LIVRO SEGUNDO
1.
Atreva-se Sabélio a afirmar que o Pai e o Filho
são o mesmo e que este mesmo recebe dois nomes. Sendo ambos um (uma só Pessoa)
e não um só (uma só Natureza).
2.
Ouvirá logo os Evangelhos, não uma ou duas
vezes, mas frequentemente: Este é o meu Filho amado em quem tenho meu prazer
(Mt 17,5). Ouvirá também: O Pai é maior do que eu (Jo 14,28), e também: Eu vou
para o Pai (Jo 14,12); Pai, eu te dou graças (Jo 11, 41); Pai, glorifica-me (Jo
17,5), e Tu és o Filho do Deus vivo (Mt 16,16).
3.
Insinue-se Ebion, atribuindo a origem do Filho
de Deus ao seu nascimento de Maria, e entendendo que o Verbo começou a existir
nos dias de sua carne.
4.
Releia: Pai, glorifica-me junto a ti com aquela
glória que tinha junto de ti antes que o mundo existisse (Jo 17,5); No
princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus (Jo
1,1); Por meio dele foram feitas todas as coisas (Jo 1,3); Estava no mundo e o
mundo foi feito por Ele, e o mundo não o conheceu (Jo 1,10).
5.
Apareçam novos apostolados, segundo o
anticristo, pregadores, que zombam do Filho de Deus com todas as injúrias e
ouçam: Eu saí do Pai (Jo 16,28); O Filho no seio do Pai (Jo 1,18); Eu e o Pai
somos Um (Jo 10,30), e: Eu estou no Pai, e o Pai, em mim (Jo 14,11).
6.
Por último, junto com os judeus, irritem-se
porque Cristo, afirmando ter a Deus como Pai, se fez igual a Deus e, junto com
eles, ouçam: pelas minhas obras, crede que o Pai está em mim, e eu no Pai (Jo
14,11).
7.
Portanto, é uno este inabalável fundamento, una
esta afortunada pedra da fé, confessada pela boca de Pedro: Tu és o Filho de
Deus vivo (Mt 16,16). Esta confissão contém em si tantos argumentos da verdade
quantas questões de perversidade e calúnias de infidelidade foram levantadas.
Capítulo 24.
8.
A economia da vontade paterna se manifesta em
outras coisas: a Virgem, o parto, o corpo; depois, a cruz, a morte, o reino dos
mortos, a nossa salvação.
9.
Por causa do gênero humano, o Filho de Deus
nasceu da Virgem e, pelo Espírito Santo, atuando Ele mesmo nesta obra, isto é,
pela virtude de Deus, cobrindo-a com sua sombra, implantou os inícios de seu
corpo e instituiu o princípio da vida na carne, para que, feito Homem, pela
Virgem, recebesse a natureza da carne e, por esta união, o corpo de todo o
gênero humano fosse santificado, a fim de que, assim como todos nele foram
assumidos, por ter querido ter um corpo, também a todos, Ele próprio se desse,
por aquilo que nele é invisível.
10. Por
isso a imagem de Deus invisível não recusou a humildade do início humano, e
pela concepção, parto, vagido, berço, passou por todas as nossas limitações.
Capítulo 25.
11. Que
daremos então em resposta a tão grande misericórdia? O único Deus unigênito,
nascido de Deus de modo inefável, na forma de um corpinho humano, cresceu
inserido no seio da santa Virgem. Aquele que tudo contém, e dentro de quem e
por meio de quem tudo existe, segue a lei do nascimento humano; aquele a cuja
voz os anjos tremem, o céu, a terra e todos os elementos deste mundo se
dissolvem, é ouvido no vagido da criança.
12. Aquele
que é invisível e incompreensível, que não pode ser alcançado pela vista,
sentidos e tato, cabe num berço.
13. Se
alguém considera em sua mente serem estas coisas indignas de Deus, tanto mais
se confessará devedor de maior benefício, quanto menos forem conformes à
majestade de Deus.
14. Não
tinha necessidade de se tornar Homem Aquele por quem o homem foi feito, mas nós
tivemos necessidade de que Deus se fizesse carne, e habitasse em nós, isto é,
pela assunção da carne de um só corpo, habitasse no íntimo de toda a carne. Sua
humilhação nos nobilita, seu rebaixamento é nossa honra; porque, vivendo Deus
na carne, nós, por nossa vez, em Deus somos renovados pela carne.
Capítulo 26.
15. Como
talvez os pensamentos de mentes escrupulosas hesitem diante do berço, vagidos,
parto e concepção, deve-se ter presente em cada uma destas coisas a devida
dignidade de Deus.
16. É
preciso considerar que a humildade voluntária precede o magnífico poder, e que,
por outro lado, a honra não faz desaparecer a condescendência.
17. Vejamos
os benefícios da concepção. O anjo fala a Zacarias, traz a fecundidade à
estéril; o sacerdote sai do mundo do altar, do incenso, e João, ainda no seio
da mãe, fala. O anjo bendiz Maria e é prometido à Virgem ser a Mãe do Filho de
Deus. Esta, cônscia da dificuldade de sua virgindade, se comove, e o anjo expõe
a eficácia da obra divina, dizendo: O Espírito Santo virá sobre ti, e a virtude
do Altíssimo te cobrirá com sua sombra (Lc 1,35).
18. O
Espírito Santo, vindo sobre a Virgem, santificou seu íntimo, e, nele
inspirando, porque o Espírito sopra onde quer (Jo 3,8), uniu-se à natureza da
carne humana e assumiu o que era estranho a si, por sua virtude e poder e, para
que nada, por fraqueza do corpo humano, estivesse em dissonância, a virtude do
Altíssimo cobriu com sua sombra a Virgem, fortificando sua fraqueza e
circundando-a como uma sombra, a fim de que a proteção da divina virtude
preparasse a substância corporal para a eficácia generativa do Espírito que
nela entrava. É esta a dignidade da concepção.
Capítulo 27.
19. Vejamos
a dignidade que acompanha o parto, o vagido, o berço. O anjo diz a José que a
Virgem dará à luz e que o que vai nascer deverá ser chamado Emanuel, isto é,
Deus conosco. O Espírito proclama pelo Profeta (cf. Is 7,14), o anjo dá
testemunho, Deus conosco é aquele que vai nascer. Do céu mostra-se aos Magos a
nova luz de uma estrela, e o sinal celeste acompanha o Senhor do céu (cf. Mt
2,2.9). O anjo anuncia aos pastores o nascimento de Cristo, o Senhor, salvação
de todos. A multidão do exército celeste acorre em louvor do recém-nascido, e
os coros divinos proclamam com hinos o gáudio de tão grande obra. Em seguida se
proclama: Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por Ele amados
(Lc 2,14).
20. A
seguir aparecem os Magos e adoram o que está envolto em panos. Depois de se
terem dedicado aos arcanos de sua vã ciência, dobram os joelhos diante do berço
(cf. Mt 2,11). Assim, pelos Magos, os panos sujos do berço são reverenciados,
assim o vagido é honrado pelo gáudio dos anjos, assim é honrado o nascimento
pelo Espírito, que o proclama por meio do Profeta, pelo anjo que anuncia, pela
estrela de nova luz.
21. Assim,
vindo o Espírito Santo, e a virtude do Altíssimo cobrindo com sua sombra,
realizam o princípio do nascimento. Os olhos veem uma coisa, outra se contempla
com o espírito. A Virgem dá à luz; o parto vem de Deus. O menininho choraminga,
os anjos ouvem louvando. As roupas ficam sujas, Deus é adorado. Deste modo, a
nobreza do poder não se perde, quando é adotada a humildade da carne.
Capítulo 28.
22. O
mesmo aconteceu no decorrer do tempo. Todo o tempo em que viveu como homem,
realizou as obras de Deus. O tempo não permite falar de cada uma destas obras;
apenas deve-se prestar atenção ao fato de que, em todos os gêneros de milagres
e curas, Ele era Homem pela assunção da carne e mostrava ser Deus pelas obras
que realizava.
Capítulo 29.
23. A
respeito do Espírito Santo, não convém calar-se nem é necessário falar; mas,
por causa dos que não o conhecem, não é possível calar.
24. De
fato, não é necessário falar sobre Ele, a quem o Pai e o Filho consideram digno
de ser louvado.
25. Julgo
que, na verdade, não se deve pesquisar se existe. Pois Ele existe, uma vez que
é dado, recebido, obtido. Se está unido à confissão do Pai e do Filho, não pode
ser separado da confissão do Pai e do Filho, pois, para nós, imperfeito é um
todo, se algo falta a este todo.
26. Se
alguém perguntar qual é o nosso parecer sobre Ele, leiamos no Apóstolo ambas as
coisas: Porque sois filhos de Deus, enviou Deus o Espírito de seu Filho a nosso
coração a clamar: Abba, Pai (Gl 4,6). E ainda: Não contristeis o Espírito Santo
de Deus, no qual sois assinalados (Ef 4,30). E de novo: Nós, porém, não
recebemos o espírito deste mundo, mas o Espírito que vem de Deus, para que
saibamos o que por Deus nos foi dado (1Cor 2,12). E mais: Vós, porém, não
estais na carne, mas no Espírito; se realmente o Espírito de Deus está em vós.
Se alguém não possui o Espírito de Cristo, este não é dele (Rm 8,9). E: Se,
porém, seu Espírito, que ressuscitou Cristo dos mortos, habita em vós, Aquele
que ressuscitou Cristo dos mortos vivificará também vossos corpos mortais por
causa do seu Espírito que habita em vós (Rm 8,11).
27. E
já que Ele existe, é dado e é possuído, e é de Deus; cale-se toda palavra dos
caluniadores.
28. Quando
perguntam por quem Ele existe, para que existe e quem é, se nossa resposta
desagradar ao dizer que vem à existência por Aquele por meio de quem foram
feitas todas as coisas e que provém daquele do qual tudo procede, e que, porque
é o Espírito de Deus, foi dado aos fiéis, estarão desagradando não só os
Apóstolos e Profetas, que sobre Ele falaram, como também o Pai e o Filho.
Capítulo 30.
29. Julgo
que alguns permanecem na ignorância e na ambiguidade pelo motivo de ser este o
terceiro, isto é, porque quando se nomeia o Espírito Santo, frequentemente
tratase de uma referência ao Pai e ao Filho. Nada de escrúpulo quanto a isto: o
Pai, como o Filho, é Espírito e é Santo.
Capítulo 31.
30. Deve-se
estudar com cuidado o que se lê nos Evangelhos: Deus é Espírito (Jo 4,24), para
se entender por que motivo isto foi dito.
31. Existe
uma razão para tudo o que se diz, e seu sentido deve ser explicado pela razão
pela qual é dito, para que não aconteça que, sendo a resposta do Senhor: Deus é
Espírito, negue-se, não só o nome do Espírito Santo, mas também sua possessão e
seu dom.
32. O
Senhor falava com a Samaritana, pois chegara a redenção do mundo todo. Depois
de muito falar sobre a água viva, os cinco maridos, e aquele que, agora, não
era seu (cf. Jo 4,20), respondeu-lhe a mulher: “Senhor, vejo que és profeta.
Nossos pais adoraram sobre este monte, e vós dizeis que é em Jerusalém que se
deve adorar”. Disse-lhe Jesus: “Mulher, crê-me que é chegada a hora em que não
adorareis o Pai nem neste monte, nem em Jerusalém. Vós adorais o que não
conheceis; nós adoramos o que conhecemos, porque dos judeus é que vem a
salvação. Mas vem a hora, e já chegou, em que os verdadeiros adoradores
adorarão o Pai em espírito e verdade. Porque é a esses adoradores que o Pai
procura. E em espírito e verdade é que devem adorar os que o adoram, porque
Deus é Espírito” (Jo 4,21-24).
33. A
mulher, bem lembrada da tradição dos pais, julgava que se deveria adorar no
monte, na Samaria, ou no Templo, em Jerusalém. Samaria, pela transgressão da
Lei, escolhera o monte para adorar a Deus, mas os judeus consideravam o Templo
construído por Salomão o lugar da religião.
34. Tinham
os judeus e os samaritanos uma opinião errada, pretendendo conter no cimo do
monte ou dentro de um edifício aquele Deus em quem tudo está contido e que não
pode ser contido por nada que esteja fora dele.
35. Porque
Deus é invisível, incompreensível e imenso, o Senhor disse já ter chegado o
tempo em que, nem no monte, nem no Templo, deveria ser adorado, porque Deus é
Espírito, e o Espírito não pode ser circunscrito nem retido, porque, pela sua
natureza, está em toda parte, e não deixa de estar em parte alguma,
transbordando em todas as coisas.
36. Por
conseguinte, são verdadeiros adoradores aqueles que hão de adorar em Espírito e
verdade.
37. Para
os que vão adorar no Espírito o Deus Espírito, o primeiro terá uma função, o
segundo receberá a honra, porque Aquele que há de ser adorado não é o mesmo que
Aquele no qual é adorado.
38. Não
se negará ao Espírito Santo nem o nome nem o dom, porque foi dito: Deus é
Espírito. A resposta dada à mulher que encerrava Deus no monte e no templo é
que tudo é em Deus, e Deus é em si mesmo.
39. Sendo
invisível e incompreensível, Deus deve ser adorado no que é invisível e
incompreensível. Deste modo é indicada a natureza do dom e da honra, quando se
ensina que o Deus Espírito deve ser adorado no Espírito; e a liberdade e o
conhecimento dos adoradores e a infinidade do Adorado se mostram quando, no
Espírito, Deus Espírito é adorado.
Capítulo 32.
40. São
semelhantes a estas as palavras do Apóstolo: O Senhor é Espírito, e onde está o
Espírito do Senhor, aí está a liberdade (2Cor 3,17).
41. Estabeleceu
uma distinção entre o que é e o que é dele, para permitir a compreensão, do que
foi enunciado, pois ter e ser tido não significam a mesma coisa, e ele e dele
não têm o mesmo sentido.
42. Por
isso, ao dizer o Senhor é Espírito, mostrou a infinitude de sua natureza;
quando acrescenta: Onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade, indicou
Aquele que é dele, porque o Senhor é Espírito, e onde está o Espírito do Senhor
aí está a liberdade. Isto se diz, não porque seja necessário, mas para que nada
permaneça obscuro.
43. O
Espírito Santo é um em toda parte, iluminando os Patriarcas, os Profetas e todo
o coro da Lei. Foi Ele também que inspirou a João no seio materno. Foi
concedido em seguida aos Apóstolos e aos outros fiéis, para o conhecimento
daquela verdade que lhes foi dada.
Capítulo 33.
44. Qual
seja sua ação em nós, ouçamos pelas próprias palavras do Senhor: Tenho ainda muito a vos dizer, mas agora não podeis
compreender (Jo 16,12). É bom para vós que eu vá; se eu for, enviarei a vós
outro Advogado (Jo 16,7). Rogarei ao Pai, e vos enviará um outro Advogado para
que permaneça convosco para sempre, o Espírito da verdade (Jo 14,16-17). Ele
vos conduzirá à verdade plena, pois não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que
tiver ouvido e vos anunciará as coisas futuras. Ele me glorificará porque
receberá do que é meu e vos anunciará (Jo 16,13-14).
45. Estas
coisas, tiradas de muitos lugares, foram ditas para abrir caminho ao
entendimento. Nelas está contida a vontade do Doador e o sentido e a condição
do Dom.
46. Visto
que nossa fraqueza não pode alcançar nem o Pai nem o Filho, o dom do Espírito,
com sua intercessão, ilumina nossa difícil fé na encarnação de Deus.
O que você destaca em cada capítulo?
Como este texto auxilia sua espiritualidade?
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