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Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Orígenes de Alexandria (185-253)
As Homilias sobre São
Lucas (Homilias 39)
HOMILIA
39 - Lc 20.27-40; 20.21-26
A respeito da
pergunta que os saduceus fizeram ao Senhor sobre aquela mulher que teve sete
maridos, e igualmente a respeito do denário que o Senhor ordenou que lhe fosse mostrado.
A
pergunta dos saduceus
Os judeus têm
uma seita que é chamada a seita dos saduceus: essa nega “a ressurreição dos
mortos”, e pensa que a alma morre com o corpo e que, depois da morte, nossas
faculdades espirituais desaparecem. [1]
Membros dessa
seita, ao fazer, então, uma pergunta ao Senhor, inventaram a história[2] de uma
mulher que tinha tido sete maridos. Depois da morte do primeiro marido, a fim
de lhe suscitar uma posteridade, ela se casou com o segundo; tendo este
morrido, ela se casou com um terceiro, depois com um quarto e assim
sucessivamente até o sétimo.
E para armar uma
cilada para o Salvador,[3] os saduceus propuseram-lhe este problema, no momento
em que o viram instruir os discípulos a respeito da ressurreição: “Na
ressurreição dos mortos”, quem dos sete irmãos deveria reivindicá-la como
esposa?
A
resposta de Jesus
Respondendo a
eles, disse-lhes Jesus: “Vós estais errados, vós não compreendeis nem as
Escrituras nem o poder de Deus.
Pois, na
ressurreição dos mortos, não tomarão mulher nem marido, mas serão como anjos
nos céus”.[4] Aqueles que serão como anjos com toda certeza serão anjos.
Deve-se aprender, igualmente, que os anjos não se casam. Mas aqui embaixo, onde
há a morte, são necessários os casamentos e os filhos; mas onde há a
imortalidade, porém, não há nenhuma necessidade de casamento nem de filhos.
Vou me fazer uma
pergunta muito importuna, e que não é resolvida facilmente no dizer daqueles
que são muito versados no estudo da Escritura e “meditam dia e noite na lei do
Senhor”.[5]
Onde, poderiam
eles ter dito, está escrito que “não tomarão nem mulher nem marido”? Repassando
em memória e em pensamento tanto o Velho quanto o Novo Testamento, não me
recordo de ter aí encontrado em alguma parte uma passagem semelhante. Se essa
passagem me escapa, que alguém mais sábio me instrua, aprendo de boa vontade o
que ignoro; mas, por quanto sei, não se encontrará nada semelhante nem no
Antigo nem no Novo Testamento.
O
erro dos saduceus
Todo o erro dos
saduceus subjaz à leitura dos profetas, que eles não compreendem[6] – dentre os
quais aquilo que está em Isaías: “Meus eleitos não terão filhos destinados à
própria perda”,[7] e no Deuteronômio, no capítulo das bênçãos: “Benditos sejam
os filhos de teu ventre”[8] – e julgam que isso se cumprirá “quando da ressurreição”,
sem compreender que se trata de profecias referentes às bênçãos espirituais.
Paulo, com
efeito, “vaso de eleição”,[9] que sabia que todas as bênçãos citadas
na Lei não devem ser entendidas em
sentido carnal, interpretava-as de modo espiritual.
Ele diz aos
Efésios: “Bendito seja Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou
com toda sorte de bênçãos espirituais”.[10] Todas essas bênçãos serão, portanto,
bênçãos espirituais, quando, na ressurreição dos mortos, obteremos a eterna bem-aventurança.
Mas os saduceus caem no mesmo erro, encontrando um texto similar nos Salmos:
“Tua esposa é como uma vinha fecunda no interior de tua casa, teus filhos, como
viveiro de oliveiras em torno de tua mesa”, até aquela passagem que diz: “Que
Deus te abençoe de Sião e possas tu ver os bens de Jerusalém”.[11]
Quando
Jerusalém for construída e restabelecida
em sua antiga condição, então o santo haverá de ver os bens mencionados pela
Escritura. Aqueles que concebem espiritualmente uma Jerusalém e sabem que dela
se diz: “que ela é celeste, que ela é do alto, que ela é nossa mãe”,[12] verão
seus bens, dos quais muitas vezes falamos, bem como aquilo que agora citamos:
“Tua esposa é como uma vinha fecunda no interior de tua casa, teus filhos, como
viveiro de oliveiras em torno de tua mesa”.
É aos saduceus,
uma fração do povo judaico, que tudo compreendia segundo o sentido carnal, que
se dirige o Salvador quando diz: “Vós não compreendeis nem as Escrituras nem o
poder de Deus”.[13] Eis o que deve ser dito, brevemente, sobre a pergunta que
os saduceus fizeram ao Senhor. Por outro lado, visto que se acrescenta o
comentário sobre a efígie de César, também sobre isso devemos tocar, de
passagem, com algumas palavras.
Alguns pensam
que as palavras ditas pelo Salvador têm um sentido literal pura e simplesmente:
“Devolvei a César o que pertence a César”, isso quer dizer: devolvei o imposto
que deveis. Com efeito, quem de nós eleva uma objeção acerca dos impostos que
devem ser devolvidos a César? Essa passagem contém, portanto, algo de místico e
secreto.
A
imagem de Deus
Há duas imagens
no homem: uma que recebeu de Deus, no tempo da criação, como está escrito no
Gênesis: “À imagem e semelhança de Deus”; a outra, do homem “terrestre”,[14] que
recebeu em seguida, por causa da desobediência e do pecado, seduzido pelos
atrativos do “príncipe deste mundo”.[15]
Do mesmo modo
que uma moeda ou um denário tem a imagem dos imperadores do mundo, assim aquele
que faz as obras do “príncipe destas trevas” traz a imagem desse príncipe, de
quem faz as obras.
Jesus ordenou,
aqui, que devolvamos essa imagem e que a arranquemos de nosso rosto, para tomar
aquela imagem segundo a qual, na origem, fomos criados, isto é, à semelhança de
Deus. É assim que devolvemos “a César o que pertence a César e a Deus o que é
de Deus”.
“Mostrai-me”,
diz Jesus, a moeda”[16] ou o “denário”, como escreve Mateus.[17] Tendo-a
tomado, ele acrescenta: “De quem é a inscrição?” Eles responderam: “De César”.
E, imediatamente, disse: “Devolvei a César o que pertence a César e a Deus o que
é de Deus”.
E Paulo, nesse
mesmo sentido, disse: “Como carregamos a imagem do terrestre, carreguemos
também a imagem do celeste”.[18] As palavras: “devolvei a César o que é de
César” significam: abandonai a figura do “homem terrestre”, rejeitai a imagem terrestre,
para que possais, impondo-vos a figura do “homem celeste”, devolver “a Deus o
que é de Deus”.
Deus nos faz um
novo pedido. O que nos pede? Lê em Moisés: “E agora o que o Senhor teu Deus
volta a pedir-te?”,[19] e o resto que se segue. Deus nos dirige um pedido e nos
solicita, não porque ele precise que lhe demos alguma coisa, mas porque, depois
que lhe tivermos dado, ele nos devolverá a mesma coisa, em vista de nossa
salvação.
Para explicar
isso mais claramente, citarei a parábola das minas.[20] Um homem tinha recebido
uma única mina. Com ela, ele ganhara [outras] dez minas, e ofereceu-as ao
Senhor, que lhe tinha confiado a primeira mina; e ele recebeu
outra mina que não possuía antes.
[Mas] o Senhor
ordena que seja tirada a mina daquele que a tinha recebido sem fazê-la
frutificar, para dá-la àquele que tinha ganhado outras: “Retirai-lhe a mina”, diz
Jesus, “e dai-a àquele que tem dez”. Assim, neste mundo, o que tivermos dado a Deus,
ele no-lo devolverá e acrescentará outra coisa que não possuíamos anteriormente.
Deus exige, Deus
pede, para ter a ocasião de nos dar, para distribuir ele próprio seus dons. É
graças a ele que a mina multiplicou-se, e àqueles que o merecem é dado mais do que
esperavam. Por essa razão, levantando-nos, oremos a Deus, para que sejamos dignos
de oferecer-lhe seus dons, os quais possa nos restituir e, em lugar dos bens terrenos,
ele possa nos prodigalizar os celestiais, no Cristo Jesus: “a quem pertencem a
glória e o poder nos séculos dos
séculos. Amém”.
Fim das trinta e
nove homilias de Orígenes Adamâncio sobre o Evangelho de Lucas, traduzidas do
grego para o latim pelo bem-aventurado presbítero Jerônimo.
O
que você destaca no texto?
Como
o texto serve para sua espiritualidade?
Notas:
[1] Para os saduceus, a morte física
representa o fim das funções biológicas, bem como de qualquer atividade espiritual
posterior. Com o corpo, morrem também a alma e o espírito.
[2] Fábula, no latim fabula, pode
significar tanto uma história imaginada quanto uma história falsa. No vocabulário
de Jerônimo, tem o duplo sentido, mas, no mais das vezes, refere-se a uma história
verdadeira.
[3] Do mesmo modo, como os judeus
faziam com o Cristo, nos últimos tempos de sua vida terrestre.
[4] Mt 22,29-30.
[5] Sl 1,2.
[6] O desconhecimento dos
profetas, por parte dos saduceus, decorre do fato de que recebiam apenas os
cinco livros do Pentateuco, daí a
natural incompreensão da obra profética.
[7] Is 65,23.
[8] Dt 7,13.
[9] At 9,15.
[10] Ef 1,3.
[11] Sl 128(127),3-5.
[12] Gl 4,26.
[13] Mt 22,29.
[14] 1Cor 15,49.
[15] Jo 12,31.
[16] A imagem de César, príncipe
do Império Romano, é a imagem do “príncipe deste mundo” ou o diabo. Aí fica
patente o sofrimento da Igreja, submetida a perseguições à margem da sociedade
romana, fiel ao Deus único e submetida à idolatria.
[17] Mt 22,19
[18] 1Cor 15,49.
[19] Dt 10,12.
[20] Cf. Lc 19,11-27.
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