terça-feira, 22 de março de 2022

Estudo 196 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Primeiro (Capítulos 28 - 38)

 


196

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Primeiro (Capítulos 28 - 38)

LIVRO PRIMEIRO

Capítulo 28.

1.      O livro oitavo, bem como os dois anteriores, muito proveitosos para a fé dos que creem no Filho de Deus, que é o Deus verdadeiro, agora se detém na demonstração de um só Deus, sem negar a natividade do Filho de Deus nem introduzir, por este nascimento, a divindade de dois deuses.

2.      Em primeiro lugar, ensina com que meios os hereges se esforçam por não levar a sério a verdade de Deus Pai e de Deus Filho, que não podem negar. Desfaz os ineptos e ridículos pretextos segundo os quais afirmam que a união do Pai e do Filho se dá pela vontade e unanimidade, mais que pela natureza, porque foi dito: A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma (At 4,82) e Aquele que planta e aquele que rega são um (1Cor 3,8), e ainda: Não rogo somente por eles, mas, por aqueles que, pela sua palavra, crerão em mim, a fim de que todos sejam um, como tu, Pai, estás em mim, e eu em ti, para que eles estejam em nós (Jo 17,20- 21).

3.      Nós, porém, examinando estas mesmas palavras segundo sua própria força (isto é, segundo a autoridade delas), mostramos conterem em si a fé na divina natividade.

4.      Estudando atentamente todas as afirmações do Senhor, ensinamos, segundo os precônios apostólicos e as palavras do Espírito Santo, o íntegro e perfeito mistério da majestade do Pai e do Unigênito. Pois o Filho compreendido no Pai e o Pai conhecido no Filho demonstram o nascimento do Deus Unigênito e a verdade de sua perfeita divindade.

Capítulo 29.

5.      Nas questões mais necessárias relativas à salvação, é pouco apresentar somente argumentos próprios à satisfação da fé, porque muitas vezes as afirmações não completamente entendidas de nossa exposição enganam e mudam de sentido.

6.      No entanto, os argumentos apresentados pelos nossos adversários são tão ridículos que, por si mesmos, confirmam a nossa fé. Por isso, todo o nono livro se ocupa em repelir os argumentos usados pelos ímpios, que intentam tirar a força da natividade do Deus Unigênito, esquecidos do mistério da Economia oculto há séculos, e não se lembram de pregar, conforme a fé evangélica, o Deus e Homem.

7.      Negam que Nosso Senhor Jesus Cristo seja Deus e, como Deus Filho, igual a Deus Pai. Negam que tenha nascido de Deus, subsistindo em virtude da geração eterna, na verdade do Espírito (isto é, da divindade).

8.      Costumam apoiar-se nestas palavras do Senhor: Por que me chamas bom? 25 Ninguém é bom a não ser o único Deus (Lc 18,19). Dizem que, respondendo ao ser chamado de bom, que, a não ser o único Deus, ninguém é bom, demonstra que está fora da bondade de Deus, que é o bom, e também que não está na verdade de Deus, que é um.

9.      A estas palavras também acrescentam mais argumentos para a impiedade: É esta a vida eterna, que te conheçam a ti, único e verdadeiro Deus, e a quem enviaste, Jesus Cristo (Jo 17,3). Argumentam que, se declara ser o Pai o único Deus verdadeiro, não é nem verdadeiro, nem Deus, porque a unicidade do único Deus verdadeiro não pode estender-se para além daquele que possui tal propriedade.

10.  Não se entenda ter dito isto de maneira ambígua, dizem eles, visto que Ele mesmo declarou: O Filho por si mesmo nada pode fazer, mas só aquilo que vê o Pai fazer (Jo 5,19).

11.  Não poder fazer nada sem um exemplo revela a fraqueza da natureza, e de modo algum se pode igualar à onipotência a submissão de alguém que depende da ação de outrem.

12.  A própria razão mostra que existe uma grande diferença entre poder todas as coisas e não poder. Esta diferença existe a ponto de ter Ele mesmo declarado: O Pai é maior do que eu (Jo 14,28).

13.  Querem que cesse toda ocasião de contradizer esta confissão, dada a sua clareza, pois seria impiedade atribuir a natureza e a honra devidas a Deus a quem as recusa.

14.  Além disso, dizem estar tão longe dele a natureza do verdadeiro Deus que chega a atestar: Quanto ao dia e à hora ninguém conhece, nem os anjos nos céus, nem o Filho, mas somente o Pai (Mc 13,32). Que o Filho não saiba o que somente o Pai sabe mostra estar longe do que sabe Aquele que não sabe, porque na natureza submetida à ignorância não podem existir a força e o poder, que estão proibidos a quem é dominado pela ignorância.

Capítulo 30.

15.  Mostramos que estas coisas foram entendidas de modo ímpio, com um sentido corrupto e depravado. Apresentamos todas as causas de suas afirmações, segundo o gênero das questões, os tempos e a economia da salvação, antepondo as causas às palavras, ao invés de atribuirmos as causas às palavras.

16.  Há diferença entre: o Pai é maior do que eu (Jo 14,20) e Eu e o Pai somos um (Jo 10,30), como não é o mesmo dizer: Ninguém é bom, a não ser o único Deus (Lc 18,19), e: Quem me vê, vê também o Pai (Jo 14,9).

17.  Sem dúvida, há grande diversidade entre estas afirmações contrárias: Pai, tudo o que é teu é meu, e o que é meu é teu (Jo 17,10), e: Para que te conheçam, a ti, único e verdadeiro Deus ( Jo 17,3), ou entre: Eu estou no Pai, e o Pai em mim (Jo 14,11), e: Quanto ao dia e a hora ninguém conhece, nem os anjos nos céus, nem o Filho, mas somente o Pai (Mc 13,31).

18.  É preciso entender, em cada uma destas afirmações, o que se refere à economia e o que se refere ao poder da natureza consciente de si mesma. Como o autor de todos os ditos é o mesmo, ficando demonstrado o valor de cada gênero de declaração (das diferentes naturezas que existem em Cristo), não se pode dizer que seja desconhecimento da verdadeira divindade aquilo que é pregado a respeito do mistério da fé evangélica, no que se refere à manifestação da causa, do tempo, da natividade e do nome.

Capítulo 31.

19.  O livro décimo tem o mesmo teor que a fé. Tendo eles roubado algumas declarações sobre os sofrimentos do Senhor, tomando-as, de modo estulto, como injúria à natureza divina de Jesus Cristo Senhor e a seu poder, foi preciso provar terem sido entendidas por eles com toda a impiedade e lembrar que o Senhor as pronunciou a fim de dar testemunho da verdadeira e perfeita majestade nele existente.

20.  Para ocultar sua impiedade sob uma aparente religiosidade servem-se de maneira enganosa destas palavras: Minha alma está triste até a morte (Mt 26,38).

21.  Querem mostrar, assim, como está longe da bem-aventurança e incorruptibilidade de Deus Aquele cuja alma é dominada pelo medo da tristeza iminente e que chega a suplicar, aterrorizado pela necessidade da Paixão: Pai, se for possível, que se afaste de mim este cálice (Mt 26,39).

22.  Pareceria, sem dúvida, temer o sofrimento, por ter orado para se ver livre dele, porque a ansiedade diante da dor foi a causa do pedido e a violência do sofrimento venceu de tal modo sua fraqueza, que chegou a dizer quando padecia na cruz: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? (Mt 27,46) e, queixando-se de sua desolação, comovido pela amargura, privado do auxílio paterno, entregou o espírito dizendo: Pai, em tuas mãos entrego meu espírito (Lc 23,46).

23.  Ao exalar o espírito, perturbado pelo temor, entregou-o a Deus Pai para guardá-lo, porque o desespero de não ter segurança exigiu a entrega.

Capítulo 32.

24.  Estes estultíssimos e ímpios homens, sem compreenderem que nada nas ações era contrário às palavras, apegando-se somente a elas, puseram de lado as causas pelas quais foram ditas.

25.  É muito diferente: Minha alma está triste até a morte (Mt 26,38), de: Logo vereis o Filho do Homem assentado à direita do poder de Deus (Mt 26, 64), e não é o mesmo: Pai, se possível, passe de mim este cálice, que: O cálice que meu Pai me deu, não o beberei? (Jo 18,11).

26.  Grande diferença existe entre: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? (Mt 27,43), e: Em verdade eu te digo, hoje estarás comigo no paraíso (Lc 23,43); muito divergem: Pai, em tuas mãos entrego meu espírito (Lc 23,46), e: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem (Lc 23, 34).

27.  Recaíram na impiedade, incapazes de entender as palavras divinas. Já que não combinam temor e liberdade, prontidão e escusa, queixa e advertência, desconfiança e intercessão, sem se lembrarem do que foi dito sobre a natureza divina, mantiveram como provas de sua impiedade os fatos e as palavras da economia.

28.  Por isso, tendo demostrado tudo o que pertence ao mistério, tanto da alma quanto do corpo do Senhor Jesus Cristo, não deixamos nada sem ser explorado, nada foi passado em silêncio.

29.  Combinando a explicação de todas as palavras segundo seu gênero, demonstramos que a confiança não temeu e a vontade não hesitou e que Ele não procurou segurança nem orou para recomendar-se a si mesmo, mas desejou o perdão para os outros.

30.  Confirmamos, pela pregação absoluta do mistério evangélico, a fé em todas as suas palavras.

Capítulo 33.

31.  A estes homens sem esperança, nem mesmo a própria glória da ressurreição pôde manter dentro dos limites da fé, pelo conhecimento da verdadeira religião e compreensão da verdade.

32.  Da confissão da divina condescendência tiraram armas para sua impiedade. A revelação do mistério serviu-lhes para desprezar a Deus. Por ter dito: Subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus (Jo 20,17), excluem-no da natureza do Deus verdadeiro já que também é comum, a nós e a Ele, que o Pai seja Pai, e que Deus seja Deus.

33.  Afirmam estar, como nós, submetido a Deus criador e ser Filho por adoção. Baseiam-se nas palavras do Apóstolo: Ao dizer que tudo lhe está submetido, excetua-se sem dúvida Aquele que lhe sujeitou todas as coisas. E, quando tudo lhe estiver submetido, então ainda o próprio Filho estará submetido Àquele que lhe submeteu todas as coisas, a fim de que Deus seja tudo em todos (1Cor 1,15.27-28), para não querer admitir que haja nele a natureza divina, porque a submissão implica fraqueza do que é dominado e significa poder do que domina.

34.  Destas questões, que devem ser estudadas com grande reverência, ocupa-se o livro undécimo, que demostra, pelas próprias palavras apostólicas, que a submissão não prova a fraqueza da divindade, mas, justamente, mostra a verdade de Deus, nascido de Deus.

35.  Que o Pai seja Pai para Ele e para nós, e Deus para Ele e para nós, muito nos enriquece e dele nada retira, pois, tendo nascido Homem e possuindo todas as limitações de nossa carne, subiu para Deus, a fim de que nossa humanidade fosse elevada até Deus, nosso Pai, e fosse glorificada em Deus.

Capítulo 34.

36.  Conforme observamos, todo gênero de estudos sempre começa pelos exercícios elementares.

37.  Depois de longo tempo, os que foram formados por muita dedicação ao seu ofício tornam-se capazes de passar para a experiência daquilo em que se exercitaram. Após militar nos exercícios bélicos, passa-se para o exército; os que foram formados para tomar parte nos debates forenses pelo estudo das leis, finalmente são enviados aos debates dos tribunais; quando o nauta intrépido já se exercitou em lagos pequenos e conhece bem a nave, é então que enfrenta os grandes e desconhecidos mares com suas procelas.

38.  O mesmo acontece com esta máxima e gravíssima compreensão de toda a fé. Foi o que procuramos fazer. Antes, por breves indícios sobre o nascimento, o nome, a divindade, a verdade, educamos a fé incipiente e, progredindo lentamente, chegamos a extirpar todos os pretextos dos hereges.

39.  Quisemos aumentar assim o desejo de aprender dos que nos leem. Só então os levamos a participar das grandes e gloriosas competições, porque, na medida em que falha a mente humana em querer abarcar, só com a opinião do senso comum, a ideia do eterno nascimento, na mesma medida deverá ser despertado o interesse pelas questões divinas, para que seja possível perceber o que ultrapassa nossa compreensão natural.

40.  Procuramos principalmente refutar a opinião que, alimentada pela estupidez da sabedoria secular, julga-se no direito de dizer a respeito do Senhor Jesus: Houve tempo em que não existia, e: Não era antes de nascer, e: Foi feito do não existente, porque o nascimento pareceria fazer ser o que não era e nascer o que ainda não existia.

41.  Os hereges também submetem o Deus Unigênito à ideia de tempo, como se a fé e o nascimento indicassem que não existiu em algum tempo.

42.  Dizem ter nascido do que não existia, porque o nascimento concede o ser ao que não era.

43.  Nós, porém, de acordo com os testemunhos apostólicos e evangélicos, pregamos existir sempre o Pai e sempre o Filho, mostrando que o Deus de todas as coisas não existiu depois de nenhuma, mas é antes de tudo.

44.  Sem cair na temeridade irreligiosa da ideia de que tenha nascido do não existente e de que não tenha sido antes de ter nascido, pregamos que nasceu, tendo existido sempre, e proclamamos que sempre existiu tendo nascido.

45.  Nele não se trata de uma exceção de inascibilidade, mas da eternidade do nascimento, porque o nascimento supõe o Pai, mas a divindade não deixa de ser eterna.

Capítulo 35

46.  Por ignorarem os ditos proféticos e não compreenderem as doutrinas celestes, para afirmarem ser Deus criado, em vez de nascido, apoiam-se no sentido atribuído erroneamente a esta sentença: O Senhor me criou para o início de seus caminhos e para suas obras (Pr 8,22).

47.  Dizem, por isso, que pertence à natureza comum da criação, embora seja mais excelente o gênero de sua criação. Nele, portanto, não há a glória do nascimento divino, mas a força da criatura poderosa.

48.  Nós, porém, sem apresentar nada de novo, nada que seja deduzido a partir de argumentos exteriores, daremos, pelo testemunho da própria Sabedoria, a verdadeira interpretação desta palavra.

49.  Não se pode eliminar o nascimento divino e eterno, a partir da afirmação de ter sido a Sabedoria criada para o início dos caminhos de Deus e suas obras. Não é a mesma coisa ser ela criada para, e ter nascido antes de todas as coisas, pois onde se fala de natividade, só se declara a natividade; onde, porém, há a palavra criação, aí a causa da mesma criação é anterior. Se a Sabedoria nasceu antes de tudo, embora também tenha sido criada para algumas coisas, não é a mesma coisa existir antes de tudo e ter começado a existir depois de algumas coisas.

Capítulo 36.

50.  Depois de eliminar a palavra criação da fé que temos no Deus Unigênito, pareceu justo ensinar também o que se deve confessar a respeito do Espírito Santo para que, já há muito confirmados pelo estudo diligente dos livros anteriores, nada falte à perfeição de toda a fé, e para que, afastadas também as pregações errôneas e irreligiosas sobre o Espírito Santo, o mistério da Trindade que regenera esteja contido, ileso e puro, na salutar definição da autoridade apostólica e evangélica, e não mais se ouse, com base na simples inteligência humana, enumerar entre as criaturas o Espírito de Deus que receberemos como penhor da imortalidade para chegar ao consórcio da divina e incorrupta natureza.

Capítulo 37.

51.  Estou consciente de ter como a tarefa mais importante de minha vida o dever de tudo fazer para que toda minha palavra e ideia te manifeste, a ti, Deus Pai onipotente.

52.  Não pode existir maior prêmio para a faculdade de falar, a mim concedida por ti, do que servir-te proclamando e ensinando quem tu és.

53.  Que ao mundo ignorante ou ao herege que te nega, eu demonstre que tu és Pai, isto é, Pai do Deus Unigênito. É este o meu único desejo.

54.  Quanto ao mais, devo pedir que me concedas teu auxílio e misericórdia e que, abertas e infladas as velas de nossa fé em ti e de nossa confissão, nos impulsiones, pelo sopro de teu Espírito, nesta pregação iniciada.

55.  Não é infiel o autor da promessa: Pedi e vos será dado; procurai e achareis; batei e abrir-se-vos-á (Lc 11,9).

56.  Nós, indigentes, pediremos aquilo de que precisamos e, ao perscrutar as palavras de teus Profetas e Apóstolos, empregaremos um esforço obstinado, batendo às portas de todas as interpretações difíceis.

57.  A ti pertence conceder o que foi pedido, estar presente ao que busca, abrir a quem bate. Pois estamos entorpecidos pela preguiça própria a nossa natureza que nos imobiliza.

58.  A fraqueza de nossa inteligência nos aprisiona numa ignorância que não permite conhecer teus mistérios. Mas o zelo pelo conhecimento de tua doutrina nos estimula a alcançar a verdade divina, e a obediência da fé nos conduz para além daquilo que é próprio de nossa natureza.

Capítulo 38.

59.  Esperamos, portanto, que este trabalho que iniciamos receba de ti sua força e possa progredir com teu auxílio.

60.  Chama-nos a participar do Espírito dos Profetas e dos Apóstolos, para que compreendamos suas palavras no sentido que eles lhes deram e não em sentido diferente, e respeitemos o sentido real de cada uma delas.

61.  Devemos falar daquilo que foi pregado por eles como mistério: de ti, Deus eterno, Pai do eterno Deus Unigênito, de ti que és o único não nascido e do único Senhor Jesus Cristo, que de ti procede pelo nascimento eterno, que não pode ser considerado como um outro Deus e deve ser reconhecido como gerado de ti, único Deus, e a quem devemos confessar como verdadeiro Deus nascido de ti, verdadeiro Pai.

62.  Concede-nos compreender o significado das palavras, dá-nos luz para a inteligência, dignidade nas palavras e fé na verdade.

63.  Permite que possamos anunciar aquilo que acreditamos e, tendo-te conhecido por intermédio dos Profetas e Apóstolos como o único Deus Pai e o único Senhor Jesus Cristo, negando as afirmações dos hereges, te celebremos como Deus, mas não sozinho, e anunciemos a Ele, mas não como falso Deus.

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