domingo, 31 de outubro de 2021

Encontro 188 - Atanásio de Alexandria (285-373) - Sobre a Encarnação (Capítulo 5 – parte 2)

 


Encontro 188

Atanásio de Alexandria (285-373)

Sobre a Encarnação (Capítulo 5 – parte 2)

 

Outras testemunhas e reflexões sobre os milagres de Cristo

1.      Se tudo isso não lhes basta, deixem-se persuadir por outros textos de que eles mesmos dispõem. A quem se referem os profetas nesses termos: “Consenti em ser buscado pelos que não perguntavam por mim, consenti em ser encontrado pelos que não me procuravam. A uma nação que não invocava o meu nome eu disse: ‘Eis-me aqui!’ Todos os dias estendi as mãos a um povo desobediente e rebelde”? (Is 65,1-2; Rm

2.      10,20-21).

3.      Quem, pois, se revelou? Seja referido aos judeus! Se é do profeta que se trata, digam eles quando se escondeu para logo em seguida se mostrar! Quem é, portanto, esse profeta, que de invisível se tornou visível e estendeu as mãos na cruz? Nenhum dos justos, mas somente o Verbo de Deus, por natureza incorpóreo, fez-se por nossa causa visível corporalmente e por nós sofreu.

4.      E se isto não lhes é suficiente, outros testemunhos causem-lhes confusão, com manifesta refutação. Pois, diz a Escritura: “Fortalecei as mãos abatidas, revigorai os joelhos cambaleantes. Dizei aos corações conturbados: ‘Sede fortes, não temais.’ Eis que o vosso Deus vem para vingar-vos, ele vem para salvar-nos. Então abrir-se-ão os olhos dos cegos e os ouvidos dos surdos se desobstruirão; então o coxo saltará como o cervo e a língua dos surdo-mudos será ágil” (Is 35,3-6). Que replicar diante disso ou como encarar esses fatos? A profecia assinala a vinda de Deus, os milagres revelam a época de sua chegada. Que os cegos vejam, os coxos andem, os surdos ouçam e a língua dos mudos se torne ágil, tudo isso os profetas referem à vinda do Senhor. Digam-nos quando tais sinais se produziram em Israel, onde tal aconteceu na Judéia?

5.      Naaman, o leproso, foi curado, mas não houve surdo que ouvisse, nem coxo que andasse. Elias e Eliseu ressuscitaram mortos, mas não houve cego de nascença que recuperasse a vista. Certamente, grande milagre é ressuscitar um morto, mas o portento operado por eles não foram tão grandes quanto os que o Senhor realizou. E se a Escritura não omitiu a cura do leproso, nem a ressurreição do filho da viúva, sem dúvida se houvesse acontecido antes que um coxo andasse ou um cego visse, a Palavra de Deus não teria deixado de publicar também esses fatos. Visto que não há referências da Escritura a esse respeito, é claro que tais milagres não se haviam produzido anteriormente.

6.      Quando, então, sucederam, senão quando o próprio Verbo de Deus apareceu corporalmente? Quando, pois, veio ele, senão quando os coxos andaram, os mudos falaram com desembaraço, os surdos ouviram, os cegos de nascença viram claramente? Por essa razão, os judeus que o constataram e jamais haviam ouvido falar de fatos idênticos, diziam: “Jamais se ouviu dizer que alguém tenha aberto os olhos a cego de nascença. Se este homem não fosse de Deus, nada poderia fazer” (Jo 9,32-34).

7.      Talvez, incapazes de resistir diante da evidência, não negarão as Escrituras, entretanto assegurem que ainda esperam o Verbo, que é Deus, e ainda não veio. Eis o que eles repetem à porfia, sem saírem de sua ousada oposição aos fatos evidentes. Mas aqui também serão refutados, não por nós, mas por Daniel, que era muito prudente, e anuncia a época atual e o advento divino do Salvador, nesses termos: “Setenta semanas foram fixadas para o teu povo e a tua cidade santa para fazer cessar a transgressão e lacrar os pecados, para expiar e perdoar a iniquidade e instaurar justiça eterna, para selar visão e profeta e para ungir o santo dos santos. Ficarás sabendo, pois, e compreenderás isto, desde a promulgação do decreto sobre o retorno e a reconstrução de Jerusalém até o reino do Ungido” (Dn 9,24-25).

8.      Talvez pudessem encontrar pretextos nos outros profetas, e atribuir ao futuro o que foi escrito. Mas, que poderão dizer ou contrapor a este texto? Nele se indica o Cristo, não se anuncia o Ungido somente como homem, mas como o santo dos santos.  Jerusalém subsiste até a sua vinda, e em seguida cessam em Israel profeta e visão.

9.      Outrora tinham sido ungidos Davi, Salomão e Ezequias; mas então Jerusalém e o lugar santo subsistiam, e profetizavam Gad, Asaf, Natan, e após estes, Isaías, Oséias, Amós e outros profetas. Além disso, os ungidos eram denominados homens santos, e não: santo dos santos.

10.  Se, porém, apresentarem como objeção o cativeiro e que por causa deste Jerusalém não mais existia, que dirão acerca dos profetas? Com efeito, ao ser outrora o povo levado para Babilônia, viviam Daniel, Jeremias e Ezequiel, Ageu e Zacarias profetizavam.

11.  Pura invenção dos judeus, portanto, que transferem para o futuro fatos presentes. Quando cessaram em Israel profeta e visão, a não ser quando apareceu o santo dos santos, o Cristo? Sinal e marca considerável da presença do Verbo de Deus era não subsistir Jerusalém, não surgir profeta algum, nem revelação por meio de visão. E era perfeitamente exato.

12.  Pois, tendo chegado o que os sinais prenunciavam, que necessidade ainda havia destes sinais? Ao aparecer a realidade, para que ainda as sombras? Por esta razão, os profetas falaram até que chegasse a própria justiça, quem redime os pecados de todos. Jerusalém perdurou muito a fim de que os judeus ali considerassem as figuras da realidade futura.

13.  Mas, agora, com a vinda do santo dos santos, precisamente foram seladas visão e profecia e o reino de Jerusalém deixou de existir. Seus reis foram ungidos até que fosse também ungido o santo dos santos. Moisés profetizou que o reino de Jerusalém duraria até esta vinda, com essas palavras: “O cetro não se afastará de Judá, nem o bastão de chefe de entre seus pés, até que o tributo lhe seja trazido e ele é a expectativa das nações” (Gn 49,10).

14.  O próprio Salvador também exclamava: “Todos os profetas bem como a Lei profetizaram até João” (Mt 11,13). Se, portanto, agora ainda existem entre os judeus, rei, profeta e visão, eles têm razão de negar que Cristo tenha vindo; mas se não há mais rei, nem visão, se toda profecia está selada, se cidade e templo foram destruídos, por que são ímpios e transgressores a ponto de negar Cristo, causa desses eventos, apesar do que se passou? Por que, ao verificarem que os gentios abandonaram os ídolos e por meio de Cristo depositam esperança no Deus de Israel, eles renegam Cristo, oriundo segundo a carne da raiz de Jessé, a reinar de hoje em diante? Se os gentios adorassem outro Deus, sem confessar o Deus de Abraão, de Isaac, de Jacó e de Moisés, os judeus razoavelmente pretenderiam que Deus não veio.

15.  Entretanto, se o Deus adorado pelos gentios é idêntico ao que deu a Lei a Moisés, fez a promessa a Abraão, cujo Verbo os judeus rejeitaram, por que não o reconhecem, ou antes, por que recusam voluntariamente aceitar que o Senhor, prenunciado pela Escritura, resplandeceu na terra inteira e se mostrou presente no corpo? De fato, diz a Escritura: “O Senhor é Deus: ele nos ilumina” (Sl 117,27a) e ainda: “O Senhor enviou sua Palavra para curá-los” (Sl 106,20) e novamente: “Não foi um mensageiro ou um anjo, mas a sua própria face que os salvou” (Is 63,9).

16.  Seu estado assemelha-se ao de demente que veria a terra à luz do sol e negaria a existência do sol que a ilumina. O que restava fazer, se já viera aquele que esperavam? Chamar os pagãos? Mas, ele se antecipara neste chamado. Fazer cessar profeta, rei, visão? Também já haviam cessado. Denunciar a impiedade dos ídolos? De fato, denunciara e condenara. Aniquilar a morte? Ele a aniquilou.

17.  Do que competia a Cristo fazer, o que não fez? Que falta ainda, para os judeus se regozijarem e recusarem crer? No entanto, se, como vimos, eles não têm rei, nem profeta, nem Jerusalém, nem sacrifício, nem visão, e não obstante, a terra inteira está cheia do conhecimento de Deus, e os gentios rejeitam a impiedade para buscarem o Deus de Abraão, por meio do Verbo, nosso Senhor Jesus Cristo, faz-se evidente, até aos mais ousados, que Cristo já veio, que para todos os homens brilha inteiramente sua luz, e ele lhes ministra a respeito do Pai ensinamento verdadeiro e divino.

18.  Por este testemunho e outros mais, extraídos das divinas Escrituras, refutam-se as objeções dos judeus.

 

1.      O que destaco no texto e porquê?

2.      Como ele serve para a minha espiritualidade?

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Cronologia de Martinho Lutero - Homenagem ao Dia da Reforma protestante.

 



Cronologia de Martinho Lutero

1483 – Nasce em Eisleben, na Alemanha oriental.

 

1484 – Seus pais, Hans e Margaretha Luder, mudam-se para Mansfeld, onde Hans trabalha em minas de cobre.

 

1492 – Lutero estuda em Mansfeld.

 

1497 – Estuda em Magdeburgo e no ano seguinte em Eisenach.

 

1501 – Ingressa na Universidade de Erfurt e no ano seguinte recebe o grau de bacharel.

 

1505 – Conclui o mestrado em Erfurt e começa a estudar direito. Em 02-07, durante uma tempestade, jura tornar-se monge; ingressa na Ordem dos Eremitas Agostinianos, em Erfurt.

 

1507 – É ordenado e celebra a primeira missa. No ano seguinte, leciona filosofia moral em Wittenberg.

 

1510 – Visita Roma e no ano seguinte é transferido para a casa agostiniana de Wittenberg.

 

1512 – Torna-se doutor em teologia e no ano seguinte começa a lecionar sobre os Salmos na Universidade de Wittenberg.

 

1515 – Leciona sobre Romanos e é nomeado vigário distrital sobre dez mosteiros; no ano seguinte, começa a lecionar sobre Gálatas.

 

1517 – Começa a lecionar sobre Hebreus; em 31 de outubro, afixa as Noventa e Cinco Teses sobre as indulgências. Contexto: eleição do sacro imperador e venda de indulgências.

 

1518 – Defende a sua teologia em uma reunião dos agostinianos em Heidelberg. Em outubro, comparece diante do cardeal Cajetano em Augsburgo, mas recusa retratar-se; em dezembro, Frederico, o Sábio, impede que Lutero seja levado a Roma.

 

1519 – Entende a “justiça de Deus” como uma “justiça passiva com a qual Deus nos justifica pela fé.” Em julho, tem um debate com o professor dominicano João Eck em Leipzig; defende João Hus e nega a autoridade suprema de papas e concílios. Carlos V é eleito sacro imperador.

 

1520 – A bula papal Exsurge Domine dá-lhe 60 dias para retratar-se ou ser excomungado. Queima a bula papal e um exemplar da lei canônica. Escreve três documentos fundamentais: À Nobreza Cristã da Nação AlemãO Cativeiro Babilônico da Igreja A Liberdade do Cristão. A Reforma alastra-se na Alemanha e na Europa.

 

1521 – É excomungado pela bula Decet Romanum Pontificem, de Leão X. Em abril, na Dieta de Worms, recusa renegar os seus escritos e no mês seguinte um edito o condena como herético e proscrito. É seqüestrado e ocultado no Castelo de Wartburg, onde começa a traduzir o Novo Testamento. Protegido pelo príncipe eleito.

 

1522 – Em março, deixa o seu esconderijo e retorna a Wittenberg. No ano seguinte, escreve Sobre a Autoridade Temporal. É publicado o Novo Testamento em alemão.

 

1524 – Tem um debate com Andreas Bodenstein Karlstadt sobre a Ceia do Senhor. Explode a Revolta dos Camponeses.

 

1525 – Escreve Contra os Profetas Celestiais; escreve Contra as Hordas, criticando a Revolta dos CamponesesCasa-se com Catarina von Bora. Escreve O Cativeiro da Vontade, contra Erasmo. Morte de Frederico, o Sábio.

 

1526 – Escreve a Missa Alemã; nasce o seu filho Hans. Na Dieta de Spira, os príncipes recusam-se a aplicar o Edito de Worms. No ano seguinte, luta contra enfermidades e intensa depressão; escreve “Castelo Forte”. Nasce a sua filha Elizabete. Escreve contra as idéias de Zuínglio acerca da Ceia do Senhor.

 

1528 – Escreve a Grande Confissão Acerca da Ceia de Cristo; chora a morte de Elizabete; visita igrejas.

 

1529 – Dieta de Spira: intolerância contra os luteranos. Surge o nome “protestantes.” Lutero comparece com Zuínglio ao Colóquio de Marburg, mas não alcançam acordo sobre a Ceia do Senhor. Publica o Grande Catecismo e o Pequeno Catecismo. Nasce sua filha Madalena.

 

1530 – Morre seu pai. Lutero, sendo um proscrito, não pode comparecer à Dieta de Augsburgo, realizada na tentativa de pôr fim à divisão religiosa do império. Filipe Melanchton apresenta a Confissão de Augsburgo, uma declaração das convicções luteranas.

 

1531 – Começa a lecionar sobre Gálatas. Nasce o seu filho Martin e morre a sua mãe, Margaretha.

 

1532 – Escreve Sobre os Pregadores Infiltradores e Clandestinos. Recebe o mosteiro agostiniano de Wittenberg como sua residência.

 

1533 – Nasce o seu filho Paulo. No ano seguinte, publica a Bíblia Alemã completa e nasce sua filha Margarete.

 

1536 – Aceita a Concórdia de Wittenberg sobre a Ceia do Senhor, na tentativa de sanar as diferenças com outros reformadores, mas os zuinglianos a rejeitam.

 

1537 – Redige os Artigos de Schmalkald como seu “testamento teológico.” No ano seguinte, escreve contra os judeus emContra os Sabatarianos.

 

1539 – Escreve Sobre os Concílios e a Igreja. Em 1541, escreve Exortação à Oração contra os Turcos.

 

1542 – Redige o seu testamento; morre sua filha Madalena. No ano seguinte, escreve Sobre os Judeus e suas Mentiras.

 

1544 – Escreve contra a interpretação de Caspar Schwenckfeld sobre a Santa Ceia.

 

1545 – Escreve Contra o Papado de Roma, uma Instituição do Diabo. Morre o arcebispo Alberto de Mogúncia e tem início o Concílio de Trento.

 

1546 – Lutero morre no dia 18 de fevereiro em Eisleben. Sua esposa morre em 1552.

domingo, 24 de outubro de 2021

Encontro 187 - Atanásio de Alexandria (285-373) - Sobre a Encarnação - (Capítulo 5 – parte 1)

                                     


Encontro 187

Atanásio de Alexandria (285-373)

Sobre a Encarnação (Capítulo 5 – parte 1)

 

CAPÍTULO V

CONTRA OS JUDEUS INCRÉDULOS TESTEMUNHAS DA ENCARNAÇÃO DE CRISTO

 

1.      Assim sendo, após clara demonstração da ressurreição do corpo do Salvador e da vitória alcançada sobre a morte, refutemos agora a incredulidade dos judeus e a zombaria dos gregos.

2.      Em oposição a esses fatos, os judeus recusam crer e ridicularizam os gregos, puxando para cá e para lá o que a cruz e a encarnação do Verbo de Deus apresentam de menos adequado. Não deixarei, contudo, de dirigir minha exposição contra uns e outros, tanto mais que possuo contra eles argumentos convincentes.

3.      Os judeus incrédulos encontrariam comprovação nas Escrituras, a cuja leitura também eles se dão. Do começo ao fim, o livro inspirado todo inteiro clama estas realidades, segundo revelam suas próprias palavras. Os profetas, há muito, anunciavam o milagre da Virgem e do menino que dela nasceria: “Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho e por-lhe-á o nome de Emanuel” (Is 7,14; Mt 1,23), que significa: Deus conosco.

4.      Moisés, realmente grande, cuja veracidade reconheciam os judeus, aprecia de igual modo como sendo das maiores coisas as palavras proferidas sobre a encarnação do Salvador, e tomando-as como tais, cita-as em seus livros: “Um astro procede de Jacó, um homem se levanta, procedente de Israel. E esmaga os príncipes de Moab” (Nm 24,17b). E ainda: “Como são formosas as tuas moradas, ó Jacó, e as tuas tendas, ó Israel! Como vales sombreados, e como jardins ao lado de um rio e como tendas que o Senhor levantou, como cedros junto às águas! Um herói surge na sua descendência, e domina sobre muitos povos” (Nm 24,5-7a) E ainda Isaías: “Porque, antes que a criança saiba dizer ‘papai’ e ‘mamãe’, as riquezas de Damasco e os despojos de Samaria serão levados para o rei da Assíria” (Is 8,4b).

5.      Palavras proféticas acerca de seu aspecto humano. Mas os profetas prenunciam ser ele o Senhor de todos, nesses termos: “O Senhor, montado em uma nuvem veloz, vai ao Egito. Os deuses do Egito tremem diante dele” (Is 19,1) De lá, com efeito, é que o Pai o chama novamente do Egito: “Do Egito chamei o meu Filho” (Mt 2,15; Os 1,1).

6.      Sua morte também não passou sob silêncio, mas foi distintamente indicada nas Sagradas Escrituras. No intuito de que ninguém o ignorasse, permanecendo em erro, os profetas não hesitaram declarar nem mesmo a causa desta morte, que não padeceu por si mesmo, mas para a imortalidade e salvação de todos, nem de narrar as ciladas dos judeus e os ultrajes infligidos por eles.

7.      Assim se expressam: “Um homem sujeito à dor, familiarizado com a enfermidade, sua face foi objeto de aversão; desprezado, não se fazia caso dele. E, no entanto, eram os nossos pecados que ele levava sobre si, as nossas dores que ele carregava. Nós o tínhamos como sofredor, ferido e humilhado. Mas ele foi ferido por causa de nossas transgressões e esmagado em virtude das nossas iniquidades. O castigo que havia de trazer-nos a paz caiu sobre ele, sim por suas feridas fomos curados” (Is 53,3b-5).

8.      Admira a filantropia do Verbo, que aceita ultrajes por nossa causa, a fim de sermos honrados. “Todos nós, como ovelhas, andávamos errantes, seguindo cada um o seu próprio caminho; mas o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de todos nós. Foi maltratado, mas não abriu a boca, como cordeiro conduzido ao matadouro, como ovelha que permanece muda na presença de seus tosquiadores ele não abriu a boca. Em sua humildade seu julgamento foi retirado” (At 8,32s).

9.      Enfim, para não passar por homem vulgar, devido a seus sofrimentos, a Escritura previne os pensamentos dos homens e dá a conhecer sua natureza e seu poder, diversos dos nossos, dizendo: “Quem contará sua geração? Foi cortado da terra dos vivos, foi conduzido à morte por causa da transgressão do seu povo. Deram-lhe sepultura com os ímpios, e o seu túmulo está com os ricos, se bem que não houvesse praticado violência nem houvesse engano em sua boca. Mas o Senhor quis curá-lo de suas feridas” (Is 53,8b-10a).

10.  Mas, talvez após ter ouvido a profecia sobre sua morte, queiras saber o que foi prenunciado sobre a cruz. Pois, ela também não passou sob silêncio, mas foi brilhantemente destacada pelos santos.

11.  Moisés foi o primeiro a anunciá-la com grandes clamores: “Tua vida penderá diante de teus olhos por um fio, e não acreditarás” (Dt 28,66).

12.  Depois dele, também os profetas deram testemunho: “Mas eu como cordeiro manso que é levado ao matadouro, não sabia; eles tramavam planos contra mim: Vinde, coloquemos madeira em seu pão, arranquemo-lo da terra dos vivos” (Jr 11,19a).

13.  E ainda: “Traspassaram as minhas mãos e os meus pés, contaram todos os meus ossos; repartiram entre si as minhas vestes, e sobre a minha túnica lançaram sorte” (Sl 22,17s).

14.  Esta morte por suspensão num madeiro só podia ser a da cruz; e em nenhum outro gênero de morte mãos e pés se traspassam a não ser no da cruz.

15.  E como pelo advento do Salvador todas as gentes começaram a reconhecer o Senhor, nem isso a Sagrada Escritura deixou de citar, mas o relembra nesses termos: “Ele será a raiz de Jessé, que se ergue para governar os povos; nele esperarão as nações” (Is 11,10; Rm 15,12). Estas poucas palavras bastam para demonstração dos fatos.

 

16.  Desenvolvimento oratório sobre estas testemunhas

17.  A Escritura inteira, efetivamente, acha-se repleta de traços a refutarem a incredulidade dos judeus. Entre os justos mencionados nas divinas Escrituras, os santos profetas, os patriarcas, houve algum que tenha nascido somente de virgem? Ou que mulher basta, sem concurso de marido, para dar à luz um homem? Acaso Abel não nasceu de Adão, Enoc de Jared, Noé de Lamec, Abraão de Taré, Isaac de Abraão e Jacó de Isaac? Judá de Jacó, Moisés e Aarão de Amram? Samuel não nasceu de Elcana, Davi de Jessé, Salomão de Davi, Ezequias de Acaz, Josias de Amós, Isaías de Amós, Jeremias de Helcias, Ezequiel de Buzi? Na origem de cada um deles não houve pai? Qual nasceu somente de virgem? Ora, o profeta cuidadosamente indicou este sinal.

18.  De quem um astro anunciou nos céus e proclamou à terra inteira seu nascimento? Moisés, ao nascer, foi escondido pelos pais. De Davi até mesmo os vizinhos não tinham ouvido falar, pois o grande Samuel não o conhecia e perguntou se havia ainda outro filho de Jessé. Abraão só depois de adulto foi notado pelos mais próximos. Mas, Cristo, ao nascer, não teve apenas o testemunho de um homem e sim de um astro que apareceu no céu, donde ele próprio descera.

19.  Qual o rei que antes de poder chamar ‘papai’ e ‘mamãe’ (cf. Is 8,4) começou a reinar e alcançou troféus contra os inimigos? Davi não começou a reinar aos trinta anos, e Salomão, já rapaz? Não tinha Joás sete anos ao começar a reinar (cf. 2Rs 12,1) e Josias, mais novo ainda, pelos sete anos, não recebeu o poder? (cf. 2Rs 22,1) Mesmo os que, porém, já haviam atingido tal idade, podiam chamar o pai e a mãe.

20.  Quem, pois, quase antes de nascer reina e despoja os inimigos? Os judeus, que perscrutam as Escrituras, digam-me qual o rei de Israel e de Judá em quem todas as nações depositaram sua esperança e com ele mantinham a paz? Ao invés, não eram elas antes inimigas?

21.  Enquanto Jerusalém subsistia, faziam-lhe guerra sem tréguas. Combatiam todas contra Israel. Os assírios a oprimiam, os egípcios a perseguiam, os babilônios a invadiam. E coisa espantosa, os sírios, seus vizinhos eram também adversários. Davi não guerreava os moabitas, e não talhava em peças os sírios, Josias não se precavia de seus vizinhos, e Ezequias não temia a jactância de Senaquerib? Amalec não lutou com Moisés, a quem eram hostis também os amorreus? Os habitantes de Jericó não combateram contra Josué, filho de Nun? E em geral, na falta de verdadeiras tréguas, houve acaso amizade entre as nações e Israel? Será bom verificar em quem, pois, as nações depositam sua esperança. Deve existir alguém, pois é impossível que os profetas tenham mentido.

22.  Qual, então, o santo profeta ou santo patriarca que morreu na cruz pela salvação de todos? Quem foi ferido e morto para a cura de todos? Qual dos justos ou dos reis desceu ao Egito, a fim de derrubar, por ocasião de sua chegada, os ídolos dos egípcios? Abraão desceu, e no entanto, a idolatria em geral exercia seu império. Foi lá que Moisés nasceu; todavia, a superstição ali reinava.

23.  Qual dentre os mencionados pela Escritura teve mãos e pés traspassados, ou pendeu de fato do madeiro e morreu na cruz pela salvação de todos? Abraão acamou-se e morreu; Isaac e Jacó também juntaram os pés no leito e morreram. Moisés e Aarão faleceram no monte. Davi, em casa, e não sucumbiu às conjurações do povo. Sem dúvida, fora perseguido por Saul, mas escapou incólume. Isaías foi cortado ao meio, mas não pendeu do lenho. Jeremias foi coberto de injúrias, não foi, contudo, condenado à morte. Ezequiel não sofreu por causa da plebe, mas por anunciar o que aconteceria ao povo.

24.  Consequentemente, todos esses que assim padeceram eram homens, semelhantes por natureza aos outros. Aquele, porém, cujos sofrimentos foram prenunciados nas Escrituras não é simplesmente homem, mas diz-se que é a Vida de todos, embora por natureza semelhante aos homens. “Tua vida penderá diante de teus olhos por um fio”, diz a Escritura (Dt 28,66); e ainda: “Quem contará sua geração?” (Is 53,8). É possível ter notícia da geração de todos os santos e contar desde o começo o que foi cada um deles, e onde nasceu; mas a Palavra de Deus indica ser inenarrável a geração do que é a própria Vida.

25.  A quem, pois, assim as Sagradas Escrituras se referem? Quem é este ser tão grande do qual os profetas anunciam coisas tão prodigiosas? Nenhum outro se encontra enquanto tal nas Escrituras, a não ser nosso Salvador comum, o Verbo de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo. É procedente da Virgem, apareceu qual homem na terra aquele cuja geração segundo a carne é inenarrável. Com efeito, não se lhe atribui um pai segundo a carne, porque seu corpo não provém de homem e sim apenas de virgem.

26.  Não é difícil traçar a genealogia dos antepassados de Davi, de Moisés e dos patriarcas; ao invés, ninguém pode narrar, como se fosse originária de um homem, a geração do Salvador, segundo a carne. Foi ele quem fez um astro anunciar o nascimento de seu corpo; forçoso era, uma vez que o Verbo descia do céu, houvesse também um sinal do céu. A chegada do rei da criação precisava ser claramente noticiada por toda a

27.  terra.

28.  Sem dúvida, nasceu na Judéia, entretanto persas vieram adorá-lo. Mesmo antes de sua aparição corpo, devia alcançar a vitória contra os demônios, seus adversários, e obter os troféus contra a idolatria. Podemos observar com os nossos próprios olhos como, por toda parte os povos abjuram aos costumes de seus pais e a impiedade dos ídolos, depositando de então em diante a confiança em Cristo e sendo contados entre os seus.

29.  A impiedade dos egípcios não cessou a não ser quando o Senhor do universo, levado, por assim dizer, sobre uma nuvem e vindo corporalmente para o meio deles, reduziu a nada o erro da idolatria, e reconduziu os homens a si e por seu intermédio ao Pai.

30.  Foi ele quem, à luz do sol, diante de toda a criação e dos que o matavam, foi crucificado; sua morte trouxe salvação universal e a criação inteira foi redimida. Ele é a Vida de todos e qual ovelha entregou o corpo à morte, em resgate pela salvação de todos, mesmo se os judeus continuam incrédulos.

 

O que você destaca no texto?

Como ele serve para sua espiritualidade?

 

 

 

domingo, 17 de outubro de 2021

Encontro 186 - Atanásio de Alexandria (285-373) - Sobre a Encarnação (Capítulo 4 – 2ª Parte)

 


Encontro 186

Atanásio de Alexandria (285-373)

Sobre a Encarnação (Capítulo 4 – 2ª Parte)

 

CAPÍTULO IV

O VALOR SALVÍFICO DA ENCARNAÇÃO DO VERBO A UNIÃO DO LOGOS E DO CORPO HUMANO

 

A ressurreição de Cristo e o dom da incorruptibilidade

1.      Sua morte por nós na cruz foi, portanto, perfeitamente conveniente e adaptada. Vê-se ter tido causa inteiramente racional e perfeitamente justificada. Não existia modo melhor de operar a salvação do mundo que a cruz. Assim sendo, não quis ficar invisível na cruz, mas tomou a criação inteira por testemunha da presença de seu demiurgo. Não deixou o templo de seu corpo aguardar muito tempo, mas comprovada a morte após a luta, logo o ressuscitou, ao terceiro dia, erguendo qual troféu da vitória sobre a morte a incorruptibilidade e impassibilidade obtidas neste corpo.

2.      Teria podido, sem dúvida, imediatamente ressuscitar o corpo morto e apresentá-lo vivo, mas o Salvador não o quis, por sábia previdência. No caso de manifestar imediatamente a ressurreição, alguém poderia replicar que não estivera inteiramente morto, ou que a morte não o tocara de modo algum.

3.      Se morte e ressurreição se sucedessem sem intervalo, a glória da incorruptibilidade permaneceria incerta. Por isso, no intuito de demonstrar que o corpo estava bem morto, o Verbo deixou passar um dia intermediário e no terceiro apresentou-se a todos incorrupto.

4.      Querendo provar a morte do corpo, ressuscitou-o ao terceiro dia.

5.      Ora, se houvesse esperado mais tempo para ressuscitar um corpo já totalmente corrompido, suscitaria talvez incredulidade, como se não se tratasse de seu corpo, mas de outro. Provavelmente, decorrido algum tempo, surgiria recusa de credibilidade na aparição e esquecimento do sucedido. Por esse motivo, não tardou além de três dias, nem deixou aguardarem por muito tempo os que o haviam ouvido referir-se à ressurreição.

6.      Ora, enquanto eles tinham ainda nos ouvidos o som de sua voz, os olhos ainda o buscavam, os espíritos se mantinham em suspenso, enquanto viviam ainda na terra e nos mesmos lugares os que o mataram e podiam atestar a morte corporal do Senhor, o Filho de Deus apresentou imortal e incorrupto o corpo que estivera sem vida pelo espaço de três dias. Evidenciou-se que se estivera inanimado não fora por fraqueza do Verbo que o

7.      inabitava, e sim para ser nele destruída a morte por virtude do Salvador.

8.      Prova notável e testemunho evidente da destruição da morte e de representar a cruz a vitória por ele obtida sobre a morte, já sem vigor, verdadeiramente morta, é a seguinte: Todos os discípulos de Cristo a desprezam, marcham contra ela, sem temor, e pelo sinal da cruz e a fé em Cristo, calcam-na aos pés, como a um cadáver.

9.      Outrora, antes do advento divino do Salvador, os defuntos eram chorados porque destinados à corrupção. Entretanto, após ter o Salvador ressuscitado seu corpo, ela cessou de ser pavorosa. Os fiéis de Cristo calcam-na aos pés como um nada, e preferem morrer a renegar a fé em Cristo. Estão cientes de que ao falecerem não perecem, mas vivem, e a ressurreição os fará incorruptíveis.

10.  E o diabo, que outrora pela morte insultava malignamente os homens, agora, uma vez supressas as dores da morte (cf. At 2,24) é o único verdadeiramente morto. Comprova tal afirmação o seguinte fato: Antes de crerem em Cristo, os homens olhavam a morte qual coisa terrível e dela tinham pavor. Ao contrário, uma vez acolhidas a fé e a doutrina, de tal modo desprezam a morte que se lançam ardorosamente para ela, e tornam-se testemunhas da vitória do Salvador sobre a morte através da ressurreição. Apesar da idade, as crianças apressam-se para a morte, exercitam-se para ela não somente homens, mas também mulheres.

11.  A morte de tal forma se enfraqueceu que as próprias mulheres, outrora por ela iludidas, riem-se dela, como de ser inanimado e inerme. Se um tirano, vencido por rei valoroso, acha-se ligado de mãos e pés, os transeuntes dele zombam, batem-no, maltratam-no, sem qualquer receio de sua raiva e crueldade, por causa do rei vencedor; assim também a morte, uma vez vencida e desonrada pelo Salvador, de mãos e pés amarrada, é pisoteada pelos que caminham em Cristo os quais lhe prestando testemunho, zombam da morte e insultam-na, repetindo as palavras da Escritura: “Morte, onde está a tua vitória? Inferno, onde está o teu

12.  aguilhão?” (1Cor 15,55).

13.  Seria prova insignificante da fraqueza da morte? Ou demonstração falha da vitória alcançada sobre elas pelo Salvador o fato de que crianças e jovens em Cristo menosprezam a vida presente, prontas para morrer?

14.  O homem naturalmente receia a morte e a decomposição do corpo. Coisa estupenda! Quem se revestiu da fé na cruz, despreza este sentimento natural, e por causa de Cristo não tem medo da morte.

15.  O fogo tem naturalmente a propriedade de queimar: mas conta-se que existe uma matéria que não teme a labareda do fogo, mas lhe demonstra antes a fraqueza, como se diz do amianto dos indianos; e se alguém, permanecendo cético diante deste propósito, quer fazer a experiência do que foi dito, revestirá a substância não-inflamável e se lançará ao fogo, e doravante crerá imediatamente na fraqueza do fogo.

16.  Ou se alguém deseja ver o tirano aprisionado, deve necessariamente fazer-se presente no país e no reino do vencedor, para ver privado de sua força aquele que os outros temiam. Semelhantemente, se alguém é incrédulo, mesmo após provas importantes, após tantos mártires suscitados no Cristo, após a derrisão (riso de desprezo) preparada cotidianamente à morte por aqueles que se honram no Cristo; se ele hesita ainda a se pronunciar a respeito da destruição da morte e de seu fim, faz bem de se admirar de semelhante coisa, contanto que não se endureça na descrença e que não tenha a imprudência de negar os fatos tão evidentes.

17.  Mas como aquele que usou o amianto reconhece que este é não-inflamável, e aquele que quer ver o tirano aprisionado passe no reino do vencedor, do mesmo modo aquele que não crê na vitória sobre a morte, que receba a fé do Cristo, e se põe à sua escola: ele verá a impotência da morte e a vitória alcançada sobre ela. Numerosos são aqueles que permaneceram, de início, incrédulos e zombeteiros, depois se tornaram crentes e desprezaram a morte a ponto de se tornarem mártires de Cristo.

18.  Mas se, graças ao sinal da cruz e à fé no Cristo, a morte é calcada aos pés, é manifesto ao julgamento da verdade que nenhum outro senão Cristo em pessoa não alcançou estes troféus e estas vitórias contra a morte, e que ele a reduziu à impotência.

19.  Se a morte atormentava, no começo, e por isso era temível, mas que no presente, após a vinda do Salvador, a morte de seu corpo e sua ressurreição, esta morte se encontra desprezada, é visível que ela foi arruinada e vencida pelo Cristo elevado sobre a cruz.

20.  Quando, após a noite, o sol aparece e ilumina toda a face da terra, não há nenhuma razão de duvidar que este sol que espalha por toda parte a luz, é também aquele que expulsou as trevas e tudo iluminou. Assim, pois que a morte é desprezada e calcada aos pés desde a manifestação salutar do Salvador no corpo e sua morte sobre a cruz, é evidente que é o mesmo Salvador, que apareceu num corpo, destruiu a morte e cada dia faz ver em seus discípulos, seus troféus contra ela.

21.  Com efeito, ao notar que homens, naturalmente fracos, lançam-se na morte, sem se deixarem intimidar pela corrupção do túmulo, nem temerem a descida aos infernos, e além disso desejarem ardentemente a morte, sem temor das torturas e por Cristo preferirem à vida presente, esse impulso para a morte, quando se observam homens e mulheres, jovens e crianças acorrerem rapidamente à morte, pela fé em Cristo, quem seria bastante tolo ou incrédulo, quem teria espírito tão cego para não compreender e refletir que é Cristo, a quem esses prestam testemunho, quem dá e obtém para cada um a vitória sobre a morte, destruindo seu poder em cada um dos que nele têm fé e trazem o sinal da cruz?

22.  Quem vê uma serpente calcada aos pés, sobretudo se conhece sua anterior crueldade, não duvida de que esteja morta, ou tenha perdido as forças, a menos que se trate de perturbado mental, ou que nem mesmo seus sentidos corporais estejam sadios. Quem ainda, ao ver crianças desafiarem um leão, não compreenderá que ele está morto e perdeu o vigor?

23.  Vê-se com os próprios olhos que tal é a realidade. Assim, se os fiéis em Cristo desafiam e desprezam a morte, ninguém duvide nem recuse crer ter Cristo aniquilado a morte, cortando e arruinando a corrupção.

24.  Nossas palavras contêm prova ponderável de ter sido eliminada a morte e constituir a cruz do Senhor troféu contra ela. Cristo, Salvador comum e verdadeira Vida, ressuscitou seu corpo, doravante imortal. A demonstração extraída dos fatos é mais clara que todos os discursos para os que conservam em bom estado os olhos espirituais.

25.  Se, conforme as conclusões de nossa reflexão, a morte foi eliminada e todos por Cristo a pisoteiam, com maior razão ele próprio, em seu corpo, calcou-a aos pés e a venceu. Se a morte por ele pereceu, que lhe restava senão ressuscitar o corpo, qual troféu de vitória? Como apareceria a derrota da morte se o corpo do Senhor não tivesse ressuscitado? Se não se julgar ser esta demonstração suficiente da ressurreição, é possível confirmar nossas palavras por fatos evidentes.

26.  Um morto nada mais pode fazer. Sua lembrança vai até o túmulo e logo se extingue. Aos vivos somente pertencem ação e influência sobre os homens. A quem quiser é possível essa constatação; se julgar de acordo com o que vê, confessará que é verdade.

27.  Se o Salvador de tal forma age entre os homens e invisivelmente persuade todos os dias, em toda a parte, grande multidão de gregos e bárbaros a nele crer e a escutar sua doutrina, como seria possível ainda hesitarmos e perguntarmos se o Salvador ressuscitou, se Cristo está vivo, ou melhor, se ele é a própria Vida?

28.  Seria um morto capaz de penetrar no coração dos homens, fazer com que renegassem as leis de seus pais, e abraçassem a doutrina de Cristo? Ou se não age, o que é próprio de defunto, como pode fazer com que homens vivos e ativos parem de agir, o adúltero cesse de adulterar, o homicida deixe de assassinar, o injusto desista de sua cupidez, o ímpio se transforme em piedoso? Se Cristo não ressuscitou, se não passa de defunto, como consegue expulsar, perseguir, derrubar os falsos deuses que os ímpios afirmam serem vivos e os demônios por eles adorados?

29.  Nomeiem-se Cristo e a fé nele e logo a idolatria é arruinada, as ilusões demoníacas são refutadas. Demônio algum suporta este nome; basta ouvi-lo e é afugentado. Tudo isso não é obra de morto; ao contrário, é próprio de vivo e até mesmo de Deus.

30.  Aliás, seria ridículo afirmar serem vivos os demônios por ele afugentados, os ídolos derrubados e declarar morto quem os expulsa, por seu poder fá-los desaparecer e é reconhecido por todos como Filho de Deus.

31.  Levantam contra si mesmos grave argumento os que recusam crer na ressurreição, se os demônios e deuses por ele adorados não perseguem esse Cristo que eles asseveram estar morto; mas ao invés, é Cristo quem comprova estarem todos eles mortos.

32.  É verdade que um morto nada pode fazer; no entanto, o Salvador opera diariamente tantos prodígios, atrai à piedade, persuade à prática da virtude, ensina a imortalidade, conduz ao desejo do céu, revela o conhecimento do Pai, inspira força contra a morte, mostra-se a cada um e destrói a impiedade dos ídolos. Tais coisas não fazem os deuses e demônios dos infiéis, enquanto, ao invés, apenas a presença de Cristo faz deles uns mortos, que apenas têm aparência vã e oca, pois o sinal da cruz elimina toda magia, reduz a nada os encantamentos. Os ídolos são abandonados e menosprezados, cessam os prazeres desordenados e todos olham da terra para o céu. De quem se afirmará que está morto? Cristo, que fez tudo isso? Mas, um morto não age. Ou se trata de alguém que não tem atividade alguma, jaz inanimado? Tal é o caso dos demônios e dos ídolos, semelhantes a seres mortos.

33.  O Filho de Deus, porém, vivo e atuante (cf. Hb 4,12) opera cada dia, realizando a salvação de todos. Entretanto, a morte está condenada a perder cada dia mais seu vigor, os ídolos e os demônios assemelham-se cada vez mais a seres mortos, e ninguém pode mais ficar na incerteza sobre a ressurreição do corpo de Cristo.

34.  4. Se alguém recusasse crer na ressurreição do corpo do Senhor, mostraria ignorar o poder do Verbo, da Sabedoria de Deus. Se o Verbo assumiu corpo e fê-lo seu de modo consequente e racional, conforme demonstrou nossa exposição, que havia de fazer o Senhor de seu corpo? Ou qual devia ser o fim desse corpo em que o Verbo entrara?

35.  Impossível não morrer, por ser mortal e haver sido entregue à morte pela salvação de todos; era justamente para isso que o Salvador o plasmara. Permanecer na morte, porém, não era possível ponderando-se que se tornara o templo da Vida. Assim, morreu, enquanto ser mortal, mas ressurgiu por causa da vida que nele estava, e suas obras são o sinal de sua ressurreição.

36.  Quem recusar crer na ressurreição porque não o vê, cuide de que neguem também os incrédulos o que está na natureza das coisas. Pois, é próprio de Deus ser invisível, mas através das obras dá-se a conhecer, segundo mencionado mais acima.

37.  Se as obras não existem, eles têm razão de não acreditar no que é invisível. Mas, se estas obras clamam e claramente o demonstram, por que negam propositadamente a vida revelada com tamanha evidência pela ressurreição? Se têm o espírito obcecado, ao menos verifiquem com os sentidos externos o incontestável poder de Cristo e sua divindade (Rm 1,20).

38.  O cego não vê o sol, mas ao menos recebe seu calor, sabe que existe um sol acima da terra. De forma semelhante, nossos contraditores, que não querem crer, cegos no cume do espírito em relação à verdade, ao menos ao notarem com que força os outros creem, não neguem a divindade de Cristo e a ressurreição de que é autor.

39.  É evidente que se Cristo estivesse morto, não afugentaria os demônios, nem despojaria os ídolos. Os demônios não obedeceriam a morto. Como basta seu nome para visivelmente pô-los em fuga, é claro que não está morto, tanto mais que os demônios, vendo o que os homens não veem, podem verificar se Cristo é defunto e não lhe obedecerem. Agora, porém os demônios veem o que os ímpios não creem, que ele é Deus. Por isso, todos fogem, caem a seus pés, repetindo as frases que gritavam quando ele ainda estava nesta vida: “Sei quem tu és: O Santo de Deus” (Lc 4,34), e ainda: “Que existe entre mim e ti, Filho de Deus? Peço-te que não me atormentes” (Mc 5,7; cf. Lc 8,26).

40.  Uma vez que os demônios o reconhecem e suas obras atestam a seu favor todos os dias, é claro — e ninguém devia resistir com impudência à verdade — que o Salvador ressuscitou seu próprio corpo e que é o verdadeiro Filho de Deus. De Deus saiu, como Verbo nascido do Pai, Sabedoria e Poder, que assumiu nos últimos tempos um corpo em prol da salvação de todos e ministrou à terra inteira ensinamentos acerca do Pai, destruiu a morte, deu a todos a graça da incorruptibilidade, prometendo a ressurreição, ressuscitando seu corpo qual primícias e exibindo-o qual troféu da vitória sobre a morte e a corrupção, pelo sinal da cruz.

 

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