sexta-feira, 8 de julho de 2016

42 - História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia Livro VII – Capítulos 1-10

42
História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia
Livro VII – Capítulos 1-10

Prólogo
Na elaboração do livro sétimo da História eclesiástica vai estar novamente conosco, com suas próprias palavras, o grande[1] bispo de Alexandria Dionísio, contando-nos sucessivamente, por meio das cartas que nos deixou, cada um dos fatos de seu tempo. Minha narração vai começar deste ponto.

I - Da perversidade de Décio e de Galo
1. Décio, que não reinou um par de anos completos, pois em seguida foi degolado junto com seus filhos, foi sucedido por Galo. Neste tempo morre Orígenes, já cumpridos sessenta e nove anos de sua vida. Dionísio, por sua parte, escrevendo a Hermamon, diz sobre Galo isto que segue: "Mas acontece que Galo nem reconheceu o mal de Décio nem teve a precaução de examinar o que o derrubou, mas veio a estatelar-se contra a mesma pedra que estava diante de seus olhos. Quando o império andava bem e os assuntos se resolviam a um pedido, expulsou os santos varões que perante Deus intercediam por sua paz e por sua saúde, e em conseqüência, junto com eles, perseguiu também as orações feitas em seu favor." Isto pois, sobre Galo.

II - Os bispos de Roma nos tempos de Décio e de Galo
1. Na cidade de Roma, depois que Cornélio exerceu o episcopado em torno de três anos, estabeleceu-se como seu sucessor a Lúcio, que no entanto viveu em seu ministério algo menos que oito meses, e ao morrer transmitiu seu cargo a Estevão. É a este que Dionísio escreve sua primeira carta Sobre o batismo, já que na época havia-se levantado um importante problema, a saber, se se deveria purificar de novo com o batismo aos que se convertiam de uma heresia qualquer. Havia prevalecido ao menos um costume antigo: usar com estas pessoas apenas a oração com imposição de mãos.

III - De como Cipriano, com seus bispos, foi o primeiro a sustentar a opinião de que deveriam ser purificados pelo batismo os que se convertiam do erro herético
1. Cipriano, pastor da igreja de Cartago e primeiro dos de então[2], cria que não se deveria admitir quem não tivesse primeiramente sido purificado do erro mediante o batismo. Mas Estevão, por outro lado, julgando que não se deveria juntar inovação nenhuma contrária à tradição que havia prevalecido desde o princípio, desagradou-se muito com ele.

IV - Quantas cartas Dionísio compôs sobre este assunto
1. Dionísio tratou longamente do assunto com ele por carta, e no final mostra-lhe que, uma vez acalmada a perseguição, todas as igrejas de todas as partes rechaçaram a inovação de Novato e recuperaram a paz umas com as outras. Escreve assim:

V - Da paz depois da perseguição
1.            "Mas saiba agora, irmão, que se uniram todas as igrejas que anteriormente se achavam separadas, as do Oriente e as de mais longe ainda, e que todos os que as presidem em todas as partes têm o mesmo sentimento, extrema­mente contentes com esta paz inesperada. Demetriano em Antioquia, Teoctisto em Cesaréia, Mazabanes em Elia, Marino em Tiro (com a morte de Alexandre)[3], Heliodoro em Laodicéia (falecido Telimidro), Heleno em Tarso e todas as igrejas da Cilicia, assim como Firmiliano e toda a Capadócia. Nomeei somente os bispos mais eminentes, para não alongar minha carta nem tornar pesado meu discurso.
2.            As duas Sírias inteiras e a Arábia - às quais em todos os momentos socorrestes e às quais agora tens escrito -, assim como Mesopotâmia, o Ponto e Bitínia, e para dizê-lo em uma palavra, todas, por toda parte, saltam de alegria e glorificam a Deus por esta concórdia e amor fraterno."
3.     Isto diz Dionísio. Quanto a Estevão, depois de ter cumprido seu ministério durante dois anos, sucede-o Sixto. Escrevendo a este sua segunda carta sobre o batismo, Dionísio expõe conjuntamente a opinião e a sentença de Estevão e dos demais bispos. Sobre Estevão diz o seguinte:
4.     "Havia ele pois escrito anteriormente sobre Heleno e também sobre Firmi­liano e todos da Cilicia, da Capadócia e, evidentemente, da Galácia e de todos os povos limítrofes, que daí em diante não estariam em comunhão com eles, por esta mesma razão, porque - dizia - rebatizam os hereges.
5.     E considera a magnitude do assunto, porque, em realidade, haviam-se tomado decisões sobre isto nos maiores concílios de bispos, segundo minhas infor­mações, de modo que aos que provinham das heresias se fazia passar novamente por um catecumenato e depois os lavavam e purificavam novamente da sujeira de seu antigo e impuro fermento[4]. E eu lhe escrevi perguntando-lhe sobre todos estes pontos."
6.     E depois de outras coisas, diz:
"E a nossos amados co-presbíteros Dionísio e Filemon, que primeiramente pensavam como Estevão e me escrevem sobre os mesmos assuntos, escrevi-lhes primeiro brevemente e agora com muito mais amplitude."

VI - Da heresia de Sabelio
1.   E isto é o que há sobre a questão mencionada.
Mas quando na mesma carta, falando também dos hereges sabelianos, assinala que em seu tempo prevaleciam, diz o seguinte: "Porque acerca da doutrina agora surgida em Ptolemaida de Pentápolis, doutrina ímpia e que contém muitas blasfêmias sobre o Deus-Todo-poderoso, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, e também muita incredulidade no que se refere a seu Filho unigênito, o primogênito de toda a criação, o Verbo feito homem, assim como também falta de sensibilidade para o Espírito Santo, como chegassem de todas as partes manifestos e irmãos com a intenção de discuti-lo, escrevi algumas coisas conforme minhas possibilidades e com ajuda de Deus, explicando-as de uma maneira bastante didática, e delas te envio as cópias."

VII - Do abominável erro dos hereges, da visão que Deus enviou a Dionísio e da regra eclesiástica que este havia recebido
1.   E na terceira das cartas sobre o batismo - a que o próprio Dionísio escreve a Filemon, presbítero de Roma -, expõe-se o seguinte:
"Eu também li as obras e as tradições dos hereges, e por breve tempo man­chei minha alma com seus infames pensamentos, mas disso tirei uma van­tagem: poder refutá-los por mim mesmo e abominá-los com muito mais força.
2.           Em realidade, um irmão, um dos presbíteros, separava-me e me metia medo, porque me deixava envolver no pântano da maldade daqueles; e de fato eu estava manchando minha alma e ele, como comprovei, dizia a verdade.
3.     Uma visão enviada por Deus veio a dar-me forças e uma voz se dirigiu a mim e me ordenou dizendo expressamente: 'Leia tudo o que cair em tuas mãos, pois tu és bastante para emendar e provar cada coisa, e isto tens desde o princípio e foi causa de tua fé'. Eu aceitei a visão, que concordava bem com a sentença apostólica que diz aos mais robustos: Sede cambistas experimentados[5]."
4.             Logo, depois de dizer algumas coisas sobre todas as heresias, acrescenta: "Eu recebi esta regra e este modelo de nosso bem-aventurado papa[6] Heraclas. Efetivamente, aos que provinham das heresias, ainda que houvessem se separado da Igreja - e com maior razão aos que não haviam se separado, mas que, sendo membros da congregação somente em aparência, na reali­dade era-lhes atribuído estar relacionado com algum dos mestres hereges -, expulsava-os da Igreja e não os admitia, ainda que pedissem, até que hou­vessem exposto publicamente tudo o que houvessem escutado entre os adversários; então os admitia à assembléia, sem exigir para eles um novo batismo, uma vez que já haviam anteriormente recebido dele o santo banho."
5.             E novamente, depois de ter discutido longamente o problema, acrescenta o que segue:
"Aprendi também isto: que não somente os africanos introduziram agora este costume, mas que isto foi decidido muito antes, nos tempos dos bispos que nos precederam nas igrejas mais populosas e nos concílios dos irmãos, em Iconio, em Sinade e em muitas partes. Não me atrevo a subverter suas decisões e fazê-las entrar em luta e rivalidade, porque não mudarás de lugar, diz-se, os marcos de teu vizinho que teus pais puseram[7]."
6.   A quarta de suas cartas sobre o batismo ele escreveu a Dionísio em Roma, então honrado com o presbiterado, mas que não muito depois recebeu também o episcopado daquela igreja. Por esta carta pode-se reconhecer como este era um homem ilustrado e admirável, segundo atesta Dionísio de Alexandria, que depois de outras coisas escreve-lhe fazendo menção ao assunto de Novato nos seguintes termos:

VIII - Da heterodoxia de Novato
1. Porque a Novaciano odiamos com razão, pois cindiu a Igreja, arrastou alguns irmãos à impiedade e à blasfêmia, transmitiu também um ensinamento sacrílego sobre Deus[8], caluniou nosso bondoso Senhor Jesus Cristo acusando-o de ser impiedoso[9] e, por complemento a todo o dito, anulava o santo batismo, subvertia a fé e a confissão[10] que o precedem, e expulsava por completo o Espírito Santo dos mesmos, ainda que houvesse alguma esperança de que permanecesse ou inclusive de que voltasse a eles."

IX - Do ímpio batismo dos hereges
1.   Também sua quinta carta foi escrita ao bispo de Roma Sixto. Nela, depois de dizer muitas coisas contra os hereges, expõe nos seguintes termos algo ocorrido em seu tempo:
"Porque de fato, irmão, também eu necessito conselho e peço teu parecer para um assunto importante que me foi apresentado, e temo equivocar-me.
2.            Efetivamente, um dos irmãos admitidos à comunidade, fiel antigo, segundo críamos, formava parte da assembléia já muito antes de minha ordenação -e antes de instalar-se o bem-aventurado Heraclas -, achando-se junto aos recém-batizados, e tendo escutado as perguntas e as respostas, acercou-se de mim chorando e lamentando-se, caiu aos meus pés, e confessava e jurava que o batismo com que havia sido batizado entre os hereges não era este nem tinha absolutamente nada em comum com ele, já que aquele estava cheio de impiedade e blasfêmias.
3.            E dizia que agora tinha a alma inteiramente trespassada pela dor e que não se atrevia sequer a levantar os olhos para Deus, tendo começado naquelas palavras e práticas sacrílegas, e por isto pedia poder obter esta purificação, esta acolhida, esta graça puríssima.
4.     Isto precisamente é o que eu não ousei fazer, e lhe disse que bastava para isto a comunhão em que estava admitido há tão longo tempo. Eu efetivamente não poderia atrever-me a reconstruir desde o começo[11] a alguém que ouviu a Eucaristia, respondeu com os outros ao Amem, esteve de pé ante a mesa, estendeu suas mãos para receber o sagrado alimento, recebeu-o e durante bastante tempo participou no corpo e no sangue de nosso Senhor. E exortava-o a ter ânimo e a acercar-se e participar das coisas santas com fé segura e boa esperança.
5.            Mas ele não pára de chorar e treme ao acercar-se à mesa, e apenas depois de muitos pedidos consegue acompanhar-nos de pé nas orações[12]."
6.   Além das cartas citadas, conserva-se também dele outra sobre o batismo, que ele e a comunidade que governava dirigem a Sixto e à igreja de Roma. Nela expõe a doutrina acerca do problema comentado, por meio de uma longa demonstração. Também se conserva dele, depois destas, outra dirigida a Dionísio de Roma, a que trata de Luciano. Isto é o que há sobre eles.

X - De Valeriano e sua perseguição
1.            Galo e sua equipe, depois de terem detido o comando quase dois anos, foram derrotados, sucederam-lhes no governo Valeriano e seu filho Galieno.
2.     Outra vez pois, nos é dado conhecer o que conta Dionísio por sua carta dirigia a Hermamon, na qual leva sua narrativa da seguinte maneira:
"E também a João foi igualmente revelado; E foi-lhe dada, diz, uma boca que profere arrogâncias e blasfêmias, e lhe foram dados poder e quarenta e dois meses[13].
3.            Mas ambas as coisas[14] são de admirar em Valeriano, e sobretudo deve-se considerar como era no princípio, como era favorável e benevolente para com os homens de Deus, porque nenhum outro imperador, nem mesmo aqueles que se diz que foram abertamente cristãos, teve uma disposição tão favorável e acolhedora. No começo recebia-os com uma familiaridade e uma amizade manifestas, e toda sua casa estava cheia de homens piedosos e era uma igreja de Deus[15].
4.     Mas o mestre e chefe supremo dos magos do Egito conseguiu persuadi-lo a se desembaraçar deles, e lhe ordenava matar e perseguir os puros e santos varões, porque eram contrários e obstáculo de seus infames e abomináveis encantamentos (pois são, efetivamente, e eram capazes, com sua presença e com sua vista, e mesmo somente com sua respiração e o som de suas vozes, de destruir as armadilhas dos pestíferos demônios), e lhe sugeria realizar iniciações impuras, sortilégios abomináveis e ritos de maus auspícios, assim como degolar pobres crianças, imolar filhos de pais desafortunados, abrir entranhas de recém-nascidos e cortar e despedaçar as criaturas de Deus, como se por isso tudo pudessem ser felizes."
5.   E a isto acrescenta o seguinte:
"Em conseqüência, Macriano ofereceu-lhes[16] bons sacrifícios de ação de graças pelo império que esperava. Ele, que no princípio havia estado à frente das contas universais do imperador, não teve um só pensamento razoável nem universal, mas caiu sob a maldição do profeta que diz: Ai dos que profetizam segundo seu próprio coração e não vêem o universal![17].
6.   E não compreendeu a providência universal nem temeu o juízo do que está antes de tudo, através de tudo e sobretudo[18], pelo que converteu-se em inimigo da Igreja universal, tornou-se alheio e desterrou a si mesmo da misericórdia de Deus, e fugiu para muito longe de sua própria salvação, mostrando nisto a verdade de seu próprio nome[19]."
7.   E depois de outras coisas volta a dizer:
"Valeriano, de fato, induzido por tais excessos, viu-se objeto de insultos e ultrajes[20], segundo a sentença de Isaías: E estes escolheram para si os caminhos e as abominações que sua alma quis; pois eu não preferirei suas zombarias e hei de recompensar-lhes seus pecados[21].
8.            Ele[22], por sua vez, enlouquecia pelo império, apesar de não merecê-lo; e não podendo revestir com os ornamentos imperiais seu corpo aleijado, propôs seus dois filhos, que assim receberam os pecados paternos, pois foi bem clara neles a predição feita por Deus: Eu, que castigo os pecados dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração dos que me odeiam[23].
9.     Com efeito, ao lançar seus próprios malvados desejos, que se haviam frustrado, sobre as cabeças de seus filhos, também lhes transferiu sua própria maldade e seu ódio a Deus[24]."
E isto é o que Dionísio diz sobre Valeriano.





[1] Dionísio de Alexandria será freqüentemente chamado "Dionísio o Grande", esta é a primeira vez.
[2] Primeiro em categoria não em tempo.
[3] Sobre Marino nada mais se sabe, o texto entre parênteses deveria seguir ao nome de Mazabanes (deslize dos copistas).
[4] 1 Co 5:7.
[5] Frase muito utilizada pelos autores eclesiásticos, é atribuída a Cristo.
[6] É a primeira vez que se dá este título ao bispo de Alexandria, na mesma época os presbíteros de Roma o davam também a Cipriano. O bispo de Roma ainda tardará em recebê-lo.
[7] Dt 19:14.
[8] O rigor extremo e inflexível de Deus para com os pecadores.
[9] Sem piedade, por negar o perdão aos caídos.
[10] Profissão de fé.
[11] Isto é, rebatizar. Dionísio parece convencido da validade do batismo daquele homem.
[12] Isto é, entre os penitentes que ainda excluídos da comunhão eucarística participavam da oração comum.
[13] Ap 13:5.
[14] Não é possível saber quais, uma pode ser a citação ao Apocalipse, a outra foi cortada da carta de Dionísio.
[15] É a época de 253 a 257.
[16] Aos demônios.
[17] Ez 13:3.
[18] Ef 4:6: Cl 1:17.
[19] O nome Macriano derivaria de makrós, i.é, longo, distante.
[20] Valeriano foi derrotado em 260 pelos persas, cujo rei Sapor (Xapur) I o fez sofrer todo tipo de vexames Valeriano morreu no cativeiro.
[21] Ez 66:3-4.
[22] Macriano
[23] Ex 20:5.
[24] Os filhos de Macriano (Macriano o Jovem e Quieto) não conseguiram impor-se, foram derrotados e mortos.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

41 - História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia Livro VI – Capítulos 42-46

41
História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia
Livro VI – Capítulos 42-46



XLII - De outros mártires mencionados por Dionísio
XLIII - De Novato, sua conduta e sua heresia
XLIV - Relato de Dionísio acerca de Serapion
XLV - Carta de Dionísio a Novato
XLVI - Das outras cartas de Dionísio

 Texto Bíblico: II Pedro 2.1

XLII - De outros mártires mencionados por Dionísio
1. E muitos outros foram despedaçados pelos pagãos nas cidades e aldeias, desses recordarei somente um para fim de exemplo. Isquirion era intendente a soldo de um dos magistrados. Seu amo o mandou sacrificar, e como ele não obedecesse, começou a injuriá-lo, persistiu em sua negativa, e o amo o maltratava; como suportava tudo, este agarrou uma enorme estaca e, atravessando-lhe intestinos e entranhas, matou-o.
2.            E que dizer da multidão dos que andaram errantes por desertos e montes e morreram de fome, de sede, de frio e de enfermidades, ou presa de ladrões e de feras? De sua eleição e sua vitória são testemunhas os que dentre eles sobreviveram. Como prova de todos, citarei também um só caso.
3.            Queremon era já muito velho e era bispo da cidade chamada Nilópolis. Tendo fugido com sua mulher à montanha de Arábia, não regressou mais, e os irmãos, apesar de esquadrinhar bem por muitas partes, não puderam encontrá-los nem seus cadáveres.
4.            Muitos são os que nessa mesma montanha de Arábia foram reduzidos à escravidão pelos bárbaros sarracenos; deles, alguns foram resgatados com grande dificuldade e em troca de muito dinheiro; e outros não, até hoje. E se te expliquei isto, irmão, não é sem motivo, mas para que saibas quantas e que terríveis provas nos atingiram, e mais poderiam contar aqueles que mais experimentaram."
5.            E logo, depois de breves linhas, prossegue dizendo:
"Portanto, os mesmos divinos mártires entre nós, que agora são assessores de Cristo e partícipes de seu reino e de seu juízo, e que junto a ele ditam sentenças, receberam alguns irmãos caídos que se tinham feito culpados de ter sacrificado. Quando viram sua conversão e arrependimento e julgaram que podia ser aceitável para o que não quer em absoluto a morte do pecador, mas seu arrependimento[1], receberam-nos, congregaram com eles, reuniram-nos e lhes deram parte em suas orações e comidas.
6.   O que nos aconselhais, pois, vós sobre isto, irmãos? Que devemos fazer? Nos colocaremos ao lado da sua decisão e de seu sentimento e guardaremos seu juízo e sua graça, e seremos bons para aqueles com quem compadeceram, ou teremos por injusta sua decisão e nos imporemos como juízes de sua opinião, deplorando sua bondade e questionando a ordem estabelecida?" Isto é o que Dionísio, de bom acordo, nos expõe ao remover o tema dos que haviam desfalecido na temporada de perseguição.

XLIII - De Novato, sua conduta e sua heresia
1. Foi precisamente então que Novato[2], presbítero da igreja de Roma, ensoberbecido contra estes, como se já não existisse para eles esperança de salvação nem mesmo cumprindo tudo que condissesse com uma conver­são sincera e com uma confissão pura, constituiu-se em fundador de uma heresia particular, a daqueles que, por orgulho de sua razão, declaravam a si mesmos puros.
2.             Por este motivo reuniu-se em Roma um numerosíssimo concilio, com sessenta bispos e um número ainda maior de presbíteros e diáconos, enquanto que nas demais províncias os pastores locais examinavam particularmen­te a fundo o que se haveria de fazer. Todos tomaram uma decisão[3]: que Novato, junto com os que se haviam levantado com ele, assim como os que haviam preferido aprovar o parecer antifraterno e sumamente desumano deste homem, seriam considerados como alheios à Igreja. Por outro lado, os irmãos caídos naquela calamidade deveriam ser curados e cuidados com os remédios da penitência.
3.             Chegou pois a nós uma carta do bispo de Roma Cornélio, escrita para a igreja de Antioquia, Fábio, que declara os fatos relativos ao concilio de Roma e às decisões dos da Itália, da África e das regiões daqueles lugares. Também nos chegaram outras, compostas em língua latina, de Cipriano e de seus colegas da África, através das quais manifestavam que também eles achavam que era necessário socorrer os que haviam caído na prova e que com boa razão era necessário declarar expulso da Igreja católica o fundador da heresia, assim como os que se haviam deixado extraviar por ele.
4.             Junto com essas cartas vinha outra de Cornélio sobre as decisões do concilio, e ainda outra sobre os atos de Novato. Nada nos impede de citar um parágrafo desta para quem leia este livro saiba sobre ele.
5.             Explicando a Fábio que tipo de homem era Novato, Cornélio escreve o seguinte:
"E para que saibas que estranho indivíduo vinha há muito tempo desejando o episcopado e que ocultava em si mesmo esta sua violenta paixão utilizando como cobertura de sua loucura o fato de ter consigo no início os confessores, quero explicar-me:
6.   Máximo, um dos nossos presbíteros, e Urbano, tinham ambos colhido por duas vezes a melhor das glórias por sua confissão; logo Sidonio e também Celerino, varão que, pela misericórdia de Deus, havia suportado com a maior integridade todos os tormentos e que, fortalecendo a fraqueza de sua carne com o vigor de sua fé, tinha vencido a viva força o adversário; estes homens
conheceram aquele, e depois que descobriram a malícia que havia nele, sua falsidade, seus perjúrios, seus enganos, sua insociabilidade e sua amizade lupina, retornaram à santa Igreja e revelaram todas suas maquinações e ações malvadas, que já possuía desde há muito tempo, mas que ocultava em si mesmo, achando-se presentes muitos bispos e grande número de presbíteros e laicos, e se lamentavam e se arrependiam de ter abandonado por breve tempo a Igreja, persuadidos por aquela besta pérfida e malvada."
7.   Logo diz, depois de curto espaço:
"E extraordinário, querido irmão, a mudança e transformação que em pouco tempo contemplamos nele! Porque sendo uma pessoa brilhantíssima e que fazia crer com tremendos juramentos que de modo algum desejava o episcopado, de repente aparece já como bispo, como que lançado ao meio por arte de encantamento.
8.             Efetivamente, este expositor de doutrinas, este campeão da ciência eclesiás­tica, quando se empenhou em tomar para si e arrebatar o episcopado, que não lhe fora dado do alto, escolheu dois partidários seus, desesperados da própria salvação, para enviá-los a certa parte da Itália, pequena e insigni­ficante, e ali enganar com elaborada argumentação a três bispos, homens rústicos e muito simples, afirmando energicamente e sustentando com força que era preciso que se apresentassem rapidamente em Roma, para que com sua mediação e com a ajuda de outros bispos, se pusesse fim a toda dissensão que havia surgido.
9.      Assim que chegaram - pessoas, como já dissemos, demasiado simples para as maquinações e falta de escrúpulos destes malvados -, foram encerrados por alguns homens semelhantes a ele e por ele transtornados. A hora décima, quando se encontravam ébrios e tomados pelo vinho, obrigou-os à força a que, mediante uma imposição de mãos simulada e vã, lhe conferissem o episcopado, o mesmo que agora reivindica com fraude e malícia, pois não lhe cabe.
10.     Não muito depois, um deles voltou à Igreja, lamentando-se e confessando seu pecado, e nós o admitimos à comunhão como laico, pois todo o povo ali presente intercedia por ele. Quanto aos outros bispos, ordenamos sucessores para eles e os enviamos aos lugares onde eles estavam.
11.     Assim pois, este vingador do Evangelho não sabia que deve haver um só bispo em uma igreja católica em que não ignora - e como poderia? - que há quarenta e seis presbíteros, sete diáconos, sete subdiáconos, quarenta e dois acólitos, cinqüenta e dois entre exorcistas, leitores e ostiários, assim como mais de mil e quinhentas viúvas e necessitados, todos os quais são alimen­tados pela graça e o amor do Senhor para com os homens.
12. Uma multidão tão grande e tão necessária na Igreja, e um número tão rico e em contínuo aumento pela providência divina, com um povo imenso e inumerável, não conseguiu afastá-lo de tamanho desespero e desmorona­mento e retorná-lo à Igreja."
13. E novamente, depois de algumas outras coisas, acrescenta:
"Pois bem, digamos na mesma carreira com que obras e com que gênero de vida atrevia-se a reivindicar o episcopado. Seria por acaso, ao menos porque desde o princípio vivia habitualmente na igreja? Ou porque por ela travou numerosos combates e, por causa da religião, viu-se envolto em muitos e grandes perigos?
14.     Nada disso houve. Ao menos para ele, o ponto de partida de sua crença foi Satanás, que tinha vindo a ele e nele havia morado bastante tempo. Os exorcistas o ajudaram quando caiu numa grande enfermidade, e como pensava que morreria logo, no próprio leito em que jazia recebeu o batismo por aspersão, se é que se pode dizer este o recebeu.
15.     Mas tendo escapado à enfermidade, não recebeu nenhuma das outras coisas que se deve receber depois, segundo a regra da Igreja, nem sequer o ser selado pelo bispo. E não tendo recebido isto, como poderia ter recebido o Espírito Santo?"
16.     E depois de breve espaço volta a dizer:
".. .ele, que por covardia e apego à vida, em tempos de perseguição negou que fosse presbítero. Efetivamente, os diáconos lhe pediam e exortavam a que saísse do casebre em que havia se encerrado e socorresse aos irmãos em tudo o que fosse lei e segundo a possibilidade de um presbítero para socorrer a uns irmãos em perigo e necessitados de socorro; mas ele estava tão longe de obedecer às exortações dos diáconos que partiu enfurecido e se afastou, porque dizia que já não queria ser presbítero por estar enamorado de outra filosofia".
17. Saltando algumas coisas, acrescenta ao dito o seguinte:
"...depois de abandonar, efetivamente, este ilustre personagem a Igreja de Deus, na qual havia obtido a fé e na qual havia sido considerado digno do presbiteriado, pela graça do bispo que lhe impôs sua mão para a ordem do presbiteriado, pois ainda que todo o clero tentasse impedi-lo, e inclu­sive muitos laicos, por não ser permitido a quem houvesse, como ele, rece­bido o batismo por aspersão no leito, por causa de uma enfermidade, ser incorporado ao clero, o dito bispo pediu que se lhe permitisse ordenar este somente".
18. Ainda acrescenta algo ao dito, o maior dos absurdos deste homem, nos seguintes termos:
"De fato, realizada a oferenda, ao distribuir a cada um sua parte e entregá-la, obriga as pobres pessoas a jurar, em vez de bendizer. Com ambas as mãos agarra as de quem vai receber (a comunhão) e não as solta até que tenha jurado proferindo estas palavras (porque usarei suas próprias palavras): 'Jura-me pelo sangue e o corpo de nosso Senhor Jesus Cristo não me abandonar jamais para voltar-te a Cornélio'.
19.     E o pobre desgraçado não toma (a comunhão) se antes, previamente, não faz imprecações contra si mesmo. E em vez de pronunciar 'Amém', ao tomar aquele pão, diz: 'Não voltarei a Cornélio'."
20. E depois de outras coisas volta a dizer:
"Mas deves saber que agora encontra-se desnudado e ficou isolado, pois cada dia o abandonam os irmãos e voltam à Igreja. E o próprio Moisés, o que recentemente deu entre nós um formoso e admirável testemunho, achando-se ainda no mundo, como visse a ousadia e a loucura daquele, excomungou-o junto com os cinco presbíteros que com ele haviam-se separado da Igreja."
21. E ao final da carta enumera os bispos presentes em Roma e que haviam condenado a insensatez de Novato, indicando ao mesmo tempo seus nomes e o da igreja que cada um governava;
22. e dos que não estavam em Roma, mas que por carta deram seu assentimento ao voto dos citados, menciona os nomes e o lugar de onde procedia cada um dos que escreviam. Isto é o que Cornélio informava por carta a Fábio, bispo de Antioquia.

XLIV - Relato de Dionísio acerca de Serapion
1.            E com este mesmo Fábio, que se inclinava um pouco ao cisma, também manteve correspondência epistolar Dionísio, o de Alexandria. Depois de explicar muitos e diferentes pontos, entre eles o da penitência, nas cartas que lhe dirigiu, ao referir detalhadamente os combates dos que então acaba­vam de padecer martírio em Antioquia, no curso do relato narra também um fato, muito admirável, que será necessário transmitir nesta obra e que diz assim:
2.            "Vou porém expor-te este único exemplo, ocorrido entre nós. Havia entre nós um tal Serapion, já ancião e crente. Durante muito tempo havia vivido de forma irrepreensível, mas logo, na prova, caiu. Ele pediu muitas vezes (o perdão), mas ninguém fez caso dele, porque inclusive havia sacrificado. Tendo adoecido, passou três dias seguidos sem poder falar e inconsciente.
3.            Quando ao quarto dia se recuperou um pouco, chamou seu neto e disse: 'Até quando, filho, reter-me-ão? Dá-te pressa, rogo-te, e soltai-me logo. Chama-me algum dos presbíteros'. E dito isto, ficou novamente sem voz.
4.     O rapaz correu à casa do presbítero, mas era de noite e este achava-se enfermo; não podia ir, mas como eu havia mandado que aos que iam partir desta vida, se pedissem perdão, e principalmente se antes já o tivessem suplicado, se lhos concedesse, para que partissem com boa esperança, deu ao rapaz uma porção da Eucaristia, e mandou que a colocasse em algum líquido e a fizesse cair em gotas na boca do ancião.
5.      O rapaz regressou com ela e, quando se aproximava, antes que entrasse, novamente Serapion voltou a si e disse: 'Já chegaste, filho? O presbítero não pôde vir, mas tu faze rápido o que te foi ordenado e deixa-me partir'. O rapaz pôs em um líquido (a porção da Eucaristia), e no momento em que a ver­tia na boca do ancião, este tomou um pouquinho e imediatamente entregou seu espírito.
6.      Agora bem, não está claro que foi preservado e se manteve até que fosse absolvido e, apagado seu pecado, pudesse ser reconhecido pelas muitas obras boas que havia feito? Isto diz Dionísio.

XLV - Carta de Dionísio a Novato
1. Mas vejamos como escreveu ele mesmo a Novato, que então andava perturbando a comunidade dos irmãos em Roma. Ocorre pois que este andava fazendo de alguns irmãos pretexto para sua apostasia e seu cisma, como se de fato eles o tivessem forçado a chegar a esta situação, veja de que modo lhe escreve:
"Dionísio a Novaciano, seu irmão, saúde: Se, como dizes, fostes levado contra a vontade, terás que prová-lo regressando voluntariamente, porque há que sofrer o que fosse para não partir em duas a Igreja de Deus. O testemunho dado para evitar o cisma não seria menos glorioso do que o que se dá por não adorar os ídolos; para mim inclusive seria maior, porque neste dá-se testemunho apenas pela própria alma, enquanto que no outro se dá por toda a Igreja. Mas ainda agora, se consegues persuadir ou forçar teus irmãos a retornar à concórdia, tua recuperação será maior do que tua queda. Esta não será posta em tua conta, enquanto que a outra te será louvada. E se não podes, porque não te obedecem, salva pelo menos tua própria alma. Rogo que tenhas saúde, e também a paz no Senhor."

XLVI - Das outras cartas de Dionísio
1.     Isto escreveu também a Novato. Mas, além disso[4], escreve aos do Egito uma carta Sobre a penitência, na qual expõe suas opiniões acerca dos caídos distinguindo graus de faltas.
2.     Também se conserva uma carta privada sua Sobre a penitência, dirigida a Cólon (este era bispo da igreja de Hermúpolis), e outra de repreensão dirigida a sua grei de Alexandria. Entre estas encontra-se também a que escreveu a Orígenes Sobre o martírio. Também aos irmãos de Laodicéia, aos quais presidia o bispo Telimidro, e aos da Armênia, cujo bispo era Meruzanes: escreve-lhes Sobre a penitência.
3.     E além de todos estes, escreve também a Cornélio, o de Roma, depois de receber sua carta contra Novato. Indica-lhe claramente que ele foi convidado por Heleno, bispo de Tarso de Cilicia, e pelos outros bispos que o acompanham: Firmiliano, o da Capadócia, e Teoctisto, o da Palestina, para assistir ao concilio de Antioquia, onde alguns tentavam consolidar o cisma de Novato.
4.     Além disto escreve que lhe fora anunciado que Fábio tinha morrido e que haviam estabelecido Demetriano como seu sucessor no episcopado de Antioquia. Escreve também sobre o bispo de Jerusalém, falando neste termos: "Porque Alexandre, aquele homem admirável, estando no cárcere, teve uma morte feliz."
5.     Em continuação a esta conserva-se também de Dionísio outra Carta diaconal por meio de Hipólito, dirigida aos de Roma, aos quais escreve ainda outra Sobre a paz, e igualmente Sobre a penitência, assim como também outra Aos confessores dali que ainda estavam comprometidos com a opinião de Novato. A estes mesmo, depois que voltaram à Igreja, escreveu outras duas cartas. Manteve igualmente correspondência epistolar com muitas outras pessoas e deixou à posteridade um rico proveito aos que ainda hoje se interessam por seus escritos.


1. O que mais te chamou a atenção neste texto?
2. O que o texto contribui para a sua espiritualidade?

Ícone da capa: São Dionísio de Alexandria (final do II século ou início do III – 264-265) nasceu numa família pagã rica. Ele dispendeu a maior parte de sua vida lendo livros e cuidadosamente estudando as tradições heréticas. Ele se converteu ao Cristianismo já numa idade madura e discutiu sua experiência de conversão com Filemon, um presbítero de Sisto II. Ele se converteu após ter recebido uma visão, que ele atribuiu a Deus. Nela, ele foi vigorosamente comandado a estudar as heresias que estavam desafiando a igreja cristã para que pudesse refutá-las através do estudo da doutrina. Após sua conversão, Dionísio se juntou à famosa Escola Catequética de Alexandria e foi um aluno de Orígenes e Héraclas de Alexandria. Mais tarde, Dionísio se tornou presbítero da igreja cristã e sucedeu a Héraclas (que se tornou patriarca) como reitor da Escola Catequética de Alexandria, em 231 d.C. Em seguida, ele foi elevado à posição de patriarca de Alexandria (papa das igrejas que se tornariam, no futuro, a Igreja Copta e da Igreja Ortodoxa de Alexandria) em 248 d.C, sucedendo o já falecido Héraclas . Segundo Jerônimo, ele faleceu no décimo-segundo ano do imperador Galiano, em 264-265.



[1] Ez 18:23; 33:11; 2 Pe 3:9.
[2] O nome correto era Novaciano, mas Eusébio é seguido por outros autores gregos.
[3] Não é possível determinar se "todos" se refere ao concilio em Roma ou também aos pastores de outras províncias. O texto permite também entender que se tenha tomado "uma decisão para todos", ainda que adotada em Roma.
[4] Neste capítulo Eusébio lista as cartas de Dionísio que encontrou juntas num volume ou coleção.