terça-feira, 28 de setembro de 2021

Encontro 184 - Atanásio de Alexandria (285-373) - Sobre a Encarnação (Capítulo 3)

 


Encontro 184

Atanásio de Alexandria (285-373)

Sobre a Encarnação (Capítulo 3)

 

 

CAPÍTULO III

A ENCARNAÇÃO DO VERBO, RESTAURAÇÃO HUMANA CONFORME A IMAGEM DE DEUS E O DOM DO CONHECIMENTO SOBRENATURAL

 

1.      Quando Deus, dominador do universo, por meio do Verbo criou o gênero humano, considerou a fraqueza de sua natureza, incapaz de conhecer por si mesma o Criador, e até de ter de Deus o mínimo conceito. De fato, Deus é incriado, os homens foram criados do nada. Deus é incorpóreo e os homens foram dotados de corpo. Em resumo, é muito grande a incapacidade da parte das criaturas de compreender e conhecer o Criador.

2.      Deus porém, em sua bondade, teve ainda compaixão do gênero humano, e não deixou os homens privados deste conhecimento, a fim de não julgarem, por sua vez, inútil a existência.

3.      Com efeito, de que valia terem sido criados, se desconhecessem o Criador? Ou como os homens seriam dotados de razão, se não conhecessem o Verbo do Pai, por meio do qual foram feitos? Não teriam vantagem alguma sobre os irracionais, se nada conhecessem além das coisas terrestres. E por que Deus os teria criado, se não tivesse querido dar-se a conhecer?

4.      Por isso, a fim de evitar que tal acontecesse, em sua bondade, fê-los partícipes de sua própria imagem (cf. Gn 1,26-27), nosso Senhor Jesus Cristo e criou-os a sua imagem e semelhança. Desta forma, por meio de tal graça, conheceriam a imagem, isto é, o Verbo do Pai, e poderiam por ele conceber a ideia do Pai. Esse conhecimento de seu Criador faria com que vivessem verdadeiramente prósperos e felizes.

5.      Uma vez mais, contudo, os homens em sua loucura, desprezaram o dom recebido, afastaram-se de Deus e mancharam a alma de tal sorte que não somente perderam a noção de Deus, mas ainda forjaram outros deuses em substituição. Trocaram a verdade por ídolos que fabricaram, preferiram o nada ao verdadeiro Deus, adoraram a criatura em lugar do Criador (cf. Rm 1,25).

6.      Pior ainda, transferiram as honras divinas a ídolos de madeira, de pedra, ou de qualquer outra matéria, e até a seres humanos, e pior que isso, como mencionamos acima.

7.      Tamanha foi a impiedade que acabaram por adorar os demônios e denominá-los deuses, prestando-se ao cumprimento de seus desejos. No intuito de agradar-lhes, como dissemos, imolaram animais irracionais e sacrificaram vítimas humanas. Por eles instigados, ficavam cada vez mais presos.

8.      É certo que aprendiam deles a magia e a adivinhação enganava os homens segundo a região. Atribuíam a causa do nascimento e da existência aos astros e seres celestes, e não iam além das aparências.

9.      Em resumo, tudo transbordava de impiedade e iniquidade. Somente Deus e o seu Verbo eram desconhecidos. No entanto, ele jamais se escondera, invisível aos homens, nem havia transmitido um meio só de se manifestar, mas multiplicara esses meios de várias formas.

10.  De fato, a graça da imagem bastava para fazer conhecer o Verbo que é Deus e por ele o Pai. Deus, porém, conhecia a fraqueza dos homens e supriu suas falhas de tal sorte que se chegassem a deixar de procurá-lo por si mesmos, pudessem pelas obras da criação não desconhecer o Criador.

11.  Mas, tendo a negligência humana descido paulatinamente aos piores excessos, Deus atendeu ainda à fraqueza dos homens, dando-lhes a lei, enviando-lhes profetas (cf. Rm 3,21), facilmente reconhecíveis. Desta forma, se tivessem preguiça de erguer os olhos ao céu e reconhecer o Criador, recebessem ensinamentos de mestres bem próximos de si. Com efeito, os homens podem mais diretamente aprender de outros homens a ciência das coisas melhores.

12.  Por conseguinte, podem, ao erguerem os olhos para a imensidade do céu e ponderarem a harmonia da criação, conhecer o Verbo do Pai que tudo conduz, dá a todos o conhecimento de seu Pai pela providência universal e move o universo a fim de que todos possam por seu intermédio conhecer a Deus.

13.  Ou se por preguiça tal coisa fosse difícil demais, eles podiam procurar os santos e por meio deles chegarem à notícia de Deus, demiurgo do universo, Pai do Cristo, e assim perceberem que o culto dos ídolos constitui impiedade totalmente sacrílega.

14.  Igualmente tornou-se possível aos conhecedores da Lei pôr termo à impiedade e viver virtuosamente. De fato, a Lei não pertencia apenas aos judeus, nem lhes haviam sido enviados exclusivamente os profetas — enviados aos judeus, perseguidos por eles, — mas para a terra inteira constituíram uma escola santa do conhecimento de Deus e da vida espiritual.

15.  Deste modo, apesar de tamanha bondade e filantropia de Deus, os homens vencidos pelos prazeres imediatos, as ilusões e seduções demoníacas, não se voltaram para a verdade, mas se deixaram arrastar a males e pecados cada vez mais numerosos, a ponto de não parecerem mais seres racionais, mas assemelharem-se pelos costumes aos irracionais.

16.  Uma vez que os homens haviam de tal modo perdido a razão e a sedução demoníaca tudo envolvera de sombras, ocultando o conhecimento do verdadeiro Deus, que teria Deus de fazer? Guardar silêncio diante de tal situação e deixar os homens, enganados pelos demônios, ignorar a Deus?

17.  Em tal caso, porém, de que valia criar no começo o homem à imagem de Deus? Seria mister simplesmente criá-lo privado da razão, ou, se fosse criado como ser inteligente, não deixá-lo viver qual irracional.

18.  Afinal, de que servia dar-lhe desde o começo a noção de Deus? Se nem agora ele é digno de recebê-la, não devia ter-lhe sido conferida desde o começo.

19.  Que proveito aufere Deus Criador e que glória recebe, se os homens por ele criados não o adoram, mas pensam ter sido criados por outros deuses? Verificaria então Deus que era para outros e não para si mesmo que os criara.

20.  Além disso, um rei, simples homem, não permite se sujeitem as cidades por ele fundadas a outro rei, nem se refugiem junto de outros; mas adverte os súditos por cartas, envia-lhes mensagens por intermédio de amigos e, se necessário, vai ele mesmo finalmente incitá-los por sua presença. Tudo isso, apenas para que não sirvam a outro senhor e não se inutilize sua obra.

21.  Com maior razão, Deus não poupará sua criatura, evitando que erre longe dele e se sujeite a coisas que nada são? Tanto mais que tal erro causaria aos homens ruína e perda. Entretanto, não deve perecer algo que alguma vez já tenha participado da imagem de Deus.

22.  Que seria então necessário que Deus fizesse? Sim, que devia fazer, a não ser renovar o que era segundo a imagem de Deus, a fim de que por meio dele os homens pudessem ainda conhecer a Deus? E como se faria isso, a não ser pela presença da imagem do próprio Deus, nosso Salvador Jesus Cristo?

23.  De fato, tal coisa não era viável aos homens, apesar de terem sido criados segundo a imagem. Nem aos anjos, uma vez que eles não são imagens. Por isso, o Verbo de Deus veio ele próprio, a fim de que, sendo a Imagem do Pai, possa re-criar o homem segundo a imagem.

24.  Além do mais, tal fato não podia acontecer sem a destruição da morte e da corrupção.

25.  Por conseguinte, convinha que assumisse um corpo mortal a fim de aniquilar em si a morte e renovar os homens segundo a imagem. Para tal, de nenhum outro precisava senão da Imagem do Pai.

26.  Se uma figura traçada em madeira apagar-se devido a manchas provenientes de fora, a fim de renovar a imagem sobre o mesmo material, precisa-se da presença daqueles cujos traços foram figurados. Por causa da figura não se joga fora o material sobre o qual fora traçada, mas restaura-se nela a imagem.

27.  De igual modo, o Filho santíssimo do Pai, Imagem do Pai, veio à terra a fim de renovar o homem que fora feito de conformidade com ele, e a fim de recuperar o que estava perdido, perdoando-lhe os pecados, conforme diz ele próprio nos evangelhos: “Vim procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19,10). Também declarou aos judeus: “Quem não renascer...” (Jo 3,5). Não aludia a nascimento de mulher, como supunham os judeus, mas ao renascimento e restauração da alma segundo a Imagem.

28.  Uma vez que a loucura da idolatria e da impiedade dominavam a terra inteira, e o conhecimento de Deus estava encoberto, a quem competia instruir a terra acerca do Pai? Dir-se-ia que a um homem? Mas, seria impossível a qualquer dos homens ir por toda a terra que existe sob o sol; não tinham eles naturalmente vigor para percorrer tudo, nem a faculdade de se tornarem fidedignos a esse respeito. Não eram capazes de se opor por si mesmos às seduções e invenções dos demônios.

29.  Impressionados e perturbados espiritualmente pelas seduções diabólicas e a vaidade dos ídolos, de que modo teriam podido transformar a alma e a mente dos homens, se nem mesmo podiam vê-las? Como converter o que não se vê?

30.  Dir-se-ia que bastava a criação. Mas, se a criação fosse suficiente, não teriam sucedido tantos males. A cria-ção existia. No entanto, nem por isso os homens deixavam de se envolver em erros acerca de Deus.

31.  De que, repitamos, tinham necessidade senão do Verbo de Deus que vê alma e espírito, move os seres cria-dos e por eles torna conhecido seu Pai? A ele que, por sua própria providência e pela ordem reinante no universo transmite o ensino sobre o Pai, cabia renovar esta doutrina.

32.  Como se faria isso? Talvez se diga ser possível por meios idênticos, isto é, mostrando novamente a Deus através das obras da criação. Mas isto ainda não oferecia muitas garantias. Absolutamente não! Pois os homens já haviam menosprezado este meio. Não fixavam o olhar no alto, e sim embaixo.

33.  Assim, o Verbo, querendo devidamente socorrer os homens devia residir na terra como homem, tomar corpo semelhante ao deles, e agir através das coisas terrenas, isto é, por obras corporais. Desta forma, os que não haviam querido reconhecê-lo por causa de sua providência e seu domínio universais, reconheceriam pelas obras corporais o Verbo de Deus encarnado, e por ele, o Pai.

34.  Um bom mestre cuida dos discípulos e aos que não podem auferir proveito das lições mais difíceis, ele os instrui, em sua condescendência, por meio de ensinamentos mais simples. Assim age o Verbo, segundo a palavra de Paulo: “Com efeito, visto que o mundo por meio da sabedoria não reconheceu a Deus na sabedoria de Deus, aprouve a Deus pela loucura da pregação salvar os que crêem” (1Cor 1,9.1).

35.  Considerando que os homens se haviam afastado da contemplação de Deus e de certo modo mergulhado em profundo abismo, tinham os olhos dirigidos para baixo, procurando a Deus na criação e nas realidades sensíveis, configurando de homens mortais e de demônios seus deuses, por isso o Verbo de Deus, amigo dos homens e Salvador comum de todos, assumiu corpo e viveu como homem no meio dos homens,

36.  atraindo a si todos os sentidos, a fim de que os que incluíam a Deus entre os seres corporais, através das obras que o Senhor realizou corporalmente, conhecessem a verdade e por intermédio dele pensassem no Pai.

37.  Enquanto homens, que refletiam apenas sobre realidades humanas, por toda parte onde aplicavam os sentidos eram atraídos e viam que em todo lugar apreendiam a verdade.

38.  Ou estavam tomados de admiração pela criação, mas constatavam que ela também confessa o Cristo Senhor, ou tinham certo preconceito a favor dos homens, a ponto de transformá-los em deuses. Todavia, ao compararem as obras do Salvador às dos homens, viam que nenhum deles, mas somente o Salvador é Filho de Deus, pois entre os homens não existem obras semelhantes às realizadas pelo Verbo de Deus.

39.  Tinham preconceitos também acerca dos demô-nios; ao verificarem, contudo, que estes eram expulsos pelo Senhor, reconheciam que ele somente é o Verbo de Deus, e que os demônios não são deuses.

40.  Se dominava em seu espírito a lembrança dos mortos, a ponto de renderem culto aos heróis e aos que os poetas denominam deuses, no entanto, vendo a ressurreição do  Salvador, confessavam serem eles enganosos e que o único Senhor verdadeiro é o Verbo de Deus, dominador da morte.

41.  Para isso ele nasceu, manifestou-se como homem, morreu e ressuscitou; por suas obras, amorteceu e obscureceu tudo o que os homens jamais fizeram, para que, de todos os lugares aonde os homens se sentissem atraídos, ele os reconduzisse e lhes ensinasse qual o verdadeiro Pai, conforme ele mesmo disse: “Vim procurar e salvar o que estava perdido”. (Lc 19,10)

42.  Uma vez que o espírito dos homens havia caído no domínio do sensível, o Verbo se abaixou até se tornar corporalmente visível, a fim de atrair a si os homens enquanto homem e fazer com que a sensibilidade humana se inclinasse para ele; de então em diante, vê-lo-iam como homem, e suas obras os persuadiriam de que ele não é apenas homem, mas Deus, Verbo, Sabedoria do Deus verdadeiro.

43.  Paulo o dá a entender, nesses termos: “Sejais arraigados e fundados no amor. Assim tereis condições para compreender com todos os santos qual é a largura e o comprimento e a altura e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo que excede a todo conhecimento, para que sejais plenificados com toda a plenitude de Deus” (Ef 3,17-19).

44.  O Verbo se desdobra em todas as direções, para cima e para baixo, para as profundezas e para a largura; para cima, isto é, a criação, para baixo, isto é, a encarnação, para as profundezas, a saber, os infernos, para a largura, o mundo. Tudo está repleto do conhecimento de Deus.

45.  Por este motivo, não foi desde o momento de sua vinda que ofereceu o sacrifício por nós, entregando o corpo à morte, e ressuscitando-o; pois ter-se-ia tornado invisível. Mas, mostrou-se corporalmente visível, permaneceu no corpo, realizou obras e mostrou

46.  milagres, que revelavam não homem, mas o Verbo de Deus.

47.  De duas maneiras, o Verbo na encarnação demonstrou sua filantropia: de uma, fazia desaparecer a morte e nos renovava, e de outra, absolutamente invisível como é, manifestava-se pelas obras e dava-se a conhecer como o Verbo do Pai, chefe e rei do universo.

 

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quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Encontro 183 - Atanásio de Alexandria (285-373) - Sobre a Encarnação (Capítulo 2)

 



Encontro 183

Atanásio de Alexandria (285-373)

Sobre a Encarnação (Capítulo 2)

 

 

CAPÍTULO II

A ENCARNAÇÃO DO VERBO, VITÓRIA SOBRE A MORTE E O DOM DA INCORRUPTIBILIDADE

 

1.      Por esta razão, o Verbo de Deus incorpóreo, incorruptível, imaterial veio a nossa terra, embora dela não estivesse longe anteriormente (cf. At 17,27). De fato, ele não abandonou parte alguma da criação, mas tudo enche, permanecendo, contudo, unido ao Pai (cf. Ef 4,6-10). Mas, vem por condescendência, favorecendo-nos com sua filantropia e manifestação.

2.      Vendo que o gênero humano racional se perde, e a corrupção da morte reina sobre ele; que a ameaça de Deus contra a transgressão conserva toda a força da corrupção contra nós, e seria inconveniente fosse a lei abolida antes de se ter cumprido; vendo ser inadequado fossem destruídas as obras de que ele é o demiurgo; vendo a maldade dos homens se tornar excessiva, e pouco a pouco ir aumentando, contra eles próprios, até se fazer intolerável; vendo todos os homens sujeitos à morte, ele teve piedade de nossa raça e misericórdia de nossa fraqueza; condescendeu com nossa corrupção e não suportou que a morte dominasse sobre nós, a fim não perecer a criatura nem se inutilizar a obra realizada por seu Pai, em benefício dos homens. O Verbo tomou, por isso, um corpo igual ao nosso.

3.      Pois, não quis apenas estar num corpo, nem quis somente aparecer. Efetivamente, teria podido, se quisesse, apenas aparecer, ou realizar esta teofania através de um ser mais poderoso que o homem. Assumiu, no entanto, um corpo como o nosso e não o fez simplesmente, mas o quis nascido de uma virgem sem pecado, imaculada, intacta. Era puro (cf. 1Pd 1,18) o corpo, inteiramente alheio a qualquer união humana. Sendo poderoso e demiurgo do universo, na virgem para si edificou (cf. Hb 9,24) qual um templo, um corpo. Dele se apropriou, fê-lo um instrumento para se dar a conhecer e onde habitar.

4.      E assim, de algo que é nosso, tomou um corpo semelhante ao nosso, e como todos estamos sujeitos à corrupção da morte, ele o entregou à morte, em prol de todos, apresentando-o ao Pai. Agiu desta maneira por filantropia. Desta maneira, uma vez que todos nele morrem, a sentença de corrupção proferida contra os homens será ab-rogada, após ter sido inteiramente consumada no corpo do Senhor. De agora em diante não mais maltratará os homens, seus semelhantes. Ele reconduzirá à incorruptibilidade os homens que se haviam voltado à corrupção, vivificá-los-á, tirando-os da morte. Pela apropriação de corpo humano e pela graça da ressurreição, fará desaparecer, longe deles, a morte, qual palha no fogo.

5.      O Verbo, portanto, compreendia que a corrupção dos homens de forma alguma poderia ser destruída, a não ser pela morte. Mas, era impossível que o Verbo morresse por ser imortal, ele, do Pai o Filho. Por isso, assume corpo mortal, a fim de que este, partícipe do Verbo, superior a tudo, seja capaz de morrer por todos, e graças ao Verbo que nele habita, permaneça incorruptível e doravante faça cessar em todos a corrupção pela graça da ressurreição.

6.      Por conseguinte, qual sacrifício e vítima imaculada, oferece à morte o corpo que assumiu, e logo faz desaparecer a morte de todos os corpos idênticos ao seu, através da oferta de vítima correspondente.

7.      É justo que o Verbo de Deus, superior a todos, ao oferecer seu corpo, templo e instrumento, qual resgate por todos, solva nossa dívida por sua morte.

8.      Deste modo, unido a todos os homens pelo corpo semelhante ao deles, o Filho incorruptível de Deus pode justamente a todos os homens revestir da incorruptibilidade (1Cor 15,54), segundo a promessa da ressurreição. E a própria corrupção da morte não vigora mais contra os homens, por causa do Verbo que entre eles habita, através de corpo individual.

9.      Se um grande rei entra numa cidade importante e habita uma de suas casas, esta cidade se considera honrada em extremo. De então em diante, nem inimigos, nem bandidos avançam para devastá-la; ao contrário é tida por merecedora de todas as atenções, por causa do rei que habita somente uma das casas. Igualmente acontece com o rei do universo.

10.  Veio à nossa terra e habitou corpo semelhante ao nosso. Cessaram com isso as maquinações dos inimigos contra os homens, desapareceu a corrupção da morte que há muito prevalecia. O gênero humano teria perecido completamente se o Filho de Deus, Senhor e Salvador do universo, não viesse pôr termo à morte.

11.  Verdadeiramente essa grande obra adaptava-se por excelência à bondade de Deus. Se um grande rei construiu uma casa ou cidade, e esta por negligência dos habitantes é atacada por bandidos, ele de forma alguma a abandona, mas a defende e protege como obra sua, não levando em conta a negligência dos habitantes, mas a própria dignidade.

12.  Com maior razão, Deus, Verbo do Pai, tão bom, constatando que o gênero humano, criatura sua, caíra na corrupção, não o abandonou; mas pela oferta do próprio corpo, eliminou a morte que se lhes apegara, corrigiu as negligências deles através de sua doutrina, e por seu poder restaurou todo o gênero humano.

13.  Disso podemos nos convencer lendo os escritos dos teólogos enviados pelo Salvador, em que se diz: “Pois a caridade de Cristo nos compele, quando consideramos que um só morreu por todos e que, por conseguinte, todos morreram. Ora, ele morreu por todos, a fim de que os que vivem não vivam mais para si, mas para aquele quemorreu e ressuscitou por eles” (2Cor 5,14s) dos mortos, nosso Senhor Jesus Cristo.

14.  E ainda: “Vemos, todavia, Jesus, que foi feito, por um pouco, menor que os anjos, por causa dos sofrimentos da morte, coroado de honra e de glória. É que pela graça de Deus ele provou a morte em favor de todos os homens” (Hb 2,9).

15.  Em seguida, a Escritura indica por que nenhum outro devia se encarnar, a não ser o Verbo de Deus: “Convinha, de fato, que aquele por quem e para quem todas as coisas existem, conduzindo muitos filhos à glória, levasse à perfeição, por meio dos sofrimentos, o autor da salvação deles” (Hb 2,10). Desta forma, ela assinala não competir a nenhum outro, a não ser ao Verbo de Deus, que fizera os homens no começo, livrá-los da corrupção que lhes sobreviera.

16.  O Verbo assumiu corpo, a fim de oferecê-lo em sacrifício em favor dos corpos semelhantes ao seu. Isso ensinam as Escrituras, ao dizer: “Uma vez que os filhos têm em comum carne e sangue, por isso também ele participou da mesma condição, a fim de destruir pela morte o dominador da morte, isto é, o diabo; e libertar os que passaram toda a vida em estado de servidão, pelo temor da morte” (Hb 2,14-15).

17.  Com efeito, pelo sacrifício de seu próprio corpo, ele pôs termo à lei que pesava sobre nós, renovou-nos o princípio da vida, deu-nos a esperança da ressurreição. Pois, se por meio dos homens a morte os dominou, em compensação, pela encarnação do Verbo de Deus, a morte foi destruída e a vida surgiu novamente, segundo afirma o Apóstolo, portador de Cristo: “Com efeito, visto que a morte veio por um homem, também por um homem vem a ressurreição dos mortos. Pois, assim como todos morrem em Adão, em Cristo todos receberão a vida etc.” (1Cor 15,14-15).

18.  Agora não morremos mais como condenados, e sim, devendo despertar dentre os mortos, esperamos a universal ressurreição, a qual Deus nos mostrará em “tempo oportuno” (cf. 1Tm 6,15) ele que a operou e com ela nos agraciou.

19.  É a primeira causa da encarnação do Salvador. Aprendamos também em seguida quanto foi justificada sua benevolente vinda até nós.

 

 

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terça-feira, 14 de setembro de 2021

Encontro 182

 


Encontro 182

Atanásio de Alexandria (285-373)

Sobre a Encarnação (Capítulo 1)

CAPÍTULO I

OS ANTECEDENTES DA ENCARNAÇÃO DO VERBO: CRIAÇÃO E QUEDA DO HOMEM

1.      Muitas e diversas foram as explicações a respeito da produção do mundo e da criação do universo. Cada qual a descreve a seu bel-prazer. Uns pretendem ter sido produzido espontânea e fortuitamente; assim os epicureus que inventam não haver providência, e se exprimem de forma contrária a toda evidência.

2.      Se, conforme sua opinião, tudo foi resultado de geração espontânea e fora da atuação da providência, forçosamente os seres todos seriam por inteiro semelhantes, sem diferença alguma. Então, se houvesse um só corpo celeste, seria todo sol ou lua, e no homem, o corpo inteiro devia ser mão, olho ou pé. No entanto, assim não é, e vemos de um lado o sol e de outro a lua ou a terra; igualmente no corpo humano, distinguem-se o pé, a mão, a cabeça. Essa distribuição leva-nos a compreender que não existe geração espontânea. Demonstra ter uma causa presidido à origem dos seres. Daí chegamos a entender que Deus distribuiu e criou todas as coisas.

3.      Outros, entre os quais Platão, tão grande entre os gregos, opinam que Deus fez o mundo, tomando como ponto de partida matéria preexistente e ingênita; Deus nada teria podido fazer sem esta matéria preexistente, da mesma forma que o carpinteiro necessita de madeira para poder trabalhar.

4.      Ao se exprimirem deste modo, não sabem que atribuem fraqueza a Deus. Efetivamente, se ele não é autor da matéria, mas tudo faz de matéria preexistente, mostra-se fraco, visto que sem ela é incapaz de fabricar seja o que for, como seria incapacidade no carpinteiro, sem dúvida alguma, não conseguir fabricar objetos necessários se não dispuser de madeira.

5.      Segundo tal hipótese, se não existisse matéria, Deus nada teria feito. E como se diria ser ele o Criador e o demiurgo, se a possibilidade de criar dependesse de outra coisa, isto é, da matéria? Se assim fosse, Deus seria apenas artífice e não Criador que dá o ser, uma vez que trabalharia a matéria dada, e não seria a própria causa desta matéria. Numa palavra, não se pode afirmar que é Criador, se não cria a matéria da qual provém as criaturas.

6.      Os hereges imaginam um demiurgo diferente do Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, dando provas de extrema cegueira em suas asserções. Pois quando o Senhor disse aos judeus: “Não lestes que desde o princípio o Criador os fez homem e mulher? e que disse: Por isso o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher e os dois serão uma só carne?” (Mt 19,4a). Em seguida assinala o Criador, nesses termos: “Portanto, que o homem não separe o que Deus uniu” (Mt 19,4s). Como supor uma criação alheia ao Pai? São João resume tudo numa só palavra: “Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito” (Jo 1,3). Como haveria outro demiurgo além do Pai de Cristo?

7.      São estes os seus mitos; o ensinamento divino, porém, e a fé em Cristo rejeitam, qual impiedade, esses vãos discursos. Não foi espontaneamente, por falta de providência, que nasceram os seres, nem de matéria preexistente, devido a fraqueza em Deus, mas do nada Deus por seu Verbo criou e trouxe à existência todo o universo, antes inexistente.

8.      Como disse Moisés: “No princípio, Deus criou o céu e a terra” (Gn 1,1) e o utilíssimo livro do Pastor: “Antes de tudo, crê haver um só Deus, que criou e organizou o universo e fez existir o que não era”. Paulo também o indica: “Foi pela fé que compreendemos que os mundos foram organizados pela Palavra de Deus. Por isso é que o mundo visível não tem a sua origem em coisas manifestas” (Hb 11,3).

9.      Ora, Deus é bom, ou antes, é a fonte de toda bondade, e quem é bom a ninguém pode odiar. Por conseguinte, a ninguém recusaria invejosamente a existência. Criou do nada todas as coisas por meio de seu próprio Verbo, nosso Senhor Jesus Cristo.

10.  Apiedou-se mais do gênero humano do que dos demais seres existentes na terra, e vendo que ele era incapaz, pela lei de sua própria natureza, de subsistir para sempre, concedeu-lhe algo mais; não se contentou com criar os homens, conforme fizera a todos os animais irracionais da terra, mas criou-os à sua imagem, fazendo-os partícipes do poder de seu próprio Verbo.

11.  Assim, possuindo uma espécie de sombra do Verbo, e sendo racionais, os homens poderiam permanecer na bem-aventurança, vivendo no paraíso a verdadeira vida, que realmente possuem os santos. Além disso, ciente de que o livre-arbítrio do homem inclina-se num ou noutro sentido, adiantou-se, e consolidou pela lei e em determinado lugar, a graça que já lhe havia outorgado. Introduziu-o, efetivamente, no paraíso e impôs-lhe uma lei.

12.  Se os homens conservassem a graça, permanecendo na virtude, teriam no paraíso vida isenta de tristeza, dor, preocupações, além da imortalidade prometida nos céus. Se, ao invés, transgredissem essa lei e dela se desviando se pervertessem, ficassem sabendo que, de conformidade com a sua própria natureza, esperava-os a corrupção da morte, deixariam de viver no paraíso, sendo dali expulsos para morrer e ficariam doravante sujeitos à morte e à corrupção.

13.  A Sagrada Escritura o assinala previamente, referindo a palavra de Deus: “Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres terás de morrer” (Gn 2,16.17). “Terás de morrer” não significa apenas: Morrereis, mas permanecereis sujeitos à corrupção e à morte.

14.  Possivelmente ficarás admirado de que, ao nos propormos falar da encarnação do Verbo, tratemos agora da origem do homem. Entretanto, o assunto não é estranho à finalidade de nossa exposição.

15.  De fato, ao nos referirmos à ação do Senhor entre nós, necessariamente temos de falar também da origem do homem. Assim, ficarás ciente de ter sido nossa condição o motivo de sua descida, e de que a transgressão atraiu a filantropia do Verbo, de sorte que o Senhor veio e apareceu entre os homens.

16.  O homem foi o motivo da encarnação, e por sua salvação, o Verbo amou o homem até nascer e manifestar-se com um corpo.

17.  Por conseguinte, Deus criou o homem, e queria para ele incorruptibilidade perdurável. Mas, os homens por negligência, abandonaram a contemplação de Deus, e conforme afirmamos no primeiro livro, conceberam e imaginaram a maldade. Por isso foi proferida a sentença de morte de que tinham sido ameaçados, e de então em diante cessaram de subsistir tais quais haviam sido feitos; corromperam-se em seus pensamentos e a morte subjugou-os, reinando sobre eles. A transgressão do mandamento os reconduziu ao seu estado natural, e assim como haviam passado do nada ao ser, era justo que doravante fossem sujeitos no decurso do tempo à corrupção, propensa ao nada.

18.  Uma vez que antes nada eram por natureza, e a presença e a filantropia do Verbo os chamou ao ser, consequentemente, alheios ao pensamento de Deus, e voltados para o nada (pois o mal é não-ser, e o bem é ser, saído das mãos de Deus, que é), os homens foram privados do ser, que seria eterno. Isto é o que significa, dissolvido o composto humano, permanecer na morte e na corrupção.

19.  Com efeito, por natureza o homem é mortal, pois foi feito do nada. Mas, se tivesse, pela contemplação de Deus, conservado a semelhança com aquele que é, teria diminuído a força da corrupção natural e se conservado incorruptível, conforme assevera a Sabedoria: “O respeito das leis é garantia de incorruptibilidade” (Sb 6,18). E sendo incorruptível, teria no futuro vivido como Deus, segundo o indica certa passagem da Sagrada Escritura: “Eu declarei: ‘Vós sois deuses, todos vós sois filhos do Altíssimo;

20.  contudo, morrereis como homem qualquer, caireis como qualquer dos príncipes’ ” (Sl 82,6-7).

21.  Ora, Deus não apenas nos tirou do nada, mas pela graça do Verbo, fez-nos viver segundo Deus. Os homens, contudo, se desviaram dos bens eternos, e por instigação do diabo voltaram-se para as coisas corruptíveis, tornando-se deste modo para si mesmos causa de morte. Conforme acima assegurei, eram por natureza corruptíveis, mas pela graça da participação do Verbo, teriam escapado desta condição natural, se tivessem permanecido bons.

22.  Com efeito, pela presença do Verbo, a corrupção natural não os teria tocado, como afirma a Sabedoria: “Deus criou o homem para a incorruptibilidade e o fez imagem de sua própria eternidade; é por inveja do diabo que a morte entrou no mundo” (Sb 2,23-78). Por conseguinte, os homens morreram e a corrupção desencadeou contra eles desde então toda a sua força; teve contra o gênero humano forças superiores às da natureza, tanto mais que podia apresentar contra eles o veredicto divino que pesava sobre a transgressão do mandamento.

23.  Os homens, contudo, ao pecarem, não se detiveram em certos limites, mas avançando pouco a pouco, ultrapassaram finalmente qualquer medida. No começo, inventaram o mal e invocaram contra si a morte e a corrupção. Em seguida, se desviaram para a injustiça e superaram toda espécie de iniquidade. Não se limitaram a um só pecado, mas inventaram sempre novos delitos de acréscimo, tornando-se insaciáveis relativamente ao pecado.

24.  Difundiram-se adultérios e roubos e toda a terra se encheu de morticínios e rapinas. Com a lei, ninguém se preocupava, no atinente à corrupção e à injustiça. Todos, individualmente e em comum, cometiam toda espécie de pecados. Cidades guerreavam entre si, nações se insurgiam contra nações, a terra estava dilacerada por sedições e batalhas; todos rivalizavam em iniquidade.

25.  Nem mesmo se abstinham do que é contra a natureza, conforme afirma o Apóstolo, testemunha de Cristo: “Suas mulheres mudaram as relações naturais por relações contra a natureza; igualmente os homens, deixando a relação natural com a mulher, arderam em desejo uns para com os outros, praticando torpezas homens com homens e recebendo em si mesmos a paga de sua aberração” (Rm 1,26-27).

26.  Ora, a morte exercia cada vez mais seu poder e a corrupção subsistia no meio dos homens. Desta forma, o gênero humano encaminhava-se para a perda. O homem racional, criado à imagem do Verbo, desaparecia e a obra de Deus ia se arruinando.

27.  Efetivamente, como disse, por causa da lei, a morte continuava devastadora; impossível eliminar a sanção promulgada por Deus, por causa da transgressão. Era, de fato, absurdo e ao mesmo tempo inconveniente o que sucedia.

28.  Seria incoerente que a palavra de Deus mentisse no caso de que, promulgada com toda certeza a lei de morte para o homem transgressor do preceito, este não morresse após a transgressão, mas ficasse sem efeito a sentença divina. Deus não seria verídico, se após ter declarado que haveríamos de morrer, de fato não morrêssemos.

29.  Por outro lado, não convinha que, uma vez criados, seres racionais e partícipes do próprio Verbo perecessem e, corrompidos, voltassem ao nada.

30.  Era incompatível com a bondade de Deus (cf. Rm 2,4s) que seres por ele criados fossem destruídos porque o diabo os havia enganado.

31.  Aliás, teria sido de todo indigno fosse a arte empregada por Deus ao criar os homens destruída pela negligência destes, aliada à ilusão dos demônios.

32.  Então, o que faria Deus, que é bom, uma vez que seres racionais pereciam e as obras divinas se precipitavam na ruína? Deixar a corrupção prevalecer sobre eles e a morte dominá-los? Mas, então, que necessidade havia de criá-los no começo? Era preferível não ser do que ser e perecer por abandono.

33.  Se Deus se descuidasse, deixando perecer a obra que criara, manifestaria mais fraqueza do que bondade, bem mais do que se não houvesse criado o homem no princípio.

34.  Se não houvesse criado, não estaria em causa sua fraqueza; mas visto que criou o homem, deu-lhe o ser, teria sido completamente absurdo permitir que perecesse sua obra, sobretudo diante dos olhos do Criador.

35.  Por conseguinte, não convinha deixar os homens serem arrebatados pela corrupção, por ser isto impróprio e indigno da bondade de Deus.

36.  Como, porém, devia ser assim, era também oportuno, ao invés, manter o princípio da veracidade de Deus na legislação sobre a morte. Seria impensável que, para nossa utilidade e conservação, Deus, Pai da verdade, se mostrasse mentiroso.

37.  Que devia, pois, acontecer? Que faria Deus? Exigir dos homens arrependimento da transgressão? Poder-se-ia afirmar ser isto digno de Deus. Da mesma forma que haviam os homens passado da transgressão à corrupção, voltassem do arrependimento à incorruptibilidade.

38.  Mas, o arrependimento não salvaguardaria o que a Deus convinha; pois, uma vez mais, ele não continuaria verídico se os homens não ficassem sob o poder da morte. Além disso, o arrependimento não liberta das condições naturais, mas apenas põe termo aos pecados.

39.  Se, portanto, fosse apenas a falta, sem a consequente corrupção, o arrependimento bastaria. Mas, uma vez que a transgressão adiantou-se e os homens se achavam sob o poder da corrupção devido a sua natureza, e privados da graça da conformidade com a imagem, que fazer ainda? De que precisavam os homens, senão do Verbo de Deus, que antes do começo criara todas as coisas do nada, a fim de obterem tal graça e restauração?

40.  Competia-lhe reconduzir o corruptível à incorrupção, e salvar o que convinha ao Pai em todas as coisas. Ele, o Verbo de Deus, acima de tudo, era o único, portanto, capaz de refazer todas as coisas, de sofrer por todos, de ser em favor de todos digno embaixador junto do Pai.

 

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