Atanásio
de Alexandria (285-373)
A Vida de Santo Antão (Parte I:
4-6)
4
- Primeiros combates com os demônios
1.
Mas
o demônio, que odeia e inveja o bem, não podia ver tal resolução num jovem, e
se pôs a empregar suas velhas táticas também contra ele[i].
2.
Primeiro
tratou de fazê-lo desertar da vida ascética recordando-lhe sua propriedade, o
cuidado de sua irmã, os apegos da parentela, o amor do dinheiro, o amor à
glória, os inumeráveis prazeres da mesa e todas as demais coisas agradáveis da
vida.
3.
Finalmente
apresentou-lhe a austeridade e tudo o que se segue a essa virtude,
sugerindo-lhe que o corpo é fraco e o tempo é longo. Em resumo, despertou em
sua mente toda uma nuvem de argumentos, procurando fazê-lo abandonar seu firme
propósito.
4.
O
inimigo viu, no entanto, que era impotente em face da determinação de Antão, e que
antes era ele que estava sendo vencido pela firmeza do homem, derrotado por sua
sólida fé e sua constante oração.
5.
Pôs
então toda a sua confiança nas armas que estão "nos músculos de seu
ventre" (Jo 40,16).
6.
Jactando-se
delas, pois são sua preferida artimanha contra os jovens, atacou o jovem
molestando-o de noite e instigando-o de dia, de tal modo que até os que viam
Antão podiam aperceber-se da luta que se travava entre os dois.
7.
O
inimigo queria sugerir-lhe pensamentos baixos, mas ele os dissipava com orações;
procurava incitá-lo ao prazer, mas Antão, envergonhado, cingia seu corpo com
sua fé, orações e jejuns. Atreveu-se então o perverso demônio a disfarçar-se em
mulher e fazer-se passar por ela em todas as formas possíveis durante a noite,
só para enganar a Antão.
8.
Mas
ele encheu seus pensamentos de Cristo, refletiu sobre a nobreza da alma criada
por Ele, e sua espiritualidade, e assim apagou o carvão ardente da tentação.
9.
E
quando de novo o inimigo lhe sugeriu o encanto sedutor do prazer, Antão,
enfadado com razão, e entristecido, manteve seus propósitos com a ameaça do
fogo e dos vermes (cf Jd 16,21; Sir 7,19; Is 66,24; Mc 9,48).
10. Sustentando isto
no alto, como escudo, passou por tudo sem se dobrar. Toda essa experiência levou
o inimigo a envergonhar-se. Em verdade, ele, que pensara ser como Deus, fez-se
louco ante a resistência de um homem.
11. Ele, que em sua presunção
desdenhava carne e sangue, foi agora derrotado por um homem de carne em sua
carne. Verdadeiramente o Senhor trabalhava com este homem, Ele que por nós
tornou-se carne e deu a seu corpo a vitória sobre o demônio. assim, todos os
que combatem seriamente podem dizer: "Não eu, mas a graça de Deus
comigo" (1 Cor 15,10).
12. Finalmente,
quando o dragão não pôde conquistar Antão nem por estes últimos meios, mas
viu-se arrojado de seu coração, rangendo seus dentes, como diz a Escritura (Mc
9,17), mudou, por assim dizer, sua pessoa.
13. Tal como é seu
coração, assim lhe apareceu: como um moço preto[ii];
e como inclinando-se diante dele, já não o molestou com pensamentos - pois o impostor
tinha sido lançado fora - mas usando voz humana disse-lhe: "A muitos
enganei e venci; mas agora que te ataquei a ti e a teus esforços como o fiz com
tantos outros, mostrei-me demasiadamente fraco".
14. "Quem és tu
que me falas assim?", perguntou-lhe Antão. Apressou-se o outro a replicar com
a voz lastimosa: "Sou o amante da fornicação. Minha missão é espreitar a
juventude e seduzi-la; chamam-me o espírito de fornicação. A quantos eu enganei,
decididos que estavam a cuidar de seus sentidos! A quantas pessoas castas
seduzi com minhas lisonjas! Eu sou aquele por cuja causa o profeta censura os
decaídos: "Foram enganados pelos espírito da fornicação" (Os 4,12).
15. Sim, fui eu que
os levei à queda. Fui eu que tanto te molestei e tão a miúdo fui vencido por
ti".
16. Antão deu, pois,
graças ao Senhor e armando-se de coragem contra ele, disse: "És então
inteiramente desprezível; és negro em tua alma e tão débil como um menino.
Doravante já não me causas nenhuma preocupação, porque o Senhor está comigo e
me auxilia: verei a derrota de meus adversários" (Sl 117, 7).
17. Ouvindo isto, o
negro desapareceu imediatamente, inclinando-se a tais palavras e temendo
acercar-se do homem.
5
- Antão aumenta sua austeridade
18. Esta foi a
primeira vitória de Antão sobre o demônio; ou melhor, digamos que este singular
êxito em Antão foi do Salvador, que "condenou o pecado na carne, a fim de
que a justificação prescrita pela Lei, fosse realizada em nós, que vivemos não
segundo a carne, mas segundo o Espírito" (Rm 8,3-4).
19. Mas Antão não se
descuidou nem se acreditou garantido por si mesmo pelos simples fato de se ter
o demônio lançado a seus pés; tampouco o inimigo, ainda que vencido no combate,
deixou de estar-lhe à espreita. Andava
dando voltas em redor, como um leão (1 Pd 5,8), buscando uma ocasião contra
ele.
20. Antão, porém,
tendo aprendido nas Escrituras quão diversos são os enganos do maligno (Ef
6,11), praticou seriamente a vida ascética, tendo em conta que, se não pudesse
seduzir seu coração pelo prazer do corpo, trataria certamente de enganá-lo por
algum outro método; porque o amor do demônio é o pecado.
21. Resolveu, por
isso, acostumar-se a um modo mais austero de vida. Mortificou seu corpo sempre
mais, e o sujeitou, para não acontecer que, tendo vencido numa ocasião,
perdesse em outra (1 Cor9,27).
22. Muitos se
maravilhavam de suas austeridades, porém ele próprio as suportava com
facilidade. O zelo que havia penetrado sua alma por tanto tempo transformou-se
pelo costume em segunda natureza, de modo que ainda a menor inspiração recebida
de outros levava-o a responder com grande entusiasmo.
23. Por exemplo,
observava as vigílias noturnas com tal determinação, que a passava toda a noite
sem dormir, e isso não só uma vez mas muitas, para admiração de todos.
24. Assim também
comia só uma vez ao dia, depois do cair do sol; às vezes cada dois dias, e com
frequência tomava seu alimento só depois de quatro dias.
25. Sua alimentação
consistia em pão e sal; como bebida tomava só água. Não necessitamos sequer
mencionar carne ou vinho, porque tais coisas tampouco se encontravam entre os demais
ascetas.
26. Contentava-se em
dormir sobre uma esteira, embora regularmente o fizesse sobre o simples chão.
27. Despreza o uso
de unguentos para a pele, dizendo que os jovens devem praticar a vida ascética
com seriedade e não andar buscando coisas que amolecem o corpo; deviam antes acostumar-se
ao trabalho duro, tendo em conta as palavras do Apóstolo: "É na fraqueza
que se revela minha força" (2 Cor 12,10).
28. Dizia que as
energias da alma aumentam quanto mais débeis são os desejos do corpo. Além
disto estava absolutamente convencido do seguinte: pensava que apreciaria seu progresso
na virtude e seu consequente afastamento do mundo não pelo tempo passado nisto
mas por seu apego e dedicação.
29. Assim, não se preocupava
com o passar do tempo, mas dia por dia, como se estivesse começando a vida
ascética, fazia os maiores esforços rumo à perfeição.
30. Gostava de repetir
a si mesmo as palavras de S. Paulo: "Esquecer-me do que fica para trás e
esforçar-me por alcançar o que está adiante" (Fl 3,13), recordando também
a voz do profeta Elias: "Viva o Senhor em cuja presença estou neste
dia" (1 Rs 17,1; 18,15).
31. Observava que,
ao dizer "este dia", não estava contando o tempo que havia passado,
mas, como que começando de novo, trabalhava duro cada dia para fazer de si
mesmo alguém que pudesse aparecer diante de Deus: puro de coração e disposto a
seguir Sua vontade.
32. E costumava
dizer que a vida levada pelo grande Elias devia ser para o asceta como um
espelho no qual poderia sempre mirar a própria vida.
6
- Antão recluso nos sepulcros: mais lutas com os demônios
33. Assim dominou-se
Antão a si mesmo. Decidiu então mudar-se para os sepulcros[iii]
que se achavam a certa distância da aldeia.
34. Pediu a um de
seus familiares que lhe levasse pão a longos intervalos. Entrou, pois, em uma
das tumbas; o mencionado homem fechou a porta atrás dele, e assim ficou dentro
sozinho. Isto era mais do que o inimigo podia suportar, pois em verdade temia
que agora fosse encher também o deserto com a vida ascética.
35. Assim chegou uma
noite com um grande número de demônios e o açoitou tão implacavelmente que
ficou lançado no chão, sem fala pela dor. Afirmava que a dor era tão forte que
os golpes não podiam ter sido infligidos por homem algum para causar semelhante
tormento.
36. Pela Providência
de Deus - porque o Senhor não abandona os que nele esperam - seu parente chegou
no dia seguinte trazendo-lhe pão. Quando abriu a porta e o viu atirado no chão
como morto, levantou-o e o levou até a igreja da aldeia e o depositou sobre o
solo.
37. Muitos de seus
parentes e da gente da aldeia sentaram-se em volta de Antão como para velar um
cadáver. Mas pela meia-noite Antão recobrou o conhecimento e despertou.
38. Quando viu que
todos estavam dormindo e só seu amigo se achava desperto, fez-lhe sinais para
que se aproximasse e pediu-lhe que o levantasse e levasse de novo para os
sepulcros, sem despertar ninguém.
39. O homem levou-o
de volta, a porta foi trancada como antes e de novo ficou dentro, sozinho.
40. Pelos golpes
recebidos estava demasiado fraco para manter-se de pé; orava então, estendido
no solo. Terminada sua oração, gritou: "Aqui estou eu, Antão, que não me
acovardei com teus golpes, e ainda que mais me dês, nada me separará do amor de
Cristo (Rm 8,35).
41. E começou a
cantar: "Se um exército se acampar contra mim, meu coração não temerá"
(Sl 26,3). Tais eram os pensamentos e palavras do asceta, mas o que odeia o
bem, o inimigo assombrado de que depois de todos os golpes ainda tivesse valor
para voltar, chamou seus cães[iv] e
arrebatado de raiva disse: "Veem vocês que não pudemos deter esse tipo nem
com o espírito de fornicação nem com os golpes; ao contrário, chega até a
desafiar-nos. Vamos proceder contra ele de outro modo".
42. A função de
malfeitor não é difícil para o demônio. Essa noite, por isso, fizeram tal
estrépito que o lugar parecia sacudido por um terremoto. Era como se os
demônios abrissem passagens pelas quatro paredes do recinto, invadindo
impetuosamente através delas em forma de bestas ferozes e répteis.
43. De repente todo
o lugar se encheu de imagens fantasmagóricas de leões, ursos, leopardos,
touros, serpentes, víboras, escorpiões e lobos; cada qual se movia segundo o
exemplar que havia assumido.
44. O leão rugia,
pronto a saltar sobre ele; o touro, quase a atravessá-lo com os chifres; a
serpente retorcia-se sem o alcançar completamente; o lobo acometia-o de frente
(24).
45. E a gritaria
armada simultaneamente por todas essas aparições era espantosa, e a fúria que mostravam,
feroz.
46. Antão,
atormentado e pungido por eles, sentia aumentar a dor em seu corpo; no entanto,
permanecia sem medo e com o espírito vigilante. Gemia, é verdade, pela dor que
atormentava seu corpo, mas a mente era senhora da situação e, como por debique,
dizia-lhes: "Se tivessem poder sobre mim, teria bastado que viesse um só
de vocês; mas o Senhor lhes tirou a força e por isso se esforçam em fazer-me
perder o juízo com seu número; é sinal de fraqueza terem de imitar animais
ferozes".
47. De novo teve a valentia
de dizer-lhes: "Se é que podem, se é que receberam poder sobre mim, não se
demorem, venham ao ataque! E se nada podem, para que esforçar-se tanto sem
nenhum fim? Porque a fé em Nosso Senhor é selo para nós e muro de
salvação".
48. Assim, depois de
haver intentado muitas argúcias, rangeram os dentes contra ele, porque eram
eles próprios que estavam ficando loucos e não ele.
49. De novo o Senhor
não se esqueceu de Antão em sua luta, mas veio ajudá-lo. Pois quando olhou para
cima, viu como se o teto se abrisse e um raio de luz baixasse até ele. Foram-se
os demônios de repente, cessou-lhe a dor do corpo, e o edifício estava restaurado
como antes.
50. Notando que a ajuda
chegara, Antão respirou livremente e sentiu-se aliviado de suas dores. E
perguntou à visão: "onde estavas tu? Por que não aparecestes no começo para
deter minhas dores?" E uma voz lhe falou: "Antão, eu estava aqui, mas
esperava ver-te enquanto agias. E agora, porque aguentaste sem te renderes, serei
sempre teu auxílio e te tornarei famoso em toda parte".
51. Ouvindo isto, levantou-se
e orou: e ficou tão fortalecido que sentiu seu corpo mais vigoroso que antes.
Tinha por aquele tempo uns trinta e cinco anos de idade.
O que você
destaca no texto e como ele serve para sua espiritualidade?
[i] O tempo e a experiência fizeram o diabo um perito em manhas. Cf S. Cipriano.
[ii] "Negro": o uso desta palavra era frequente entre romanos e gregos num sentido moral figurado, para designar malícia ou perversidade. O mesmo no uso cristão primitivo. Dar a cor negra ao autor do mal e de toda iniquidade era muito comum. Dado que os etíopes e egípcios eram de tez muito escura, o diabo foi muitas vezes designado com tais nomes nacionais. LAMPE 840a. Meyer 109.
[iii] Os antigos consideram as ruínas de mausoléus, as tumbas e os desertos como ambiente predileto dos demônios. Os três têm em comum ser lugares abandonados, não habitados pelos homens, e onde o demônio não é combatido pelo bem nem pelos exorcismos. Só os malfeitores se refugiam neles (cf At 21,38).
[iv] Na mitologia antiga, os servidores dos deuses eram frequentemente chamados "cães",
Nenhum comentário:
Postar um comentário