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Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e
Obra
Orígenes de Alexandria (185-253)
As Homilias
sobre São Lucas (Homilia 16)
HOMILIA 16 - Lc 2.33-34
Sobre o que está escrito: “Seu
pai e sua mãe admiravam-se das coisas que eram ditas sobre ele”, até aquela
passagem que diz: “eis que ele foi estabelecido para a queda e soerguimento de
um grande número em Israel”.
A admiração de José
e de Maria
“Seu pai e sua mãe”, diz [o
evangelista], admiravam-se das coisas que eram ditas sobre ele”.
Reunamos o que, no nascimento de
Jesus, foi dito e escrito a seu respeito; então poderemos saber o quanto cada
coisa é digna de admiração.
Por que se admirava tanto seu pai
– assim, com efeito, foi chamado, porque foi seu pai de criação – quanto se
admirava sua mãe de todas as coisas que eram ditas sobre ele? Quais são, então,
as maravilhas que a boataria havia espalhado sobre o pequenino Jesus?
Naquela região, estavam os
pastores que vigiavam e montavam a guarda pelas noites sobre seu rebanho. Na
mesma hora do nascimento de Jesus, veio um anjo e lhes disse: “Eu vos anuncio
um grande júbilo: ide e encontrareis um recém-nascido envolto em panos e
colocado numa manjedoura. Mal o anjo acabara de pronunciar essas palavras, e eis
que uma multidão do exército celeste começou a louvar e bendizer a Deus”.
Como os pastores houvessem
percebido apavorados essa aparição, e “o anjo tivesse se afastado deles,
disseram entre si uns aos outros: Vamos a Belém e vejamos o evento que o Senhor
nos fez conhecer”.
Vieram e encontraram o
recém-nascido. Eles também se admiravam, tanto quanto seus pais, do que tinha
acontecido.
Tudo isso aumentou os
comentários, e o que está escrito sobre Simeão foi a maior parte da maravilha.
Ele, com efeito, segurou o menino em seus braços e disse: “Agora, Senhor, podes
deixar ir teu servo na paz, segundo a tua palavra, porque meus olhos viram tua
salvação”.
O discurso de Simeão foi o que
houve de mais elevado, o cume, por assim dizer, de todas as coisas de que tanto
o seu pai quanto a sua mãe se jactavam e se admiravam acerca de Jesus.
Não bastou, pois, para Simeão
segurar o recém-nascido e proclamar o que está escrito a respeito dele, mas
bendisse a seu pai e à sua mãe, e sobre o próprio recém-nascido profetizou
dizendo: “Eis que este [menino] foi estabelecido para a queda e o soerguimento
de muitos em Israel, e em sinal de contradição. Quanto a ti, uma espada te
transpassará a alma, para que sejam revelados os pensamentos de muitos
corações”.
Que significam estas palavras:
“Eis que este [menino] foi estabelecido para a queda e o soerguimento de muitos
em Israel”? Encontrei algo similar a isso no Evangelho segundo [São] João: “Eu
vim para o mundo para julgá-lo, a fim de que os cegos vejam e os que veem se
tornem cegos”.
Do modo que veio, pois, para
cumprir o julgamento, para que “os cegos”, vindos dos gentios, “pudessem ver” e
os de Israel, que antes viam, “se tornassem cegos”, assim veio “para a queda e
soerguimento de muitos”.
No advento do Senhor Salvador,
com efeito, os que se haviam mantido de pé, arruinaram-se e os que haviam
caído, se levantaram.
Esta é a única interpretação do
que está escrito: “Eis que este [menino] foi estabelecido para a queda e o
soerguimento de muitos em Israel”.
Exemplo de exegese
contra os pseudognósticos
Mas há também um sentido mais
profundo a ser entendido, sobretudo para responder àqueles que ladram contra o Criador e que, reunindo daqui e dali testemunhos
do Antigo Testamento que não entendem, “induzem em erro os corações dos homens
simples”.Dizem, pois: “eis o Deus da Lei e dos profetas, vejam o que ele é: ‘Eu’,
diz ele, ‘matarei e devolverei a vida, golpearei e curarei, e não há quem possa
escapar das minhas mãos”.
Eles ouvem: “eu matarei”, mas não
ouvem: “eu devolverei a vida”; ouvem: “golpearei”, mas negligenciam ouvir: “e
curarei”. Desse modo, caluniam com tais ocasiões o Criador.
Assim, antes que eu interprete
qual sentido pode ter a frase: “Eu matarei e devolverei a vida, golpearei e
curarei”, lhes oporei o testemunho do
Evangelho e direi contra os hereges (pois há grande número de heresias que
admitem o Evangelho segundo [São] Lucas): se o Criador é sanguinário e um juiz
cruel somente porque diz: “Eu matarei e devolverei a vida, golpearei e
curarei”, é evidentíssimo que Jesus é o Filho do Criador.
A mesma coisa, com efeito, foi
escrita a seu respeito: “Eis que este [menino] foi estabelecido para a queda e
o soerguimento de muitos em Israel”, não somente “para o soerguimento”, mas
também “para a queda”.
Se matar é um mal, seria um mal também
vir “para a queda”. O que responderão? Afastar-se-ão de seu culto, ou, então, procurarão
alguma outra interpretação e escapatória, apelando ao sentido figurado, para que
ter vindo “para a queda” signifique mais bondade do que austeridade?
E como será justo, quando se
encontra no Evangelho uma frase desse tipo, recorrer a alegorias e novas
interpretações, quando se está no Antigo
Testamento, imediatamente acusar e não aceitar nenhuma explicação, ainda que
seja verossímil?
Mas e esta passagem que segue:
“Eu vim para o mundo, para julgá-lo, a fim de que os cegos vejam e os que veem
se tornem cegos”, ainda que busquem
explicá-la, não poderão lhe dar o sentido.
[Mas] eu opto por pertencer à Igreja e não ser nomeado por um heresiarca[i] qualquer,
mas pelo nome de Cristo e ter esse nome que é bendito sobre a terra, e desejo
ser chamado de cristão tanto pelas obras quanto pelos pensamentos; assim busco
na antiga e na nova Lei um método igual de interpretação.
Morte ao “homem
velho”
Deus diz: “Eu matarei”. Eu aceito de bom grado que Deus mate. E quando há
em mim um homem velho, e que vivo ainda como homem terrestre, desejo que Deus mate
em mim o homem velho e me ressuscite dentre os mortos.
“O primeiro homem, com efeito,
diz o Apóstolo, oriundo da terra, é terrestre; o segundo homem, vindo do céu, é
celeste.
Como revestimos a imagem do
terrestre, revistamos também a imagem do
celeste”. Segundo essa interpretação,
compreende-se também aquele versículo: “Eu vim para o mundo para julgá-lo, a
fim de que os cegos vejam e os que veem se tornem cegos”.
Todos nós homens, temos a visão
e, ao mesmo tempo, somos cegos. Adão gozava da visão e, ao mesmo tempo, estava
cego.
Eva também, antes que seus olhos
fossem abertos, gozava da visão. Diz a Escritura: “A mulher viu que a árvore
era boa para comer e muito agradável de se ver, e, tomando do fruto da árvore, comeu
e deu a seu marido, e comeram”.
Eles não eram, pois, cegos, mas
eles viam.
Depois,
segue-se: “E seus olhos se abriram”.
Eles tinham, pois, sido cegos e
não viam, e seus olhos carnais depois se abriram; mas seus olhos espirituais
que, antes, viam bem, depois que transgrediram o mandamento do Senhor começaram
a ver mal e, insinuando-se o pecado da desobediência, perderam em seguida a
visão.
Eu compreendo assim esta palavra
que Deus pronuncia: “Quem fez o mudo e o surdo, aquele que vê e aquele que não
vê? Não sou eu, o Senhor Deus?”
Há o olho corporal, com o qual
olhamos estas realidades terrestres, olho segundo a inteligência da carne, do qual a Escritura diz: “Em vão avança aquele
que está inflado do pensamento carnal”.
[Mas] temos também outro olho,
oposto ao primeiro e melhor que ele, capaz de ter o sabor das coisas divinas;
olho que, porque era cego em nós, Jesus veio para fazer enxergar; para que
aqueles que não enxergavam pudessem enxergar; e para que aqueles, porém, que
enxergavam, se tornassem cegos.
É nesse sentido que se deve
compreender o texto que temos atualmente entre as mãos: “Eis que este [menino]
foi estabelecido para a queda e o soerguimento de muitos em Israel”.
Tenho algo em mim que mal se
mantém de pé e se eleva pelo orgulho do pecado: que isto caia, que isto
desmorone, porque, se tiver caído, aquilo que antes havia desabado,
levantando-se, por-se-á de pé. O meu “homem interior”
jazia outrora por terra, esmagado, e o “homem exterior” se erguia bem ereto.
Antes que eu tivesse a fé em
Jesus, o que havia de bom em mim jazia por terra; o que havia de mal, se
mantinha ereto. Depois que Jesus veio, o mal
em mim deixou de existir, desmoronou e cumpriu-se aquele texto: “Trazendo
sempre em nosso corpo a morte de Jesus”, e aquele outro: “Fazei morrer, pois,
em vossos membros terrestres, a fornicação, a impureza, a luxúria, a idolatria,
a cobiça” e todo o resto.
A queda de todos esses vícios se
tornou útil. E dessa queda é dito: “Onde quer que estiver o cadáver, para lá se
reunirão as águias”. Com efeito, a palavra cadáver
tomou o nome a partir de “queda”.
Boa é essa queda, para a qual
primeiramente veio Jesus, e não pode fazer o soerguimento, se a queda não o
tiver precedido.
Venha antes destruir o que em mim
foi um mal para que, por essa destruição e essa mortificação, o que há de bom
em mim se reerga e tome vida, e que assim possamos atingir o Reino dos céus,
naquele “a quem pertencem a glória e o poder nos séculos dos séculos. Amém”.
O que você destaca no texto?
Como ele serve para sua
espiritualidade?
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