segunda-feira, 29 de junho de 2020

140 - Cipriano de Cartago (210-258) Os Lapsos – Partes 3 a 6


 140

Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Cipriano de Cartago (210-258)
Os Lapsos – Partes 3 a 6



3. O esquecimento das palavras divinas, causa do decaimento da fé e do levar outros
a fazê-lo
Estas coisas nos foram preanunciadas e preditas. Mas nós, esquecidos da Lei dada e de sua observância, nos comportamos em nossos pecados de tal forma que, enquanto desrespeitamos os mandamentos do Senhor, chegamos à correção dos pecados e à provação da fé com remédios bem mais severos. Nem, pelo menos, retornamos tarde ao temor de Deus, para suportarmos pacientemente e fortemente esta nossa correção e provação divina. Logo aos primeiros anúncios do inimigo ameaçador, um número altíssimo de irmãos negaram a sua fé e não foram vencidos pela violência da perseguição, mas derrotaram a si mesmos em lapso voluntário.
O que, vos peço, de inaudito, o que de novo tinha acontecido, para que o juramento de Cristo fosse desfeito com temeridade precipitada, como se tivessem aparecido coisas incógnitas e inesperadas? Não predisseram estas coisas primeiro os profetas e depois os apóstolos? Não ensinaram sempre, cheios de Espírito Santo, as opressões dos justos e as injúrias dos pagãos? Não diz a Escritura Divina, sempre fortificando a nossa fé e corroborando com voz celeste os servos de Deus: “Adorarás o Senhor teu Deus e servirás somente a ele”?[Dt 6,13]. Não diz ela novamente, mostrando a ira da indignação divina e advertindo sobre o medo da pena: “Adoraram os ídolos que seus dedos fizeram, e o homem se curvou e o varão se humilhou, e não os perdoarei”?[ Is 2,8ss.] E não diz Deus ainda: “Quem sacrifica aos ídolos, e não somente a Deus, será extirpado”?[ Ex 22,19.] E em seguida, também no Evangelho, o Senhor, doutor em palavras e praticante nos fatos, ensinando o que deveria ser feito e fazendo tudo aquilo que ensinou, não advertiu sobre tudo aquilo que acontece e acontecerá? Não reservou de antemão os suplícios eternos aos que negam e os prêmios salutares aos que confessam?
Para alguns, todas estas coisas perderam-se como algo nefasto, saíram da sua memória. Nem ao menos esperaram, uma vez presos, subir os degraus para negar sob interrogatório. Muitos foram vencidos antes da batalha: prostrados antes do ataque, nem se permitiram parecer que sacrificavam aos ídolos contra a vontade; pelo contrário, correram espontaneamente para o tribunal, aproximaram-se livremente da morte, quase querendo abraçar a oportunidade dada, pela qual optariam com prazer. Quantos foram mandados embora pelos magistrados em razão do cair da noite, quantos até tiveram que suplicar para que a morte não fosse diferida! Qual força exterior tal pessoa pode alegar como desculpa do seu pecado, quando ele próprio fez força maior para perecer?
Aconteceu, por acaso, que, após ter chegado espontaneamente ao Capitólio, e após ter se aproximado à observância do terrível delito do sacrifício, o passo vacilou, o rosto empalideceu, as vísceras tremeram, os braços caíram? Aconteceu, por acaso, que os sentidos paralisaram, a língua ficou presa, faltou a palavra? Podia estar ali o servo de Deus e falar e renunciar a Cristo, após ter já renunciado ao diabo e ao mundo? Não foram aqueles altares, dos quais se aproximou para morrer, um rogo para ele? Não devia ele detestar e fugir do altar do diabo, que tinha visto fumaçar e cheirar de um fedor repugnante, quase fosse o enterro e a pira da sua vida? Por que, miserável, trazes uma vítima contigo, porque colocas uma vítima para sacrificar? Tu mesmo és uma hóstia para os altares, tu mesmo vieste como vítima; ali imolaste a tua salvação, a tua esperança; ali queimaste a tua fé com aqueles fogos funestos.
Mas a muitos não bastou a sua própria ruína: com exortações mútuas o povo foi impulsionado para a destruição, a morte foi administrada reciprocamente com veneno letal. E, para que nada faltasse à perfeição do crime, até as crianças, carregadas ou trazidas pelas mãos dos pais, pequenas como eram, perderam aquilo que tinham recebido nos primeiros momentos do nascimento.[ Isto é, o batismo, e – talvez – também a Eucaristia, cuja administração a criancinhas já seria comum.]
Não dirão estas crianças, quando chegar o dia do julgamento: “nós nada fizemos, não deixando a comida e a bebida do Senhor, nem nos aproximamos espontaneamente dos contágios pagãos; nos arruinou a maldade dos outros, sentimos os pais como parricidas; foram eles que negaram a Igreja Mãe e Deus Pai para que, enquanto pequenos e desprovidos e ignaros do mal, fôssemos anexados ao consórcio do crime e caíssemos na armadilha pela fraude dos outros”?

4. O decaimento da fé por amor aos próprios bens
Não há, infelizmente, qualquer causa justa e grave que desculpe tanto pecado: devia ser abandonada a pátria e suportado o dano do patrimônio. Quem, na hora de nascer e de morrer, não deve deixar a pátria e perder o seu patrimônio cedo ou tarde? Cristo não seja deixado; tema-se a perda da salvação e da habitação eterna! Eis que o
Espírito Santo clama pelo Profeta: “Ide embora, ide embora, saiais daí e não toqueis o imundo. Saiais do meio dele, separai-vos, vós que levais os vasos do Senhor”.[ Is 52,11.]
E aqueles que são os vasos do Senhor e o templo de Deus não saem do meio do imundo e retrocedem, para não serem coagidos a tocá-lo e a serem poluídos e violados por alimentos mortais? E também em outro lugar se ouve a voz do céu advertindo os servos de Deus sobre aquilo que é conveniente fazer: “Sai daí, povo meu, para que não sejas partícipe dos seus delitos e não fiques atado às suas desgraças”.[ Ap 18,4.]
Quem se afasta e recua não se torna partícipe do pecado; mas fica atrelado às desgraças aquele que é encontrado sócio do pecado. E assim o Senhor mandou retirar-se e fugir na perseguição e, para que isto aconteça, o ensinou e o fez. Com efeito, quando descer a coroa por concessão de Deus – e esta não poderia ser recebida se não fosse a hora de recebê-la –, todo aquele que, permanecendo em Cristo, se retira interinamente, este não renega a fé, mas espera o tempo oportuno; quem, ao contrário, caiu por não ter se retirado, permaneceu para renegar.
A verdade, irmãos, não pode ser dissimulada, nem a matéria e a causa da nossa ferida devem ser omitidas: o amor cego do patrimônio enganou muitos; e não puderam estar preparados ou prontos para se esconderem aqueles que às suas próprias riquezas, como algemas, mantiveram-se presos. Elas foram as correntes dos que ficaram para trás, elas foram as algemas daqueles cuja virtude estava retardada, a fé pesada, a mente vencida e a alma fechada, de modo a se tornarem presa e alimento da serpente –
condenada por Deus a devorar a terra – aqueles que estiverem presos às coisas terrestres.
Por essa razão, o Senhor, mestre dos bons, também prevenindo o futuro, diz: “Se queres ser perfeito, vende tudo e dá aos pobres, e terás um tesouro nos céus; e vem, e segue-me”.[ Mt 19,21.] Se os ricos fizessem isso, não pereceriam pelas riquezas: depositando o tesouro no céu, eles não teriam agora um inimigo e um expugnador (aquele que impor derrota a; abater, vencer) doméstico; estariam no céu o coração, a alma e o corpo, se o tesouro estivesse no céu; nem poderia ser vencido pelo mundo aquele que não tivesse no mundo pelo que ser vencido. Ele seguiria o Senhor desimpedido e livre, como fizeram os apóstolos e muitos no tempo dos apóstolos e alguns que, deixadas as suas coisas e os parentes, aderiram a Cristo com laços indivisíveis.
Como, porém, podem seguir Cristo aqueles que são presos pelo vínculo do patrimônio? Ou, como se encaminham para o céu e ascendem para as coisas sublimes e altas aqueles que são sobrecarregados pelas cobiças terrenas? Creem que possuem, mas são mais possuídos, servos da sua riqueza; e mais que senhores da riqueza, eles são vendidos à riqueza. É este tempo e são esses homens que o apóstolo indica quando diz: “Aqueles que ambicionam tornar-se ricos caem nas armadilhas do demônio e em muitos desejos insensatos e nocivos, que precipitam os homens no abismo da ruína e da perdição. Porque a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro. Acossados pela cobiça, alguns se desviaram da fé e se enredaram em muitas aflições”.[ 1Tm 6,9.10.]
O Senhor, ao contrário, com quais prêmios nos invita ao desprezo das coisas familiares! Com quais retribuições ele recompensa as pequenas e exíguas perdas desta vida! “Ninguém há – ele diz – que tenha abandonado, por amor do Reino de Deus, sua casa, sua mulher, seus irmãos, seus pais ou seus filhos, que não receba muito mais neste mundo e, no mundo vindouro, a vida eterna”.[ Lc 18,19ss.]
Conhecendo essas coisas e certos da verdade da promessa do Senhor, essa perda deve ser não apenas não temida, mas até desejada. O próprio Senhor novamente diz e adverte: “Bem--aventurados sereis quando os homens vos perseguirem e vos separarem e vos expulsarem, e maldizerem o vosso nome como infame por causa do Filho do Homem! Alegrai--vos naquele dia e exultai, porque grande é o vosso galardão no céu”.[ Lc 6,22ss.]

5. As torturas não são desculpas para quem não as sofreu
Mais tarde, porém, tinham vindo os tormentos, e graves sofrimentos ameaçavam os que resistiam.[ o a dois momentos na perseguição: mais brando o primeiro, mais violento o segundo.] Pode queixar-se dos tormentos aquele que foi derrotado pelos tormentos, pode pleitear a desculpa da dor aquele que na dor foi vencido. Ele pode pedir e dizer: “Quis fortemente lutar e, lembrado do meu juramento, peguei as armas da devoção e da fé, mas, enquanto eu lutava no ataque, os vários sofrimentos e os longos suplícios me venceram. A mente ficou firme e a fé forte, e minha alma lutou longamente, inamovível contra as penas furiosas.
Mas – quando, recrudescendo a sevícia de um juiz duríssimo, ora os flagelos ainda laceravam a mim já fatigado, ora os bastões contundiam, ora a roda esticava, ora o alicate escavava, ora a flama torrava – a carne me abandonou na luta, a fraqueza do corpo cedeu, e não a alma, mas o corpo se rendeu na dor”. Com certeza tal alegação pode ajudar para o perdão, tal tipo de justificação é de se admirar.
Foi assim que o Senhor um dia perdoou Casto e Emílio: foi assim que, vencidos no primeiro ataque, eles se tornaram vencedores na segunda luta, para que se tornassem mais fortes nas chamas aqueles que às chamas tinham cedido e lá, de onde tinham sido vencidos, ora vencessem. Eles intercediam com o argumento não das lágrimas, mas das feridas, e não apenas com voz lamentosa, mas com a laceração do corpo e com a dor: emanava sangue ao invés de choro, e jorrava no lugar das lágrimas o sangue de corpos quase queimados.
No nosso caso, porém, quais feridas os vencidos podem mostrar, quais chagas das vísceras abertas, quais tormentos dos membros, uma vez que não foi a fé atacada que cedeu, mas a covardia que antecipou a luta? A inevitabilidade do crime não justifica a pessoa coagida, quando se trata de um crime voluntário. E não digo isso para onerar a situação dos irmãos, mas mais para instigar os irmãos à oração de expiação. Como foi
escrito: “Aqueles que dizem que sois felizes vos encaminham para o erro e perturbam o caminho dos vossos pés”.[ Is 3,12.]
Aquele que alivia o pecador com bajulações lisonjeiras aumenta o instinto do pecado; não faz diminuir os delitos, mas os alimenta; mas aquele que com conselhos mais fortes repreende e, ao mesmo tempo, ensina, impulsiona o irmão para a salvação: “Aqueles que amo – diz o Senhor – os repreendo e castigo”.[ Ap 3,19.]
É necessário que o sacerdote do Senhor não engane com adulações enganosas, mas cuide com remédios salutares. É incompetente o médico que palpa com mão delicada as superfícies inchadas das feridas e, mantendo fechado o veneno no mais profundo do corpo, o faz aumentar. A ferida deve ser aberta, secada e, amputadas as podridões, curada com um remédio mais forte. Mesmo que o doente vocifere e grite, não suportando a dor, ele agradecerá depois, sentindo a saúde.


6. Os lapsos não sejam readmitidos à comunhão sem a devida penitência
Emergiu, irmãos diletíssimos, um novo tipo de luta e, quase como que a tempestade da perseguição não tenha enfurecido o bastante, um mal enganoso e uma calamidade sedutora chegaram ao mais alto nível, sob as aparências da misericórdia. Contra o vigor do Evangelho, contra a Lei do Senhor e Deus, devido à temeridade de alguns, a distribuição da comunhão é estendida aos insensatos: paz falsa e vã, perigosa para quem a dá e nada proveitosa para quem a recebe.
Estes últimos não procuram a paciência da saúde, nem o verdadeiro remédio do arrependimento: a penitência foi expulsa dos peitos e a memória do pecado gravíssimo e extremo foi eliminada. As feridas dos moribundos ficam abertas e a doença letal, instalada no mais profundo das vísceras, fica escondida sob uma dor fingida. Retornando dos altares do diabo, se aproximam do santo lugar de Deus com mãos sujas e infectadas de fedor. Ainda arrotando os alimentos mortíferos dos ídolos, ainda exalando da garganta o seu pecado e cheirando os contatos funestos, invadem o corpo do Senhor, não obstante a Escritura resista e clame e diga: “Somente a pessoa limpa comerá a carne; e qualquer alma que coma a carne do sacrifício salutar, que é do Senhor, mas a sua imundície ainda está nela, perecerá aquela alma fora do seu povo”.[ Lv 7,19s.] E o apóstolo diz e afirma o mesmo: “Não podeis beber o cálice do Senhor e o cálice dos demônios, não podeis comungar na mesa do Senhor e na mesa dos demônios”.[ 1Cor 10,20.]
O mesmo apóstolo ameaça aos teimosos e insubordinados e denuncia dizendo: “Quem comer o pão e beber o cálice do Senhor indignamente, será réu do corpo e do sangue do Senhor”.[ 1Cor 11,27.] Tendo desdenhado e desprezado isso tudo, é feita violência ao corpo e sangue do Senhor, e eles pecam contra o Senhor com as mãos e a boca, mais agora do que quando renegaram o Senhor. Antes de ter expiado os pecados, antes de ter feito a confissão do crime, antes de ter purificado a consciência com o sacrifício e pelas mãos do sacerdote, antes de ter aplacado a ofensa ao Senhor indignado e ameaçante, acham que é paz esta que alguns vendem com palavras falazes: essa não é paz, mas guerra; não se agrega à Igreja aquele que se separa do evangelho.
Por que chamam a ofensa de benefício? Por que aqueles que devem chorar continuamente e suplicar ao seu Senhor mediante o arrependimento da penitência fingem comungar? Estes lapsos são como granizo para os frutos do campo, estrela tempestuosa para as árvores, peste destrutiva para os rebanhos, tempestade enfurecida para os navios. Eles coíbem a consolação da esperança, subvertem radicalmente, serpeiam para o contágio letal com discurso mórbido, arremetem o navio contra as rochas, para que não chegue ao porto. Essa atitude fácil não dá a paz, mas a tira; não oferece a comunhão, mas impede a salvação.
Esta é outra perseguição e outra tentação, pela qual o inimigo astuto se alastra com devastação secreta para atacar os lapsos, para que o arrependimento se acalme e a dor silencie, para que a memória do pecado esvaeça, para que se reprima o gemido do coração e cesse o choro dos olhos, nem se suplique com longa e plena penitência o Senhor gravemente ofendido, quando está escrito: “Lembra onde caíste e se arrependa”.[ Ap 2,5.]
Ninguém se iluda, ninguém se engane: somente o Senhor pode se compadecer. Pode conceder o perdão dos pecados cometidos contra ele somente aquele que carregou os nossos pecados, que sofreu por nós, que Deus entregou pelos nossos pecados. O homem não pode ser maior que Deus, nem pode o servo remeter e perdoar por sua própria indulgência aquilo que foi cometido com pecado mais grave contra o Senhor, para que não seja aumentado o pecado do lapso, por desconhecer que foi profetizado: “Maldito o homem que põe a esperança no homem”.[ Jr 17,5.]
O Senhor deve ser suplicado, o Senhor deve ser aplacado com a nossa reparação; ele, que disse renegar aquele que o nega; ele, que recebeu do Pai todo o poder de julgar. Cremos, sim, que os méritos dos mártires e as obras dos justos são de grande valia junto ao juiz, mas somente quando virá o dia do juízo, quando, após o ocaso deste tempo e deste mundo, o seu povo estará diante do tribunal de Cristo.

O que você destaca no texto?
Como ele serve para sua espiritualidade?



segunda-feira, 22 de junho de 2020

139 - Cipriano de Cartago (210-258) Os Lapsos – Partes 1 e 2



139
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Cipriano de Cartago (210-258)
Os Lapsos – Partes 1 e 2



De lapsis (Os lapsos):
Durante a perseguição de Décio, em 250-251, muitos cristãos negaram a própria fé, ofereceram ou o sacrifício ou o incenso aos deuses, enquanto outros, sem de fato terem oferecido um ou outro, obtiveram ilicitamente um atestado de tê-lo feito. Pelo fato de terem decaído na fé, embora em graus distintos, estes não devem ser readmitidos na comunidade sem a devida penitência. Cipriano admoesta a não dar aos lapsos bilhetes de perdão indistintamente, pois a administração da disciplina eclesiástica cabe ao bispo somente. Composta em 251, a obra motiva e reflete as deliberações do Concílio de Cartago daquele ano.

1. Retorno à paz e alegria pela força dos fiéis
Eis que, irmãos diletíssimos, a paz foi restituída à Igreja e, coisa que há pouco parecia difícil para os incrédulos e impossível para os pérfidos, a nossa segurança foi restabelecida por obra e vingança divina.
As mentes retornam à alegria e, tendo-se dissipado a tempestade e a nuvem da aflição, refulgiram a tranquilidade e a serenidade.
Louvores sejam dados a Deus e sejam celebradas com ações de graça as suas
benevolências e as suas dádivas – ainda que a nossa voz nem durante a perseguição tenha cessado de render graças.
O inimigo não possui um poder tal que nós, que amamos a Deus com todo o coração e alma e vigor, não possamos proclamar gloriosamente as suas bênçãos e os seus louvores, sempre e em todo lugar. Almejado pelas orações de todos, veio o dia e, após a terrível e sombria obscuridade da noite, o mundo brilhou, irradiado pela luz do Senhor.
Miramos com olhos alegres os confessores, preclaros pela fama do seu bom nome e gloriosos pelos méritos da virtude e da fé; cingindo-os com santos beijos, os abraçamos com inesgotável ardor, eles, tão longamente desejados.
Aí está a cândida legião dos soldados de Cristo, os quais, com firme união, quebraram a ferocidade turbulenta de uma perseguição bravia, preparados para o sofrimento do cárcere, armados para suportar a morte.
Resististes bravamente ao mundo, destes a Deus um espetáculo glorioso, fostes de exemplo aos irmãos que vos seguirão.
Uma voz religiosa pronunciou Cristo e confessou que nele acreditou de uma vez por todas. As mãos ilustres, que estavam acostumadas somente às obras divinas, se recusaram aos sacrifícios sacrílegos; as bocas santificadas com alimentos celestiais pelo Corpo e Sangue do Senhor cuspiram os contatos profanos e as relíquias dos ídolos; a vossa testa permaneceu livre do véu ímpio e celerado, com o qual eram cobertas as testas cativas dos que ofereciam sacrifícios; a fronte pura com a marca de Deus não pôde carregar a coroa do diabo e se preservou para a coroa do Senhor.
Ó, como vos recebe alegremente em seu seio a Mãe Igreja, vós que retornais da batalha! Quão feliz, quão jubilosa ela abre suas portas para que entreis em fileiras compactas, levantando os troféus tirados do inimigo vencido!
Junto com os homens triunfantes vêm também as mulheres, que venceram, além do mundo, também o sexo. Também vêm as virgens, com a dupla glória da sua batalha, e vêm os meninos, que, com suas virtudes, foram além de seus anos.
Também a restante multidão dos que permanecem firmes segue a vossa glória e acompanha os vossos passos com insígnias de louvor bem próximas e quase idênticas.
É a mesma, nestes, a sinceridade do coração, é a mesma a integridade da fé tenaz. Estes, fincados nas raízes inabaláveis dos ensinamentos celestes e fortificados pelas tradições evangélicas, não temeram os possíveis tormentos, nem as penas da propriedade e do corpo. [Penas da propriedade: o confisco dos bens. Penas do corpo: a tortura].
Os dias da provação da fé estavam com prazo delimitado: mas aquele que lembra de ter renunciado ao mundo desconhece o dia do mundo, e já não estima os tempos terrenos aquele que espera de Deus a eternidade.
Ninguém, irmãos, ninguém mutile esta glória, ninguém diminua com crítica maldosa a firmeza incorrupta dos que permanecem firmes na fé. Tendo passado o tempo previsto para a negação, todo aquele que, neste tempo, não se apresentou, confessou ser cristão.
Mas o detento que, sob as mãos dos pagãos, confessa Deus tem a primeira honra para a vitória.
Aquele que ficou escondido em cauto recesso para preservar-se para Deus tem um degrau inferior para a glória. [ Provável referência à própria fuga.]
Aquela é uma confissão pública, esta é privada; aquele vence o juiz do mundo, este, contente de Deus como seu juiz, guarda a consciência pura pela integridade do coração; lá a fortaleza é mais pronta, aqui a cautela é mais segura.
Aquele, aproximando-se a sua hora, já foi encontrado maduro; este, talvez, teve sua hora adiada, mas, deixado o patrimônio, se escondeu não porque teria negado: sem dúvida teria confessado, se também ele tivesse sido detento.

2. O pecado dos lapsos é resultado do laxismo na fé
Uma só tristeza aflige estas coroas celestes dos mártires, estas glórias espirituais dos confessores, estas virtudes máximas e exímias dos irmãos que permaneceram firmes na fé: o fato de o violento inimigo do seu próprio povo ter matado uma parte arrancada de nossas vísceras.
O que vou fazer aqui, irmãos caríssimos, desvairando num delírio contínuo da mente, o que e como dizê-lo? Necessita-se mais de lágrimas que de palavras para expressar a dor com que deve ser chorada a ferida do nosso corpo, com que deve ser lamentada a multíplice perda de um povo já numeroso.
Quem é tão duro e insensível, quem é tão esquecido do amor fraterno que – encontrando-se entre as multiformes perdas e os restos lúgubres e esqualidamente deformes dos seus – consiga manter os olhos secos e, irrompendo imediatamente o choro, não extravase os seus gemidos mais com lágrimas que com palavras?
Sofro, irmãos, sofro convosco; nem a minha própria integridade física e a minha
saúde ajudam a mitigar minhas dores, pois na ferida do seu rebanho o pastor é ferido mais ainda. Junto o meu peito com cada um, partilho os fúnebres pesos da dor e do luto.
Choro com os que choram, soluço com os que soluçam, sinto-me morto com os mortos.
Por aquelas flechas do inimigo furioso foram golpeados ao mesmo tempo os meus membros, as espadas cruéis transpassaram as minhas vísceras.
O espírito não conseguiu ficar imune e livre da incursão da perseguição, pois o afeto prostrou também a mim nos irmãos prostrados.
Deve permanecer, porém, irmãos diletíssimos, o senso da verdade; nem a tenebrosa escuridão da feroz perseguição deve ter cegado a mente e o sentimento a tal ponto que nada tenha sobrado de luz e de iluminação, pelas quais os ensinamentos divinos possam ser percebidos.
Quando se conhece a causa da desventura, encontra-se também o remédio da ferida. O Senhor quis pôr à prova a sua família; e, já que uma longa paz tinha corrompido a disciplina transmitida a nós divinamente, a reprovação celeste reergueu uma fé acomodada e, diria, quase adormecida; e, malgrado merecêssemos mais pelos nossos pecados, o Senhor clementíssimo ordenou as coisas de tal forma que isso tudo que aconteceu parecesse mais um exame que uma perseguição.
Cada um por si, todos procuravam aumentar o patrimônio e, esquecidos daquilo que os crentes ou fizeram no tempo dos apóstolos ou sempre deveriam ter feito, dedicavam-se a ampliar as riquezas com o ardor insaciável da cobiça.
Não havia nos sacerdotes a religião devota, nem nos ministérios a fé íntegra, nem nas obras a misericórdia, nem nos costumes a disciplina.
A barba era deturpada nos homens; nas mulheres, a forma era afetada. Eram adulterados os olhos feitos pelas mãos de Deus; os cabelos eram coloridos com falsidade.
As fraudes eram astuciosas para enganar os corações dos simples, as intenções eram enganosas para lograr os irmãos.
Contraíam o vínculo matrimonial com infiéis, prostituíam aos pagãos os membros de Cristo.
Não tinham receio apenas de jurar, mas até de perjurar. Criticavam os superiores com orgulho soberbo, amaldiçoavam-se com boca envenenada, discordavam uns dos outros com ódios obstinados.
Muitíssimos bispos, que deveriam servir de exortação e exemplo aos outros, desprezada a missão divina, tornavam-se agentes das coisas mundanas: deixado o magistério, abandonado o povo e vagando por terras alheias, procuravam os mercados semanais do negócio lucrativo. Enquanto na comunidade eclesial os irmãos passavam fome, eles queriam ter dinheiro mais abundantemente.
Roubavam os fundos com fraudes insidiosas, aumentavam a renda com usuras que se multiplicavam.
 Sendo tais, o que não mereceríamos sofrer por pecados desse tipo, uma vez que já antigamente a censura divina alertou e ensinou: “Se abandonarem a minha Lei e não viverem nos meus julgamentos, se profanarem os meus estatutos e não observarem os meus preceitos, visitarei as ofensas deles com a vara e os seus delitos com os flagelos”? [Sl 88.31-33].

O que destaco no texto?
O que o texto me diz?


terça-feira, 16 de junho de 2020

A vida de Francisco de Assis a partir de Tomás de Celano - Partes 1 e 2 - Conversão e Início do Ministério





O Crucifixo de São Damião « Província do Santíssimo Nome de Jesus



A vida de Francisco de Assis a partir de Tomás de Celano
Pr. Edson Cortasio Sardinha
Partes 1 e 2
Conversão e Início do Ministério

            Este texto trabalha a figura de Francisco de Assis, segundo a ótica de Tomás de Celano (1200-1270), seu primeiro biógrafo. É um resumo fiel da vida e ministério de Francisco de Assis, a partir dos escritos deste autor. Estão sistematizados alguns movimentos de Francisco e a interpretação dos mesmos, baseados nas Obras “Vida I” (ou “1Cel”), “Vida II” (ou “2Cel”) e “Tratado dos Milagres” (ou “3Cel”). O texto foi organizado e parafraseado para dar certa rapidez à história, contudo, acompanhado por referências.

 1. Conversão
            Francisco era um jovem comum, com “conduta e mentalidade mundanas”. Seu nome de Batismo era “João”, em homenagem a João Batista. Vivia na cidade de Assis, na região do vale de Espoleto, na Itália. Foi criado com arrogância e nas vaidades do mundo: era comum este costume entre os cristãos daquela época – os filhos eram educados com muito “relaxamento e dissolução”. Francisco viveu nesta vida mundana até quase os seus vinte e cinco anos. Como está no registro, “(...) superou desgraçadamente os jovens da sua idade nas frivolidades e se apresentava mais generosamente como um incitador para o mal e um rival em loucuras” (1Cel 1.2). Todos o admiravam e ele superava a todos nos atos pecaminosos.  Tornou-se um líder “na vanglória, nos jogos, nos passatempos, nas risadas, nas conversas fúteis, nas canções e nas roupas delicadas e luxuosas” (1Cel 1.3). Francisco era rico e gastava sem reservas os bens do pai: era um “negociante esperto, mas esbanjador insensato” (1Cel 1.3).  No caminho comum de todos os jovens de sua época e de sua condição social, foi alcançado pela graça de Deus. Sua conversão foi um ato soberano de Deus:
..até que Deus o olhou do céu. Por causa do seu nome, afastou para longe dele o seu furor e pôs-lhe um freio à boca com o seu louvor, para que não perecesse de vez. Desde então, esteve sobre ele a mão do Senhor e a destra do Altíssimo o transformou para que, por seu intermédio, fosse concedida aos pecadores a confiança na obtenção da graça e, desse modo, se tornasse um exemplo de conversão para Deus diante de todos (1Cel 1.6,7).

            Antes de sua conversão, Francisco se envolveu numa guerra civil entre as cidades de Assis e Perúsia:

Numa ocasião em que os cidadãos de Perúsia e os de Assis se viram envolvidos em não pequena desgraça por causa da guerra, Francisco foi preso com muitos outros e sofreu com eles as penúrias do cárcere. Os companheiros deixavam-se abater pela tristeza, lamentando-se do cativeiro, mas Francisco exultava no Senhor, ria-se e fazia pouco da cadeia. Ofendidos, os outros encresparam essa alegria na prisão, julgando-o louco e demente. Francisco respondeu, profeticamente: “Do que vocês acham que estou exultando? Estou pensando em outra coisa: ainda vou ser venerado como santo por todo mundo (2Cel 4.3-6)

                Francisco adquiriu uma longa enfermidade – talvez por causa da prisão na Perúsia –, que o levou a refletir sobre a brevidade da vida. Começou a desprezar as coisas que muito valorizava, mas ainda não estava convertido: ele tentava “fugir da mão de Deus”. Após ter se recuperado da enfermidade, “decidiu marchar para a Apúlia, para ganhar mais dinheiro e honra” (1Cel 2.5). Quando se preparava para ir para a batalha, teve um sonho: pareceu-lhe ver a casa toda cheia de armas – selas, escudos, lanças e outros aparatos. Muito alegre, admirava-se em silêncio, pensando no que seria aquilo. Não estava acostumado a ver essas coisas em sua casa, mas apenas pilhas de fazendas para vender... “E ainda estava aturdido com o acontecimento repentino, quando lhe foi dito que aquelas armas seriam suas e de seus soldados” (1Cel 2.4). Ao acordar, entendeu que o sonho era um presságio de grande prosperidade, e que a excursão à Apúlia seria um êxito. Contudo, quando estava a caminho da Apúlia, teve outro sonho.

Foi assim que, uma noite, estando a dormir, alguém lhe falou pela segunda vez em sonhos, interessado em saber para onde estava indo. Contou-lhe seus planos e disse que ia combater na Apúlia, mas foi solicitamente interrogado por ele: - “Quem lhe pode ser mais útil: o senhor ou o servo?” - “O senhor”, respondeu Francisco. E ele: “Então, por que preferes o servo ao senhor?” - “Que queres que eu faça, Senhor?” perguntou Francisco. E o Senhor: - “Volta para a terra em que nasceste, porque é espiritualmente que vou fazer cumprir a visão que tivestes”. Voltou imediatamente, já feito exemplo de obediência e, deixando de lado a própria vontade, passou de Saulo a Paulo. (2Cel 6.5-9).

                Francisco desistiu de ir à batalha: já era a ação de Deus convertendo seu coração. Voltou a trabalhar nos negócios do seu pai, sem deixar que ninguém percebesse a transformação que estava ocorrendo em seu coração. Certa vez, seus amigos fizeram uma festa e o coroaram como rei da festa; mas Francisco aproveitou o momento, quando todos estavam embriagados, para fugir e orar (2Cel 7. 8). Com um amigo íntimo, ia para uma cripta perto da cidade, onde falava do tesouro que estava descobrindo: entrava sozinho numa caverna e retornava cansado e alegre, depois de ter orado ao Senhor e confessado seus pecados. Era uma luta em oração por sua transformação; seu amigo ficava admirado com sua alegria, pois não sabia o que ocorria na caverna.
            Desde então, passou a dar esmolas a sacerdotes pobres e, certa vez, foi a Roma e se vestiu como e com os pobres na porta da Igreja de São Pedro (2Cel 8.7). Para seus amigos, disse que não queria ir a Apúlia, pois tinha um outro propósito e compromisso. Eles acharam que ele fosse se casar; diante da insistência dos amigos, respondeu: “Vou me casar com uma noiva nobre e bonita, como vocês nunca viram, que ganha das outras em beleza, e supera a todas em sabedoria” (1Cel 3.6).  Esta noiva era sua vocação de viver o Evangelho do Senhor Jesus de forma radical.
            Convencido da vontade de Deus, foi a cavalo a Foligno, com peças de escarlate para vender; após a venda, voltou pensando no que fazer com o dinheiro.  Próximo da cidade de Assis, encontrou, à beira do caminho, uma igreja ameaçada de ruínas – a Igreja de São Damião. Na oportunidade, doou todo o dinheiro que tinha em mãos para o padre pobre que oficiava na igrejinha e contou seu testemunho de conversão. O padre não desejou aceitar o dinheiro e permitiu que Francisco ficasse com ele. Francisco então jogou o dinheiro fora, pela janela da igreja.
            O pai de Francisco soube que ele estava morando na Igreja de São Damião; reuniu, então, amigos e vizinhos, e foi buscá-lo. Sabendo que seu pai estava chegando, se escondeu numa cova, que havia feito justamente para isso e permaneceu um mês nesse esconderijo. Comia algum alimento, quando o recebia, no fundo da cova. Todo auxílio lhe era levado em segredo por um amigo. Aproveitou este período de tempo para orar e jejuar, buscando a direção de Deus. “Mesmo dentro do buraco e na escuridão, gozava de uma alegria indizível, que nunca tinha experimentado” (1Cel 5.10).
Francisco saiu do esconderijo e caminhou para a cidade de Assis. Ao chegar, todos os que o conheciam passaram a insultá-lo, “chamando-o de louco e demente, e lhe atiraram pedras e lama das praças”. Quando seu pai soube que seu filho estava sendo insultado como louco, prendeu-o por muitos dias e lhe deu chicotadas, para tentar mudar sua atitude: esta atitude de seu pai favoreceu mais ainda a conversão de Francisco. Seu pai precisou se ausentar para resolver urgências do seu negócio (1Cel 6) e deixou seu filho preso no calabouço. Sua mãe o procurou e tentou mudar sua opinião com relação à sua decisão; como não conseguiu e vendo a sinceridade de seu filho, resolveu soltá-lo. Quando seu pai voltou e descobriu o feito, brigou com a esposa e resolveu expulsar Francisco da região, caso continuasse com sua decisão. Quando Francisco soube que seu pai havia voltado, saiu ao seu encontro, alegre e afirmando que nenhum sofrimento iria mudar sua opinião com relação à vocação de Deus.  Como seu pai percebeu que não podia mudar o coração do filho, apenas desejou recuperar o dinheiro; Francisco conseguiu pegá-lo de volta e o entregou ao pai. Contudo, seu pai, mais tarde, o apresentou ao bispo da cidade, para que, “renunciando em suas mãos à herança, devolvesse tudo que tinha”:

Diante do bispo, não se demorou e nada o deteve: sem dizer nem esperar palavra, despiu e jogou suas roupas, devolvendo-as ao pai. Não guardou nem as calças: ficou completamente nu diante de todos. O bispo, compreendendo sua atitude e admirando muito seu fervor e constância, levantou-se prontamente e o acolheu em seus braços, envolvendo-o no manto. Compreendeu claramente que era uma disposição divina e percebeu que os gestos do homem de Deus, que estava presenciando, encerravam algum mistério (1Cel 6.15).
            O próprio bispo se tornou seu protetor e passou a acompanhá-lo, entendendo que Francisco tinha sinceridade em sua conversão.

2. Início do Ministério
            Desde então, Francisco de Assis passou a andar vestido de andrajos. Certa vez, cantando os louvores de Deus em francês através de um bosque, foi assaltado por ladrões. Quando os ladrões lhe perguntaram quem era, ele respondeu, forte e confiante: “Sou um arauto do grande Rei! Que é que vocês têm com isso?” Os ladrões bateram nele e o jogaram numa fossa cheia de neve, dizendo: “Fica aí, pobre arauto de Deus”. Quando os ladrões foram embora, Francisco voltou a cantar louvores a Deus (1Cel 7).
            Foi, em seguida, para um mosteiro e passou a trabalhar na cozinha do mesmo como servente, vestido apenas com uma túnica. No mosteiro, não conseguiu se alimentar direito e nem recebeu uma roupa velha. Deixou o mosteiro por necessidade, e se dirigiu à cidade de Gubio; contudo, não guardou mágoa dos monges. Em Gubio, conseguiu uma túnica de um amigo e se transferiu para um leprosário: “Vivia com os leprosos, servindo com a maior diligência a todos, por amor de Deus. Lavava-lhes qualquer podridão dos corpos e limpava até o pus de suas chagas, como disse no Testamento: ‘Como estivesse ainda em pecado, parecia-me deveras insuportável olhar para leprosos, mas o Senhor me conduziu para o meio deles e eu tive misericórdia com eles’” (1Cel 7.17). Deus havia mudado o seu coração: antes, não suportava os leprosos, mas, agora, passou a tratá-los como ao próprio Jesus. Antes de ir para o leprosário, quando ainda estava em processo de conversão, encontrou-se com um leproso e, superando-se, chegou perto e o beijou: conseguiu superar o que lhe fazia mais mal.
            Francisco voltou para a antiga Igreja de São Damião; lá, teve uma experiência com o Senhor:

Levado pelo Espírito, entrou para orar e se ajoelhou suplicante e devoto diante do crucifixo. Tocado por uma sensação insólita, sentiu-se todo transformado. Pouco depois, coisa inaudita desde séculos, a imagem do Crucificado, abrindo os lábios da pintura, falou com ele. Chamando-o pelo nome, disse: “Francisco, vai e repara minha casa que, como vês, está se destruindo toda”. A tremer, Francisco espantou-se não pouco e ficou fora de si com o que ouviu. Tratou de obedecer e se entregou todo à obra (2Cel 10.2-6).

                Francisco reparou a Igreja em pouco tempo: foi nesta que, mais tarde, teve início a “Ordem das Senhoras Pobres e Santas Virgens”, seis anos depois da conversão de Francisco, através de Santa Clara, mulher nobre de nascimento – ela se converteu através das pregações de Francisco e foi um estímulo para outras mulheres. Neste lugar, reuniu cerca de cinquenta irmãs, numa vida de oração e contemplação (1Cel 8).
            Trocou de vestimenta e passou a reedificar outra Igreja, que estava abandonada e quase destruída; depois, se dirigiu para Porciúncula, onde havia uma antiga Igreja da Virgem Maria; passou a reformar a mesma e a morar nesta cidade. Nesta época, usava “uma roupa como um hábito de ermitão, cingido com uma correia, e andava com um bastão e com os pés calçados” (1Cel 9.22). Depois disso, passou a pregar o arrependimento, com “linguagem simples e a nobreza de coração”. Começou a pregar em Assis, onde aprendeu a ler e onde veio a morrer. “Em todas as pregações, antes de propor aos ouvintes a palavra de Deus, invocava a paz dizendo: ‘O Senhor vos dê a paz’” (1Cel 10.23.6). Muitas pessoas foram convertidas por sua pregação.
            O primeiro a sentir o desejo de ser discípulo de Francisco foi um habitante de Assis, homem piedoso e simples; depois, veio Bernardo, que o hospedara com frequência e foi convencido de sua doutrina e sinceridade.  Bernardo vendeu tudo o que tinha e deu aos parentes e aos pobres, e seguiu Francisco. Esta forma de conversão passou a ser modelo para os outros discípulos: vender as propriedades e dar aos pobres. Ele tomou a decisão depois de abrir o Evangelho em oração com Francisco e receber a Palavra de Deus.

Por isso entraram na igreja quando amanheceu, rezaram primeiro com devoção e depois abriram o Evangelho, dispostos a fazer a primeira proposta que ocorresse.  Abriram o livro e Cristo mostrou seu conselho: ‘Se queres ser perfeito, vai e vende tudo que tens, e dá-o aos pobres’. Repetem uma segunda vez e apareceu: ‘Não leveis nada pelo caminho’. Acrescenta uma terceira vez e encontram: ‘Quem quer vir após mim, renuncie a si mesmo’ (2Cel 15.6-9).

                Mais tarde, veio Egídio, “homem simples, reto e temente a Deus, que teve uma longa vida, justa, piedosa e santa, e nos deixou exemplos de obediência perfeita, de trabalho braçal, de recolhimento e de santa contemplação” (1Cel 10.24). Depois, veio Felipe: “Seus lábios foram purificados pelo Senhor com a brasa da pureza, para dizer a seu respeito coisas doces e melífluas. Entendia e interpretava também as Escrituras, sem as ter estudado, mas tendo-se tornado o imitador delas” (1Cel 10.24). Francisco teve seus primeiros seis discípulos, pessoas que também o influenciaram, por sua vida, testemunho e pregação. Francisco ficou encarregado de orientar os novos discípulos no caminho do Evangelho.
Certa vez, Francisco se retirou para orar e buscava a graça de Deus, pedindo perdão de seus pecados. Renovado pelo momento de oração, voltou todo alegre e disse aos irmãos:

Consolai-vos, caríssimos, e alegrai-vos no Senhor. Não vos entristeçais por parecerdes poucos, nem vos desanime a minha simplicidade ou a vossa, porque, como o Senhor me mostrou na verdade, Deus nos vai fazer crescer como a maior das multidões e vai propagar-nos até os confins da terra. Para vosso maior proveito, sou obrigado a contar o que vi. Preferiria calar-me, se a caridade não me obrigasse a contá-lo. Vi uma enorme multidão de homens vindo a nós e querendo viver conosco este gênero de vida e esta Regra de santa religião. Parece-me ter ainda em meus ouvidos o seu rumor, indo e vindo conforme a disposição da obediência. Vi que os caminhos pareciam apinhados de gente vinda de quase de todas as nações: vêm franceses, apressam-se espanhóis, correm alemães e ingleses e se adianta uma multidão enorme de outras línguas diversas (1Cel 11.26.5-6).

            Francisco recebeu de Deus a promessa de que seu movimento iria provocar a conversão de muitos homens e mulheres de todas as nações: o movimento iria crescer e passar por provações, mas Deus iria separar os bons dos maus. Neste tempo, a Ordem Franciscana recebeu mais um irmão, aumentando o grupo para oito homens. Francisco, então, imitando o Senhor Jesus, enviou seus discípulos de dois a dois, pregando o Evangelho. Ele lhes disse:

Ide, caríssimos, dois a dois, por todas as partes do mundo, anunciando aos homens a paz e o arrependimento para a remissão dos pecados; sede pacientes na tribulação, confiando que o Senhor vai cumprir o que propôs e prometeu.  Aos que vos fizerem perguntas, respondei com humildade; aos que vos perseguirem e caluniarem agradecei, porque através disso tudo nos está sendo preparado um reino eterno (1Cel 12.29).

            Bernardo e Egídio foram para a cidade de São Tiago de Compostela. Francisco e um companheiro escolheram outra região, e os outros quatro foram dois a dois para os lados que restaram. Pouco tempo depois, quando Francisco desejou revê-los, ele orou ao Senhor e, sem combinar, eles se encontraram e compartilharam seus testemunhos e suas dificuldades. Tinham facilidade para confessar a Francisco suas falhas e pedir conselhos. “Essa primeira escola de São Francisco tinha tal pureza de coração que, embora soubessem fazer coisas úteis, santas e justas, não sabiam absolutamente vangloriar-se por causa disso” (1Cel 12.30). Logo após, chegaram mais quatro homens e foram seus discípulos. A fama de Francisco começou a se espalhar.

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domingo, 7 de junho de 2020

138 - Cipriano de Cartago (210-258) A Unidade da Igreja – Partes 9 e 10



Teologia Luterana: Comemoração de Cipriano de Cartago, Pastor e ...

138
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Cipriano de Cartago (210-258)
A Unidade da Igreja – Partes 9 e 10



9. Reconduza-se à unidade quantos possível
Quanto a mim, irmãos caríssimos, desejo e igualmente aconselho e exorto a que, na medida do possível, não pereça um só irmão; que a mãe (a Igreja) acolha em seu seio, cheia de alegria, o corpo indiviso do povo cordato.
Caso, porém, não se possa reconduzir ao caminho da salvação alguns chefes cismáticos e provocadores de separação que permaneçam cega e obstinadamente em sua insânia, ao menos vós, surpreendidos pela boa-fé e que fostes induzidos ao erro e enganados por alguma trapaça de desconcertante astúcia, ao menos vós, desatai-vos dos laços da mentira, libertai-vos dos passos incertos no erro, reconhecei o caminho seguro da estrada celestial.
Eis a palavra do Apóstolo que testemunha: “Nós vos ordenamos, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, afastai-vos de todos os irmãos que andam sem ordem, em desacordo com a tradição de nós recebida”.[ 2Ts 3,6.]
E ainda: “Ninguém vos engane com palavras vãs; por causa disto a ira de Deus vem sobre os filhos da rebeldia. Não vos torneis seus cúmplices”.[ Ef 5,6-7.]
Deve-se, pois, afastar, fugir mesmo, dos delinquentes, para que não se venha a desviar do caminho, cair no mesmo crime dos que se associaram num péssimo caminhar e, juntos, andam pelas estradas do erro e do crime.
Há um só Deus e um só Cristo; uma só é sua Igreja, uma só é a fé [Cf. Ef 4,4-6.] e o povo reunido na sólida unidade do corpo pelo vínculo da concórdia.
A unidade não pode ser cindida; um corpo não pode ser dividido pela separação dos órgãos, nem despedaçado à vontade pela dilaceração das vísceras arrancadas.
Tudo que for separado violentamente do seio materno não pode continuar a viver e a respirar, perde a substância da salvação.
O Espírito Santo nos admoesta, dizendo: “Quem é o homem que quer a vida e deseja viver dias felizes? Domina tua língua quanto ao mal e não falem insidiosamente os teus lábios. Desvia do mal e faze o bem, busca a paz e segue-a”.[ Sl 34(33),13-15.]
O filho da paz deve buscar e seguir a paz; todo aquele que conhece e ama o vínculo da caridade deve dominar sua língua quanto ao mal da discórdia.
Já próximo de sua paixão o Senhor acrescentou aos mandamentos divinos e preceitos salutares o seguinte: “Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz”.[ Jo 14,27.]
Deu-nos, portanto, esta herança, assegurando-nos, pela conservação da paz, todos os dons de sua promessa.
Se somos co-herdeiros de Cristo, permaneçamos na paz do Cristo; se somos filhos de Deus, devemos ser pacíficos. “Felizes”, disse Ele, “os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus”.[ Mt 5,9.]
Convém que os filhos de Deus sejam pacíficos, mansos de coração, simples no falar, concordes no afeto, aderindo-se mútua e fielmente pelos laços de unanimidade.

10. A custódia da unidade, imitando o exemplo da Igreja apostólica, salvaguarda do mal
Esta unanimidade outrora existiu, nos tempos apostólicos; o novo povo dos fiéis, cumprindo os mandamentos do Senhor, manteve sempre sua caridade.
A Escritura o prova dizendo: “A multidão dos que acreditavam, agiam numa única alma e intenção”.[ At 4,32.]
E de novo: “E todos perseveravam unanimemente em oração com as mulheres, com Maria, que fora mãe de Jesus, e seus irmãos”.[ At 1,14.]
Oravam, pois, com preces eficazes, podiam firmemente alcançar tudo que pedissem da misericórdia do Senhor.
Entre nós esta unanimidade está tão diminuída quanto debilitada está a liberalidade das boas obras.
Eles vendiam suas casas e suas riquezas; e, reservando para si tesouros no céu, ofereciam o preço aos apóstolos para que fosse distribuído em benefício dos necessitados.
Agora, porém, não só não damos nem os dízimos, como ainda, apesar do Senhor nos mandar vender,[ Cf. Mt 19,21.] compramos, para aumentar o nosso patrimônio.
Murchou-se em nós o vigor da fé, abateu-se a robustez dos fiéis. Por causa disso, olhando para os nossos dias, o Senhor exclama no seu Evangelho: “Quando o Filho do Homem vier, pensas que encontrará fé na terra?”.[ Lc 18,8.]
Assistimos ao que ele predisse. Não há mais fidelidade no modo de agir, nem no amor, no cumprimento da justiça, nem mesmo no temor de Deus.
Ninguém reflete no pavor das coisas futuras, ninguém considera o dia do Senhor, a ira de Deus, os suplícios que hão de vir para os incrédulos e os castigos eternos estabelecidos para os infiéis.
Se acreditássemos, por certo nossa consciência temeria; entretanto, como não cremos, também não tememos; se acreditássemos, por certo tomaríamos cuidado; se acreditássemos, libertar-nos-íamos.
Estejamos acordados, pois, irmãos caríssimos, tanto quanto podemos. Vigiemos, sacudido o sono de nossa antiga inércia, na observação e cumprimento dos preceitos do Senhor.
Sejamos tais quais ele nos mandou ser quando disse: “Estejam cingidos os vossos rins e acesas vossas lâmpadas; sede semelhantes a homens que esperam seu Senhor que deve voltar das núpcias, para que, quando ele vier e bater à porta, possam abri-la. Felizes os servos que o Senhor encontrar vigilantes quando voltar”.[ Lc 12,35-37.]
Convém que permaneçamos cingidos para que, ao chegar o dia, a partida não nos surpreenda impedidos ou embargados.
Que nossa luz brilhe e se irradie nas boas obras e nos conduza desta noite do século à luz da eterna claridade.
Aguardemos sempre, solícitos e precavidos, a vinda do Senhor que vem inesperadamente; assim, quando ele bater, nossa fé acordará para receber do
Senhor o prêmio de sua vigilância.
Se estes mandamentos forem guardados, se forem mantidas estas admoestações e estes preceitos, não poderemos, enquanto dormimos, ser oprimidos pela falsidade do diabo; e, quais servos vigilantes, reinaremos com o Cristo triunfante!

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quarta-feira, 3 de junho de 2020

137 - Cipriano de Cartago (210-258) A Unidade da Igreja – Partes 7 e 8


São Cipriano - O Bispo Abençoado De Cartago - Conheça Sua História ...


137
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Cipriano de Cartago (210-258)
A Unidade da Igreja – Partes 7 e 8




7. A rebelião à autoridade divina é pior que o pecado dos lapsos
Outrora, caríssimos irmãos, já surgira este mal; mas agora agravaram-se suas investidas cruéis; surgem mais frequentemente, pululam os pestíferos venenos das perversas heresias e dos cismas.
O próprio Apóstolo anunciara, o Espírito Santo o predissera, assim haveria de ser o fim do mundo: “Nos últimos tempos virão dias difíceis, os homens serão egoístas, soberbos, arrogantes, ambiciosos, blasfemos, desobedientes a seus maiores, ingratos, ímpios, desafeiçoados, desleais, delatores, incontinentes, indóceis, sem amor ao bem, traidores, pertinazes, inchados de imbecilidade, antepondo o prazer ao amor de Deus, deformando a religião, rejeitando seu poder. Dentre eles, muitos se introduzirão nas casas e seduzirão mulheres cheias de pecados, que se hão de submeter a toda espécie de desejos; buscando sempre, e nunca alcançando a ciência da verdade. Assim como Janes e Jambres resistiram a Moisés, eles resistirão à verdade, sem nenhuma vantagem para si, pois sua estultice será manifesta a todos, assim como foi a daqueles outros”.[ 2Tm 3,1-9.]
Tudo o que foi predito está sendo cumprido para que, ao aproximar-se o fim deste mundo, os homens e os tempos sejam igualmente postos à prova.
Com o ataque cada vez mais cruel do adversário, o erro ilude, a estupidez se envaidece, a inveja se exaspera, a ambição cega a mente, a impiedade a deprava, a soberba a incha, a discórdia traz o furor com que a cólera arrebata.
Que a ilimitada e temerosa perfídia de muitos não nos abale nem nos perturbe, mas sirva para corroborar nossa fé que verazmente previu estes acontecimentos.
Assim como em muitos se cumprem as profecias, também os demais irmãos se acautelem segundo a instrução do Senhor, quando predisse dizendo: “Acautelai-vos portanto, tudo vos predisse”.[ Mc 13,23.]
Evitai, vos peço, semelhantes homens; apartai de vosso lado e de vossos ouvidos as conversas pestíferas e o contágio da morte, assim está escrito: “Cerquei com espinhos teus ouvidos, não ouças a língua criminosa”.[ Eclo 28,24, conforme a Vulgata.] E de novo: “As conversas más corrompem os bons engenhos”.[ 1Cor 15,33.]
O Senhor admoesta e ensina que devemos nos afastar de tais homens ao dizer: “Cegos condutores de cegos. Quando um cego conduz outro cego, caem ambos na fossa”.[ Mt 15,14.]
Desviai e fugi de quem estiver separado da Igreja; ele é um perverso, peca e se condena a si mesmo.[ Cf. Tt 3,11.]
Quem hostiliza os sacerdotes do Cristo e se subtrai ao convívio do clero e do povo do Cristo pode julgar que está com Cristo?
Quem se revolta contra a disposição de Deus levanta armas contra a Igreja. Inimigo do altar, rebelde ao sacrifício do Cristo, infiel à fé, sacrílego nas coisas santas, servo desobediente, filho ímpio, irmão inimigo que, desprezando os bispos e abandonando os sacerdotes de Deus, ousa elevar um outro altar, exprimir em termos faltosos uma outra prece, profanar com falsos sacrifícios a veracidade da hóstia do Senhor sem refletir que quem se opõe a ordenação de Deus é punido pela correção divina por causa da audácia de sua temeridade.
Coré, Datã e Abiram, que tentaram usurpar para si a licença de sacrificar,[ Cf. Nm 16,8-11.] contrariando Moisés e o sacerdote Aarão, sofreram logo o castigo de sua empresa.
A terra, quebradas as junturas, abriu-se em um profundo abismo e a fenda do solo que se rachava absorveu-os vivos.
A cólera da vingança divina não castigou somente os responsáveis; todos os outros duzentos e cinquenta participantes e cúmplices da revolta, que se associaram a eles para cometer aquela temeridade, todos foram consumidos pelo fogo que saiu do Senhor, cuja vingança não se fez esperar.[ Cf. Nm 16,27-35.]
Eis uma admoestação e uma prova de que é diretamente contra Deus tudo aquilo que os maus experimentam fazer por vontade humana para desacreditar as disposições divinas.
Do mesmo modo o rei Osias, ao levar o turíbulo atribuindo a si com violência a oferta do Sacrifício, e não querendo obedecer e ceder ao sacerdote Azarias, que lhe resistia, foi confundido pela indignação divina e manchado na face com os matizes da lepra. [Cf. 2Cr 26,16-20.]
Sua ofensa ao Senhor foi gravada na parte do corpo em que são assinalados os que se tornam dignos do Senhor.
Também os filhos de Aarão que impuseram no altar um fogo estranho, contra os preceitos do Senhor, foram imediatamente exterminados, na presença do Senhor [Cf. Lv 10,1-2; Nm 3,4.] que se vingava.
Todos aqueles que, tendo desprezado a tradição de Deus, desejam novas doutrinas e introduzem ensinos de instituição humana imitam e seguem estes exemplos.
O Senhor os exprobra e os repreende no seu Evangelho: “Rejeitastes o mandamento de Deus, para instituirdes a vossa tradição”. [ Mc 7,9.]
Esse crime é maior que a admissão dos lapsos que, apesar de tudo, imploram a Deus com abundantes satisfações, submissos à penitência do crime. Aqui, [neste caso,] busca-se e suplica-se à Igreja, lá [no primeiro caso] repele-se a Igreja; aqui pode ter sido por necessidade, lá voluntariamente se adere ao mal; aqui o lapso apenas prejudica a si mesmo, lá quem tentou uma heresia ou cisma ilude e arrasta muitos consigo; aqui há condenação para uma alma, lá, perigo para muitas.
O primeiro, [o lapso,] compreende e chora ter pecado; o segundo, ensoberbecendo-se em seu pecado, comprazendo-se em suas faltas, subtrai os filhos à mãe, lança as ovelhas para longe de seu pastor, perturba os mistérios de Deus.
Enquanto o lapso pecou uma só vez, este peca diariamente. Finalmente, o lapso pode depois conseguir o martírio e alcançar as promessas do Reino; aquele, porém, que foi morto fora da Igreja jamais alcançará os prêmios da Igreja.

8. Confessores não estão livres do erro; cuidado com seus maus exemplos.
Nem ninguém se admire, irmãos caríssimos, terem alguns dentre os confessores se rebaixado a pecar tão vergonhosamente e gravemente.
A confissão não imuniza contra as insídias do diabo, nem protege quem ainda está no mundo com definitiva segurança contra as tentações, os perigos, os ataques e as investidas do mundo; não fosse isso, nunca registraríamos entre os confessores as mentiras, as infâmias e os adultérios que agora constatamos em alguns, choramos e lamentamos.
Quem quer que seja o confessor, não há de ser maior, melhor ou mais caro a Deus que Salomão; ele, enquanto marchou nos caminhos do Senhor, obteve a graça que merecera do Senhor; logo, porém, que abandonou o caminho do Senhor, perdeu também sua graça.
Por isso está escrito: “Guarda o que tens para que outro não receba tua coroa”.[ Ap 3,11.] Sem dúvida o Senhor não ameaçaria tirar a coroa da justiça, senão porque, cessando a justiça, esvai-se também a coroa.
A confissão é o princípio da glória e não a consecução da coroa; ela não completa o louvor, apenas inicia a dignidade; assim como está escrito: “Quem perseverar até o fim, este será salvo”.[ Mt 10,22.]
Tudo o que acontece antes do fim, e por que se passa enquanto se sobe ao cimo da salvação, não é o termo no qual já se tem a sumidade do cume.
Chegou-se [porém] à confissão; mas depois da confissão o perigo é maior, pois o adversário foi provocado mais ainda. Chegou-se à confissão; mantenha-se mais ainda no Evangelho do Senhor quem conseguiu a glória do Senhor pelo Evangelho. Diz, de fato, o Senhor: “A quem mais é dado, mais será exigido; a quem é constituído em maior dignidade, mais serviço lhe será exigido”.[ Lc 12,48.]
Que ninguém pereça pelo exemplo de algum confessor, que ninguém aprenda a injustiça, a insolência e a infidelidade com o procedimento de algum confessor. Que o confessor seja humilde e cordato, modesto e disciplinado em suas ações; imite o Cristo que confessa para que seja chamado confessor. Pois se ele ensina que “Quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado”,[ Lc 18,14.] também ele próprio, palavra, força e sabedoria de Deus Pai,[ Cf. 1Cor 1,24.] é exaltado pelo Pai porque se humilhou na terra; se promulgou para nós a lei da humildade e recebeu do Pai, como prêmio da humildade, um magnífico nome,[ Cf. Fl 2,6-10.] como pode amar a soberba?
[Verdadeiramente] é confessor do Cristo quem, depois da confissão, não admite blasfêmias contra a majestade e a dignidade do Cristo. Não seja maldizente a língua que confessou o Cristo; não seja turbulenta, não seja ouvida na celeuma das injúrias e disputas, nem, velado em palavras elogiosas, lance o veneno da serpente contra os irmãos e os sacerdotes de Deus.
Finalmente, se se tornar de todo culpado e detestável um confessor, se dissipar sua confissão com péssimo comportamento, se macular sua vida com infames indignidades, se, enfim, desprezando a Igreja onde confessou, dividindo o consenso da unidade, trocar pela infidelidade a antiga fé, não poderá se iludir com sua confissão e se julgar eleito para o prêmio da glória, pois, justamente por causa dela, maiores se tornaram os motivos de seus castigos.
O Senhor escolheu Judas entre os doze Apóstolos. Mas Judas traiu o Senhor.[ Cf. Mt 10,2-4; Mc 3,14-19; Lc 6,13-16.]
No entanto, a fé e a firmeza dos apóstolos não caíram pela defecção do traidor Judas dentre sua companhia. Igualmente, a dignidade e santidade dos confessores não se prejudica simplesmente por ter se quebrado a fé de alguns deles.
O santo apóstolo Paulo o declara em sua epístola quando diz: “Ora essa! Se alguns deles deixaram de crer, sua infidelidade tornou vã a fidelidade de Deus? De modo nenhum; Deus é veraz, todo homem, ao contrário, é mentiroso?”.[ Rm 3,3-4.]
A maior e melhor parte dos confessores está de pé na fortaleza de sua fé, na veracidade da lei e disciplina do Senhor. Não se afastam da paz da Igreja, estão lembrados que por mercê divina conseguiram na Igreja a graça de Deus. Desse modo cresce o louvor de sua fé, pois souberam se afastar do contágio do crime evitando a infidelidade daquele que juntos confessaram unanimemente. Vencendo o diabo no combate, e tornando-se dignos de louvor na conservação da paz do Cristo, iluminam-se com o verdadeiro lume do Evangelho, brilham à luz pura e cândida do Senhor.

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