Encontro 184
Atanásio de
Alexandria (285-373)
Sobre a Encarnação
(Capítulo 3)
CAPÍTULO III
A ENCARNAÇÃO DO VERBO, RESTAURAÇÃO
HUMANA CONFORME A IMAGEM DE DEUS E O DOM DO CONHECIMENTO SOBRENATURAL
1.
Quando
Deus, dominador do universo, por meio do Verbo criou o gênero humano, considerou
a fraqueza de sua natureza, incapaz de conhecer por si mesma o Criador, e até
de ter de Deus o mínimo conceito. De fato, Deus é incriado, os homens foram criados
do nada. Deus é incorpóreo e os homens foram dotados de corpo. Em resumo, é muito
grande a incapacidade da parte das criaturas de compreender e conhecer o
Criador.
2.
Deus
porém, em sua bondade, teve ainda compaixão do gênero humano, e não deixou os homens
privados deste conhecimento, a fim de não julgarem, por sua vez, inútil a existência.
3.
Com
efeito, de que valia terem sido criados, se desconhecessem o Criador? Ou como
os homens seriam dotados de razão, se não conhecessem o Verbo do Pai, por meio do
qual foram feitos? Não teriam vantagem alguma sobre os irracionais, se nada conhecessem
além das coisas terrestres. E por que Deus os teria criado, se não tivesse querido
dar-se a conhecer?
4.
Por
isso, a fim de evitar que tal acontecesse, em sua bondade, fê-los partícipes de
sua própria imagem (cf. Gn 1,26-27), nosso Senhor Jesus Cristo e criou-os a sua
imagem e semelhança. Desta forma, por meio de tal graça, conheceriam a imagem,
isto é, o Verbo do Pai, e poderiam por ele conceber a ideia do Pai. Esse
conhecimento de seu Criador faria com que vivessem verdadeiramente prósperos e
felizes.
5.
Uma
vez mais, contudo, os homens em sua loucura, desprezaram o dom recebido, afastaram-se
de Deus e mancharam a alma de tal sorte que não somente perderam a noção de
Deus, mas ainda forjaram outros deuses em substituição. Trocaram a verdade por
ídolos que fabricaram, preferiram o nada ao verdadeiro Deus, adoraram a
criatura em lugar do Criador (cf. Rm 1,25).
6.
Pior
ainda, transferiram as honras divinas a ídolos de madeira, de pedra, ou de
qualquer outra matéria, e até a seres humanos, e pior que isso, como
mencionamos acima.
7.
Tamanha
foi a impiedade que acabaram por adorar os demônios e denominá-los deuses,
prestando-se ao cumprimento de seus desejos. No intuito de agradar-lhes, como dissemos,
imolaram animais irracionais e sacrificaram vítimas humanas. Por eles instigados,
ficavam cada vez mais presos.
8.
É
certo que aprendiam deles a magia e a adivinhação enganava os homens segundo a
região. Atribuíam a causa do nascimento e da existência aos astros e seres
celestes, e não iam além das aparências.
9.
Em
resumo, tudo transbordava de impiedade e iniquidade. Somente Deus e o seu Verbo
eram desconhecidos. No entanto, ele jamais se escondera, invisível aos homens, nem
havia transmitido um meio só de se manifestar, mas multiplicara esses meios de várias
formas.
10. De fato, a graça
da imagem bastava para fazer conhecer o Verbo que é Deus e por ele o Pai. Deus,
porém, conhecia a fraqueza dos homens e supriu suas falhas de tal sorte que se
chegassem a deixar de procurá-lo por si mesmos, pudessem pelas obras da criação
não desconhecer o Criador.
11. Mas, tendo a
negligência humana descido paulatinamente aos piores excessos, Deus atendeu
ainda à fraqueza dos homens, dando-lhes a lei, enviando-lhes profetas (cf. Rm
3,21), facilmente reconhecíveis. Desta forma, se tivessem preguiça de erguer os
olhos ao céu e reconhecer o Criador, recebessem ensinamentos de mestres bem
próximos de si. Com efeito, os homens podem mais diretamente aprender de outros
homens a ciência das coisas melhores.
12. Por conseguinte,
podem, ao erguerem os olhos para a imensidade do céu e ponderarem a harmonia da
criação, conhecer o Verbo do Pai que tudo conduz, dá a todos o conhecimento de
seu Pai pela providência universal e move o universo a fim de que todos possam
por seu intermédio conhecer a Deus.
13. Ou se por preguiça
tal coisa fosse difícil demais, eles podiam procurar os santos e por meio deles
chegarem à notícia de Deus, demiurgo do universo, Pai do Cristo, e assim perceberem
que o culto dos ídolos constitui impiedade totalmente sacrílega.
14. Igualmente
tornou-se possível aos conhecedores da Lei pôr termo à impiedade e viver
virtuosamente. De fato, a Lei não pertencia apenas aos judeus, nem lhes haviam sido
enviados exclusivamente os profetas — enviados aos judeus, perseguidos por
eles, — mas para a terra inteira constituíram uma escola santa do conhecimento
de Deus e da vida espiritual.
15. Deste modo, apesar
de tamanha bondade e filantropia de Deus, os homens vencidos pelos prazeres
imediatos, as ilusões e seduções demoníacas, não se voltaram para a verdade,
mas se deixaram arrastar a males e pecados cada vez mais numerosos, a ponto de
não parecerem mais seres racionais, mas assemelharem-se pelos costumes aos irracionais.
16. Uma vez que os
homens haviam de tal modo perdido a razão e a sedução demoníaca tudo envolvera
de sombras, ocultando o conhecimento do verdadeiro Deus, que teria Deus de
fazer? Guardar silêncio diante de tal situação e deixar os homens, enganados
pelos demônios, ignorar a Deus?
17. Em tal caso,
porém, de que valia criar no começo o homem à imagem de Deus? Seria mister
simplesmente criá-lo privado da razão, ou, se fosse criado como ser inteligente,
não deixá-lo viver qual irracional.
18. Afinal, de que
servia dar-lhe desde o começo a noção de Deus? Se nem agora ele é digno de
recebê-la, não devia ter-lhe sido conferida desde o começo.
19. Que proveito
aufere Deus Criador e que glória recebe, se os homens por ele criados não o
adoram, mas pensam ter sido criados por outros deuses? Verificaria então Deus
que era para outros e não para si mesmo que os criara.
20. Além disso, um
rei, simples homem, não permite se sujeitem as cidades por ele fundadas a outro
rei, nem se refugiem junto de outros; mas adverte os súditos por cartas, envia-lhes
mensagens por intermédio de amigos e, se necessário, vai ele mesmo finalmente
incitá-los por sua presença. Tudo isso, apenas para que não sirvam a outro senhor
e não se inutilize sua obra.
21. Com maior razão,
Deus não poupará sua criatura, evitando que erre longe dele e se sujeite a
coisas que nada são? Tanto mais que tal erro causaria aos homens ruína e perda.
Entretanto, não deve perecer algo que alguma vez já tenha participado da imagem
de Deus.
22. Que seria então
necessário que Deus fizesse? Sim, que devia fazer, a não ser renovar o que era
segundo a imagem de Deus, a fim de que por meio dele os homens pudessem ainda
conhecer a Deus? E como se faria isso, a não ser pela presença da imagem do
próprio Deus, nosso Salvador Jesus Cristo?
23. De fato, tal coisa
não era viável aos homens, apesar de terem sido criados segundo a imagem. Nem
aos anjos, uma vez que eles não são imagens. Por isso, o Verbo de Deus veio ele
próprio, a fim de que, sendo a Imagem do Pai, possa re-criar o homem segundo a
imagem.
24. Além do mais, tal
fato não podia acontecer sem a destruição da morte e da corrupção.
25. Por conseguinte,
convinha que assumisse um corpo mortal a fim de aniquilar em si a morte e
renovar os homens segundo a imagem. Para tal, de nenhum outro precisava senão
da Imagem do Pai.
26. Se uma figura
traçada em madeira apagar-se devido a manchas provenientes de fora, a fim de
renovar a imagem sobre o mesmo material, precisa-se da presença daqueles cujos
traços foram figurados. Por causa da figura não se joga fora o material sobre o
qual fora traçada, mas restaura-se nela a imagem.
27. De igual modo, o
Filho santíssimo do Pai, Imagem do Pai, veio à terra a fim de renovar o homem
que fora feito de conformidade com ele, e a fim de recuperar o que estava
perdido, perdoando-lhe os pecados, conforme diz ele próprio nos evangelhos: “Vim
procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19,10). Também declarou aos judeus:
“Quem não renascer...” (Jo 3,5). Não aludia a nascimento de mulher, como
supunham os judeus, mas ao renascimento e restauração da alma segundo a Imagem.
28. Uma vez que a
loucura da idolatria e da impiedade dominavam a terra inteira, e o conhecimento
de Deus estava encoberto, a quem competia instruir a terra acerca do Pai? Dir-se-ia
que a um homem? Mas, seria impossível a qualquer dos homens ir por toda a terra
que existe sob o sol; não tinham eles naturalmente vigor para percorrer tudo,
nem a faculdade de se tornarem fidedignos a esse respeito. Não eram capazes de
se opor por si mesmos às seduções e invenções dos demônios.
29. Impressionados e
perturbados espiritualmente pelas seduções diabólicas e a vaidade dos ídolos,
de que modo teriam podido transformar a alma e a mente dos homens, se nem mesmo
podiam vê-las? Como converter o que não se vê?
30. Dir-se-ia que
bastava a criação. Mas, se a criação fosse suficiente, não teriam sucedido
tantos males. A cria-ção existia. No entanto, nem por isso os homens deixavam de
se envolver em erros acerca de Deus.
31. De que, repitamos,
tinham necessidade senão do Verbo de Deus que vê alma e espírito, move os seres
cria-dos e por eles torna conhecido seu Pai? A ele que, por sua própria providência
e pela ordem reinante no universo transmite o ensino sobre o Pai, cabia renovar
esta doutrina.
32. Como se faria
isso? Talvez se diga ser possível por meios idênticos, isto é, mostrando
novamente a Deus através das obras da criação. Mas isto ainda não oferecia muitas
garantias. Absolutamente não! Pois os homens já haviam menosprezado este meio.
Não fixavam o olhar no alto, e sim embaixo.
33. Assim, o Verbo,
querendo devidamente socorrer os homens devia residir na terra como homem,
tomar corpo semelhante ao deles, e agir através das coisas terrenas, isto é, por
obras corporais. Desta forma, os que não haviam querido reconhecê-lo por causa
de sua providência e seu domínio universais, reconheceriam pelas obras
corporais o Verbo de Deus encarnado, e por ele, o Pai.
34. Um bom mestre
cuida dos discípulos e aos que não podem auferir proveito das lições mais
difíceis, ele os instrui, em sua condescendência, por meio de ensinamentos mais
simples. Assim age o Verbo, segundo a palavra de Paulo: “Com efeito, visto que
o mundo por meio da sabedoria não reconheceu a Deus na sabedoria de Deus,
aprouve a Deus pela loucura da pregação salvar os que crêem” (1Cor 1,9.1).
35. Considerando que
os homens se haviam afastado da contemplação de Deus e de certo modo mergulhado
em profundo abismo, tinham os olhos dirigidos para baixo, procurando a Deus na
criação e nas realidades sensíveis, configurando de homens mortais e de
demônios seus deuses, por isso o Verbo de Deus, amigo dos homens e Salvador
comum de todos, assumiu corpo e viveu como homem no meio dos homens,
36. atraindo a si
todos os sentidos, a fim de que os que incluíam a Deus entre os seres corporais,
através das obras que o Senhor realizou corporalmente, conhecessem a verdade e
por intermédio dele pensassem no Pai.
37. Enquanto homens, que
refletiam apenas sobre realidades humanas, por toda parte onde aplicavam os
sentidos eram atraídos e viam que em todo lugar apreendiam a verdade.
38. Ou estavam tomados
de admiração pela criação, mas constatavam que ela também confessa o Cristo
Senhor, ou tinham certo preconceito a favor dos homens, a ponto de transformá-los
em deuses. Todavia, ao compararem as obras do Salvador às dos homens, viam que
nenhum deles, mas somente o Salvador é Filho de Deus, pois entre os homens não
existem obras semelhantes às realizadas pelo Verbo de Deus.
39. Tinham
preconceitos também acerca dos demô-nios; ao verificarem, contudo, que estes
eram expulsos pelo Senhor, reconheciam que ele somente é o Verbo de Deus, e que
os demônios não são deuses.
40. Se dominava em seu
espírito a lembrança dos mortos, a ponto de renderem culto aos heróis e aos que
os poetas denominam deuses, no entanto, vendo a ressurreição do Salvador, confessavam serem eles enganosos e
que o único Senhor verdadeiro é o Verbo de Deus, dominador da morte.
41. Para isso ele
nasceu, manifestou-se como homem, morreu e ressuscitou; por suas obras,
amorteceu e obscureceu tudo o que os homens jamais fizeram, para que, de todos os
lugares aonde os homens se sentissem atraídos, ele os reconduzisse e lhes
ensinasse qual o verdadeiro Pai, conforme ele mesmo disse: “Vim procurar e
salvar o que estava perdido”. (Lc 19,10)
42. Uma vez que o
espírito dos homens havia caído no domínio do sensível, o Verbo se abaixou até
se tornar corporalmente visível, a fim de atrair a si os homens enquanto homem
e fazer com que a sensibilidade humana se inclinasse para ele; de então em diante,
vê-lo-iam como homem, e suas obras os persuadiriam de que ele não é apenas homem,
mas Deus, Verbo, Sabedoria do Deus verdadeiro.
43. Paulo o dá a
entender, nesses termos: “Sejais arraigados e fundados no amor. Assim tereis
condições para compreender com todos os santos qual é a largura e o comprimento
e a altura e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo que excede a todo conhecimento,
para que sejais plenificados com toda a plenitude de Deus” (Ef 3,17-19).
44. O Verbo se
desdobra em todas as direções, para cima e para baixo, para as profundezas e
para a largura; para cima, isto é, a criação, para baixo, isto é, a encarnação,
para as profundezas, a saber, os infernos, para a largura, o mundo. Tudo está repleto
do conhecimento de Deus.
45. Por este motivo,
não foi desde o momento de sua vinda que ofereceu o sacrifício por nós,
entregando o corpo à morte, e ressuscitando-o; pois ter-se-ia tornado
invisível. Mas, mostrou-se corporalmente visível, permaneceu no corpo, realizou
obras e mostrou
46. milagres, que
revelavam não homem, mas o Verbo de Deus.
47. De duas maneiras,
o Verbo na encarnação demonstrou sua filantropia: de uma, fazia desaparecer a
morte e nos renovava, e de outra, absolutamente invisível como é, manifestava-se
pelas obras e dava-se a conhecer como o Verbo do Pai, chefe e rei do universo.
O que você destaca
no texto?
Como ele te
auxiliou em sua espiritualidade?