domingo, 29 de outubro de 2023

243 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Décimo Primeiro (Capítulos 01- 11).

 


Edson, Marisa, Alex, Demétrio, Nathalye, Genisson, Daniel, Isaac

 

 

243

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Décimo Primeiro (Capítulos 01- 11)

25 de novembro de 2023

 


O livro XI fala da diferença entre a humanidade e a divindade de Cristo e da glorificação da humanidade de Cristo e nossa glorificação juntamente com Ele. São 49 capítulos.

 

LIVRO ONZE

 

Capítulo 1.

1.      O Apóstolo, ao explicar, de muitos modos, o mistério total e absoluto da fé evangélica, entre outros preceitos da ciência divina, declarou: Assim como fostes chamados a uma só esperança da vossa vocação. Um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai de todos, que é sobre todos, por meio de todos e em todos (Ef 4,4-6).

2.      Não nos deixou perdidos em meio aos ensinamentos ambíguos de uma doutrina incerta, nem permitiu que a mente humana seguisse opiniões vagas e inseguras, mas estabeleceu limites à liberdade da inteligência e da vontade, de modo a não nos deixar querer saber senão aquilo que pregara, porque a definição clara da fé imutável não permite crer em coisas que se contradizem.

3.      Pregando um só Senhor, afirma uma só fé, em seguida, lembrando a única fé no único Senhor, mostra também que há um só batismo, porque, se há uma só fé no único Senhor, também será um só o batismo, por esta fé em um só Senhor.

4.      Todo o mistério do batismo e da fé se fundamenta em um único Deus e um só Senhor.

5.      A profissão de fé em um só Deus leva à plenitude a nossa esperança e, como há um único batismo e uma só fé em um só Senhor, assim também deve haver um só batismo e uma só fé em um só Deus. Um e outro são um só, não na unicidade de pessoa, mas em sua propriedade pessoal, pois é próprio de cada um ser Um.

6.      É próprio do Pai ser Pai, e do Filho, ser Filho. Ser cada um, em sua propriedade pessoal, constitui o mistério da sua unidade recíproca. Porque o único Senhor Cristo não retira de Deus Pai que seja Senhor, também o único Deus Pai não quer negar ao Senhor Cristo o ser Deus.

7.      Se, pelo fato de Deus ser Um, parece não ser próprio a Cristo o ser Deus, é forçoso que se pense, por isso mesmo, que, por ser Cristo um só Senhor, não corresponda a Deus ser Senhor.

8.      Assim seria, com efeito, se o ser Um não expressasse o mistério, mas sim a unicidade pessoal. Portanto, há um só batismo e uma só fé em um só Senhor, assim como em um só Deus Pai.

 

Capítulo 2.

9.      A fé já não é una, se não se mantém na afirmação convicta de um só Senhor, como de um só Deus Pai. Pois, como poderá confessar um só Senhor e um só Deus Pai uma fé que não seja una?

10.  Em tamanha diversidade de doutrinas, já não pode haver uma só fé: um crê que o Senhor Jesus Cristo gemeu de dor, ao lhe cravarem os pregos nas palmas das mãos, por causa de nossa fraqueza humana e, carecendo, por sua natureza, de coragem e poder, sentiu terror diante da morte iminente, outro nega o mais importante, isto é, que tenha nascido, e declara que foi criado, outro diz que é Deus com suas palavras, mas não pensa que seja realmente Deus, outro pensa que falar de deuses é compatível com a religião, mas considerá-lo Deus significa conhecer sua natureza divina.

11.  Assim sendo, o Senhor Cristo já não seria um só: se para um, sendo Deus, não sofre, para outro, por ser fraco, tem medo; se, para um, é Deus por natureza, para outro, só pelo nome; para um é Filho por geração, para outro, porque assim é chamado.

12.  Nem Deus Pai seria um, segundo a fé, se uns acreditam que é Pai pelo poder, outros porque gerou o Filho, visto que Deus é Pai de todas as coisas.

13.  Quem duvidará estar separado da fé quem está fora da única fé? Porque na única fé há um só Senhor Cristo e um só Pai. O Senhor Cristo é Um, não pelo nome, mas pela fé, se é Filho, se é Deus, se é imutável, se nunca, em tempo algum, deixou de ser Deus ou de ser Filho.

14.  Quem proclamar um Cristo diferente, um Cristo que não seja nem Filho nem Deus, pregará outro Cristo e não estará na fé única do único batismo, porque, de acordo com a doutrina do Apóstolo, a fé única do único batismo é a daquele para a qual o único Senhor Cristo é Filho de Deus e é Deus.

 

Capítulo 3.

15.  Já não se pode negar que Cristo seja o Cristo, nem se pode deixar que o mundo o ignore. Os livros proféticos o consignam, a plenitude dos tempos, progredindo cada dia, o atesta, os sepulcros dos Apóstolos e dos Mártires o demonstram por meio dos milagres, o poder de seu nome o prova, os espíritos imundos o confessam, os rugidos dos demônios punidos o proclamam.

16.  Em todas estas coisas está a manifestação do seu poder e deve ser anunciado tal qual é por nossa fé, para que não pelo nome, mas pela confissão, da única fé do único batismo, seja para nós o único Senhor. Porque há Um só Deus Pai, do mesmo modo que há Um só Senhor Cristo.

 

Capítulo 4.

17.  Agora, estes novos pregadores de Cristo, negando tudo o que é de Cristo, pregam outro Cristo Senhor, bem como outro Deus Pai; porque Este não gerou, mas criou, e Aquele não nasceu, mas foi criado.

18.  Segundo eles, Cristo não é Deus verdadeiro porque não lhe vem da natividade o ser Deus. Sua fé não reconhece a Deus como Pai, pois não gerou o Filho. Louvam, com razão, o que é digno de Deus Pai, isto é, sua natureza inacessível, invisível, inviolável, inenarrável, infinita, providente, poderosa, benigna, ágil, que tudo atravessa, móvel, imanente e transcendente, que deve ser considerado como tudo e todas as coisas (cf. 1Cor 15,28), mas, quando acrescentam à excelência do louvor: o único bom, único poderoso, único imortal, quem não compreenderá que este piedoso louvor tem por objetivo excluir o Senhor Jesus Cristo desta beatitude que, para honrá-lo, se atribui somente a Deus, pois Cristo, para eles, não só é mortal, mas fraco e mau e só ao Pai pertencem aqueles atributos?

19.  Por conseguinte, para negar que tenha, por força da geração, aquela felicidade que pertence a Deus por natureza, nega-se o seu nascimento natural, de Deus Pai, porque todo o que nasce tem de ter, por natureza, o poder daquele que gerou.

 

Capítulo 5.

20.  Não são instruídos pelas pregações apostólicas e evangélicas e querem engrandecer a magnificência de Deus Pai, não pela fé religiosa, mas por artifícios da impiedade. Para dar uma falsa aparência à sua ímpia profissão de fé, quando proclamam que nada pode ser comparado à natureza do Pai, afirmam que, visto ser impossível a comparação, o Deus Unigênito possui uma natureza degenerada e fraca.

21.  Dizem que Deus, a imagem viva do Deus vivo, forma perfeita da bem-aventurada natureza, Filho único da substância que não pode nascer, não pode possuir a verdade da imagem do Pai se não tem a glória perfeita de sua bem-aventurança e não reflete a expressão plena de sua natureza.

22.  Porém, se o Deus Unigênito é a imagem do Deus Inascível, nele habita a realidade plena e total da sua natureza, pela qual é a imagem verdadeira do Pai.

23.  O Pai é poderoso; se o Filho é fraco, já não é a imagem do poderoso. O Pai é bom; se o Filho possui uma natureza de gênero diferente, a natureza do mal não pode reproduzir a imagem do que é bom. O Pai é incorpóreo; se o Filho, quanto à sua divindade, está circunscrito a um corpo, o que é corpóreo não será forma do incorpóreo. O Pai é inefável; se as palavras podem exprimir o Filho, a natureza que pode ser descrita não pode ser imagem da que é indescritível. O Pai é verdadeiro Deus; se o Filho é um deus falso, não é verdadeira imagem porque é falso.

24.  O Apóstolo não diz que seja uma imagem parcial nem que tenha uma forma de Deus, em parte, mas afirma ser imagem do Deus invisível e forma de Deus (cf. Cl 1,15).

25.  O Apóstolo não poderia afirmar com maior clareza que a natureza da divindade está no Filho de Deus, que quando diz que Cristo é a imagem do Deus invisível, no que Deus tem de invisível porque, na substância do que pode ser visto, não se pode obter uma imagem da natureza invisível.

 

Capítulo 6.

26.  Como ensinamos nos livros anteriores, servem-se da Economia do corpo assumido para injuriar a divindade e se apoderam do mistério de nossa salvação para dar ensejo à impiedade.

27.  Se fossem firmes na fé apostólica, entenderiam que Aquele que existe na forma de Deus assumiu a forma de servo e não usariam a forma de servo para denegrir a forma de Deus, pois a forma de Deus contém em si a plenitude de Deus, e se aproximariam com piedade do que pertence ao tempo e do que pertence ao mistério, sem injúria à divindade nem erro por causa da Economia.

28.  Penso que tudo já foi exaustivamente explicado e que, pela natividade do corpo assumido, demonstrou-se a força da natureza divina. Não há mais lugar para duvidar de que Aquele que é o Deus Unigênito e Homem tenha realizado tudo pelo poder de Deus e que, no poder de Deus, tenha feito todas as coisas com a realidade de sua natureza humana, tendo em si a natureza do Deus poderoso nas ações, porque nasceu de Deus, e a plena realização do homem perfeito, porque nasceu da Virgem.

29.  Na realidade do corpo, subsiste a natureza de Deus e, na natureza de Deus, permanece a realidade do corpo.

 

Capítulo 7.

30.  Embora a nossa resposta tenha chegado até a tratar da morte gloriosa de Cristo, rebatendo cada ímpia proposição com as doutrinas evangélicas e apostólicas, no entanto, depois da glória da ressurreição, alguma coisa deve ser ainda demonstrada acerca da fraqueza da natureza degenerada, que os ímpios ousaram atribuir-lhe.

31.  Por isso, devemos, agora, responder-lhes. Assim como anteriormente, vamos buscar o sentido das palavras citadas por eles, para que a verdade se encontre ali mesmo onde é negada.

32.  É preciso que o que foi dito com simplicidade e para esclarecimento da fé, por inspiração divina, se diga com a mesma finalidade e se confirme por exemplos de palavras não alheias nem fora de propósito.

 

Capítulo 8.

33.  Entre outras impiedades suas, os hereges costumam citar esta palavra do Senhor: Subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus (Jo 20,17).

34.  Dizem que, pelo fato de ser o seu Pai o Pai deles, e o seu Deus o Deus deles, não tem a natureza de Deus; porque afirma que Deus é Pai dos demais como é seu próprio Pai. Assim se destrói o privilégio da sua comunhão pela natureza e a natividade, pela qual nasceu como Deus e é Filho.

35.  Apresentam também o dito do Apóstolo: Pois quando disser: “tudo está submetido”, evidentemente excluir-se-á aquele que tudo lhe submeteu. Quando tudo lhe estiver submetido, então ele mesmo se submeterá àquele que tudo lhe submeteu, para que Deus seja tudo em todos (1Cor 15,26-28).

36.  A submissão é considerada como o atestado de fraqueza da natureza, que não participa da força da natureza paterna, visto que uma natureza fraca se submete a uma natureza mais poderosa.

37.  Que eles tenham este argumento como o mais forte e inexpugnável, em defesa da sua impiedade, a fim de abolir a realidade do nascimento, ou seja, a ideia de que, pela submissão, Cristo não é Deus e de que, por ter o mesmo Deus e o mesmo Pai que nós, está em comunhão com a criatura. Seria, então, antes criação de Deus do que geração.

38.  A criação, porém, subsiste vinda do nada, porém o Filho tem, por nascimento, a natureza do seu Pai.

 

Capítulo 9.

39.  Toda calúnia é desonesta, porque a falsidade contradiz a verdade, quando não é contida pelo pudor. Por vezes, oculta-se sob o véu da ambiguidade, para, com dignidade, defender aquilo que, sem escrúpulos, conserva em seu pensamento.

40.  Porém, naquilo que apresentam com impiedade para desmerecer a fé na divindade de nosso Senhor, não há mais lugar para modéstia nem falsas desculpas, pois, cessando a desculpa para a ignorância, apenas se revela o desejo de explicar as coisas de modo contrário à fé.

41.  Ainda que por pouco tempo, devo adiar a explicação desta palavra do Apóstolo: É grande o mistério da piedade: ele foi manifestado na carne, justificado no Espírito, contemplado pelos anjos, proclamado às nações, acreditado no mundo, exaltado na glória (1Tm 3,16).

42.  Haverá ainda alguém com uma inteligência tão estreita, que entenda que a economia da assunção da carne pelo Senhor não seja o mistério da piedade? Está excluído da fé em Deus quem se afastar desta confissão, pois o Apóstolo não duvida de que todos devem afirmar que o mistério de nossa salvação não é ofensa à divindade, mas o mistério da grande piedade.

43.  Nele não há necessidade, mas misericórdia, não é fraqueza, mas sim mistério da grande piedade, não mais oculto no segredo, mas sim manifestado na carne. Não é mais fraco pela natureza da carne, mas justificado no Espírito, de tal modo que, pela justificação do Espírito deve desaparecer totalmente de nossa fé a ideia da fraqueza da carne.

44.  O Apóstolo manteve esta ordem na exposição da fé: havendo piedade, há mistério; havendo mistério, se dá o conhecimento na carne; havendo conhecimento na carne, há justificação no Espírito. Porque é mistério da piedade, que se manifesta na carne; manifesta-se na carne pela justificação no Espírito, para que seja verdadeiramente mistério. Para que não se ignore de que maneira a manifestação na carne é justificação no Espírito, o mistério foi visto pelos Anjos, e pregado aos Gentios, acreditado neste mundo e exaltado na glória.

45.  Depois de ter sido visto, foi pregado. A fé vem depois da pregação e tudo se completa com a assunção na glória, porque a assunção na glória é o grande mistério da piedade.

46.  Por esta fé na economia, nos preparamos para tornar-nos conformes a glória do Senhor e ser nela recebidos. Portanto, o grande mistério da piedade é a assunção da carne, porque, pela assunção da carne, o mistério é manifestado na carne.

47.  A manifestação na carne não difere do mistério da grande piedade, porque sua manifestação na carne é a justificação no Espírito e a exaltação da glória. Com que esperança podemos crer que o mistério da manifestação da piedade seja a fraqueza da divindade, quando se deve anunciar o mistério da grande piedade pela assunção na glória? Não há a fraqueza, mas sim mistério, e não há necessidade, mas piedade.

48.  Agora, será preciso indagar qual é o sentido da palavra do Evangelho, para que o mistério de nossa salvação e glória não dê ensejo a uma ímpia pregação.

 

Capítulo 10.

49.  Muito importante é para ti, ó herege, e imperecível, a declaração do Senhor, acerca de si mesmo: Subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus (Jo 20,17); porque, se para nós e para Ele há um só Pai e um só Deus, deve haver nele aquela fraqueza que também é nossa.

50.  Se, pelo mesmo Pai, nos igualamos como filhos, também pelo mesmo Deus somos igualados como servos. Se somos criação pela origem, e servos por natureza, se temos em comum com Ele o mesmo Pai e o mesmo Deus, Ele é, como nós, criatura por natureza, tendo em comum conosco a servidão.

51.  É esta a loucura da ímpia pregação, que ainda se serve deste outro dito profético: Deus, o teu Deus, te ungiu (Sl 44,8), para dizer que nele não há a força da natureza pela qual Deus age, porque o fato de ter sido ungido por Deus faz com que o seu Deus seja superior a Ele.

 

Capítulo 11.

52.  Aquele que desconhece o Deus que nasceu, desconhece o Cristo Deus, pois nascer como Deus não é diferente de ter a natureza de Deus. Nascer demonstra a origem do que nasce, não indica que tenha uma natureza diferente daquela de quem lhe dá o ser.

53.  Se não tem uma natureza diferente, certamente deve o princípio do nascimento ao que o gerou e não deixa de ter a natureza daquele de que se origina. É Filho de Deus, não tem outra origem nem outra natureza. Se viesse de outra origem, já não seria Filho; se tivesse outra natureza, já não seria Deus.

54.  Como Deus procede de Deus, o Pai é Deus para o Filho, pela natividade, e Deus, pela natureza; porque o que nasce de Deus procede de Deus e nele está a natureza pela qual é Deus.

 

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Como ele serve para sua espiritualidade?

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terça-feira, 24 de outubro de 2023

242 Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Décimo (Capítulos 56- 71).

 


242

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Décimo (Capítulos 56- 71)

28 de outubro de 2023

 


O livro X apresenta uma interpretação original do problema do sofrimento de Cristo e da morte de Jesus por nós. São 71 capítulos.

 

Capítulo 56.

1.      Com lágrimas igualmente verdadeiras, também chorou por Lázaro (cf. Jo 11,35). Pergunto então, em primeiro lugar, o que havia para se chorar em Lázaro? Não, certamente, a morte, que não foi para a morte, e sim, para a glória de Deus. O Senhor dissera: Esta enfermidade não é para a morte, mas para a glória de Deus, para que o Filho de Deus seja glorificado por ele (Jo 11,4).

2.      Portanto, a morte, que tinha por causa a glorificação de Deus, não trazia a tristeza das lágrimas. Mas nem ao menos havia a necessidade de chorar pelo fato de não estar presente enquanto Lázaro morria, pois ele mesmo disse claramente: Lázaro morreu. Por vossa causa alegro-me de não ter estado lá para que creiais (Jo 11,14-15).

3.      Sua ausência, por conseguinte, não foi motivo para as lágrimas, já que era vantajosa para a fé dos Apóstolos, porque prenunciara, com a certeza do divino conhecimento, a morte do doente. Por conseguinte, não há nenhuma necessidade de chorar, e, no entanto, chorou.

4.      Indago, pois: a que se deve atribuir este choro? A Deus, à alma ou ao corpo? O corpo, só por si, não produz lágrimas, pois estas são causadas pela tristeza da alma. É muito menos provável que Deus tenha chorado, pois Ele iria ser glorificado em Lázaro. Não faz sentido que tenha sido a alma a chamar Lázaro do sepulcro, e que, pelo poder da alma unida ao corpo, tenha chamado novamente ao corpo morto a alma já separada dele.

5.      Sofre Aquele que será glorificado? Chora Aquele que vai dar a vida? Não pertence ao que vai dar a vida o pranto, nem ao que será glorificado, o sofrimento. No entanto, Aquele que chorou e sofreu dá a vida.

 

Capítulo 57.

6.      Não porque sejamos obrigados pela ignorância do que foi dito, ou porque não tenhamos muito que dizer, mas para que uma explicação rápida ajude na clareza da exposição, falamos pouco de muitas coisas.

7.      O Senhor age e realiza coisas que não conhecemos, o que não se ignora e se pode ignorar, já que, por um lado as coisas são reais e, por outro, há um mistério em seu poder. Ensinaremos isso claramente com base no que diz: Por isso o Pai me ama, porque Eu entrego minha alma para recebê-la de novo. Ninguém a tira de mim, mas eu a entrego por mim mesmo. Tenho o poder de entregá-la e tenho o poder de recebê-la de novo; este preceito eu o recebi do Pai (Jo 10,17-18).

8.      Entrega por si mesmo a alma, e eu indago: quem entrega? Não duvidamos ser Cristo o Deus Verbo; nem também ignoramos que o Filho do Homem foi constituído de alma e corpo, pois o Anjo o confirmou a José ao dizer: Levanta-te, toma o menino e sua mãe, e volta para a terra de Israel; aqueles que procuravam tirar a alma do menino já estão mortos (Mt 2,20).

9.      De quem é esta alma, pergunto, do corpo ou de Deus? Se do corpo, que poder tem o corpo, que é animado pelo movimento da alma para a vida? Pergunto em seguida se o corpo pode receber uma ordem, já que, sem a alma, está embotado e morto? Se, porém, alguém julgar que é o Deus Verbo que entrega sua alma, para retomá-la de novo, mostre que o Deus Verbo morreu, isto é, que permaneceu sem sentidos nem vida, como um corpo morto, que de novo retomou sua alma para viver, para ser de novo vivificado por ela.

 

Capítulo 58.

10.  Nenhuma pessoa que tenha o uso da razão irá atribuir a Deus uma alma, embora com frequência se tenha escrito que a alma de Deus odiava os sábados e as luas novas e, ainda, que se comprazia em algo (cf. Is 1,13-14; 42,1). Mas é costume falar deste modo, como também se fala de mãos, olhos, dedos, braço, coração, como se Deus tivesse corpo.

11.  Como disse o Senhor, o Espírito não tem carne nem ossos (cf. Lc 24,39), já que Aquele que é não muda (cf. Ml 3,6) e não podemos atribuir-lhe membros e partes do corpo para conferir a sua solidez, mas a simples e bem-aventurada natureza permanece como um todo.

12.  Deus não é movido para a vida por uma alma interior a Ele, à maneira dos seres corpóreos. Ele mesmo vive sendo para si mesmo sua própria vida.

 

Capítulo 59.

13.  Como entrega sua alma, e, uma vez entregue, a reassume? Ou qual o motivo desta ordem? Deus não entrega a alma à morte nem a reassume para a vida. O corpo também não recebe a ordem de reassumi-la, pois não a reassume por si mesmo, visto que foi dito a respeito do templo de seu corpo: Destruí este templo e em três dias eu o reerguerei (Jo 2,19).

14.  É Deus que ressuscita o templo de seu corpo. E quem entrega a alma para retomá-la? O corpo, por si mesmo, não a retoma, mas é ressuscitado por Deus. É ressuscitado o que está morto e não entrega a alma o que vive. Logo, Deus não morreu nem foi sepultado, no entanto disse: Derramando o perfume em meu corpo, ela o preparou para ser sepultado (Mt 26,12).

15.  Foi derramado em seu corpo o perfume, para ser sepultado, e não é a mesma coisa ser (ele mesmo) e ser seu (possuir algo), como não é a mesma coisa ser ungido para ser sepultado, e ter seu corpo ungido, e não é a mesma coisa dizer que o corpo é dele e dizer que Ele foi sepultado.

 

Capítulo 60.

16.  A compreensão deste mistério divino consiste em não ignorar ser Deus Aquele que não se pode desconhecer como Homem e não desconhecer como Homem aquele que não se pode ignorar como Deus, não dividir Jesus Cristo, porque o Verbo se fez carne, não julgar sepultado Aquele que sabes ter ressuscitado, não duvidar que tenha ressuscitado Aquele que não ousas negar ter sido sepultado.

17.  Pois Jesus Cristo foi sepultado, porque morreu. E morreu Aquele que, quando ia morrer, disse: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? (Mc 15,34). Disse isto o mesmo que também iria dizer: Em verdade eu te digo, que hoje estarás comigo no paraíso (Lc 23,43). E o que prometia o paraíso também exclamou em alta voz: Pai, em tuas mãos entrego meu Espírito. E isto dizendo, expirou (Lc 23,46).

 

Capítulo 61.

18.  A vós, agora, que dividis em três partes o Cristo: o Verbo, a alma e o corpo, ou reduzis o Cristo, Deus Verbo, a um homem comum, dizemos: Revelai-nos o grande mistério da piedade, que se manifestou na carne (1Tm 3,16). Que Espírito Cristo entregou, quem recomendou às mãos do Pai o seu Espírito, quem esteve no mesmo dia no paraíso e quem se queixou de ter sido abandonado pelo Pai?

19.  Pois a queixa de ser abandonado é fraqueza do que morre, mas a promessa do paraíso significa o reinado do Deus vivo. Recomendar o Espírito significa a confiança do que recomenda. Entregar o Espírito significa a morte do que estava morrendo. Pergunto então: quem morre? Certamente o que entrega o Espírito. Quem entrega o Espírito? Certamente aquele que recomendou ao Pai seu Espírito. E se é o mesmo o que recomendou seu Espírito e o que, ao entregá-lo, morreu, indago se o corpo recomenda a alma, ou se Deus recomenda a alma do corpo?

20.  Pois, como se sabe, frequentemente espírito significa o mesmo que alma. Isto se vê neste mesmo caso, porque Jesus, ao morrer, entregou o Espírito. Se, portanto, alguém julga que a alma foi recomendada pelo corpo, a que vive pelo que iria se dissolver, a eterna pelo corruptível, a que permanece pelo que deveria ser ressuscitado (pois não há dúvida de que quem recomendou o Espírito ao Pai seja o mesmo que iria estar no mesmo dia no paraíso com o ladrão), pergunto se o que foi colocado no sepulcro permaneceu no paraíso ou, então, permanecendo no paraíso, se queixou de ser abandonado por Deus.

 

Capítulo 62.

21.  Um só e o mesmo é o Senhor Jesus Cristo, Verbo feito carne, revelando-se por todas estas coisas. Aquele que diz ser abandonado à morte é Homem, porém, sendo Homem, reina como Deus, no paraíso. Reinando no paraíso, encomenda ao Pai seu Espírito como Filho de Deus e, como Filho do Homem, entrega à morte o Espírito encomendado ao Pai.

22.  Por que, então, reputamos como injúria este mistério? Vês aquele que se queixa de ter sido entregue à morte, porque é humano; vês que, ao morrer, declara que reinará no paraíso, porque é Deus. Por que, para favorecer a impiedade, guardamos somente o que nos disse para que entendêssemos sua morte, e, sobre o que afirmou para demonstrar sua imortalidade, nada dizemos?

23.  Se as palavras pertencem ao mesmo que se queixa de ser abandonado e declara reinar, por que nossa infidelidade nos faz dividir nossa fé, de tal modo que não possa ser o mesmo o que está morto e o que reina, quando Ele atestou de si mesmo as duas coisas, ao recomendar o Espírito e ao entregar o Espírito? Porque se é o mesmo o que recomenda o Espírito e o entrega, o que morre reinando e, morto, reina, encontramos, no mistério do Filho do Homem e do Filho de Deus, o que morre reinando e reina morrendo.

 

Capítulo 63.

24.  Desapareça toda irreligiosa infidelidade, incapaz de acolher o divino mistério, que não entende que Cristo não chorou por si mesmo, mas por nós, e que, para dar testemunho da realidade da humanidade por ele assumida, aceitou em si os sentimentos humanos, que ignora não ter Cristo morrido para si, mas para nossa vida, a fim de renovar, pela morte do Deus imortal, a vida dos mortais, que não compreende a queixa do abandonado e a confiança do que reina, e compreenda que, ao reinar como Deus e lamentar-se por morrer, morre como Homem e reina como Deus.

25.  Não é um o que morre e outro o que reina, não é um o que recomenda o Espírito e outro o que expira, o que é sepultado não é diferente do que é ressuscitado, assim como não é um o que desce do céu e outro o que sobe ao céu.

 

Capítulo 64.

26.  Sobre isto, escuta a doutrina do Apóstolo, aprendida não pelos sentidos carnais, mas pelo dom do Espírito, quando, pedindo os gregos a sabedoria e os judeus um sinal, assim diz: Nós, porém, pregamos o Cristo Jesus crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios; mas para os que são chamados, judeus e gregos, Cristo Jesus, poder de Deus e sabedoria de Deus (1Cor 1,23-24). Acaso Cristo está dividido, de modo que seja um o Jesus Crucificado, outro o Cristo força e sabedoria de Deus?

27.  Isto é escândalo para os judeus e loucura para os gentios, para nós, porém, Cristo Jesus é força e sabedoria de Deus, mas sabedoria não conhecida pelo mundo, nem entendida pelos prudentes do século. E até que ponto não foi entendida, aprende do mesmo santo Apóstolo: Ensinamos a sabedoria de Deus, misteriosa e oculta, que Deus predestinou antes dos séculos para a nossa glória. Nenhum dos príncipes deste mundo a conheceu, pois, se a tivessem conhecido, não teriam crucificado o Senhor da glória (1Cor 2,7-8).

28.  Acaso o Apóstolo ignora que esta sabedoria está escondida no mistério e não pode ser conhecida pelos príncipes deste mundo? Divide a Cristo, de forma que um seja o Senhor da majestade, outro, o Jesus Crucificado? Mas ele contradiz esta impiíssima e estulta opinião, dizendo: Pois não quis saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo Crucificado (1Cor 2,2).

 

Capítulo 65.

29.  Coisa diferente não sabe o Apóstolo nem julga saber; quanto a nós, de fraca inteligência e de fé ainda mais fraca, separamos, dividimos, duplicamos o Cristo Jesus, querendo ser os árbitros dos mistérios e menosprezando o mistério oculto. Para nós (assim pensam), um é o Cristo Crucificado, outro, a sabedoria de Deus, um é o sepultado, outro o que desceu do céu, um é o Filho do Homem, outro o Filho de Deus.

30.  Sem entender, ensinamos e censuramos sem saber. Sendo homens, corrigimos as palavras de Deus e não nos dignamos crer, de acordo com o Apóstolo, que diz: Quem acusará os eleitos de Deus? É Deus quem justifica. Quem condenará? Cristo que morreu, mais ainda, que ressuscitou, que está à direita de Deus e intercede por nós? (Rm 8,33-34.)

31.  Será Aquele que pede por nós diferente daquele que está à direita de Deus? Ou Aquele que está à direita de Deus não será o mesmo que ressuscitou? Ou quem ressuscitou não é o mesmo que morreu? Ou o que morreu não é o mesmo que condena? Ou o que condena não é o mesmo Deus que justifica? Separemos então, se for possível, o Cristo que condena do Deus que justifica, o Cristo morto do Cristo que condena, o Cristo assentado à direita, que intercede por nós, do Cristo morto.

32.  Se um só Cristo é realmente tudo isso e não é um o Cristo morto e outro o sepultado, ou um o que desce aos infernos e outro o que sobe aos céus, de acordo com a palavra do Apóstolo: Que significa ‘subiu’ senão que ele também desceu às profundezas da terra? O que desceu é o mesmo que subiu acima de todos os céus, a fim de plenificar todas as coisas (Ef 4,9-10).

33.  Até que ponto levaremos a ignorância, insensata de nossa falta de fé, para podermos afirmar que somos capazes de explicar aquilo que está escondido no mistério de Deus? O que desceu é o mesmo que subiu. Ainda se poderá hesitar, dizendo que não foi Jesus Cristo o Homem ressuscitado dos mortos, que se elevou acima de todos os céus e está à destra de Deus?

34.  Acaso se dirá que desceu aos infernos o corpo que jazia no sepulcro? Mas, se o que desceu é o mesmo que subiu e não se acredita que o corpo tenha descido aos infernos e também não se duvida de que, ressurgindo dos mortos, tenha subido aos céus, que mais nos resta a não ser a fé no mistério escondido, desconhecido pelo mundo e pelos príncipes deste mundo?

35.  Pois, sendo um e o mesmo o que desceu e o que subiu, também um só há de ser para nós Jesus Cristo, Filho de Deus e Filho do Homem, Verbo que é Deus e Homem que é carne, que padeceu, morreu e foi sepultado e, ressurgindo, foi recebido nos céus e está sentado à direita de Deus, que existe em si, como um e o mesmo, em virtude da encarnação e de sua natureza, na  forma de Deus e na forma de servo, sem nenhuma separação em si por ser Homem, e sem nenhuma divisão por ser Deus.

 

Capítulo 66.

36.  O Apóstolo, ao formular a fé para que pudesse ser aceita pela nossa mentalidade imprudente e ignorante, assim proclamou este mistério: Pois foi crucificado na fraqueza, mas vive pelo poder de Deus (2Cor 13,4). Proclamando que o Filho do Homem é o Filho de Deus e que, sendo Homem, pela economia da salvação, permanece Deus por natureza, afirma que Aquele que pela fraqueza foi crucificado é o mesmo que vive pela força de Deus. A fraqueza procede da forma de servo, mas a natureza permanece pela forma de Deus.

37.  Como o que existia na forma de Deus assumiu a forma de servo, não pode haver dúvida quanto ao mistério pelo qual sofreu e está vivo. No mesmo existia a fraqueza para sofrer e o poder para a vida de Deus; assim, Aquele que sofreu e está vivo não está dividido em si mesmo nem é outro.

 

Capítulo 67.

38.  O Deus Unigênito realmente sofreu o que os homens podem sofrer; mas citemos a fé e as palavras do Apóstolo: Eu vos transmiti em primeiro lugar o que eu mesmo recebi: Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras. Foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras (1Cor 15,3-4).

39.  Não emprega simples definições, propícias ao erro, mas adverte que a morte e a ressurreição devem ser afirmadas, não com palavras, mas com a força das Escrituras, de tal modo que nossa compreensão da morte seja a mesma apresentada pelas Escrituras. Sem dar lugar a pensamentos mesquinhos e falsas afirmações de uma fé escrupulosa, acrescenta as palavras finais, mostrando que a morte e a ressurreição devem ser professadas segundo as Escrituras, para que, agitados pelo vento das vãs disputas ou embaraçados por ineptas argúcias em questões falazes, não perdêssemos as forças.

40.  O Apóstolo reconduz sempre a fé ilesa a este porto de sua religião, para que se creia e se confesse a morte e a ressurreição do Filho do Homem e Filho de Deus, Jesus Cristo, segundo as Escrituras.

41.  Opondo-se às calúnias, propõe a segurança da fé para que se possa resistir, já que se deve entender, tal como foi escrito, que Jesus Cristo iria morrer e ressuscitar. A fé não corre perigo e toda piedosa profissão de fé está guardada no secreto mistério de Deus.

42.  Cristo nasceu da Virgem, mas, segundo as Escrituras, foi concebido por obra do Espírito Santo. Cristo chorou, mas segundo as Escrituras, e justamente por isto, alegrou-se. Cristo teve fome, mas, segundo as Escrituras, quando não tinha alimento porque a árvore não tinha frutos, agiu como Deus. Cristo sofreu, mas, segundo as Escrituras, devia sentar-se à destra do poder de Deus. Queixou-se de ser entregue à morte, mas, segundo as Escrituras, recebeu no paraíso aquele que o confessara. Morreu, mas, segundo as Escrituras, ressurgindo, assentou-se como Senhor à direita do Senhor.

43.  Na fé destes mistérios está a vida; esta confissão de fé não suporta a calúnia.

Capítulo 68.

44.  O Apóstolo não deixa margem à dúvida, para que se diga: Cristo nasceu, padeceu, morreu, ressuscitou, de que modo, por que poder, por que divisão, em que partes? Quem chora, quem se alegra, quem se queixa, quem desce, quem sobe? Para mostrar que o valor da fé se deve unicamente à inabalável confissão da verdadeira doutrina, diz: Mas a justiça que vem da fé assim diz: não digas em teu coração: “Quem subirá ao céu?”, isto é, para fazer Cristo descer. Ou: “quem descerá ao abismo?”, isto é, para ressuscitar Cristo dentre os mortos. Mas que diz a Escritura? “Perto de ti está a palavra em tua boca e em teu coração”, isto é, a palavra da fé que pregamos; porque se confessares com tua boca que Jesus é o Senhor, e se creres em teu coração que Deus o ressuscitou dos mortos, serás salvo (Rm 10,6-9).

45.  A fé leva à perfeição o justo, segundo o que foi dito: Abraão creu em Deus, e lhe foi imputado como justiça (Gn 15,6; Rm 4,3). Acaso Abraão duvidou de Deus, quando lhe prometeu a herança das nações e uma descendência tão numerosa como as estrelas e os grãos da areia?

46.  A fé verdadeira não duvidou da onipotência de Deus nem considerou a fraqueza humana.  Sem fazer caso daquilo que nele era caduco e terreno, teve fé na divina promessa que ultrapassava em muito a constituição do corpo; porque, de modo algum, poderia o poder de Deus ser governado pelas leis humanas. A liberalidade demonstrada por Deus, ao realizar suas promessas, é tão grande quanto sua benevolência ao fazê-las.

47.  Nada é mais justo do que a fé, porque, enquanto a equidade e o governo dos atos terrenos merecem aprovação, no entanto, nada de mais justo para o Homem do que crer na onipotência de Deus, reconhecendo seu poder infinito.

 

Capítulo 69.

48.  Esperando o Apóstolo que, em nós, a justiça que vem da fé tenha removido a irreligiosidade causada pela incerta e infiel ambiguidade e proibindo que deixemos entrar no coração a preocupação dos pensamentos inquietos, mostra-nos a autoridade da palavra profética, dizendo: Não digas em teu coração: “Quem subiu ao céu?” (Rm 10,6).

49.  Após citar o Profeta, continua a explicação da pergunta: Isto é, para fazer Cristo descer. A força da mente humana não alcança a ciência das coisas celestiais, mas nem por isso a fé religiosa duvida das obras divinas.

50.  Cristo não precisou de auxílio da força humana para que seu corpo descesse da sua sede felicíssima, por obra de alguém que tivesse subido ao céu. Não o trouxe à terra nenhum poder exterior.

51.  Deve-se crer que tenha vindo tal como veio, e esta é a verdadeira religião: confessar que Cristo não foi trazido ao mundo, mas que desceu. O tempo e o modo de vir fazem partes de seu mistério. Não se deve crer que, por ter vindo deste modo, tenha sido trazido por outro, nem se entenda estar sujeita ao poder de alguém que o tenha conduzido sua vinda no tempo.

52.  Também não se deve tolerar a incredulidade fundamentada em outra ambiguidade. Em seguida vem as palavras do Profeta: Quem desceu ao abismo? (Dt 30,13). E logo acrescenta: isto é, para ressuscitar Cristo dentre os mortos (Rm 10,7). A liberdade de poder voltar ao céu vem da liberdade de descer à terra. Desaparece toda a dúvida e hesitação, a fé traz o conhecimento, a razão vem do poder de Deus, o efeito do poder se mostra nas coisas, a causa está no poder de Deus.

 

Capítulo 70.

53.  Para isto é necessário que a fé não vacile. Pois o Apóstolo, expondo todo o mistério da Escritura, diz: Perto de ti está a palavra, em tua boca e em teu coração (Rm 10,8; Dt 30,14). A palavra da fé não deve tardar nem deve ser esperada por muito tempo. Não se deve deixar nenhuma distância entre o coração e a boca, para impedir que a afirmação da fé seja considerada uma ambiguidade infiel.

54.  É preciso que esteja próxima de nós, e em nós não aconteça que, por alguma distância entre o que está no coração e na boca, nossa fé talvez não esteja no pensamento como está na palavra. Deve-se fazer concordar a boca e o coração para que ela se mantenha inabalável, tanto no pensamento como na palavra.

55.  O Apóstolo dá o motivo destes ditos proféticos, como de outros, acrescentando: Esta é a palavra da fé que pregamos; porque, se confessares com tua boca que Jesus é o Senhor e se creres em teu coração que Deus o ressuscitou dos mortos, serás salvo (Rm 10,8-9).

56.  A religião consiste em não duvidar, a justiça, em crer, a salvação, em confessar. Não se perder em incertezas, não se irritar com palavras tolas, não discutir por nenhum motivo as ações poderosas de Deus, não limitar o seu poder, nem esquadrinhar as indizíveis causas dos mistérios, confessar o Senhor Jesus e crer que Deus o ressuscitou dos mortos, eis a salvação.

57.  Porém, é loucura perguntar com leviandade quem é e como é Jesus, quando a salvação consiste em crer nisto somente: que Ele é o Senhor.

58.  É igualmente um erro da futilidade humana provocar disputas sobre sua ressurreição, já que basta, para a vida, crer ter sido ressuscitado por Deus.

59.  Na verdade, a fé está na simplicidade, na fé está a justiça, na profissão de fé está a piedade.

60.  Deus não nos chama à vida bem-aventurada por meio de difíceis questões, nem nos solicita com múltiplos gêneros de eloquência. Claro e fácil é para nós o caminho da eternidade: crer que Jesus foi ressuscitado dos mortos por Deus e confessar que Ele é o Senhor.

61.  Portanto, que nossa ignorância em relação ao que foi dito não seja usada como ocasião para a impiedade. Pois é necessário saber que Jesus Cristo morreu, para vivermos nele.

 

Capítulo 71.

62.  Se, na verdade, para que pudéssemos entender sua morte, disse: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste? e: Pai, em tuas mãos entrego meu espírito (Mc 15,34; Lc 23,46), seria, acaso, para auxiliar nossa profissão de fé, mais que para eliminar nossas dúvidas, que Ele confessou que era fraco?

63.  Antes de ressuscitar a Lázaro, orou ao Pai. Teria necessidade de orar o que diz: Pai, graças te dou porque me ouviste. Eu sabia que Tu sempre me ouves, mas digo isso por causa da multidão que me cerca, para que creiam que Tu me enviaste (Jo 11,41-42)?

64.  Portanto, orou para que nós não ignorássemos que era o Filho. Já que este pedido não era necessário para Ele, falou para fortalecer a nossa fé. Ele não precisava de auxílio, mas nós precisamos do seu ensinamento. Pediu para ser glorificado e logo se ouviu a voz do Pai glorificando-o. Diante da admiração causada por aquela voz, disse: Esta voz não veio por minha causa, mas por vossa causa (Jo 12,30).

65.  Por nós Ele roga ao Pai, por nós o Pai fala; tudo isso é feito para que receba nossa confissão de fé. Como a resposta, afirmando que Deus o glorifica, não foi dada por ter pedido a glória, mas por causa da ignorância dos ouvintes, como não se entenderá que a queixa da paixão na suprema alegria do sofrimento destinou-se ao esclarecimento de nossa fé?

66.  Cristo roga pelos perseguidores, porque não sabem o que fazem. Cristo, na cruz, promete o paraíso (cf. Lc 23, 34.43), porque reina como Deus. Cristo, na cruz, ao beber o vinagre, se alegra porque tudo está consumando (cf. Jo 19,30), pois, ao morrer, cumpriu a profecia. Por nós nasceu, por nós sofreu, por nós morreu, por nós ressuscitou.

67.  E se para nós o único meio de salvação é confessar que Ele é o Filho de Deus ressuscitado dos mortos, por que, indago, morrermos nesta impiedade?

68.  Se Cristo, permanecendo na segurança que lhe dava sua divindade, mostrou que morria com toda a confiança, para mostrar a verdadeira assunção da humanidade, por que aquilo que o Filho de Deus afirma a respeito de si mesmo, isto é, que se tornou Filho do Homem e morreu por nós, deve servir principalmente para negar sua divindade?