terça-feira, 10 de maio de 2022

200 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Segundo (Capítulos 23-33)


                                                                               

200

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Segundo (Capítulos 23-33)


LIVRO SEGUNDO

 Capítulo 23.

1.      Atreva-se Sabélio a afirmar que o Pai e o Filho são o mesmo e que este mesmo recebe dois nomes. Sendo ambos um (uma só Pessoa) e não um só (uma só Natureza).

2.      Ouvirá logo os Evangelhos, não uma ou duas vezes, mas frequentemente: Este é o meu Filho amado em quem tenho meu prazer (Mt 17,5). Ouvirá também: O Pai é maior do que eu (Jo 14,28), e também: Eu vou para o Pai (Jo 14,12); Pai, eu te dou graças (Jo 11, 41); Pai, glorifica-me (Jo 17,5), e Tu és o Filho do Deus vivo (Mt 16,16).

3.      Insinue-se Ebion, atribuindo a origem do Filho de Deus ao seu nascimento de Maria, e entendendo que o Verbo começou a existir nos dias de sua carne.

4.      Releia: Pai, glorifica-me junto a ti com aquela glória que tinha junto de ti antes que o mundo existisse (Jo 17,5); No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus (Jo 1,1); Por meio dele foram feitas todas as coisas (Jo 1,3); Estava no mundo e o mundo foi feito por Ele, e o mundo não o conheceu (Jo 1,10).

5.      Apareçam novos apostolados, segundo o anticristo, pregadores, que zombam do Filho de Deus com todas as injúrias e ouçam: Eu saí do Pai (Jo 16,28); O Filho no seio do Pai (Jo 1,18); Eu e o Pai somos Um (Jo 10,30), e: Eu estou no Pai, e o Pai, em mim (Jo 14,11).

6.      Por último, junto com os judeus, irritem-se porque Cristo, afirmando ter a Deus como Pai, se fez igual a Deus e, junto com eles, ouçam: pelas minhas obras, crede que o Pai está em mim, e eu no Pai (Jo 14,11).

7.      Portanto, é uno este inabalável fundamento, una esta afortunada pedra da fé, confessada pela boca de Pedro: Tu és o Filho de Deus vivo (Mt 16,16). Esta confissão contém em si tantos argumentos da verdade quantas questões de perversidade e calúnias de infidelidade foram levantadas.

 

Capítulo 24.

8.      A economia da vontade paterna se manifesta em outras coisas: a Virgem, o parto, o corpo; depois, a cruz, a morte, o reino dos mortos, a nossa salvação.

9.      Por causa do gênero humano, o Filho de Deus nasceu da Virgem e, pelo Espírito Santo, atuando Ele mesmo nesta obra, isto é, pela virtude de Deus, cobrindo-a com sua sombra, implantou os inícios de seu corpo e instituiu o princípio da vida na carne, para que, feito Homem, pela Virgem, recebesse a natureza da carne e, por esta união, o corpo de todo o gênero humano fosse santificado, a fim de que, assim como todos nele foram assumidos, por ter querido ter um corpo, também a todos, Ele próprio se desse, por aquilo que nele é invisível.

10.  Por isso a imagem de Deus invisível não recusou a humildade do início humano, e pela concepção, parto, vagido, berço, passou por todas as nossas limitações.

 

Capítulo 25.

11.  Que daremos então em resposta a tão grande misericórdia? O único Deus unigênito, nascido de Deus de modo inefável, na forma de um corpinho humano, cresceu inserido no seio da santa Virgem. Aquele que tudo contém, e dentro de quem e por meio de quem tudo existe, segue a lei do nascimento humano; aquele a cuja voz os anjos tremem, o céu, a terra e todos os elementos deste mundo se dissolvem, é ouvido no vagido da criança.

12.  Aquele que é invisível e incompreensível, que não pode ser alcançado pela vista, sentidos e tato, cabe num berço.

13.  Se alguém considera em sua mente serem estas coisas indignas de Deus, tanto mais se confessará devedor de maior benefício, quanto menos forem conformes à majestade de Deus.

14.  Não tinha necessidade de se tornar Homem Aquele por quem o homem foi feito, mas nós tivemos necessidade de que Deus se fizesse carne, e habitasse em nós, isto é, pela assunção da carne de um só corpo, habitasse no íntimo de toda a carne. Sua humilhação nos nobilita, seu rebaixamento é nossa honra; porque, vivendo Deus na carne, nós, por nossa vez, em Deus somos renovados pela carne.

 

Capítulo 26.

15.  Como talvez os pensamentos de mentes escrupulosas hesitem diante do berço, vagidos, parto e concepção, deve-se ter presente em cada uma destas coisas a devida dignidade de Deus.

16.  É preciso considerar que a humildade voluntária precede o magnífico poder, e que, por outro lado, a honra não faz desaparecer a condescendência.

17.  Vejamos os benefícios da concepção. O anjo fala a Zacarias, traz a fecundidade à estéril; o sacerdote sai do mundo do altar, do incenso, e João, ainda no seio da mãe, fala. O anjo bendiz Maria e é prometido à Virgem ser a Mãe do Filho de Deus. Esta, cônscia da dificuldade de sua virgindade, se comove, e o anjo expõe a eficácia da obra divina, dizendo: O Espírito Santo virá sobre ti, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com sua sombra (Lc 1,35).

18.  O Espírito Santo, vindo sobre a Virgem, santificou seu íntimo, e, nele inspirando, porque o Espírito sopra onde quer (Jo 3,8), uniu-se à natureza da carne humana e assumiu o que era estranho a si, por sua virtude e poder e, para que nada, por fraqueza do corpo humano, estivesse em dissonância, a virtude do Altíssimo cobriu com sua sombra a Virgem, fortificando sua fraqueza e circundando-a como uma sombra, a fim de que a proteção da divina virtude preparasse a substância corporal para a eficácia generativa do Espírito que nela entrava. É esta a dignidade da concepção.

 

Capítulo 27.

19.  Vejamos a dignidade que acompanha o parto, o vagido, o berço. O anjo diz a José que a Virgem dará à luz e que o que vai nascer deverá ser chamado Emanuel, isto é, Deus conosco. O Espírito proclama pelo Profeta (cf. Is 7,14), o anjo dá testemunho, Deus conosco é aquele que vai nascer. Do céu mostra-se aos Magos a nova luz de uma estrela, e o sinal celeste acompanha o Senhor do céu (cf. Mt 2,2.9). O anjo anuncia aos pastores o nascimento de Cristo, o Senhor, salvação de todos. A multidão do exército celeste acorre em louvor do recém-nascido, e os coros divinos proclamam com hinos o gáudio de tão grande obra. Em seguida se proclama: Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por Ele amados (Lc 2,14).

20.  A seguir aparecem os Magos e adoram o que está envolto em panos. Depois de se terem dedicado aos arcanos de sua vã ciência, dobram os joelhos diante do berço (cf. Mt 2,11). Assim, pelos Magos, os panos sujos do berço são reverenciados, assim o vagido é honrado pelo gáudio dos anjos, assim é honrado o nascimento pelo Espírito, que o proclama por meio do Profeta, pelo anjo que anuncia, pela estrela de nova luz.

21.  Assim, vindo o Espírito Santo, e a virtude do Altíssimo cobrindo com sua sombra, realizam o princípio do nascimento. Os olhos veem uma coisa, outra se contempla com o espírito. A Virgem dá à luz; o parto vem de Deus. O menininho choraminga, os anjos ouvem louvando. As roupas ficam sujas, Deus é adorado. Deste modo, a nobreza do poder não se perde, quando é adotada a humildade da carne.

 

Capítulo 28.

22.  O mesmo aconteceu no decorrer do tempo. Todo o tempo em que viveu como homem, realizou as obras de Deus. O tempo não permite falar de cada uma destas obras; apenas deve-se prestar atenção ao fato de que, em todos os gêneros de milagres e curas, Ele era Homem pela assunção da carne e mostrava ser Deus pelas obras que realizava.

 

Capítulo 29.

23.  A respeito do Espírito Santo, não convém calar-se nem é necessário falar; mas, por causa dos que não o conhecem, não é possível calar.

24.  De fato, não é necessário falar sobre Ele, a quem o Pai e o Filho consideram digno de ser louvado.

25.  Julgo que, na verdade, não se deve pesquisar se existe. Pois Ele existe, uma vez que é dado, recebido, obtido. Se está unido à confissão do Pai e do Filho, não pode ser separado da confissão do Pai e do Filho, pois, para nós, imperfeito é um todo, se algo falta a este todo.

26.  Se alguém perguntar qual é o nosso parecer sobre Ele, leiamos no Apóstolo ambas as coisas: Porque sois filhos de Deus, enviou Deus o Espírito de seu Filho a nosso coração a clamar: Abba, Pai (Gl 4,6). E ainda: Não contristeis o Espírito Santo de Deus, no qual sois assinalados (Ef 4,30). E de novo: Nós, porém, não recebemos o espírito deste mundo, mas o Espírito que vem de Deus, para que saibamos o que por Deus nos foi dado (1Cor 2,12). E mais: Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito; se realmente o Espírito de Deus está em vós. Se alguém não possui o Espírito de Cristo, este não é dele (Rm 8,9). E: Se, porém, seu Espírito, que ressuscitou Cristo dos mortos, habita em vós, Aquele que ressuscitou Cristo dos mortos vivificará também vossos corpos mortais por causa do seu Espírito que habita em vós (Rm 8,11).

27.  E já que Ele existe, é dado e é possuído, e é de Deus; cale-se toda palavra dos caluniadores.

28.  Quando perguntam por quem Ele existe, para que existe e quem é, se nossa resposta desagradar ao dizer que vem à existência por Aquele por meio de quem foram feitas todas as coisas e que provém daquele do qual tudo procede, e que, porque é o Espírito de Deus, foi dado aos fiéis, estarão desagradando não só os Apóstolos e Profetas, que sobre Ele falaram, como também o Pai e o Filho.

 

Capítulo 30.

29.  Julgo que alguns permanecem na ignorância e na ambiguidade pelo motivo de ser este o terceiro, isto é, porque quando se nomeia o Espírito Santo, frequentemente tratase de uma referência ao Pai e ao Filho. Nada de escrúpulo quanto a isto: o Pai, como o Filho, é Espírito e é Santo.

 

Capítulo 31.

30.  Deve-se estudar com cuidado o que se lê nos Evangelhos: Deus é Espírito (Jo 4,24), para se entender por que motivo isto foi dito.

31.  Existe uma razão para tudo o que se diz, e seu sentido deve ser explicado pela razão pela qual é dito, para que não aconteça que, sendo a resposta do Senhor: Deus é Espírito, negue-se, não só o nome do Espírito Santo, mas também sua possessão e seu dom.

32.  O Senhor falava com a Samaritana, pois chegara a redenção do mundo todo. Depois de muito falar sobre a água viva, os cinco maridos, e aquele que, agora, não era seu (cf. Jo 4,20), respondeu-lhe a mulher: “Senhor, vejo que és profeta. Nossos pais adoraram sobre este monte, e vós dizeis que é em Jerusalém que se deve adorar”. Disse-lhe Jesus: “Mulher, crê-me que é chegada a hora em que não adorareis o Pai nem neste monte, nem em Jerusalém. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, porque dos judeus é que vem a salvação. Mas vem a hora, e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade. Porque é a esses adoradores que o Pai procura. E em espírito e verdade é que devem adorar os que o adoram, porque Deus é Espírito” (Jo 4,21-24).

33.  A mulher, bem lembrada da tradição dos pais, julgava que se deveria adorar no monte, na Samaria, ou no Templo, em Jerusalém. Samaria, pela transgressão da Lei, escolhera o monte para adorar a Deus, mas os judeus consideravam o Templo construído por Salomão o lugar da religião.

34.  Tinham os judeus e os samaritanos uma opinião errada, pretendendo conter no cimo do monte ou dentro de um edifício aquele Deus em quem tudo está contido e que não pode ser contido por nada que esteja fora dele.

35.  Porque Deus é invisível, incompreensível e imenso, o Senhor disse já ter chegado o tempo em que, nem no monte, nem no Templo, deveria ser adorado, porque Deus é Espírito, e o Espírito não pode ser circunscrito nem retido, porque, pela sua natureza, está em toda parte, e não deixa de estar em parte alguma, transbordando em todas as coisas.

36.  Por conseguinte, são verdadeiros adoradores aqueles que hão de adorar em Espírito e verdade.

37.  Para os que vão adorar no Espírito o Deus Espírito, o primeiro terá uma função, o segundo receberá a honra, porque Aquele que há de ser adorado não é o mesmo que Aquele no qual é adorado.

38.  Não se negará ao Espírito Santo nem o nome nem o dom, porque foi dito: Deus é Espírito. A resposta dada à mulher que encerrava Deus no monte e no templo é que tudo é em Deus, e Deus é em si mesmo.

39.  Sendo invisível e incompreensível, Deus deve ser adorado no que é invisível e incompreensível. Deste modo é indicada a natureza do dom e da honra, quando se ensina que o Deus Espírito deve ser adorado no Espírito; e a liberdade e o conhecimento dos adoradores e a infinidade do Adorado se mostram quando, no Espírito, Deus Espírito é adorado.

 

Capítulo 32.

40.  São semelhantes a estas as palavras do Apóstolo: O Senhor é Espírito, e onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade (2Cor 3,17).

41.  Estabeleceu uma distinção entre o que é e o que é dele, para permitir a compreensão, do que foi enunciado, pois ter e ser tido não significam a mesma coisa, e ele e dele não têm o mesmo sentido.

42.  Por isso, ao dizer o Senhor é Espírito, mostrou a infinitude de sua natureza; quando acrescenta: Onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade, indicou Aquele que é dele, porque o Senhor é Espírito, e onde está o Espírito do Senhor aí está a liberdade. Isto se diz, não porque seja necessário, mas para que nada permaneça obscuro.

43.  O Espírito Santo é um em toda parte, iluminando os Patriarcas, os Profetas e todo o coro da Lei. Foi Ele também que inspirou a João no seio materno. Foi concedido em seguida aos Apóstolos e aos outros fiéis, para o conhecimento daquela verdade que lhes foi dada.

 

Capítulo 33.

44.  Qual seja sua ação em nós, ouçamos pelas próprias palavras do Senhor: Tenho ainda  muito a vos dizer, mas agora não podeis compreender (Jo 16,12). É bom para vós que eu vá; se eu for, enviarei a vós outro Advogado (Jo 16,7). Rogarei ao Pai, e vos enviará um outro Advogado para que permaneça convosco para sempre, o Espírito da verdade (Jo 14,16-17). Ele vos conduzirá à verdade plena, pois não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas futuras. Ele me glorificará porque receberá do que é meu e vos anunciará (Jo 16,13-14).

45.  Estas coisas, tiradas de muitos lugares, foram ditas para abrir caminho ao entendimento. Nelas está contida a vontade do Doador e o sentido e a condição do Dom.

46.  Visto que nossa fraqueza não pode alcançar nem o Pai nem o Filho, o dom do Espírito, com sua intercessão, ilumina nossa difícil fé na encarnação de Deus.

 

O que você destaca em cada capítulo?

Como este texto auxilia sua espiritualidade?

 

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