasfemam contra o seu Criador e Pai como já demonstramos na Exposição
e Refutação da falsa gnose. Outros depreciam a vinda do Filho de Deus e a
economia
da sua encarnação transmitida pelos
Apóstolos e prevista pelos profetas para a restauração da humanidade, como
concisamente demonstramos. Também a essas pessoas temos que contá-las entre os
incrédulos. Outros ainda não acolhem os dons do Espírito Santo e rechaçam o
carisma profético, por cujo orvalho o homem produz como fruto a vida divina.
Deles, disse Isaías: “Pois sereis como terebinto cujas folhas estão murchas,
como jardim sem água”. Esses não são de utilidade alguma para Deus, pois não
produzem frutos.
100. Com relação
aos três artigos do nosso selo, o erro causou muitas divagações distantes da
verdade. Por isso, ou desprezam o Pai, ou não acolhem o Filho, falando contra a
economia de sua encarnação, ou refutam o Espírito, ou seja, a profecia. De toda
essa gente devemos nos esguardar, evitar os seus caminhos, se realmente
queremos agradar a Deus e obter a salvação.
Glória a toda a Trindade, único Deus, Pai,
Filho
e Espírito Santo, providência universal, para sempre. Amém. Recordem-se no Senhor
do divino e beatíssimo senhor arcebispo João, proprietário deste livro, irmão
do santo rei; e também do humilde escrivão (copista).
O que destaco
neste texto?
Como ele te
ajuda em sua espiritualidade?
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