domingo, 27 de janeiro de 2019

82 - Tertuliano de Cartago (155-220) Apologia (Capítulo 9)



82
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Tertuliano de Cartago (155-220)
Apologia (Capítulo 9)


CAPÍTULO IX Eis como posso refutar tais acusações: mostrar-vos-ei práticas que vigoram entre vós, em parte abertamente, em parte secretamente, que vos levaram, talvez, a nos acusar de coisas semelhantes. Os meninos eram sacrificados abertamente na África a Saturno até o proconsulado de Tibério, que expôs à vista do público os seus sacerdotes crucificados nas árvores sagradas, que lançavam sombras sobre seus templos - tantas eram as cruzes nas quais a justiça exigida aplicou o castigo por seus crimes, como os nossos soldados podem ainda testemunhar, tendo sido, de fato, esta uma obra daquele Procônsul.
Até presentemente aquele criminoso culto continua a ser feito, secretamente. Não seriam somente os Cristãos, estais vendo, que vos menosprezariam, porque com isso tudo o que fazeis nenhum crime foi inteiramente e permanentemente erradicado, nem nenhum de vossos deuses reformou seus costumes.
Se Saturno não poupou seus próprios filhos, ele também não poupou os filhos dos outros, e os pais desses, na verdade, tinham, eles mesmos, o hábito de fazer tal oferenda, atendendo contentes ao pedido que lhes era feito, mantendo as crianças satisfeitas na ocasião, para que não morressem aos choros.
Destacamos também que há uma grande diferença entre homicídio e parricídio. Mas homens idosos eram sacrificados a Mercúrio, nas Gálias. Tenho em mãos as lendas táuricas feitas para vossos próprios teatros.
Por que, mesmo nesta profundamente religiosa cidade de piedosos descendentes de Enéias, há um certo Júpiter que em vossos jogos é banhado com sangue humano? É o sangue de um lutador feroz, dizeis. Por isso, o sangue de um homem se torna irrelevante? Ou não é mais infame o sangue porque corre das veias de um homem mau? De qualquer modo, é sangue derramado até a morte.
Ó Júpiter, vós soi um Cristão, e de fato, por vossa crueldade, digno filho de vosso pai! Mas com respeito à morte de uma criança, como se não interessasse se fosse cometido para um sagrado culto, ou simplesmente por um impulso próprio (embora haja uma grande diferença, como dissemos, entre parricídio e homicídio), me voltarei para o povo em geral.
A quantos - pensai nisso - desses aglomerados de pessoas investindo em busca de sangue Cristão, a quantos, mesmo, de vossos governantes, notáveis por sua justiça para convosco e por suas severas medidas para conosco, posso acusar perante sua consciência do pecado de condenar sua descendência à morte? Se há alguma diferença no tipo de assassinato, a forma mais cruel é certamente matar por afogamento ou exposição ao frio, à fome e aos cães. Uma costume mais civilizado tem sempre preferido a morte pela espada.
Em nosso caso, para os cristãos, a morte foi de uma vez por todas proibida. Não podemos nem mesmo destruir o feto no útero, porque, mesmo então, o ser humano retira sangue de outras partes de seu corpo para sua subsistência. Impedir um nascimento é simplesmente uma forma mais rápida de matar um homem, não importando se mata a vida de quem já nasceu, ou põe fim a de quem está para nascer. Esse é um homem que está se formando, pois tendes o fruto já em sua semente.
Com relação a alimentos de sangue e de outros tão macabros pratos - Eu não estou seguro onde li isto, em Heródoto, penso - o sangue tirado dos braços e bebido por ambas as partes, constituía um aval ao tratado entre algumas nações. Não estou certo se foi assim bebido no tempo de Catilina. Dizem, também, que entre algumas tribos citas os amigos são comidos por seus amigos.
Mas estou indo longe demais de casa. Atualmente, mesmo entre vós, o sangue consagrado a Bellona, sangue retirado da coxa perfurada e então partilhada, sela a iniciação aos ritos daquela divindade.
Que dizer daqueles, também, que nos espetáculos dos gladiadores, para a cura da epilepsia, bebem com gananciosa sede o sangue dos criminosos mortos na arena, assim que corre fresco de seus ferimentos, apressando-se para chegarem aos que lhes pertencem?
E daqueles, também, que fazem alimentos no sangue de feras selvagens no lugar dos combates - que têm agudo apetite por ursos e veados? Na luta, esse urso foi molhado com o sangue do homem dilacerado por ele; aquele veado rolou no sangue do gladiador ferido pelas suas chifradas.
As entranhas das próprias feras, embora misturadas com indigestas vísceras humanas, são muito procuradas. E de vossos homens disputando carne nutrida por carne humana? Se vós partilhais de alimentos como esses, em que vossos repastos diferem daqueles de que acusais a nós, cristãos? Aqueles que, com luxúria selvagem, disputam corpos humanos, cometem menor mal porque devoram os vivos?
Estão menos contaminados do sangue humano porque degustam aquilo que está para se tornar sangue? Eles se alimentam, isto é evidente, não tanto de crianças, como de adultos. Ruborizai-vos por vossos vis costumes perante os cristãos, que não têm sequer o sangue de animais entre seus alimentos, alimentos que são simples e naturais, que se abstêm de animais estrangulados ou que morrem de morte natural.
E isso pela única razão de que eles não querem se contaminar, nem mesmo de sangue contido nas vísceras. Para encerrar o assunto com um simples exemplo, vós tentais os cristãos com lingüiças de sangue, exatamente porque estais perfeitamente cientes de que assim tentais fazê-los transgredir o hábito que eles consideram ilegal. E como é irracional acreditar que aqueles sobre os quais bem sabeis que olham com horror a idéia de beber o sangue de bois, estejam ansiosos por sangue de homens. Isso a não ser que vós tenhais saboreado o sangue humano e o achastes mais gostoso!
Sim, realmente, eis aqui um teste que podereis aplicar para descobrir os cristãos, bem como a panela e o censor. Eles poderiam ser testados pelo seu apetite por sangue humano, tanto quanto por sua recusa de oferecer sacrifícios. E assim como poder-se-ia afirmar serem cristãos por sua recusa de beber sangue e sua recusa de oferecer sacrifícios, não haveria necessidade de sangue de homens, tão solicitado como é nas torturas e na condenação dos prisioneiros cristãos. Ora, quem se entrega mais ao crime de incesto do que aqueles que seguem as instruções do próprio Júpiter?
Césio nos diz que os persas mantêm relação carnal ilícita com suas mães. Os macedônios, igualmente, são suspeitos do mesmo; porque ouvindo pela primeira vez a tragédia de Édipo, eles coroaram com mirto o incesto, com exclamações em sua língua.
Ainda atualmente, reflitam quantas oportunidades existem para erros que vos levem a uniões incestuosas - vosso promíscuo relaxamento fornece essas oportunidades. Antes de tudo, abandonais vossas crianças que podem ser levadas por qualquer transeunte compadecido, para os quais elas são totalmente desconhecidas; ou as entregais para serem adotados por aqueles que podem cumprir melhor para elas o papel de pais.
Bem, com algum tempo toda a memória do parentesco alienado pode ser esquecida; e quando se faz um erro, a transmissão do incesto poderá até ocorrer - o parentesco e o crime caminhando juntos. Pois, mais tarde, onde estejais, em casa ou fora, nos mares - vossa luxúria está à vossa disposição, com indulgência geral, ou mesmo com uma menor indulgência, e podeis facilmente, e não propositadamente, procriar em algum lugar uma criança, de modo que dessa maneira um parente lançado na corrente da vida poderá vir a ter relação carnal com aqueles que são de sua própria carne, sem ter noção que está ocorrendo incesto no caso.
Uma castidade perseverante e firme nos tem protegido de algo assim, pois, resguardando-nos, como fazemos, de adultérios e todas as infidelidades após o matrimônio, não estamos expostos a infortúnios incestuosos.
Alguns de nós - tornando o assunto ainda mais seguro - nos abstemos inteiramente do pecado sensual, pela continência virginal; mesmos meninos nossos tomam tal decisão quando ficam adultos. Se tiverdes notícia de que tais pecados que mencionei existem entre vós, examinem e vejam que eles não existem entre os cristãos.
Os mesmos olhos poderão constatar ambos os fatos. Mas as duas cegueiras caminham juntas. Aqueles que não vêem o que acontece, pensam que vêem o que não acontece. Demonstrarei como ocorre assim em qualquer assunto. Mas, por enquanto deixai-me falar de assuntos que são mais importantes. »

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segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

81 - Tertuliano de Cartago (155-220) Apologia (Capítulo 7.8)



81
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Tertuliano de Cartago (155-220)
Apologia (Capítulo 7.8)


CAPÍTULO VII - Monstros de maldade, somos acusados de realizar um rito sagrado no qual imolamos uma criancinha e então a comemos, e no qual, após o banquete, praticamos incesto, e os cães, nossos alcoviteiros, pois não, apagam as luzes para na imoralidade da escuridão nos entregarmos a nossas ímpias luxurias! Isto é o que constantemente usais para nos perseguir, embora não tenhais tido o cuidado de elucidar a veracidade de tais coisas de que somos acusados há tanto tempo.
Tragam, então, esse assunto à luz do dia, se acreditais nisso, ou não lhes deis crédito, se nunca investigastes a respeito. Com base nesse dissimulado jogo, somos levados a vos esclarecer que não é verdade um fato que não ousais investigar. Determinais aos executores, no caso dos Cristãos, um processo bem diferente de investigação: não lhes cabe fazer-nos confessar o que praticamos, mas fazer-nos negar o que somos. Datamos a origem de nossa religião, como antes já mencionamos, do tempo do reino de Tibério.
A verdade e a aversão à verdade vieram ao mundo juntas. Assim que a verdade apareceu, foi olhada como inimiga. Nesse processo há tantos loucos quantos desconhecedores dele: os Judeus, como se deve pensar, levados por um espírito de rivalidade; os soldados, levados pelo desejo de extorquir dinheiro; nossos domésticos, levados por sua natureza. Somos diariamente atacados por ensandecidos, diariamente traídos, somos muitas vezes surpreendidos em nossas assembleias ou cultos. Quem encontrou algo por pequeno que seja sobre uma criança chorando, de acordo com o boato popular? Quem procurou o juiz porque encontrou, de fato, as ensanguentadas fauces dos Ciclopes e das Sereias? Quem achou quaisquer traços de impureza em nossas viúvas? Onde está o homem que quando encontrou tais atrocidades as ocultou? Ou será que no ato de levar os culpados à presença do juiz foi subornado para não proceder a acusação?
Se sempre mantemos nossos segredos, quando se tornaram conhecidos do público nossos atos? Então, por quem poderiam ter sido desvendados? De certo não pelos próprios acusados, mesmo porque há o conceito de fidelidade ao silêncio que é sempre própria dos mistérios. Por acaso, os Samotrácios e os Eleusínios não escondem o quanto procuram manter silêncio a respeito do que verdadeiramente são, em seus segredos, promovendo castigos humanos oportunos e ameaçando com a futura ira divina?
Se, então, os Cristãos não são eles próprios os denunciadores de seus crimes, conclui-se que são os estranhos. E como têm conhecimento deles, quando é também um costume universal nas iniciações religiosas manter os profanos à distância e se precaver de testemunhas? A menos que aconteça que esses que são tão perversos tenham menos medo do que seus vizinhos! Todo mundo sabe que coisa é o boato. Diz um de vossos provérbios: "Dentre todos os males nada voa mais depressa do que o boato".
É porque ele dá informações? Ou é porque ele é tremendamente mentiroso? Não é uma coisa que nem mesmo quando diz alguma verdade, apresenta uma mancha de falsidade, seja detratando, seja aumentando, seja mudando o fato em si? E não faz parte de sua natureza sobreviver somente enquanto mente, e viver somente enquanto não há provas? Pois que quando se tem a prova, ele deixa de existir. Tendo feito seu trabalho de simplesmente espalhar uma notícia, ele conta algo que daí em diante passa a ser um fato e a ser chamado um fato. Então, já ninguém diz, por exemplo: "Dizem que aconteceu em Roma", ou "Há um boato de que ele ganhou uma província", mas "Ele ganhou uma província", e "Aconteceu em Roma".
Boato é a verdadeira designação da incerteza, não sobrevive quando o fato é comprovado. Ninguém exceto um louco confia nele, não é? Um homem prudente nunca acredita naquilo que é duvidoso. Todo mundo sabe como ele se espalha com afinco, como sobrevive com uma afirmação sem limites, como é apenas uma vez ou outra que mostra sua origem. Por isso, necessita se infiltrar através das línguas e ouvidos. Uma pequena semente obscurece toda a história, de modo que ninguém pode determinar se os lábios dos quais se originou, plantou a semente da falsidade, como muitas vezes acontece, por um espirito de oposição ou por um julgamento suspeito ou por um julgamento confirmado ou, como em alguns casos, por um inato prazer em mentir.
É certo que o tempo traz tudo à luz, como vossos provérbios e ditos testemunham, por um procedimento da natureza da verdade que desvela as coisas de tal modo que nada fica escondido por muito tempo, mesmo embora o boato não o faça. É justamente, então, o que deve acontecer, com essa fama tão duradoura que denuncia os crimes dos cristãos. Esse boato é a testemunha que trazeis contra nós - boato que nunca foi capaz de provar a acusação que vez ou outra se espalha e, ultimamente, por simples repetição se fez opinião firmada no mundo. Assim, confiantemente apelo àquela natureza da verdade, sempre reveladora, contra os que infundadamente levantam tais acusações. »

CAPÍTULO VIII - Atentai agora! Apresentamo-vos a recompensa por essas monstruosidades: os Cristãos prometem a vida eterna. Asseguram-na assim também como é de vossa própria convicção. Pergunto-vos: se assim crêem, não julgais que se farão dignos de obtê-la mantendo uma consciência igual a que pretendeis ter? Vamos, enfiai vossa faca numa criança que não faz mal a ninguém, toda inocência, amada por todos.
Ou se isso é feito por outro, simplesmente assisti de vosso lugar a um ser humano morrendo antes de ter realmente vivido, esperai a partida da última alma, recebei o sangue fresco, molhai com ele vosso pão, participai disso livremente. Enquanto vos reclinais à mesa, vede os lugares que vossa mãe e vossa irmã ocupam. Guardai-os bem, de modo que quando o cão trouxer a escuridão para vos envolver, não possais cometer erro, porque sereis culpados de crime se não cometerdes uma ação de incesto. Iniciados e marcados em semelhantes barbaridades, tendes a vida eterna!
Dizei-me, imploro-vos, é a eternidade digna disso? Se não é, então tais coisas não devem merecer crédito. Mesmo se acreditastes, nego essa vossa vontade. E mesmo se tivestes a vontade, nego a possibilidade. Por que, então, outros poderiam fazê-lo? Por que não podeis se outros podem? Suponho, então, que somos de uma natureza diferente. Somos Cães ou Monstros?
Sois homens tanto quanto os cristãos; se não podeis fazê-lo, não podeis acreditar que outros o possam, porque os cristãos são humanos tanto quanto vós. Mas os que desconhecem essas coisas certamente estão decepcionados e se prevalecem disso. Estão perfeitamente inscientes de que algo dessa natureza é imputado aos cristãos ou, certamente, se informaram por si próprios e desvendaram o assunto.
Mas, em vez disso, é costume das pessoas que desejam iniciação a ritos sagrados, penso eu, ir antes de tudo ao Líder deles para que lhes possa explicar os preparativos que devem ser feitos. Então, nesse caso, não há dúvidas que este diria: deveis levar uma criança ainda de tenra idade, que não saiba o que é morrer, e possa sorrir sob vossa faca; também, pão para aparar o sangue que correrá.
Além disso, candelabros, lâmpadas, e cães, com iscas para atraí-los ao apagar das luzes. E, antes de tudo, deveis levar vossa mãe e vossa irmã convosco. Mas o que fazer se a mãe e a irmã não quiserem ir? Ou se não tiver nem uma nem outra? O que fazer se houver cristãos sem parentes cristãos? Não será tido, suponho, por um verdadeiro seguidor de Cristo, quem não tiver um irmão ou um filho.
E o que acontecerá, se essas coisas todas estiverem dispostas como dito, sem o conhecimento deles? No máximo, depois que eles os virem, se afastam e os perdoam. Temem - é de se concluir - que pagarão por isso se divulgarem o segredo? De modo algum, antes irão, em tal caso, pedir proteção. Preferirão mesmo - pode-se entender - morrer por suas próprias mãos a viver sob o fardo de tão terrível conhecimento. Admitamos que eles terão medo.
Contudo por que eles iriam continuar com a coisa? Pois é bastante claro que vós não desejaríeis continuar sendo o que nunca quisestes ser, se tivésseis tido prévio conhecimento do assunto. »

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80 - Tertuliano de Cartago (155-220) Apologia (Capítulo 5-6)



80
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Tertuliano de Cartago (155-220)
Apologia (Capítulo 5-6)

CAPÍTULO V - Para mencionar algumas palavras sobre a origem de tais leis das quais estamos agora falando, cito um antigo decreto que diz que nenhum deus deve ser instituído pelo imperador antes que primeiramente seja aprovado pelo Senado. Marco Emílio passou por essa experiência com relação a seu deus Alburno. E assim, também, acontece em nosso caso, porque entre vós a divindade é deificada por julgamento dos seres humanos. A não ser que os deuses deem satisfação aos homens, não lhe é reconhecida a divindade: Deus deve ser propício ao homem.
Tibério, em cujos dias surgiu o nome Cristão no mundo, tendo recebido informações da Palestina sobre os acontecimentos que demonstraram claramente a verdade da divindade de Cristo, levou, adequadamente, o assunto ante o Senado com sua própria decisão a favor de Cristo.
O Senado rejeitou sua proposta porque não fora ele mesmo que dera sua aprovação. O imperador manteve sua posição ameaçando com sua ira todos os acusadores dos cristãos. Consultai vossas histórias. Verificareis que Nero foi o primeiro que atacou com seu poder imperial a seita Cristã, fazendo isso, então, principalmente em Roma. Mas nós nos gloriamos de termos nossa condenação lavrada pela hostilidade de tal celerado porque quem quer que saiba quem ele foi, sabe que nada a não ser uma coisa de especial valor seria objeto da condenação de Nero.
Domiciano, igualmente, um homem do tipo de Nero em crueldade, tentou erguer sua mão em nossa perseguição, mas possuía algum sentimento humano; logo pôs um fim ao que havia começado, chegando a restituir os direitos daqueles que havia banido. Assim, como foram sempre nossos perseguidores, homens injustos, ímpios, desprezíveis, dos quais vós mesmos nada tendes de bom a dizer, vós tendes por costume revalidar suas sentenças sobre nós, os perseguidos.
Mas entre tantos príncipes daquele tempo até nossos dias, dotados de alguma sabedoria divina e humana, assinalem um único perseguidor do nome Cristão. Bem pelo contrário, nós trazemos ante vós um que foi seu protetor, como podereis ver examinando as cartas de Marco Aurélio, o mais sério dos imperadores, cartas nas quais ele dá seu testemunho daquela seca na Germânia que terminou com as chuvas obtidas pelas preces dos cristãos, as quais permitiu que os germânicos fossem atacados. Como não pôde suspender a ilegalidade dos cristãos por lei pública, contudo, a seu modo, ele a colocou abertamente de lado e até acrescentou uma sentença de condenação, esta da maior severidade, contra os seus acusadores.
Que qualidade de leis são essas que somente os ímpios e injustos, os vis, os sanguinários, os sem sentimentos, os insanos, executam contra nós? Que Trajano por muito tempo tornou nula proibindo procurar os cristãos? Que nem Adriano, embora dedicado no procurar tudo o que fosse estranho e novo, nem Vespasiano, embora fosse o subjugador dos Judeus, nem Pio, nem Vero, jamais as puseram em prática?
Certamente, seria considerado mais natural homens maus serem aniquilados por bons príncipes, na qualidade de seus naturais inimigos, do que o serem aqueles possuidores de espirito assemelhado com o desses últimos. »

CAPÍTULO VI - Eu gostaria de ter agora esses protetores inteligentes e defensores das leis e instituições de seus ancestrais, em atenção à sua fidelidade, à honra e à submissão que demonstraram às instituições ancestrais; eles que partiram do nada; eles que em nada se afastaram das antigos normas; eles que nada relegaram do que é mais útil e necessário, como normas de uma vida virtuosa.
O que aconteceu com as leis que reprimiam os caros e ostensivos modos de vida? Que proibiam gastar mais do que cem asses num jantar, e mais do que uma ave para se sentar à mesa por algum tempo, e essa não engordada... Que expulsavam severamente um patrício do Senado, como se conta, porque ambicionava ser demasiado poderoso, porque tinha lucrado 10 libras de prata... Que fechavam os teatros logo que começassem a debochar das maneiras do povo...
Que não permitiam que a insígnia de dignidades de oficial ou de nobre nascimento fossem precipitadas ou impunemente usurpadas... Pois eu vejo os jantares de uma centena de asses se apresentarem agora, não como de uma centena de asses, mas que gastam um milhão de sestércios* . Vejo que minas de prata são feitas em cinzas (isso, aliás, é pouco se fossem apenas os senadores que fizessem tal, e não também os libertos ou também os simples espoliadores).
E vejo, também, que um simples teatro não é o suficiente, nem há teatros descobertos: não há dúvidas que isso é em busca desse imoderado luxo, que poderia até não ser desprezível no inverno, pois que os Lacedemonios inventaram seus capotes de lã para os jogos.
Vejo agora que não há diferença entre as vestes das senhoras e das prostitutas. Com respeito às mulheres, na verdade, aquelas leis de vossos pais, que costumavam ser de encorajamento à modéstia e à sobriedade, caíram também em desuso. Então, uma mulher não sabia o que era possuir, com suas economias, ouro no dedo que não fosse o do anel nupcial com que seu marido tinha, de forma sagrada, se comprometido.
Então, a abstinência das mulheres quanto ao vinho era levada tão a sério que uma senhora, por abrir o compartimento da adega de vinho, foi condenada à morte por inanição pelos seus amigos. No tempo de Rômulo, Mecênio matou sua esposa simplesmente por testar um vinho, nada sofrendo por conta dessa morte. Com referência a isso, também, era costume das mulheres beijar seus parentes porque eles podiam ser conhecidos por seu hálito. Onde está a felicidade da vida de casado, sempre tão desejável, que distinguiam nossos antigos costumes e por consequência dos quais por cerca de 600 anos não houve entre nós um único divórcio?
Agora, as mulheres têm cada membro do corpo carregado com ouro, beber vinho é tão comum entre elas que nunca dão o beijo espontaneamente, e para forçar o divórcio, elas sonham com ele como se fosse a consequência natural do casamento. As leis de vossos antepassados em sua sabedoria regulavam a respeito dos próprios deuses, as quais, vós, seus descendentes, revogaram.
Os cônsules, por autoridade do Senado, baniram o Pai Baco e seus cultos, não simplesmente da cidade, mas de toda Itália. Os cônsules Piso e Gabínio, decerto não cristãos, impediram os deuses Serápis, Ísis e Arpocrates, com seu amigo cabeça de cão, de serem admitidos no Capitólio, cassando-os de imediato da assembléia dos deuses, destruindo seus altares, expulsando-os do país, ansiosos de evitarem que se espalhassem os vícios em que se baseavam, bem como sua religião lasciva.
A esses vós restaurastes e lhes conferistes as mais elevadas honras. O que aconteceu com vossa religião, que venerava os vossos ancestrais? Em vossas vestes, em vossos alimentos, em vosso estilo de vida, em vossas opiniões, e, por último, em vossos ensinamentos, renunciastes aos vossos progenitores!
Estais sempre louvando os tempos antigos e, contudo, a cada dia aceitais novidades em vosso modo de vida. Falhastes em manter o que devíeis, fazeis isso claramente, porque enquanto abandonastes os bons costumes de vossos pais, retendes e guardais aquilo que não devíeis.
Ainda que pareçais defender tão fielmente a tradição verdadeira, na qual encontrais a principal razão de acusação contra os Cristãos - quero dizer, o zelo na adoração aos deuses, ponto principal no qual os antigos incidiram em erro, embora tenhais reconstruído os altares de Serápis, agora uma divindade romana, e a de Baco, agora tornado um deus da Itália, a quem ofereceis vossas orgias - demonstrarei na ocasião adequada, contudo, que desprezais, negligenciais e destruís a autoridade dos antigos, pondo-a inteiramente de lado.
Vou, por enquanto, responder àquela infame acusação de crimes secretos, trazendo as coisas à luz do dia.


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segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

79 - Tertuliano de Cartago (155-220) Apologia (Capítulo 3-4)


Grupo de Formação - RIO
79
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Tertuliano de Cartago (155-220)
Apologia (Capítulo 3-4)

CAPÍTULO III - Que pensarmos disto: a maioria do povo tão cega bate suas cabeças contra o odiado nome de "Cristão"? Quando dão testemunho de alguém, eles confundem com aversão o nome de quem testemunham. "Gaio Seius é um bom homem" - diz alguém... "só que é cristão". E outro: "Fico atônito como um homem inteligente como Lúcio pode de repente se tornar cristão". Ninguém considera necessário apreciar se Gaio é bom ou não, e Lúcio, inteligente ou não.
O que conta no caso é se é cristão ou se é cristão embora sendo inteligente e bom. Eles louvam o que conhecem e desprezam aquilo que não conhecem. Baseiam seu conhecimento em sua ignorância embora, por justiça, preferencialmente se deva julgar o que é desconhecido pelo que é conhecido e não o que é conhecido pelo que é desconhecido. Outros, no caso de pessoas a quem conheceram antes de se tornarem cristãos, que conheciam como mundanas, vis, más, aplicam-lhes a marca da qualidade que verdadeiramente apreciam. Na cegueira de sua aversão, tornam-se grosseiros em seu próprio julgamento favorável: "Que mulher era ela! Que temerária! Como era alegre! Como ele era jovem! Que descarado! Como era amigo do prazer! - E pena, se tornaram cristãos!".
Assim, o nome odiado é usado preferencialmente a uma reforma de caráter. Alguns até trocam seus confortos por este ódio, satisfazendo-se em cometer uma injúria para livrarem sua casa dessa sua mais odiosa inimizade. O marido, agora não mais ciumento, expulsa de sua casa a esposa, agora casta. O pai, que costumava ser tão paciente, deserda o filho, agora obediente. O patrão, outrora tão educado, manda embora o servo, agora fiel. Constitui grave ofensa alguém reformar sua vida por causa do nome detestado. Bondade é de menos valor do que o ódio aos Cristãos. Bem, então, se tal é a aversão pelo nome, que censura podeis vós aplicar a nomes?
Que acusação podeis levantar contra simples designações, a não ser que o nome indique algo bárbaro, algo desgraçado, algo vil, algo libidinoso. Mas Cristão, tanto quanto indica o nome, é derivado de "ungido". Sim, e mesmo quando é pronunciado de forma errada por vós, "Chrestianus", - por vós que não sabeis precisamente o nome que odiais - ele lembra doçura e benignidade. Odiais, portanto, gratuitamente, um nome inocente. Mas o especial motivo de desagrado com a seita é que lembra o nome de seu Fundador.
Existe novidade numa seita religiosa que dá a seus seguidores o nome de seu Mestre? Não são os filósofos designados com o nome dos fundadores de seus sistemas: Platônicos, Epicuristas, Pitagóricos? Não são os Estóicos e Acadêmicos assim chamados também por causa dos lugares nos quais se reuniam e permaneciam? Não são os médicos chamados por nome derivado de Erasistrato, os gramáticos, de Aristarco, e também os cozinheiros, de Apício? E, contudo, a exibição do nome, derivado do fundador original, ou qualquer nome designado por ele, não ofende a ninguém. Não há dúvida de que se a seita se comprova maléfica, e, igualmente, mau seu fundador, isso nos leva a considerar maléfico o nome e nos merece aversão o caráter seja da seita, seja do autor.
Antes, contudo, de assumir uma aversão ao nome, sois obrigados a julgar a seita pelo que é o autor, ou o autor pelo que é a seita. Mas, no caso em questão, sem nenhum exame ou conhecimento de ambos, o simples nome se torna objeto de acusação; o simples nome é atacado, e somente uma palavra leva à condenação da seita e de seu autor, conquanto a ambos desconheceis, mas apenas porque eles têm tal e tal nome, não porque foram julgados por algo errado. »

CAPÍTULO IV - Assim, tendo feito essas observações como se fossem um prefácio, pelo qual mostro em verdadeiras cores a injustiça do nosso inimigo público, posso agora fundamentar o argumento da nossa inocência. E poderei não somente refutar as coisas de que nos acusam, como também replicar aos nossos acusadores, para que assim todos saibam que os Cristãos estão inocentes desses muitos crimes que os acusadores sabem existirem entre eles mesmos, mas que, em suas acusações contra nós, consideram vergonhosos. São acusações - eu não saberia dizer - dos piores homens contra os melhores, pois eles mesmos praticam tais crimes; [acusam] contra aqueles que, no caso, apenas seriam seus companheiros de pecado! Poderemos refutar a acusação dos variados crimes de que nos acusam cometer em segredo, já que os vemos cometendo-os à luz do dia.
Como são culpados dos crimes de que somos acusados sem sentido, são merecedores de castigo, caindo no ridículo. Mas, mesmo que nossa verdade vos refute com sucesso em todos os pontos, vem se interpor a autoridade da lei, como um último recurso, e alegais que suas determinações são absolutamente conclusivas, que devem ser obedecidas, embora de má vontade, e preferidas à verdade. Assim, nesse assunto das leis, me entenderei primeiramente convosco como sendo elas vossos protetores escolhidos.
Em primeiro lugar, quando rigidamente as aplicais em vossas declarações: "Não é legal a vossa existência", e, com rigor sem hesitações, ordenais que assim continue, estais demonstrando a dominação violenta e injusta de uma simples tirania, afirmando que algo é ilegal simplesmente porque quereis que seja ilegal e não porque deva ser ilegal. Mas se quereis que seja ilegal porque tal coisa não merece ser legal, sem dúvida não deve ser dada permissão da lei para o que é prejudicial. Deste modo, de fato, já está definido que o que é benéfico é legítimo.
Bem, se eu verificar algo que em vossa lei proíba ser bom porque alguém concluiu assim por opinião prévia, não perdeu seu poder de me proibi-la, embora se tal coisa fosse má poderia me proibi-la? Se vossa lei incidiu em erro, é de origem humana, julgo. Ela não caiu do céu. Não é admirável que um homem possa errar ao fazer uma lei ou cair em seus sentidos e rejeitá-la?
Os Lacedemonios não emendaram as leis do próprio Licurgo, daí causando tal desgosto a seu autor que ele se calou, e se condenou a si próprio à morte por inanição? Não estais, a cada dia, fazendo esforços para iluminar a escuridão da antigüidade, eliminando e aparando com os novos machados das prescrições e editos todos os galhos obsoletos e emaranhados das vossas leis?
Severo, o mais resoluto dos governantes, não acabou somente ontem com as leis do ridículo Pápias, que compeliam as pessoas a terem filhos antes que as leis de Juliano as permitissem contrair matrimônio e isso embora tivessem a autoridade da idade a seu favor?
Houve leis, também, antigamente, legislando que as partes contra as quais havia sido dada uma decisão, podiam ser cortadas aos pedaços por seus credores. Contudo, por consenso comum, aquela crueldade foi posteriormente retirada dos regimentos, e a pena capital se transformou numa marca de vergonha.
Adotando o plano de confiscar os bens dos devedores, obteve-se mais tingindo de rubor suas faces do que fazendo jorrar seu sangue. Quantas leis permanecem escondidas fora das vistas que ainda necessitam ser reformadas! Para isso, nem o número de seus anos, nem a dignidade de seus legisladores é que as recomendam, mas simplesmente se são justas; e, portanto, quando sua injustiça é reconhecida, são merecidamente condenadas.
Até mesmo os governantes as condenam. Então, por que os chamamos injustos? Não apenas! Se eles punem simples nomes, podemos chamá-los de irracionais. Mas, eles punem atos! Por que, em nosso caso, castigam atos somente com fundamento num nome enquanto nos outros casos exigem que eles sejam provados não apenas por um nome, mas pelo mal feito?
Eu sou praticante de incesto (assim o dizem): por que não fazem uma investigação sobre isso? Eu sou um matador de crianças, por que não aplicam a tortura para obterem de mim a verdade? Eu sou culpado de crimes contra os deuses, contra os Césares. Por que? Ora, eu sou capaz de me defender, por que sou impedido de ser ouvido em minha própria crença?
Nenhuma lei proíbe examinar minuciosamente os crimes que condenam, porque um juiz nunca aplica um castigo adequado se não está bem seguro de que foi cometido um crime, nem obriga um cidadão às justas cominações da lei, se não sabe a natureza do ato pelo qual está sendo punido. Não é suficiente que a lei seja justa, nem que o juiz esteja convencido da sua justiça. Aqueles dos quais se espera obediência deverão estar convencidos disto também. Não apenas! Uma lei fica sob forte suspeita se não se preocupam que ela mesma seja examinada e aprovada. É realmente uma má lei se, não homologada, tiranizar os homens. »

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78 - Tertuliano de Cartago (155-220) Apologia (Capítulo 2)


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78
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Tertuliano de Cartago (155-220)
Apologia (Capítulo 2)

CAPÍTULO II
Se, repetindo, é certo que somos os mais malévolos dos homens, por que nos tratais tão diferentemente de nossos companheiros, ou seja, de outros criminosos, sendo justo que o mesmo crime deva receber o mesmo tratamento? Quando os ataques feitos contra nós são feitos contra outros, a esses são permitidos falarem ou contratar advogados para demonstrar sua inocência.
Eles têm plena oportunidade de resposta e de discussão. De fato, é contra a lei condenar alguém sem defesa e sem audiência. Somente os cristãos são proibidos de dizerem algo em sua defesa, na salvaguarda da verdade, para ajudar ao juiz numa decisão de direito. Tudo o que é levado em conta é que o público, com ódio, pede a confissão de um "nome", não o exame da acusação, enquanto em vossas investigações ordinárias judiciais, no caso de um homem que confessa assassinato, ou sacrilégio, ou incesto, ou traição - para se ter idéia do crime de que são acusados - vós não vos contentais em imediatamente emitir uma sentença. Não o fazeis até que examinais as circunstâncias da confissão, qual é o tipo do crime, quantas vezes, onde, de que maneira, quando ele o fez, quem estava com ele e quem tomou parte com ele no crime.
Nada semelhante é feito em nosso caso, embora as falsidades disseminadas a nosso respeito devessem passar pelo mesmo exame para saber quantas crianças foram mortas por cada um de nós, quantos incestos cometemos cada um de nós na escuridão, que cozinheiros, que biltres foram testemunhas de nossos crimes. Ó que grande glória para os governantes que trouxessem à luz alguns cristãos que tivessem devorado uma centena de crianças. Mas, em vez disso, constatamos que mesmo uma inquisição, no nosso caso, é proibida.
Plínio, o Moço, quando era governador de uma província, tendo condenado alguns cristãos à morte, e abalado outros em sua firmeza, mas ficando aborrecido com o grande número deles, procurou, em última instância, o conselho de Trajano, o imperador reinante, para saber o que fazer com eles. Explicou a seu senhor que, com exceção de uma recusa obstinada de oferecer sacrifícios, nada encontrou em seus cultos religiosos a não ser reuniões de manhã cedinho em que cantavam hinos a Cristo e a Deus, confirmando que, em suas casas, seu modo de vida era um geral compromisso de ser fiel a sua religião, proibido-se assassínios, adultério, desonestidade e outros crimes. A respeito disso, respondeu Trajano que os cristãos não deveriam de modo algum ser procurados, mas se fossem trazidos diante dele, Plínio, deveriam ser punidos. Ó miserável libertação - de acordo com o caso, uma extrema contradição! Proíbe-se que sejam procurados, na qualidade de inocentes, mas manda-se que sejam punidos como culpados.
 É ao mesmo tempo misericordioso e cruel. Deixa-os em paz, mas os pune. Por que entrais num jogo de evasão convosco mesmo, ó julgamento? Se vós os condenais, por que também não os inquiris? Se não quereis inquiri-los, por que não os absolveis? Postos militares estão espalhados através de todas as províncias para prenderem ladrões. Contra traidores e inimigos públicos, todo cidadão é um soldado. Buscas são feitas mesmo de seus aliados e auxiliares. Somente os cristãos não devem ser procurados, embora possam ser levados e acusados diante do juiz, se uma busca tiver um resultado diferente do previsto. Deste modo, condenais um homem que ninguém deseja perseguir, quando ele vos é apresentado e que, nem por isso, merece punição. Suponho que não por sua culpa, mas porque, embora seja proibido persegui-lo, ele foi encontrado.
Novamente, neste caso, não concordais conosco sobre os procedimentos ordinários de julgamento de criminosos, porque, no caso de negarem, aplicais a tortura para forçar uma confissão. Aos cristãos somente torturais para fazê-los negarem. É como se considerásseis que se somos culpados de algum crime, nós o negaríamos, e vós com vossas torturas nos forçaríeis a uma confissão. Mas não podeis pensar assim pois, na verdade, nossos crimes não requerem tal investigação simplesmente porque já estais cientes por nossa confissão do nome de nosso crime. Estais diariamente acostumados a isso, sabendo de que crime se trata porque senão exigiríeis uma confissão completa de como o crime foi executado.
Deste modo, agis com a máxima perversidade quando verificando nossos crimes comprovados por nossa confissão do nome de Cristo, nos levais à tortura para obter nossa confissão que não consiste senão em repudiar tal nome, e que logo deixais de lado os crimes de que nos acusais quando mudamos nossa confissão. Suponho que, embora que acreditando que sejamos os piores dos homens, não desejais que morramos. Não há dúvida de que, por conseguinte, estais habituados a compelir o criminoso a negar e a ordenar o homem culpado de sacrilégio a ser torturado se ele persevera em sua confissão. É esse o sistema? Mas, então, não concordais que sejamos criminosos, e nos declarais inocente, e como inocentes que somos, ficais ansiosos para que não perseveremos na confissão que sabeis que vos fará assumir uma condenação por necessidade, não por justiça. "Sou cristão" - o homem brada. Ele está lhe dizendo o que é. Vós, porém, desejaríeis ouvi-lo dizer que não o é.
Assumindo vosso cargo de autoridade para extorquir a verdade, fazeis o máximo para ouvir uma mentira nossa. "Eu sou o que me perguntais se eu sou" - ele diz. Por que me torturais como criminoso? Eu confesso e vós me torturais. O que me faríeis se tivesse negado? Certamente a outros vós não daríeis crédito se negassem. Quando nós negamos, vós logo acreditais. Essa perversidade vossa faz suspeitar que há um poder escondido no caso, sob a influência do qual agis contra os hábitos, contra a natureza da justiça pública, até mesmo contra as próprias leis. Pois que - salvo se estou errado - as leis obrigam a que os malfeitores sejam procurados e não que sejam acobertados. A lei foi feita para que as pessoas que praticarem um crime sejam condenadas, e não absolvidas. Os decretos do Senado, as instruções dos vossos superiores expõem isso claramente. O poder do qual sois executores é civil, não uma tirânica dominação. Entre tiranos, de fato, os tormentos são utilizados para serem aplicados como punições; entre vós são mitigados como um instrumento de interrogatório. Guardai vossa lei como necessária até que seja obtida a confissão. E se a tortura é antecipada pela confissão, não há necessidade dela. A sentença foi passada.
O criminoso deve ser entregue ao castigo devido e não libertado. De acordo com isso, ninguém anseia pela absolvição do culpado, não é certo desejar isso, e assim ninguém nunca deve ser compelido a negar. Bem, julgais um cristão um homem culpado de todos os crimes, um inimigo dos deuses, do Imperador, das leis, da boa moral de qualquer natureza. Contudo vós o obrigais a negar, porque, assim, podeis absolvê-lo, o que sem sua negação não podeis fazê-lo. Vós agis rápido e desmereceis as leis.
Quereis que ele negue sua culpa, porque podeis sempre, mesmo contra sua vontade, isentá-lo de censura e livrar-lhe de toda culpa em referência a seu passado. De onde vem essa estranha perversidade da vossa parte? Como não refletis que uma confissão espontânea é mais digna de crédito do que uma negação obrigada? Considerai que, quando compelido a negar, a negação de um homem pode ser feita de má fé, e se absolvido, ele pode, agora e ali, logo que o julgamento termine, rir da vossa hostilidade; e um cristão igualmente.
Vendo, então, que em tudo agis conosco diferentemente de que com outros criminosos, preocupados por um único objetivo - o de obter de nós o nosso nome (na verdade, não nos cabe dizer que os cristãos não existam) - fica perfeitamente claro que não há crime de nenhuma espécie nesse caso, mas simplesmente um nome que um determinado sistema - mesmo indo contra a verdade - persegue com sua inimizade. E age assim principalmente com o objetivo de se assegurar que os homens não venham a ter como certo o que conhecem como certo e de que esse sistema é completamente desconhecedor. Consequentemente, também, acontece que eles acreditam em coisas sobre nós das quais não têm prova, sobre as quais não estão inclinados a pesquisar, incomodados com as perseguições. Eles gostariam mais de confiar, pois está provado que nada há de fundamentado contra os cristãos.
Com esse nome tão hostil àquele poder rival - seus crimes sendo presumidos, não provados - eles poderiam ser condenados simplesmente por causa de sua própria confissão. Assim, somos levados à tortura se confessamos e somos punidos se perseveramos, mas se negamos somos absolvidos porque toda a hostilidade é contra o nome. Finalmente, por que ides constar em vossas listas que tal homem é cristão? Por que não também que ele é um criminoso, por que não um culpado de incesto ou de outra coisa vil de que nos acusais? Somente em nosso caso, ficais incomodados ou envergonhados de mencionar os nomes verdadeiros de nossos crimes. Se ser chamado "Cristão" não implica em nenhum crime, esse nome é seguramente muito odiado quando por si só constitui crime. 

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