sábado, 14 de março de 2020

126 - Orígenes de Alexandria (185-253) As Homilias sobre São Lucas (Homilias 39)


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126
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Orígenes de Alexandria (185-253)
As Homilias sobre São Lucas (Homilias 39)



HOMILIA 39 - Lc 20.27-40; 20.21-26
A respeito da pergunta que os saduceus fizeram ao Senhor sobre aquela mulher que teve sete maridos, e igualmente a respeito do denário que o Senhor ordenou que lhe fosse mostrado.

A pergunta dos saduceus
Os judeus têm uma seita que é chamada a seita dos saduceus: essa nega “a ressurreição dos mortos”, e pensa que a alma morre com o corpo e que, depois da morte, nossas faculdades espirituais desaparecem. [1]
Membros dessa seita, ao fazer, então, uma pergunta ao Senhor, inventaram a história[2] de uma mulher que tinha tido sete maridos. Depois da morte do primeiro marido, a fim de lhe suscitar uma posteridade, ela se casou com o segundo; tendo este morrido, ela se casou com um terceiro, depois com um quarto e assim sucessivamente até o sétimo.
E para armar uma cilada para o Salvador,[3] os saduceus propuseram-lhe este problema, no momento em que o viram instruir os discípulos a respeito da ressurreição: “Na ressurreição dos mortos”, quem dos sete irmãos deveria reivindicá-la como esposa?

A resposta de Jesus
Respondendo a eles, disse-lhes Jesus: “Vós estais errados, vós não compreendeis nem as Escrituras nem o poder de Deus.
Pois, na ressurreição dos mortos, não tomarão mulher nem marido, mas serão como anjos nos céus”.[4] Aqueles que serão como anjos com toda certeza serão anjos. Deve-se aprender, igualmente, que os anjos não se casam. Mas aqui embaixo, onde há a morte, são necessários os casamentos e os filhos; mas onde há a imortalidade, porém, não há nenhuma necessidade de casamento nem de filhos.
Vou me fazer uma pergunta muito importuna, e que não é resolvida facilmente no dizer daqueles que são muito versados no estudo da Escritura e “meditam dia e noite na lei do Senhor”.[5]
Onde, poderiam eles ter dito, está escrito que “não tomarão nem mulher nem marido”? Repassando em memória e em pensamento tanto o Velho quanto o Novo Testamento, não me recordo de ter aí encontrado em alguma parte uma passagem semelhante. Se essa passagem me escapa, que alguém mais sábio me instrua, aprendo de boa vontade o que ignoro; mas, por quanto sei, não se encontrará nada semelhante nem no Antigo nem no Novo Testamento.

O erro dos saduceus
Todo o erro dos saduceus subjaz à leitura dos profetas, que eles não compreendem[6] – dentre os quais aquilo que está em Isaías: “Meus eleitos não terão filhos destinados à própria perda”,[7] e no Deuteronômio, no capítulo das bênçãos: “Benditos sejam os filhos de teu ventre”[8] – e julgam que isso se cumprirá “quando da ressurreição”, sem compreender que se trata de profecias referentes às bênçãos espirituais.
Paulo, com efeito, “vaso de eleição”,[9] que sabia que todas as bênçãos citadas
na Lei não devem ser entendidas em sentido carnal, interpretava-as de modo espiritual.
Ele diz aos Efésios: “Bendito seja Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com toda sorte de bênçãos espirituais”.[10] Todas essas bênçãos serão, portanto, bênçãos espirituais, quando, na ressurreição dos mortos, obteremos a eterna bem-aventurança. Mas os saduceus caem no mesmo erro, encontrando um texto similar nos Salmos: “Tua esposa é como uma vinha fecunda no interior de tua casa, teus filhos, como viveiro de oliveiras em torno de tua mesa”, até aquela passagem que diz: “Que Deus te abençoe de Sião e possas tu ver os bens de Jerusalém”.[11]
Quando
Jerusalém for construída e restabelecida em sua antiga condição, então o santo haverá de ver os bens mencionados pela Escritura. Aqueles que concebem espiritualmente uma Jerusalém e sabem que dela se diz: “que ela é celeste, que ela é do alto, que ela é nossa mãe”,[12] verão seus bens, dos quais muitas vezes falamos, bem como aquilo que agora citamos: “Tua esposa é como uma vinha fecunda no interior de tua casa, teus filhos, como viveiro de oliveiras em torno de tua mesa”.
É aos saduceus, uma fração do povo judaico, que tudo compreendia segundo o sentido carnal, que se dirige o Salvador quando diz: “Vós não compreendeis nem as Escrituras nem o poder de Deus”.[13] Eis o que deve ser dito, brevemente, sobre a pergunta que os saduceus fizeram ao Senhor. Por outro lado, visto que se acrescenta o comentário sobre a efígie de César, também sobre isso devemos tocar, de passagem, com algumas palavras.
Alguns pensam que as palavras ditas pelo Salvador têm um sentido literal pura e simplesmente: “Devolvei a César o que pertence a César”, isso quer dizer: devolvei o imposto que deveis. Com efeito, quem de nós eleva uma objeção acerca dos impostos que devem ser devolvidos a César? Essa passagem contém, portanto, algo de místico e secreto.

A imagem de Deus
Há duas imagens no homem: uma que recebeu de Deus, no tempo da criação, como está escrito no Gênesis: “À imagem e semelhança de Deus”; a outra, do homem “terrestre”,[14] que recebeu em seguida, por causa da desobediência e do pecado, seduzido pelos atrativos do “príncipe deste mundo”.[15]
Do mesmo modo que uma moeda ou um denário tem a imagem dos imperadores do mundo, assim aquele que faz as obras do “príncipe destas trevas” traz a imagem desse príncipe, de quem faz as obras.
Jesus ordenou, aqui, que devolvamos essa imagem e que a arranquemos de nosso rosto, para tomar aquela imagem segundo a qual, na origem, fomos criados, isto é, à semelhança de Deus. É assim que devolvemos “a César o que pertence a César e a Deus o que é de Deus”.
“Mostrai-me”, diz Jesus, a moeda”[16] ou o “denário”, como escreve Mateus.[17] Tendo-a tomado, ele acrescenta: “De quem é a inscrição?” Eles responderam: “De César”. E, imediatamente, disse: “Devolvei a César o que pertence a César e a Deus o que é de Deus”.
E Paulo, nesse mesmo sentido, disse: “Como carregamos a imagem do terrestre, carreguemos também a imagem do celeste”.[18] As palavras: “devolvei a César o que é de César” significam: abandonai a figura do “homem terrestre”, rejeitai a imagem terrestre, para que possais, impondo-vos a figura do “homem celeste”, devolver “a Deus o que é de Deus”.
Deus nos faz um novo pedido. O que nos pede? Lê em Moisés: “E agora o que o Senhor teu Deus volta a pedir-te?”,[19] e o resto que se segue. Deus nos dirige um pedido e nos solicita, não porque ele precise que lhe demos alguma coisa, mas porque, depois que lhe tivermos dado, ele nos devolverá a mesma coisa, em vista de nossa salvação.
Para explicar isso mais claramente, citarei a parábola das minas.[20] Um homem tinha recebido uma única mina. Com ela, ele ganhara [outras] dez minas, e ofereceu-as ao Senhor, que lhe tinha confiado a primeira mina; e ele recebeu
outra mina que não possuía antes.
[Mas] o Senhor ordena que seja tirada a mina daquele que a tinha recebido sem fazê-la frutificar, para dá-la àquele que tinha ganhado outras: “Retirai-lhe a mina”, diz Jesus, “e dai-a àquele que tem dez”. Assim, neste mundo, o que tivermos dado a Deus, ele no-lo devolverá e acrescentará outra coisa que não possuíamos anteriormente.
Deus exige, Deus pede, para ter a ocasião de nos dar, para distribuir ele próprio seus dons. É graças a ele que a mina multiplicou-se, e àqueles que o merecem é dado mais do que esperavam. Por essa razão, levantando-nos, oremos a Deus, para que sejamos dignos de oferecer-lhe seus dons, os quais possa nos restituir e, em lugar dos bens terrenos, ele possa nos prodigalizar os celestiais, no Cristo Jesus: “a quem pertencem a
glória e o poder nos séculos dos séculos. Amém”.
Fim das trinta e nove homilias de Orígenes Adamâncio sobre o Evangelho de Lucas, traduzidas do grego para o latim pelo bem-aventurado presbítero Jerônimo.

O que você destaca no texto?
Como o texto serve para sua espiritualidade? 



Notas:

[1] Para os saduceus, a morte física representa o fim das funções biológicas, bem como de qualquer atividade espiritual posterior. Com o corpo, morrem também a alma e o espírito.
[2] Fábula, no latim fabula, pode significar tanto uma história imaginada quanto uma história falsa. No vocabulário de Jerônimo, tem o duplo sentido, mas, no mais das vezes, refere-se a uma história verdadeira.
[3] Do mesmo modo, como os judeus faziam com o Cristo, nos últimos tempos de sua vida terrestre.
[4] Mt 22,29-30.
[5] Sl 1,2.
[6] O desconhecimento dos profetas, por parte dos saduceus, decorre do fato de que recebiam apenas os cinco livros do Pentateuco, daí a natural incompreensão da obra profética.

[7] Is 65,23.
[8] Dt 7,13.
[9] At 9,15.
[10] Ef 1,3.
[11] Sl 128(127),3-5.
[12] Gl 4,26.
[13] Mt 22,29.
[14] 1Cor 15,49.
[15] Jo 12,31.
[16] A imagem de César, príncipe do Império Romano, é a imagem do “príncipe deste mundo” ou o diabo. Aí fica patente o sofrimento da Igreja, submetida a perseguições à margem da sociedade romana, fiel ao Deus único e submetida à idolatria.
[17] Mt 22,19
[18] 1Cor 15,49.
[19] Dt 10,12.
[20] Cf. Lc 19,11-27.

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