Encontro
177
Atanásio
de Alexandria (285-373)
A Vida de Santo Antão (Parte VI
– 4)
IV
- A verdadeira Sabedoria
1.
Tinha
também um grau muito alto de sabedoria prática. O admirável era que, ainda que
não tivesse educação formal (não recebeu a
formação retórica e humanística que teria sido usual numa família abastada como
a de Antão),
possuía, no entanto engenho e compreensão despertos.
2.
Um
exemplo: uma vez chegaram a ele dois filósofos gregos, pensando que podiam
divertir-se com Antão. Quando ele, que nessa ocasião vivia na Montanha
Exterior, catalogou os homens por sua aparência, dirigiu-se a eles e lhes disse
por meio de um intérprete:
3.
"Por
que, filósofos, se deram tanto trabalho vindo a um homem louco?" Quando eles
lhe contestaram que não era louco, mas muito sábio, ele lhes disse: "Se vieram
a um louco, seu incômodo não tem sentido; mas se pensam que sou sábio, então
façam-se o que sou, porque se deve imitar o bom. Em verdade, se eu tivesse ido
a vocês, tê-los-ia imitado; ao invés, agora que vieram a mim, convertam-se no
que sou: eu sou cristão".
4.
Eles
se foram, admirados; viram que até os demônios temiam a Antão.
5.
Também
outros da mesma classe foram a seu encontro na Montanha Exterior e pensaram que
podiam zombar dele porque não tinha cultura.
6.
Antão
lhes disse: "Bem, que dizem vocês: que é primeiro, o sentido ou a letra? E
qual é a origem do outro: o sentido da letra ou a letra do sentido?"
7.
Quando
eles expressaram que o sentido é primeiro e origem da letra, Antão disse:
"Por isso, quem tem mente sã não necessita das letras".
8.
Isto
os assombrou e a todos os circunstantes. Foram-se admirados de ver tal sabedoria
num homem iletrado, que não tinha as maneiras grosseiras de quem viveu e envelheceu
na montanha, mas era um homem simpático e cortês.
9.
Seu
falar era sazonado com a sabedoria divina (cf Cl 4,6), de modo que ninguém lhe
tinha má vontade, mas todos se alegravam de haver ido em sua procura.
10. E por certo,
depois destes vieram outros. Eram daqueles que entre os pagãos têm reputação de
sábios. Pediram-lhe que suscitasse uma controvérsia sobre nossa fé em Cristo.
11. Quando
procuravam arguir com sofismas a partir da pregação da divina Cruz, a fim de
zombar, Antão guardou silêncio por um momento e, compadecendo-se primeiro da ignorância
deles, disse logo por um intérprete que fazia excelente tradução de suas
palavras:
12. "Que é
melhor: confessar a Cruz ou atribuir adultérios e pederastias aos assim
chamados deuses? Pois manter o que mantemos é sinal de espírito viril e denota
desprezo da morte, enquanto que o que vocês pretendem só fala de paixões
desenfreadas”.
13. “Outra vez, que
é melhor: dizer que a Palavra de Deus imutável permaneceu a mesma ao tomar
corpo humano para salvação e bem da humanidade de modo que ao compartilhar o
nascimento humano pôde fazer os homens participantes da natureza divina e
espiritual (cf 2 Pd 1,4), ou colocar o divino num mesmo nível que os seres
insensíveis e adorar por isso a bestas e répteis e imagens de homens”? Precisamente
esses são os objetos adorados por seus homens sábios.
14. Com que direito
vêm rebaixar-nos porque afirmamos que Cristo apareceu como homem, sendo que
vocês fazem provir a alma do céu, dizendo que se extraviou e caiu da abóbada do
céu ao corpo? E, oxalá fosse só o corpo humano, e não que se mudasse e
emigrasse no de bestas e serpentes!
15. Nossa fé declara
que Cristo veio para salvação das almas, e vocês erroneamente teorizam acerca
de uma Alma incriada.
16. Cremos no poder
da Providência e em seu amor pelos homens e em que essa vinda não era portanto
impossível para Deus, mas vocês, chamando à alma imagem da Inteligência,
imputam-lhe quedas e fabricam mitos sobre sua possibilidade de mudança.
17. Como
consequência fazem mutável a mesma Inteligência por causa da alma; pois
enquanto imagem deve ser aquilo de que é imagem. Se vocês, entretanto, pensam
semelhantes coisas acerca da Inteligência, recordem-se de que blasfemam do Pai
da Inteligência".
18. Em referência à
Cruz, que dizem vocês ser o melhor: suportar a Cruz, quando homens malvados
lançam mão da traição, e não vacilar ante a morte de maneira ou forma alguma,
ou fabricar fábulas sobre as andanças de Isis e Osíris (deuses egípcios), as
conspirações de Tifon, a expulsão de Cronos[1],
com seus filhos devorados e seus parricídios? Sim, aqui temos sua sabedoria!
19. E por que
enquanto se riem da Cruz, não se maravilham da Ressurreição?
20. Pois os mesmos
que nos transmitiram um acontecimento escreveram também sobre o outro. Ou por
que enquanto se lembram da Cruz, nada têm que dizer sobre os mortos devolvidos
à vida, os cegos que recuperaram a vista, os paralíticos que foram curados e os
leprosos que foram limpos, o caminhar sobre as águas e os outros sinais e
milagres que mostram Cristo não como homem mas como Deus?
21. Em todo caso,
parece-me que vocês se enganam a si mesmos e que não têm nenhuma familiaridade
real com nossas Escrituras.
22. Leiam-nas,
porém, e vejam que tudo quando Cristo fez prova que era Deus que habitava
conosco para a salvação dos homens.
23. Mas falem-nos
também vocês sobre seus próprios ensinamentos. Que podem, porém dizer acerca de
coisas insensíveis senão insensatezes e barbaridades? Se entretanto, como ouço,
querem dizer que entre vocês tais coisas se falam em sentido figurado, e assim
convertem o rapto de Coré em alegoria da terra; a cólera de Hefestos, do sol, a
Hera, do ar; a Apolo do sol; a Artemísia, da lua, e a Poseidon, do mar, ainda
assim vocês não adoram o próprio Deus, mas servem à criatura em lugar de Deus
que tudo criou.
24. Se vocês
compuseram tais histórias porque a criação é bela, não deveriam ter ido além de
admirá-la, e não fazer das criaturas deuses para não dar às coisas criadas a
honra do Criador.
25. Nesse caso já
seria tempo de darem à casa construída a honra devida ao arquiteto, ou a honra
devida ao general, aos soldados. Agora, que têm que dizer a tudo isto? Assim
saberemos se a Cruz tem algo que sirva para escarnecer-se dela.
26. Eles estavam
desconcertados e davam voltas ao assunto de uma e de outra forma. Antão sorriu
e disse, de novo através de um intérprete [85]: "Só ao ver as coisas já se
tem a prova de tudo o que eu disse. Dado, porém, que vocês, supõe-se, confiam
absolutamente nas demonstrações, e isto é uma arte em que vocês são mestres, e
já que exigem de nós não adorar a Deus sem argumentos demonstrativos, digam-me
isto primeiro: Como se origina o conhecimento preciso das coisas, em especial o
conhecimento de Deus? É por uma demonstração verbal ou por um ato de fé?
27. E que vem primeiro:
o ato de fé ou a demonstração verbal?" Quando replicaram que o ato de fé
precede e que isto constitui um conhecimento exato, disse Antão: "Bem
respondido!
28. A fé surge da
disposição da alma, enquanto a dialética vem da habilidade dos que a idealizam.
De acordo com isto, os que possuem uma fé ativa não necessitam de argumentos de
palavras, e provavelmente os reputam supérfluos; pois o que apreendemos pela
fé, vocês cuidam construí-lo com argumentações e amiúde nem sequem podem
exprimir o que nós percebemos.
29. A conclusão é
que uma fé ativa é melhor e mais forte de que seus argumentos sofísticos.
30. Os cristãos, por
isso, possuímos o mistério, não baseando-nos na razão da sabedoria grega (cf 1
Cor 1,17), mas fundados no poder de uma fé que Deus nos garantiu por meio de
Jesus Cristo.
31. Pelo que toca à
verdade da explicação dada, notem como nós, iletrados, cremos em Deus reconhecendo
sua Providência a partir de suas obras.
32. E quanto a ser
nossa fé algo de efetivo, notem que nos apoiamos em nossa fé em Cristo,
enquanto vocês a baseiam em disputas ou palavras sofísticas; seus ídolos
fantasmas estão passando de moda, mas nossa fé se difunde em toda parte.
33. Com todos seus
silogismos e sofismas vocês não convertem ninguém do cristianismo ao paganismo,
mas nós, ensinando a fé em Cristo, estamos despojados os deuses do medo que
inspiravam, de modo que todos reconhecem Cristo como Deus e Filho de Deus.
34. Como toda sua
elegante retórica, vocês não impedem o ensinamento de Cristo, mas nós, à
simples menção do nome de Cristo crucificado, expulsamos os demônios que vocês
veneram como deuses. Onde aparece o sinal da Cruz, ali a magia e a feitiçaria
são impotentes e sem efeito.
35. Em verdade,
digam-nos, onde ficaram seus oráculos? Onde os encantamentos dos egípcios? Onde
estão suas ilusões e os fantasmas dos magos? Quando terminaram estas coisas e
perderam seu significado? Não foi acaso quando chegou a Cruz de Cristo? Por
isso, será ela que merece desprezo e não, antes, o que ela deitou abaixo,
demonstrando sua impotência?
36. Também é notável
o fato de que jamais a religião de vocês foi perseguida; ao contrário, em todas
as partes goza de honra entre os homens, mas os seguidores de Cristo são
perseguidos, e sem embargo é a nossa causa que floresce e prevalece e não a
sua.
37. Com toda a
tranquilidade e proteção do que goza, sua religião está morrendo, enquanto a fé
e o ensinamento de Cristo, desprezados pro vocês e frequentemente perseguidos
pelos governantes, encheram o mundo.
38. Em que tempo
resplandeceu tão brilhantemente o conhecimento de Deus? Ou em que tempo
apareceram a continência e a virtude da virgindade? Ou quando foi tão
desprezada a morte como quando chegou a Cruz de Cristo?
39. E ninguém duvida
disto ao ver os mártires que desprezam a morte por causa de Cristo, ou ao ver
as virgens da Igreja que por causa de Cristo guardam seus corpos puros e sem mancha.
40. Estas provas
bastam para demonstrar que a fé em Cristo é a única religião verdadeira. Aqui
porém estão vocês, que buscam conclusões baseadas no raciocínio, vocês que não
têm fé.
41. Nós não buscamos
provas, como diz nosso Mestre, 'com palavras persuasivas de sabedoria humana'(1
Cor, 2,4), mas persuadimos os homens pela fé que tangivelmente precede todo
raciocínio baseado em argumentos.
42. Vejam, aqui há
alguns que são atormentados pelos demônios". Estes eram gente que tinham vindo para vê-lo e
sofriam por causa dos demônios; fazendo-os adiantar-se, disse: "Pois bem,
curem-nos com seus silogismos ou com qualquer magia que desejem, invocando a
seus ídolos; ou então, se não podem , deixem de lutar contra nós e vejam o
poder da Cruz de Cristo".
43. Dito isto,
invocou a Cristo e fez sobre os enfermos o sinal da Cruz, repetindo a ação por
segunda e terceira vez. Imediatamente as pessoas se levantaram completamente
sãs, tendo-lhes voltado o uso da razão e dando graças ao Senhor.
44. Os assim
chamados filósofos estavam assombrados e realmente atônitos pela sagacidade do homem
e pelo milagre realizado. disse-lhes, porém, Antão: "Por que se maravilham
com isto? Não somos nós, mas Cristo quem age através do que Nele creem. Creiam
vocês também e verão que não é palavreado e sim fé que pela caridade opera para
Cristo (cf Gl 5,6); se vocês também abraçam isto, não necessitarão andar
buscando argumentos da razão, mas verão que a fé em Cristo é suficiente."
Assim falou a Antão.
45. Quando partiram,
admiraram-no, abraçaram-no e reconheceram que os havia ajudado.
O
que você destaca no texto e por quê?
Como
este texto serviu para sua espiritualidade?
O
que você destaca na fala de seu irmão/ã.
1. Kronos (o Saturno dos romanos). O mais jovem dos titãs,
filho de Gea e de Urano, a quem despojou do governo do universo. Casado com sua
irmã Rea, com ela reinou sobre o mundo. Segundo um oráculo, seria destronado
por um de seus filhos; para evitá-lo, devorava-os logo ao nascer. Por uma astúcia
de sua mãe Rea, pôde salvar-se Zeus que, chegando à idade adulta, declarou
guerra aos titãs e a seu pai, vencendo-os a todos.
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