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Atanásio de Alexandria (285-373)
A Vida de Santo Antão
Parte I
1 - PRÓLOGO
1. Atanásio, Bispo, aos Irmãos no estrangeiro[i]
2. Excelente é a competição em que vocês entraram com os monges do Egito, decididos como estão a igualá-los ou mesmo sobrepujá-los na prática da vida ascética[ii].
3. De fato, já existem celas monásticas (literalmente “mosteiros”) em sua terra e o nome de "monge" se estabeleceu por si mesmo.
4. Este propósito é, em verdade, digno de louvor, e consignam suas orações que Deus o realize.
5. Vocês me pediram um relato sobre a vida de Santo Antão: querem saber como chegou à vida ascética, que foi antes dela, como foi sua morte, e se é verdade o que dele se diz.
6. Pensam modelar suas vidas segundo o zelo da dele.
7. Muito me alegro em aceitar esse pedido, pois também eu tiro real proveito e ajuda da simples lembrança de Antão, e pressinto que também vocês, depois de ouvida a história, não só admirarão o homem, mas quererão emular sua resolução, quanto lhes seja possível.
8. Realmente, para monges, a vida de Antão é modelo ideal de vida ascética.
9. Assim, não desconfiem dos relatos que receberam de outros a respeito dele, mas certifiquem-se de que, ao contrário, ouviram muito pouco.
10. Em verdade, pouco lhes contaram quando há tanto que dizer. Eu mesmo, com tudo o que lhes conto por cartas, apenas lhes transmitirei algumas das lembranças que tenho dele.
11. Vocês, por sua parte, não deixem de perguntar a todos os viajantes que cheguem de cá. Assim, talvez, com o que cada um conte do que saiba, ter-se-á um relato que aproximadamente lhe faça justiça. Bem, quando recebi sua carta, quis mandar alguns monges, em especial os que estiveram mais estreitamente unidos a ele.
12. Assim teria eu aprendido detalhes adicionais e poderia mandar um relato mais completo.
13. Mas o tempo de navegação já passou, e o homem do correio começa a impacientar-se.
14. Por isso apresso-me a escrever o que sei - porque o vi com frequência -, e o que pude aprender do que foi seu companheiro por largo tempo e lhe vertia água nas mãos (significa que foi seu discípulo).
15. Do começo ao fim considerei escrupulosamente a verdade: não quero que alguém recuse crer por lhe parecer excessivo o que ouviu, nem que considero menos a esse homem tão santo, por não lhe parecer suficiente o que tenha sabido.
2 -
Nascimento e Juventude de Antão
16. Antão foi egípcio de nascimento. Seus pais eram de boa
linhagem e abastados.
17. Como eram cristãos, também o menino cresceu como cristão.
18. Quando menino viveu com seus pais, só conhecendo sua família
e sua casa; quando cresceu e se fez moço e avançou em idade, não quis ir à
escola, desejando evitar a companhia de outros meninos; seu único desejo era,
como diz a Escritura acerca de Jacó (Gn 25.27), levar uma simples vida no lar.
Supõe-se que ia à igreja com seus pais, e aí não demonstrava o desinteresse de
um menino nem o desprezo dos jovens por tais coisas.
19. Ao contrário, obedecendo aos pais, prestava atenção às
leituras e guardava cuidadosamente no coração o proveito que delas extraía.
20. Além disso, sem abusar das fáceis condições em que vivia como
criança, nunca importunou seus pais pedindo manjares caros ou finos, nem tinha
prazer algum em coisas semelhantes.
21. Ficava satisfeito com o que se lhe punha adiante e não pedia
mais.
3 - A
Vocação de Antão e seus primeiros passos na vida ascética
22. Depois da morte de seus pais ficou só com sua única irmã,
muito mais jovem.
23. Tinha então uns dezoito a vinte anos, e tomou cuidado da casa
e de sua irmã.
24. Menos de seis meses depois da morte de seus pais, ia, como de
costume, a caminho da igreja. Enquanto caminhava, ia meditando e refletia como
os apóstolos deixaram tudo, e seguiram o Salvador (Mt 4.20;19.27); como,
segundo se refere nos Atos (4.35-37), os fiéis vendiam o que tinham e o punham
aos pés dos Apóstolos para distribuição entre os necessitados, e quão grande é
a esperança prometida nos céus para os que assim fazem (Ef 1.18; Cl 1.5).
25. Pensando estas coisas, entrou na igreja. Aconteceu que nesse momento
se estava lendo o evangelho, e ouviu a passagem em que o Senhor disse ao jovem
rico: "Se queres ser perfeito, vende o que tens e dá-o aos pobres, depois
vem, segue-me e terás um tesouro no céu " (Mt 19,21).
26. Como se Deus lhe houvera proposto a lembrança dos santos, e
como se a leitura houvesse sido dirigida especialmente a ele, Antão saiu imediatamente
da igreja e deu a propriedade que tinha de seus antepassados: trezentas
"aruras" (uma arura era 2.700mt²), terra muito fértil e formosa.
27. Não quis que nem ele nem sua irmã tivessem algo que ver com
ela. Vendeu tudo o mais, os bens móveis que possuía, e entregou aos pobres a
considerável soma recebida, deixando só um pouco para sua irmã.
28. De novo, porém, entrando na igreja, ouviu aquela palavra do
Senhor no evangelho: "Não se preocupem do amanhã" (Mt 6.34). Não pôde
suportar maior espera, mas foi e distribuiu aos pobres também este pouco[iii]
.
29. Colocou sua irmã entre virgens conhecidas e de confiança,
entregando-a para que a educassem[iv]
.
30. Então ele dedicou todo seu tempo à vida ascética, atento a si
mesmo e vivendo de renúncia a si mesmo, perto de sua própria casa. Ainda não
existiam tantas celas monásticas no Egito, e nenhum monge conhecia sequer o
longínquo deserto.
31. Todo o que desejava enfrentar-se consigo mesmo, servindo a
Cristo, praticava sozinho a vida ascética, não longe de sua aldeia.
32. Naquele tempo havia na aldeia vizinha um ancião que desde sua
juventude levava na solidão a vida ascética.
33. Quando Antão o viu, "teve zelo pelo bem" (Gl 4.18),
e se estabeleceu imediatamente na vizinhança da cidade. Desde então, quando
ouvia que em alguma parte havia uma alma esforçada, ia, como sábia abelha,
buscá-la e não voltava sem havê-la visto; só depois de haver recebido, por
assim dizer, provisões para sua jornada de virtude, regressava.
34. Aí, pois, passou o tempo de sua iniciação, se afirmou sua
determinação de não voltar à casa de seus pais nem de pensar em seus parentes,
mas a dedicar todas as suas inclinações e energias à prática contínua da via
ascética.
35. Fazia trabalho manual pois tinha ouvido que "o que não
quer trabalhar não tem direito de comer" (2 Ts 3.10). Do que recebia
guardava algo para sua manutenção e o resto dava-o aos pobres.
36. Orava constantemente[v],
tendo aprendido que devemos orar em privado (Mt 6.6) sem cessar (Lc 18.1; 21.36;
1 Ts 5.17). Além disso, estava tão atento à leitura da Sagrada Escritura, que
nada se lhe escapava: retinha tudo, e assim sua memória lhe servia de livros.
37. Assim vivia Antão e era amado por todos. Por seu lado,
submetia-se com toda sinceridade aos homens piedosos que visitava, e se
esforçava por aprender aquilo em que cada um o avantajava em zelo e prática
ascética.
38. Observava a bondade de um, a seriedade de outro na oração;
estudava a aprazível quietude de um e a afabilidade de outro; fixava sua
atenção nas vigílias observadas por um e nos estudo de outro; admirava um por
sua paciência, a outro por jejuar e dormir no chão, considerava atentamente a humildade
de um e a paciente abstinência de outro; e em uns e outros notava especialmente
a devoção a Cristo e o amor que mutuamente se tinham. Havendo-se assim saciado,
voltava a seu lugar de vida ascética.
39. Então se apropriava do que havia obtido de cada um e dedicava
todas as suas energias a realizar em si as virtudes de todos [vi]
.
40. Não tinha disputas com ninguém de sua idade, nem tampouco
queria ser inferior
a eles no melhor; e ainda isto fazia-o
de tal modo que ninguém se sentia ofendido, mas todos se alegravam com ele.
41. E assim todos os aldeões e os monges com os quais estava unido viram que classe de homem era ele e o chamavam "o amigo de Deus", amando-o como filho ou irmão.
[i] O patriarca esteve
relegado em Tréveris (atual Alemanha) em 336/337; em março de 340 foi de novo
deportado; desta vez esteve em Roma. Visitou Milão e voltou a Tréveris.
[ii] A
"ascesis", que significa "exercício, prática, treino",
designa em linguagem cristão o estudo das Escrituras, a prática das virtudes, a
vida devota, a disciplina espiritual, a vida austera. Como termo técnico
designa a vida monástica e suas práticas. Santo Atanásio a utiliza neste
sentido, mas com todos os matizes anteriores. É a tarefa própria dos monges,
que exige toda classe de virtudes e modificações, requer um exercício contínuo
e tem como finalidade a perfeição, não por amor a si mesmo mas por amor a Deus.
Seu fruto é a sabedoria espiritual, com a pureza do coração, o discernimento
dos espíritos, a consciência da presença de Deus e o gozo de sua comunicação. O
sentido fundamental é, no entanto, a austera e difícil disciplina de si mesmo.
LAMPE 244; LORIE 55 ss.
[iii] Os "Apoftegmas
(grego = dito breve)dos Padres"
(Antão 20) relatam: "Um irmão havia
renunciado ao mundo e distribuído seus bens aos pobres, reservando-se porém um pouco.
Veio a Antão que, informado do assunto, disse-lhe: Se queres ser monge, vai à
cidade, compra carne, cobre com ela teu corpo nu, e volta. O irmão assim o fez.
Vieram então cães e aves e lhe dilaceraram o corpo. De volta a Antão, este lhe
perguntou se havia seguido seu conselho. Mostrou-lhe então seu corpo
dilacerado. Disse-lhe Antão: Os que renunciam ao mundo e querem guardar dinheiro,
são assim dilacerados quando os demônios
os atacam".
[iv] Esta seria a
primeira vez que aparece a palavra "parthenoôn" no sentido cristão de
"casa ou grupo de virgens". Todavia, nessa época precoce (c 271), as
mulheres religiosas viviam geralmente com suas famílias, embora se reunissem
para exercícios comuns. Mais tarde, a "Vida" nos diz que a irmã de Antão
foi superiora de um grupo de virgens (54,6). Mas uma variante do texto grego,
apoiada por diversas versões, traz: consagrou sua irmã "à virgindade'.
MEYER, 107; COLOMBAS 58.
[v] A doutrina da
oração incessante goza de tradição ininterrupta na literatura monástica. O tema
como tal, que provém do ensino do N.T., foi desenvolvido especialmente pela
escola alexandrina, como Clemente e Orígenes.
[vi] Sempre foi
traço característico dos monges antigos o desejo de aprender de outros,
imitando suas virtudes mais salientes. No entanto, é interessante notar que na
"Vida" não se trata de um afã exibicionista por estabelecer uma
espécie de competição ao respeito. Sempre destaca o perfeito equilíbrio
espiritual de Santo Antão e o profundo respeito pelos carismas alheios.
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