A fonte de todos
os acontecimentos da vida de São Bento são os Diálogos de São
Gregório Magno (540-604), redigidos por volta de 593, que se baseou em
fatos narrados por monges que conheceram pessoalmente São Bento.
Gregório é o seu
primeiro biógrafo. Todas as demais biografias se baseiam diretamente nos Diálogos.
Em seus
Diálogos, Gregório conversa com um discípulo chamado Pedro.
Após os milagres
narrados, Pedro fez perguntas e Gregório responde com citações Bíblicas
apropriadas.
Cronologia histórica de São Bento
480 – Nasce no dia
24 de março em Núrsia - Úmbria no antigo Reino Ostrogótico. Bento foi filho de um nobre romano.
Realisou os primeiros estudos na região
de Núrsia (próximo à cidade italiana de Espoleto).
Mais tarde, foi enviado
a Roma para estudar retórica e filosofia.
500 – Tendo-se
decepcionado com a decadência moral da cidade, abandona logo a capital e
retira-se para Enfide (atual Affile).
Ajudado por um abade da região chamado
Romano, instalou-se em uma gruta de difícil acesso, a fim de viver
como eremita.
503 - Depois de
três anos nesse lugar, dedicando-se à oração e a ascese, foi descoberto por
alguns pastores, que divulgaram a fama de santidade.
A partir de então, foi visitado
constantemente por pessoas que buscavam conselhos e direção espiritual.
Foi então eleito abade de um mosteiro
em Vicovaro, no centro da península Itálica.
Por causa do regime de vida exigente, os
monges tentaram envenená-lo, mas, no momento em que dava a bênção sobre o
alimento, saiu da taça que continha o vinho envenenado uma serpente e o cálice
se fez em pedaços.
Com isso, Bento resolve deixar a
comunidade e retornando à vida solitária.
504 - Recebeu
grande quantidade de discípulos e fundou doze pequenos mosteiros.
529 - Por causa da
inveja do sacerdote Florêncio, tem de se mudar para Monte Cassino, onde
fundou o principal mosteiro da Ordem Beneditina.
É nesse episódio que Florêncio lhe
enviou de presente um pão envenenado, mas Bento deu o pão a um corvo que todos
os dias vinha comer de suas mãos e ordenou à ave que o levasse para longe, onde
não pudesse ser encontrado.
Durante a saída de Bento para Monte
Cassino, Florêncio, sentindo-se vitorioso, saiu ao terraço de sua casa para ver
a partida do monge. Entretanto, o terraço ruiu e Florêncio morreu.
Um dos discípulos de Bento, Mauro,
foi pedir ao mestre que retornasse, pois o inimigo havia morrido, mas Bento
chorou pela morte de seu inimigo e também pela alegria de seu discípulo, a quem
impôs uma penitência por regozijar-se pela morte do sacerdote.
534 - Começou a
escrever a Regula Monasteriorum (Regra dos Mosteiros).
547 - Morre
em 21 de março, tendo antes anunciado a alguns monges que iria morrer e
seis dias antes mandado abrir sua sepultura. Sua irmã gêmea Escolástica havia
falecido em 10 de fevereiro desse mesmo ano.
1.Este
é o lugar para que eu lhes conte e vocês ouçam, já que desejosos disto, como
foi o fim de sua vida, pois também nisto foi modelo digno de imitação.
2.Segundo
seu costume, visitava os monges na Montanha Exterior. Recebendo, da
Providência, um premonição de sua morte, falou aos irmãos: "Esta é a
última visita que lhes faço e me admiraria se nos voltássemos a ver nesta vida.
Já é tempo de morrer, pois tenho quase cento e cinco anos".
3.Ao
ouvir isto, puseram-se a chorar, abraçando e beijando o ancião. Ele porém, como
se tivesse de partir de uma cidade estranha à sua própria, continuou falando
alegremente.
4.Exortava-os
a "não se relaxarem em seus esforços nem a se desalentarem na prática da
vida ascética, mas a viver como se tivessem de morrer cada dia e, como disse
antes, a trabalhar duramente a fim de guardar a alma limpa de pensamentos
impuros, e a imitar os homens santos.
5.Não
se aproximem dos cismáticos melecianos (seita
de Malécio de Antioquia – defendia a Doutrina sobre os Lapsis), pois já
conhecem seu ensinamento ímpio e perverso. Não se metam para nada com os
arianos, pois sua irreligião é clara para todos. E se veem que os juízes os apoiam,
não se deixem confundir: isto se acabará, é um fenômeno mortal, destinado a seu
fim em pouco tempo.
6.Por
isso, mantenham-se limpos de tudo isto e observem a tradição dos Padres e,
sobretudo, a fé ortodoxa em nosso Senhor Jesus Cristo, como aprenderam das
Escrituras e eu tão frequentemente o recordei."
7.Quando
os irmãos instaram pra que ficasse com eles, até morrer, ali, recusou-se a isto
por muitas razões, segundo disse, embora sem indicar nenhuma.
8.Especialmente
era por isto: os egípcios têm o costume de honrar com ritos funerários e
envolver em sudários de linho os corpos dos homens santos e particularmente dos
santos mártires; mas não os enterram: colocam-nos sobre divãs e os guardam em
suas casas, pensando honrar o defunto deste modo.
9.Antão
pediu muitas vezes inclusive aos bispos que dessem instruções ao povo sobre
esse assunto. Ao mesmo tempo envergonhou os leigos e reprovou as mulheres,
dizendo que "isto não era correto nem reverente, em absoluto. Os corpos
dos patriarcas e dos profetas se guardam em túmulos até estes dias; e o corpo
do Senhor também foi depositado num túmulo e puseram uma pedra sobre ele (Mt
27,60) até que ressuscitou ao terceiro dia".
10.Ao expor assim
as coisas, demonstrava que cometiam erro e que não dava sepultura aos corpos
dos defuntos, por santos que fossem. E em verdade, quem maior ou mais santo que
o corpo do Senhor?
11.Como resultado,
muitos que o ouviram começaram desde então a sepultar seus mortos, e deram
graças ao Senhor pelo bom ensinamento recebido.
12.Sabendo disto,
Antão teve medo de que fizessem o mesmo com seu próprio corpo. Por isso,
despedindo-se dos monges da Montanha Exterior, apressou-se para a Montanha
Interior, onde costumava viver.
13.Depois de poucos
meses, caiu doente. Chamou os que o acompanhavam - havia dois que levavam vida
ascética havia quinze anos e se preocupavam com ele devido a sua idade avançada
- , e lhes disse: "Vou-me pelo caminho de meus pais", como diz a
Escritura (cf 1 Rs 2,2; Jos 23,14), pois me vejo chamado pelo Senhor.
14.Quanto a vocês,
estejam vigilantes e não façam tabula rasa da vida ascética que tanto tempo
praticaram. Esforcem-se por manter seu entusiasmo como se estivessem começando
agora.
15.Já conhecem os
demônios e seus desígnios; conhecem também sua fúria e também sua incapacidade.
Assim, pois, não os temam; deixem antes que Cristo seja o alento de sua vida e
ponham nele sua confiança.
16.Vivam como se
cada dia tivessem de morrer, fazendo atenção a si mesmos e recordando tudo o
que ouviram de mim.
17.Não tenham
nenhuma comunhão com os cismáticos e absolutamente nada com os hereges arianos.
Sabem como eu mesmo me guardei deles devido à sua pertinaz heresia contra
Cristo.
18.Sejam ansiosos
em manifestar sua lealdade primeiro a Cristo e depois a seus santos, 'para que depois
de sua morte eles os recebam nas moradas eternas' (Lc 16,9), como a amigos
familiares.
19.Gravem este
pensamento, tenham-no como propósito. Se vocês realmente se preocupam comigo e
me consideram como pai, não permitam que ninguém leve meu corpo para o Egito,
não aconteça que me guardem em suas casas. Foi esta a razão que me trouxe para
cá, à montanha. Sabem como sempre confundi os que fazem isto e os intimei a
deixar tal costume.
20.Por isso,
façam-me vocês mesmos os funerais e sepultem meu corpo na terra, e respeitem de
tal modo o que lhes disse, que ninguém senão vocês saiba o lugar. Na
ressurreição dos mortos, o Salvador me devolverá incorruptível.
21.Distribuam minha
roupa. Ao bispo Atanásio deem uma túnica e o manto em que estou, e que ele
mesmo me deu, mas que se gastou em meu poder; ao bispo Serapião deem a outra
túnica, e vocês podem ficar com a camisa de pelo (47,2).
22.E agora, meus
filhos, Deus os abençoe. Antão parte e não está mais com vocês.
23.Depois de dizer
isto e de que eles o houvessem beijado, estendeu os pés, seus rosto estava
transfigurado de alegria e seus olhos brilhavam de regozijo como se visse
amigos vindo a seu encontro; e assim faleceu e foi reunir-se a seus pais.
24.Eles então,
seguindo as ordens que lhes havia dado, prepararam e envolveram o corpo e o
sepultaram aí na terra.
25.E até o dia de hoje
ninguém, exceto esses dois, sabe onde está sepultado[1].
Quanto aos que receberam as túnicas e o manto usados pelo bem-aventurado Antão,
cada um guarda seu presente como grande tesouro. Olhá-los é ver Antão e pô-los
é como revestir-se de suas exortações com alegria.
26.Este foi o fim
da vida de Antão no corpo, como antes tivemos o começo de sua vida ascética. E
ainda que seja um pobre relato comparado com a virtude do homem, recebam-no,
entretanto, e reflitam que classe de homem foi Antão; o varão de Deus.
27.Desde sua
juventude até uma idade tão avançada conservou uma devoção inalterável à vida
ascética.
28.Nunca tomou a velhice
como desculpa para ceder ao desejo de abundante alimentação, nem mudou sua
forma de vestir, pela debilidade de seu corpo, nem tampouco lavou seus pés com
água. E no entanto sua saúde se manteve totalmente sem prejuízo - Por exemplo,
mesmo seus olhos eram perfeitamente normais, de modo que sua vista era
excelente; não havia perdido nem um só dente; só se haviam gasto até as
gengivas pela grande idade do ancião.
29.Manteve mãos e pés
sãos, e em tudo aparecia com melhores cores e mais fortes do que os que têm uma
dieta diversificada, banhos e variedade de roupas; fato de chegar a ser famoso
em todas as partes, de ter encontrado admiração universal e de que sua perda
foi sentida por pessoas que nunca o viram, sublinha sua virtude e o amor que
Deus lhe tinha.
30.Antão ganhou renome,
não por seus escritos nem por sabedoria de palavras nem por nenhuma outra
coisa, senão só por seu serviço a Deus.
31.E ninguém pode
negar que isto é dom de Deus. Como explicar, efetivamente, que este homem, que
viveu escondido em uma montanha, fosse conhecido em Espanha e Gália, em Roma e
África, senão por Deus, que em toda parte faz conhecidos os seus, que, mais
ainda, havia dito isto a Antão em seus começos.
32.Pois ainda que
façam suas obras em segredo e desejem permanecer na obscuridade, o Senhor os
mostra publicamente como lâmpadas a todos os homens (Mt 5,16), e assim, os que
ouvem falar deles podem aperceber-se de que os mandamentos levam à perfeição, e
então se encorajam pela senda que conduz à virtude.
2 –
Epílogo
33.Agora, pois,
leiam isto aos demais irmãos, para que também eles aprendam como deve ser a
vida dos monges, e se convençam de que nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo
glorifica aos que o glorificam.
34.Ele não só conduz
ao Reino dos Céus os que o servem até o fim, mas, ainda que se escondam e façam
o possível por viver fora do mundo, faz com que em toda parte sejam conhecidos
e se fale deles, por sua própria santidade e pela ajuda que dão a outros.
35.Se a ocasião se
apresenta, leiam-no também aos pagãos, para que ao menos deste modo possam
aprender que nosso Senhor Jesus Cristo é Deus e Filho de Deus, e que os
cristãos, que o servem fielmente e mantêm sua fé ortodoxa nele, demonstram que
os demônios, considerados deuses pelos pagãos, não o são, mas antes os calcam
aos pés e afugentam pelo que são: enganadores e corruptores de homens.
36.Por Nosso Senhor
Jesus Cristo, a quem seja dada a glória pelos séculos. Amém.
O que você
destaca neste texto?
Como ele serve
para sua espiritualidade?
O que você destaca em Antão e como sua vida
contribui
[1]A tumba
foi descoberta em 561, o seu corpo trasladado a Alexandria. Quando os
sarracenos dominaram o Egito em 635, os restos foram levados a Constantinopla.
Dali foram trasladados à França em fins do século X, e desde 1491 se guardam na
igreja de São Julião de Arles.
A fama de Antão chegou aos imperadores.
Quando Constantino Augusto e seus filhos Constâncio Augusto e Constante Augusto
ouviram estas coisas, escreviam-lhe como a um pai, rogando-lhe que lhe
respondesse.
Ele, no entanto, não deu muita
importância aos documentos nem se alegrou pelas cartas; continuou o mesmo que
antes de lhe escrever o imperador.
Quando lhe levaram os documentos,
chamou-os e disse: "Não se devem surpreender-se um imperador nos escreve,
porque é homem; deveriam surpreender-se é de que Deus haja escrito a lei para a
humanidade e nos tenha falado por meio de seu próprio Filho".
Em verdade, nem queria receber as
cartas, dizendo que não sabia que responder. Os monges, porém, persuadiram-no
manifestando-lhe que os imperadores eram cristãos e que se ofenderiam de ser
ignorados; então acedeu a que lhas lessem.
E respondeu, recomendando-lhes que
prestassem culto a Cristo e ando-lhes o saudável conselho de não apreciar
demasiado as coisas deste mundo, mas antes recordando o juízo futuro, e saber
que só Cristo é o Rei verdadeiro e eterno. Rogava-lhes que fossem humanos e
atendessem à justiça e aos pobres.
E eles ficaram felizes ao receber sua
resposta. Por isso era amado por todos, e todos desejavam tê-lo como pai.
6 -
Antão prediz os estragos da heresia ariana
Argumentando assim de si mesmo, e
contestando assim aos que o buscavam, voltou à Montanha Interior. Continuou
observando suas costumadas práticas ascéticas, e muitas vezes, quando estava
sentado ou caminhando com visitantes, quedava-se mudo, como está escrito no
livro de Daniel (cf 4.16 LXX).
Depois de algum tempo, retomava o que
estivera dizendo aos irmãos que o acompanhavam, e os presentes apercebiam-se de
que havia tido uma visão; pois amiúde quando estava na montanha via coisas que
aconteciam até no Egito, como o confessou ao bispo Serapião[1],
quando este se encontrava na Montanha Interior e viu Antão em transe de visão.
Numa ocasião, por exemplo, enquanto
estava sentado trabalhando tomou a aparência de alguém que estivesse em êxtase
e se lamentava continuamente pelo que via. Depois de algum tempo voltou a si,
lamentando-se e tremendo, e se pôs a orar prostrado, ficando longo tempo nessa
posição.
E quando se endireitou, o ancião estava
chorando. Agitaram-se então os que estavam com ele, alarmaram-se muitíssimo, e
lhe perguntaram o que se passava; urgiram-no por tanto tempo que o obrigaram a
falar.
Suspirando profundamente, disse:
"O', filhos meus, seria melhor morrer antes que se sucedam as coisas que
vi". Fazendo-lhe mais perguntas, disse entre lágrimas: "A ira está a
ponto de golpear a Igreja, e ela está a ponto de ser entregue a homens que são
como bestas insensíveis.
Vi a mesa da casa do Senhor e havia
mulas em torno, rodeando-a por todas as partes e dando coices com seus cascos
em tudo e que havia nela, tal como o escoicear de uma tropa que golpeia
desenfreada.
Vocês ouviram seguramente como eu me
lamentava; é que ouvi uma voz que dizia: "Meu altar será profanado".
Assim falou o ancião. E dois anos depois chegou o atual assalto dos arianos e o
saque das igrejas, quando à força se apoderaram dos vasos e os fizeram levar
pelos pagãos; quando também forçaram os pagãos de suas tendas para irem a suas
reuniões, e em sua presença fizeram o que lhes aprouve sobre a sagrada mesa.
Todos então nos apercebemos que o
escoucear de mulas predito por Antão, era o que os arianos estão fazendo como
bestas brutas.
Quando teve esta visão, consolou a seus
companheiros: "Não percam a coragem, meus filhos, pois ainda que o Senhor
esteja irritado, nos restabelecerá depois. E a Igreja recobrará rapidamente a
beleza que lhe é própria e resplandecerá com seus costumados esplendor. Verão
restabelecidos os que foram perseguidos, e a irreligião retirando-se de novo a
suas próprias guaridas, e a verdadeira fé afirmando-se em toda parte, em
liberdade completa.
Tenham porém, cuidado em não se deixarem
manchar com os arianos. Seu ensinamento não é do apóstolos, mas dos demônios e
de seu pai, o diabo. É estéril e irracional, e falta-lhe inteligência, tal como
às mulas lhes falta o entendimento.
7 -
Antão, Taumaturgo de Deus e Médico das almas
Tal é a história de Antão. Não
deveríamos ser céticos por se terem sucedido esses grandes milagres por
intermédio de um homem, pois tal é a promessa do Salvador: "Se tiverem fé
ainda que seja como um grão de mostarda, dirão a este monte: 'Passa-te daqui
para lá' e ele passará; nada lhes será impossível" (Mt 17,20).
E também: "Em verdade lhes digo:
tudo o que pedirem ao Pai em meu Nome Ele lhes dará... Peçam e receberão (Jo
16, 23s). É Ele quem diz a seus discípulos e a todos os que Nele creem:
"Curem os enfermos.... lancem fora os demônios; de graça o receberam,
grátis devem dá-lo" (Mt 10,8).
Antão, pois, curava, não dando ordens
mas orando e invocando o nome de Cristo, de modo que para todos era claro que
não era ele quem atuava, mas o Senhor que mostrava seu amor pelos homens
curando aos que sofriam, por intermédio de Antão.
Este ocupava-se apenas da oração e da
prática da ascese, e por esta razão levava sua vida na montanha, feliz na
contemplação das coisas divinas, e pesaroso de que tantos o perturbassem e o
forçassem a sair à Montanha Exterior.
Os juízes, por exemplo, rogavam-lhe que
descesse da montanha já que para eles era impossível ir lá, devido ao grande número
de gente envolta em pleitos. Pediram-lhe que fosse a eles para que pudessem
vê-lo. Ele procurou livrar-se da viagem e rogou-lhes que o dispensassem de
fazê-la.
Eles no entanto insistiram, e mesmo
mandaram-lhe réus com escolta de soldados, para que em consideração a eles se
decidisse a descer. Sob tal pressão, e vendo-os lamentar-se, foi à Montanha
Exterior.
De novo, o incômodo que teve não foi em
vão, pois ajudou a muitos e sua presença foi um verdadeiro benefício.
Ajudou os juízes aconselhando-os a que
dessem à justiça precedência sobre tudo o mais, que temessem a Deus e que se
recordassem de que "seriam julgados com a mesma medida com que
julgassem" (Mt 7,2). Amava porém sua vida montanhesa acima de tudo.
Uma vez importunado por pessoas que
necessitavam de ajuda, e solicitado pelo comandante militar que enviou
mensageiros a pedir-lhe que descesse, foi e falou algumas palavras acerca da
salvação e a favor dos necessitados, e logo apressou-se a ir embora.
Quando o duque ("Doux", do latim "dux". Era o título do
comandante militar de uma ou várias províncias),
como o denominavam, rogou-lhe que ficasse, respondeu que não podia passar mais tempo
com eles e o satisfez com esta bela comparação: "Assim como um peixe morre
quando fica algum tempo em terra seca, assim também os monges se perdem quando
se tornam folgazões e passam muito tempo com vocês.
Por isso, temos que voltar à montanha,
como o peixe à água. De outro modo, se nos entretemos, podemos perder de vista
a vida interior".
O comandante, ao ouvir isto e muitas
coisas mais, reconheceu admirado que era verdadeiramente servo de Deus, pois
como poderia um homem ordinário ter uma inteligência tão extraordinária se não
fosse amado por Deus?
Havia uma vez um comandante - Balácio
era seu nome - que como partidário dos execráveis arianos perseguia duramente
os cristãos. Em sua barbárie chegava até a espancar as virgens e desnudar e
açoitar os monges.
Antão enviou-lhe por isso uma carta
dizendo-lhe o seguinte; "Vejo que o juízo de Deus se aproxima de ti; deixa
pois de perseguir os cristãos para que não te surpreenda o juízo; agora está a
ponto de cair sobre ti".
Balácio entretanto pôs-se a rir, jogou a
carta no chão e nela cuspiu; maltratou os mensageiros e ordenou-lhes que
levassem a Antão a seguinte mensagem: "Vejo que estás muito preocupado
pelos monges; virei também a ti".
Não haviam passado cinco dias quando o
juízo de Deus caiu sobre ele. Balácio e
Nestório, prefeito do Egito, haviam saído para a primeira
estação fora de Alexandria, chamada Chereu; ambos iam a cavalo. Os cavalos
pertenciam a Balácio e eram os mais mansos que ele tinha. Ainda não haviam
chegado, quando os cavalos, como costumam fazer, começaram a retrucar um contra
o outro, e de repente o mais manso dos dois, cavalgado por Nestório, mordeu
Balácio, lançou-o por terra e o atacou. Rasgou-lhe de tal modo o músculo com
seus dentes, que tiveram de levá-lo de volta à cidade, onde morreu depois de
três dias. Todos se admiraram de que se cumprisse tão rapidamente o que Antão
predissera. Assim se escarmentaram (castigar, punir) os duros.
Quanto aos demais que recorriam a ele,
suas íntimas e cordiais conversações faziam-nos esquecer imediatamente os
litígios e os levavam a considerar felizes os que abandonavam a vida do mundo.
De tal modo lutava pela causa dos
ofendidos que se podia pensar ser ele mesmo e não outros a parte agravada.
Tinha além disso tal dom para ajudar a
todos, que muitos militares e homens de grande influência abandonavam sua vida
onerosa e faziam-se monges.
Numa palavra, era como se Deus houvesse
dado um médico ao Egito. Quem recorreu a ele na dor sem voltar com alegria?
Quem chegou chorando por seus mortos e não se libertou imediatamente de seu
pesar? Houve alguém que chegasse com ira e não a transformasse em amizade? Quem
pobre ou arruinado foi a ele, e ao vê-lo e ouvi-lo não desprezou a riqueza,
sentindo-se consolado em sua pobreza? Que monge negligente não ganhou novo
fervor ao visitá-lo? Que jovem, chegando à montanha e vendo Antão, não
renunciou logo ao prazer, começando a amar a castidade? Quem se lhe acercou
atormentado por um demônio e não foi liberto? Quem chegou com a alma torturada
e não encontrou a paz do coração?
Era algo único, na prática ascética de
Antão, ter ele, como já foi dito, o dom do discernimento dos espíritos.
Reconhecia seus movimentos e sabia muito bem em que direção seu esforço e
ataque levava cada um deles.
Não só ele próprio não foi enganado, mas
alentando a outros que eram fustigados em seus pensamentos, ensinou-lhes como
resguardar-se de seus desígnios, descrevendo a debilidade e os ardis dos
espíritos que praticavam a possessão.
Assim cada um se ia como que ungido por
ele (metáfora tomada das unções dos atletas) e cheio de confiança para a luta
contra os desígnios do diabo e de seus demônios.
E quantas jovens que tinham pretendentes
mas que viram Antão só de longe, e permaneceram virgens por Cristo!
Muita gente chegava a ele de terras
estranhas, e também eles recebiam ajuda como os demais, voltando como enviados
em seu caminho por um pai.
E em verdade, agora que já se foi,
todos, com órfãos de pai, se consolam e se confortam só com sua recordação,
guardando ao mesmo tempo com carinho suas palavras de admoestação e de
conselho.
O
que você destaca no texto e como ele serve para sua espiritualidade?
[1][87] São Serapião (cf também 91,11) foi superior de uma
colônia de anacoretas antes de chegar a ser bispo de Thmuis no Baixo Egito.
Segundo os testemunhos dos historiadores cristãos, foi homem de grande
santidade e saber. S. JERÔNIMO, atribui-lhe o sobrenome de "Scholasticus",
e diz que escreveu um tratado contra os maniqueus, um sobre os títulos dos santos
e várias cartas. Em PG 40 conservam-se uma carta a Eudóxio e outra aos monges,
além dos fragmentos de seu trabalho contra os maniques. A obra mais conhecida
que se lhe atribui é o "Eucológio" ou Sacramentário: é uma coleção de
trinta orações litúrgicas de grande importância para a história da liturgia
cristã antiga. Sendo amigo de Santo Atanásio, viu-se envolvido na controvérsia
ariana, foi também expulso de sua sede episcopal. Morreu em 362.
1.Tinha
também um grau muito alto de sabedoria prática. O admirável era que, ainda que
não tivesse educação formal (não recebeu a
formação retórica e humanística que teria sido usual numa família abastada como
a de Antão),
possuía, no entanto engenho e compreensão despertos.
2.Um
exemplo: uma vez chegaram a ele dois filósofos gregos, pensando que podiam
divertir-se com Antão. Quando ele, que nessa ocasião vivia na Montanha
Exterior, catalogou os homens por sua aparência, dirigiu-se a eles e lhes disse
por meio de um intérprete:
3."Por
que, filósofos, se deram tanto trabalho vindo a um homem louco?" Quando eles
lhe contestaram que não era louco, mas muito sábio, ele lhes disse: "Se vieram
a um louco, seu incômodo não tem sentido; mas se pensam que sou sábio, então
façam-se o que sou, porque se deve imitar o bom. Em verdade, se eu tivesse ido
a vocês, tê-los-ia imitado; ao invés, agora que vieram a mim, convertam-se no
que sou: eu sou cristão".
4.Eles
se foram, admirados; viram que até os demônios temiam a Antão.
5.Também
outros da mesma classe foram a seu encontro na Montanha Exterior e pensaram que
podiam zombar dele porque não tinha cultura.
6.Antão
lhes disse: "Bem, que dizem vocês: que é primeiro, o sentido ou a letra? E
qual é a origem do outro: o sentido da letra ou a letra do sentido?"
7.Quando
eles expressaram que o sentido é primeiro e origem da letra, Antão disse:
"Por isso, quem tem mente sã não necessita das letras".
8.Isto
os assombrou e a todos os circunstantes. Foram-se admirados de ver tal sabedoria
num homem iletrado, que não tinha as maneiras grosseiras de quem viveu e envelheceu
na montanha, mas era um homem simpático e cortês.
9.Seu
falar era sazonado com a sabedoria divina (cf Cl 4,6), de modo que ninguém lhe
tinha má vontade, mas todos se alegravam de haver ido em sua procura.
10.E por certo,
depois destes vieram outros. Eram daqueles que entre os pagãos têm reputação de
sábios. Pediram-lhe que suscitasse uma controvérsia sobre nossa fé em Cristo.
11.Quando
procuravam arguir com sofismas a partir da pregação da divina Cruz, a fim de
zombar, Antão guardou silêncio por um momento e, compadecendo-se primeiro da ignorância
deles, disse logo por um intérprete que fazia excelente tradução de suas
palavras:
12."Que é
melhor: confessar a Cruz ou atribuir adultérios e pederastias aos assim
chamados deuses? Pois manter o que mantemos é sinal de espírito viril e denota
desprezo da morte, enquanto que o que vocês pretendem só fala de paixões
desenfreadas”.
13.“Outra vez, que
é melhor: dizer que a Palavra de Deus imutável permaneceu a mesma ao tomar
corpo humano para salvação e bem da humanidade de modo que ao compartilhar o
nascimento humano pôde fazer os homens participantes da natureza divina e
espiritual (cf 2 Pd 1,4), ou colocar o divino num mesmo nível que os seres
insensíveis e adorar por isso a bestas e répteis e imagens de homens”? Precisamente
esses são os objetos adorados por seus homens sábios.
14.Com que direito
vêm rebaixar-nos porque afirmamos que Cristo apareceu como homem, sendo que
vocês fazem provir a alma do céu, dizendo que se extraviou e caiu da abóbada do
céu ao corpo? E, oxalá fosse só o corpo humano, e não que se mudasse e
emigrasse no de bestas e serpentes!
15.Nossa fé declara
que Cristo veio para salvação das almas, e vocês erroneamente teorizam acerca
de uma Alma incriada.
16.Cremos no poder
da Providência e em seu amor pelos homens e em que essa vinda não era portanto
impossível para Deus, mas vocês, chamando à alma imagem da Inteligência,
imputam-lhe quedas e fabricam mitos sobre sua possibilidade de mudança.
17.Como
consequência fazem mutável a mesma Inteligência por causa da alma; pois
enquanto imagem deve ser aquilo de que é imagem. Se vocês, entretanto, pensam
semelhantes coisas acerca da Inteligência, recordem-se de que blasfemam do Pai
da Inteligência".
18.Em referência à
Cruz, que dizem vocês ser o melhor: suportar a Cruz, quando homens malvados
lançam mão da traição, e não vacilar ante a morte de maneira ou forma alguma,
ou fabricar fábulas sobre as andanças de Isis e Osíris (deuses egípcios), as
conspirações de Tifon, a expulsão de Cronos[1],
com seus filhos devorados e seus parricídios? Sim, aqui temos sua sabedoria!
19.E por que
enquanto se riem da Cruz, não se maravilham da Ressurreição?
20.Pois os mesmos
que nos transmitiram um acontecimento escreveram também sobre o outro. Ou por
que enquanto se lembram da Cruz, nada têm que dizer sobre os mortos devolvidos
à vida, os cegos que recuperaram a vista, os paralíticos que foram curados e os
leprosos que foram limpos, o caminhar sobre as águas e os outros sinais e
milagres que mostram Cristo não como homem mas como Deus?
21.Em todo caso,
parece-me que vocês se enganam a si mesmos e que não têm nenhuma familiaridade
real com nossas Escrituras.
22.Leiam-nas,
porém, e vejam que tudo quando Cristo fez prova que era Deus que habitava
conosco para a salvação dos homens.
23.Mas falem-nos
também vocês sobre seus próprios ensinamentos. Que podem, porém dizer acerca de
coisas insensíveis senão insensatezes e barbaridades? Se entretanto, como ouço,
querem dizer que entre vocês tais coisas se falam em sentido figurado, e assim
convertem o rapto de Coré em alegoria da terra; a cólera de Hefestos, do sol, a
Hera, do ar; a Apolo do sol; a Artemísia, da lua, e a Poseidon, do mar, ainda
assim vocês não adoram o próprio Deus, mas servem à criatura em lugar de Deus
que tudo criou.
24.Se vocês
compuseram tais histórias porque a criação é bela, não deveriam ter ido além de
admirá-la, e não fazer das criaturas deuses para não dar às coisas criadas a
honra do Criador.
25.Nesse caso já
seria tempo de darem à casa construída a honra devida ao arquiteto, ou a honra
devida ao general, aos soldados. Agora, que têm que dizer a tudo isto? Assim
saberemos se a Cruz tem algo que sirva para escarnecer-se dela.
26.Eles estavam
desconcertados e davam voltas ao assunto de uma e de outra forma. Antão sorriu
e disse, de novo através de um intérprete [85]: "Só ao ver as coisas já se
tem a prova de tudo o que eu disse. Dado, porém, que vocês, supõe-se, confiam
absolutamente nas demonstrações, e isto é uma arte em que vocês são mestres, e
já que exigem de nós não adorar a Deus sem argumentos demonstrativos, digam-me
isto primeiro: Como se origina o conhecimento preciso das coisas, em especial o
conhecimento de Deus? É por uma demonstração verbal ou por um ato de fé?
27.E que vem primeiro:
o ato de fé ou a demonstração verbal?" Quando replicaram que o ato de fé
precede e que isto constitui um conhecimento exato, disse Antão: "Bem
respondido!
28.A fé surge da
disposição da alma, enquanto a dialética vem da habilidade dos que a idealizam.
De acordo com isto, os que possuem uma fé ativa não necessitam de argumentos de
palavras, e provavelmente os reputam supérfluos; pois o que apreendemos pela
fé, vocês cuidam construí-lo com argumentações e amiúde nem sequem podem
exprimir o que nós percebemos.
29.A conclusão é
que uma fé ativa é melhor e mais forte de que seus argumentos sofísticos.
30.Os cristãos, por
isso, possuímos o mistério, não baseando-nos na razão da sabedoria grega (cf 1
Cor 1,17), mas fundados no poder de uma fé que Deus nos garantiu por meio de
Jesus Cristo.
31.Pelo que toca à
verdade da explicação dada, notem como nós, iletrados, cremos em Deus reconhecendo
sua Providência a partir de suas obras.
32.E quanto a ser
nossa fé algo de efetivo, notem que nos apoiamos em nossa fé em Cristo,
enquanto vocês a baseiam em disputas ou palavras sofísticas; seus ídolos
fantasmas estão passando de moda, mas nossa fé se difunde em toda parte.
33.Com todos seus
silogismos e sofismas vocês não convertem ninguém do cristianismo ao paganismo,
mas nós, ensinando a fé em Cristo, estamos despojados os deuses do medo que
inspiravam, de modo que todos reconhecem Cristo como Deus e Filho de Deus.
34.Como toda sua
elegante retórica, vocês não impedem o ensinamento de Cristo, mas nós, à
simples menção do nome de Cristo crucificado, expulsamos os demônios que vocês
veneram como deuses. Onde aparece o sinal da Cruz, ali a magia e a feitiçaria
são impotentes e sem efeito.
35.Em verdade,
digam-nos, onde ficaram seus oráculos? Onde os encantamentos dos egípcios? Onde
estão suas ilusões e os fantasmas dos magos? Quando terminaram estas coisas e
perderam seu significado? Não foi acaso quando chegou a Cruz de Cristo? Por
isso, será ela que merece desprezo e não, antes, o que ela deitou abaixo,
demonstrando sua impotência?
36.Também é notável
o fato de que jamais a religião de vocês foi perseguida; ao contrário, em todas
as partes goza de honra entre os homens, mas os seguidores de Cristo são
perseguidos, e sem embargo é a nossa causa que floresce e prevalece e não a
sua.
37.Com toda a
tranquilidade e proteção do que goza, sua religião está morrendo, enquanto a fé
e o ensinamento de Cristo, desprezados pro vocês e frequentemente perseguidos
pelos governantes, encheram o mundo.
38.Em que tempo
resplandeceu tão brilhantemente o conhecimento de Deus? Ou em que tempo
apareceram a continência e a virtude da virgindade? Ou quando foi tão
desprezada a morte como quando chegou a Cruz de Cristo?
39.E ninguém duvida
disto ao ver os mártires que desprezam a morte por causa de Cristo, ou ao ver
as virgens da Igreja que por causa de Cristo guardam seus corpos puros e sem mancha.
40.Estas provas
bastam para demonstrar que a fé em Cristo é a única religião verdadeira. Aqui
porém estão vocês, que buscam conclusões baseadas no raciocínio, vocês que não
têm fé.
41.Nós não buscamos
provas, como diz nosso Mestre, 'com palavras persuasivas de sabedoria humana'(1
Cor, 2,4), mas persuadimos os homens pela fé que tangivelmente precede todo
raciocínio baseado em argumentos.
42.Vejam, aqui há
alguns que são atormentados pelos demônios". Estes eram gente que tinham vindo para vê-lo e
sofriam por causa dos demônios; fazendo-os adiantar-se, disse: "Pois bem,
curem-nos com seus silogismos ou com qualquer magia que desejem, invocando a
seus ídolos; ou então, se não podem , deixem de lutar contra nós e vejam o
poder da Cruz de Cristo".
43.Dito isto,
invocou a Cristo e fez sobre os enfermos o sinal da Cruz, repetindo a ação por
segunda e terceira vez. Imediatamente as pessoas se levantaram completamente
sãs, tendo-lhes voltado o uso da razão e dando graças ao Senhor.
44.Os assim
chamados filósofos estavam assombrados e realmente atônitos pela sagacidade do homem
e pelo milagre realizado. disse-lhes, porém, Antão: "Por que se maravilham
com isto? Não somos nós, mas Cristo quem age através do que Nele creem. Creiam
vocês também e verão que não é palavreado e sim fé que pela caridade opera para
Cristo (cf Gl 5,6); se vocês também abraçam isto, não necessitarão andar
buscando argumentos da razão, mas verão que a fé em Cristo é suficiente."
Assim falou a Antão.
45.Quando partiram,
admiraram-no, abraçaram-no e reconheceram que os havia ajudado.
O
que você destaca no texto e por quê?
Como
este texto serviu para sua espiritualidade?
O
que você destaca na fala de seu irmão/ã.
1. Kronos (o Saturno dos romanos). O mais jovem dos titãs,
filho de Gea e de Urano, a quem despojou do governo do universo. Casado com sua
irmã Rea, com ela reinou sobre o mundo. Segundo um oráculo, seria destronado
por um de seus filhos; para evitá-lo, devorava-os logo ao nascer. Por uma astúcia
de sua mãe Rea, pôde salvar-se Zeus que, chegando à idade adulta, declarou
guerra aos titãs e a seu pai, vencendo-os a todos.