terça-feira, 3 de maio de 2022

199 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Segundo (Capítulos 12-22).

 



199

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Segundo (Capítulos 12-22)

 


Divisão do Tratado

O Tratado está dividido em 12 livros, subdivididos em capítulos.

O livro I começa com alguns traços biográficos, falando de sua busca de Deus e conversão. Refere-se às heresias e apresenta um plano geral do trabalho.

No livro II encontra-se um resumo da doutrina da Trindade.

 

LIVRO SEGUNDO

 

Capítulo 12.

1.      Sobre a inenarrável geração do Filho, ainda resta alguma coisa, ou antes, aquilo que é tudo.

2.      Eu me debato, deixo para mais tarde, perco as forças e por onde começar não sei.

3.      Não sei quando o Filho nasceu e para mim é um sacrilégio não saber que tenha nascido.

4.      A quem recorrer? A quem implorar? De que livros tirar as palavras para dizer tão grandes dificuldades? Irei ler toda a ciência da Grécia? Mas já li: Onde está o sábio? Onde o argumentador deste século? (1Cor 1,20). Sobre isto os sofistas deste mundo e os sábios emudecem; pois rejeitaram a sabedoria de Deus.

5.      Irei, então, consultar o escriba da Lei? Mas não sabe; porque para ele a cruz de Cristo é escândalo.

6.      Vou, acaso, aconselhar-vos a fechar os olhos e a calar, porque, para a veneração daquele que é proclamado, basta que os leprosos tenham sido purificados, os surdos tenham começado a ouvir, os coxos tenham corrido, os paralíticos tenham ficado de pé, os cegos tenham recobrado a luz, o cego de nascença tenha adquirido a visão, os demônios tenham sido afugentados, os doentes tenham sarado, os mortos tenham ressuscitado? Porém, tais coisas os hereges as confessam, e perecem.

 

Capítulo 13.

7.      Esperai nada menos do que correrem os coxos, verem os cegos, fugirem os demônios, reviverem os mortos. Pois está comigo, como auxílio nas dificuldades acima descritas, um pobre pescador, ignorante, rude, mãos ocupadas pelas redes, roupa molhada, sem fazer caso da lama nos pés, todo entregue ao barco.

8.      Investigai e entendei se seria mais maravilhoso ressuscitar mortos do que comunicar a um iletrado o conhecimento desta doutrina.

9.      Pois disse ele: No princípio era o Verbo (Jo 1,1). Que significa isto: no princípio era? Passam os tempos, sucedem-se os séculos, encontram um termo as eras. Situa onde quiseres o princípio; não o aprisionas no tempo, pois Aquele de que se trata era.

10.  Considera o mundo, entende o que sobre ele está escrito: No princípio Deus fez o céu e a terra (Gn 1,1). Fez-se portanto, no princípio, aquilo que é criado, e é limitado pelo tempo o que precisou ser feito no princípio.

11.  Agora, meu pescador analfabeto, indouto e livre do tempo, está desligado dos séculos, vence todo princípio: pois era o que é, sem estar contido pelo tempo. Não começou a existir nunca, porque no princípio era, não foi feito.

 

Capítulo 14.

12.  Percebemos, porém, que o nosso pescador saiu fora do plano projetado, pois libertou do tempo o Verbo. O que é livre, senhor de si mesmo, é solitário e a ninguém tem de obedecer.

13.  Ouvidos alerta para o que vem a seguir: E o Verbo estava junto de Deus (Jo 1,1). Sem princípio já está junto de Deus, Aquele que era antes do princípio. Quem era está junto de Deus, e quem está isento do tempo não está separado do Autor. Nosso pescador fugiu; talvez volte para o que resta.

 

Capítulo 15.

14.  Dirás então: o Verbo é o som da voz, o enunciado das questões e a expressão do pensamento.

15.  Estava junto de Deus e, no princípio, era. Era, porque a palavra que expressa o pensamento é eterna, quando quem pensa é eterno.

16.  Respondo-te em lugar de meu pescador, em poucas palavras, e vejamos como ele se defenderá na sua rusticidade.

17.  Por natureza, a palavra tem o poder de ser e, depois de pronunciada, o de ter sido. Somente é enquanto é ouvida. Como no princípio era, se não é nem antes do tempo, nem depois do tempo? E não sei se poderá existir no tempo. Pois a palavra dos que falam não existe antes de falarem e, quando tiverem falado, já não existirá; no momento em que falam, no final já não será a mesma coisa que quando começaram.

18.  Estas coisas me ocorrem, como a outros. Mas o pescador, por sua vez, fala de modo diferente e primeiro te censurará, porque ouviste com negligência, pois, se ouviste desatento, perdeste a primeira sentença: No princípio era o Verbo.

19.  Como perguntas pela seguinte: E o Verbo estava junto de Deus? Não terás acaso ouvido em Deus (e não junto de Deus), para aceitares a palavra de um pensamento secreto? Ou ter-se-á enganado o rústico, sem perceber a importância da diferença entre ser em e estar junto? Não foi declarado que o que era no princípio estivesse em outro, mas sim, com outro.

20.  Nada pressuponho a partir do que foi dito antes. Deve-se considerar o que vem a seguir. Fica atento para o nome e a condição do Verbo. Pois diz: O Verbo era Deus. Não se trata, absolutamente, do som da voz ou da expressão do pensamento.

21.  O Verbo é uma realidade, não um som, é uma substância, não um modo de expressar-se, é Deus, não é um som vago.

 

Capítulo 16.

22.  Esta palavra me faz tremer. Esta linguagem inusitada me deixa inquieto: E o Verbo era Deus (Jo 1.1), pois os profetas anunciaram que existe somente um Deus.

23.  Para que não aumente o meu temor, explica-me, pescador, a economia de tão grande mistério.

24.  Relaciona estas coisas com a unidade de Deus, sem alterá-la, sem aboli-la, ou submetê-la ao tempo.

25.  Diz: estava no princípio junto de Deus (Jo 1.2). Se estava no princípio não é limitado pelo tempo. Se era Deus, não se trata de um som de voz. Se estava junto de Deus, então nada se altera nem se elimina, pois o seu ser não desaparece no outro, e se afirma que está junto do único Deus ingênito, do qual procede o único Deus unigênito.

 

Capítulo17.

26.  Ainda esperamos de ti, Pescador, que nos dês a conhecer a plenitude do Verbo, pois certamente existia no princípio, mas pode não ter existido antes do princípio.

27.  Também aqui te digo algo, em lugar do meu Pescador. O que era não pode não ter sido, porque o fato de se dizer era não permite que não tenha sido em algum tempo. Mas que diz? Por meio dele foram feitas todas as coisas (Jo 1,3).

28.  Se nada existe sem Aquele por quem tudo começou, por quem foram feitas todas as coisas, então, Ele é infinito.

29.  O tempo indica distância, não quanto ao lugar, mas quanto à sucessão do que permanece. Como todas as coisas provêm dele, não há nada que não tenha sua origem nele. Logo, também o tempo procede dele.

 

Capítulo 18.

30.  Alguém pode dizer-te, porém, meu Pescador: “Neste ponto foste muito fácil e muito confuso. Por meio dele foram feitas todas as coisas (Jo 1,3) é uma afirmação que não supõe limite.

31.  Abrange o Ingênito, que não foi feito por ninguém, e o próprio Filho, gerado do Ingênito.

32.  A expressão todas as coisas não excetua ninguém, não deixa nada fora”.

33.  Quando já não ousamos dizer mais nada, ou talvez nos esforçamos por falar, aparece esta palavra: nada foi feito sem Ele (Jo 1,3).

34.  Falaste do Autor quando professaste ter um companheiro, pois, quando dizes que nada foi feito sem Ele, entendo que não foi só Ele que o fez, porque um é Aquele por meio do qual tudo foi feito, outro, Aquele sem o qual nada foi feito.

35.  Quando se fala de um e de outro, pode-se perceber uma alusão ao que intervém e ao que age.

 

Capítulo 19.

36.  Sentia-me preocupado por causa do Criador, que é Um e Ingênito, temendo que ao dizer todas não o excluísses. Mas ao dizer: Nada foi feito sem Ele (Jo 1,3) me tranquilizaste.

37.  No entanto estou inquieto e perturbado por causa desta frase, pois existe algo que foi feito por outro, ainda que não sem Ele.

38.  Se algo foi feito por outro, embora não tenha sido feito sem Ele, todas as coisas não foram feitas por Ele, porque uma coisa é ter feito algo, outra diferente é intervir no que o outro fez.

39.  Não tenho aqui nada de meu a dizer, meu Pescador, como em outros lugares. Deves responder com tuas próprias palavras: Por meio dele foram feitas todas as coisas. O Apóstolo assim ensinou: o visível e o invisível, Tronos, Soberanias, Principados, Autoridades, tudo foi criado por Ele e para Ele (Cl 1,16). 

 

Capítulo 20.

40.  Se tudo foi feito por meio dele, vem em nosso auxílio e conta-nos o que não foi feito sem Ele: O que foi feito nele é a Vida (Jo 1,3). Logo, o que foi feito nele não foi feito sem Ele, pois o que foi feito nele também foi feito por meio dele, visto que tudo foi criado por Ele e nele (cf. Cl 1,16).

41.  Foi criado nele porque nasceu como Deus Criador. Nada do que foi feito nele foi feito sem Ele, porque, nascendo Deus, era a Vida.

42.  Como era a Vida, não pode ter sido feito Vida depois de nascer, visto que nele não há diferença entre aquilo com que nasceu e aquilo que recebeu depois de nascer. Não há nele sucessão temporal entre o nascimento e o crescimento. Nada do que se fazia nele se fazia sem Ele, porque a Vida é o que se fazia, e Deus nascido de Deus existe como Deus pelo fato de nascer, não adquire tal condição depois de ter nascido.

43.  Ao nascer como Vivente do Vivente, Verdadeiro do Verdadeiro, Perfeito do Perfeito, não nasceu sem o poder que lhe corresponde pelo nascimento, nem percebeu seu nascimento depois de ter nascido.

44.  Sabia que era Deus por ter nascido Deus de Deus. Por isso, é Unigênito do Ingênito. Por isso: Eu e o Pai somos um (Jo 10,30). Por isso, na confissão do Pai e do Filho, confessamos um só Deus. Por isso o Pai está no Filho, e o Filho, no Pai. Por isso, quem me vê, vê também o Pai (Jo 14,9). Por isso o Pai deu ao Filho tudo o que tem. Por isso, como o Pai tem a vida em si mesmo, deu ao Filho ter a vida em si mesmo (Jo 5,26). Por isso, ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho (Mt 11,27). Por isso, nele habita a plenitude da divindade corporalmente (Cl 2,9).

 

Capítulo 21.

45.  Esta Vida é a luz dos homens, esta Luz ilumina as trevas. Para consolar-nos da impossibilidade de descrever a geração de que fala o Profeta (cf. Is 56,8), o Pescador acrescentou: E as trevas não a compreenderam (Jo 1,5).

46.  Aqui termina nossa possibilidade de falar e não se sabe para onde ir.

47.  O Pescador aprendeu estas coisas repousando sobre o peito do Senhor. Esta não é a linguagem do mundo, porque este discurso não pertence ao mundo.

48.  Se o sentido destas palavras for outro, diferente do que apresentamos, é preciso que nos provem isto.

49.  Se há outros nomes que indiquem a natureza do Filho, conforme explicamos, que se apresentem. Porém, se não houver outros, admiremos, por isso mesmo, a doutrina do Pescador, sabendo que nela está a Palavra de Deus, e proclamemos e adoremos o Pai e o Filho, o Ingênito e o Unigênito, como mistério inefável que supera toda a nossa palavra e entendimento.

50.  Como João, repousemos sobre o peito do Senhor, para poder entender estas coisas e falar sobre elas.

 

Capítulo 22.

51.  A integridade da nossa fé é confirmada, não só pela autoridade do Evangelho e doutrina dos Apóstolos, como pela inútil fraude dos hereges, que causa tumulto por toda parte em redor de nós.

52.  Permanece, no entanto este fundamento sólido e imóvel contra todos os ventos, chuvas, torrentes, não podendo ser arrastado pelo vento, nem inundado pelas águas, nem submergir com as inundações.

53.  É muito bom aquele que, atacado por muitos, não pode ser derrubado por ninguém.

54.  Certos tipos de remédio são preparados de tal modo, que são úteis, não somente para tratar determinadas doenças, mas para curar todas elas.

55.  Têm em si o poder de tratar todas, em geral. Também a fé católica oferece remédio, não para cada doença, mas para todas. Nenhum mal pode enfraquecê-la. Não pode ser derrotada por um grande número de males, nem pode ser iludida pela sua variedade.

56.  Permanece uma e a mesma, resiste a cada uma das heresias e a todas elas em conjunto. Nela só, encontram-se tantos remédios quantas são as doenças, e haverá tantos ensinamentos verdadeiros quantos forem os erros dos que a atacam.

57.  Juntem-se todos os nomes dos hereges e apresentem-se todas as suas escolas.

58.  Ouçam que só há um Deus Pai ingênito e um só Filho unigênito do Pai, perfeito, que não foi gerado por diminuição, nem separado, como uma parte é separada do todo.

59.  Aquele que tudo possui gerou Aquele que recebe tudo. Ele não saiu do Pai como uma emanação ou como algo que dele flui, mas nasceu, em tudo e por tudo, daquele que nunca deixa de estar em tudo aquilo em que está.

60.  É livre do tempo e do século; por meio dele todas as coisas foram feitas. Não poderia ter sido criado no tempo que foi instituído por Ele.

61.  Nisto consiste a profissão da fé católica e apostólica fundada nos Evangelhos.

 

O que você destaca em cada capítulo?

Como este texto auxilia sua espiritualidade?

 

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