segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Natal e os Pais da Igreja

 

Natal e os Pais da Igreja

Leão Magno: “ a bondade divina sempre olhou de vários modos e de muitas maneiras pelo bem do gênero humano, e são muitos os dons da sua providência, que na sua clemência concedeu nos séculos passados. Porém, nos últimos tempos superou os limites da sua habitual generosidade, quando, em Cristo, a própria Misericórdia desceu aos pecadores, a própria Verdade veio aos extraviados, e aos mortos veio a Vida. O Verbo, coeterno e igual ao Pai, assumiu a humildade da nossa natureza humana para nos unir à sua divindade, e Deus nascido de Deus, também nasceu de homem fazendo-se homem”.

 

Inácio de Antioquia: “Os mistérios clamorosos se realizaram no silêncio de Deus: a virgindade de Maria, o seu parto e a morte do Senhor”.

“No firmamento brilhou uma estrela maior do que todas as outras! A sua luz era indescritível. A sua novidade causou estranheza. Mas todos os demais astros, incluindo o Sol e a Lua, fizeram coro à Estrela. Esta, porém, ia arremessando a sua luz por sobre todos os demais. Houve, por isso, agitação. Donde lhes viria tão estranha novidade? Desde então, desfez-se toda a magia; suprimiram-se todas as algemas do mal. Dissipou-se toda a ignorância; o primitivo reino corrompeu-se, quando Deus se manifestou humanamente para a novidade de uma vida eterna”.

 

Efrém, no século IV: “O menino que se encontra na manjedoura … aquele que rompeu o jugo que a todos oprimia”. “Fazendo-se Ele mesmo servo para nos chamar à liberdade”.

 

Santo Agostinho: “mesmo sem dizer nada, deu-nos uma lição, como se irrompesse num forte grito: que aprendamos a tornar-nos ricos nele que se fez pobre por nós; que busquemos nele a liberdade, tendo Ele mesmo assumido por nós a condição de servo; que entremos na posse do céu, tendo Ele por nós surgido da terra”.

                “Alegremo-nos, irmãos, rejubilem e alegrem-se os povos. Este dia tornou-se para nós santo não devido ao astro solar que vemos, mas devido ao seu Criador invisível, quando se tornou visível para nós, quando o deu à luz a Virgem Mãe”.

 

Prudêncio, poeta hispânico do século IV: “Com crescente alegria brilhe o céu/ e dê-se parabéns a si a gozosa terra:/ de novo, passo a passo, sobre o astro/ do dia aos seus caminhos anteriores…/ Oh! Santo berço do teu presépio,/ eterno Rei, para sempre sagrado/ para todos os povos e pelos próprios/ animais sem voz reconhecida”.

Agostinho: “Reconheçamos o verdadeiro dia e tornemo-nos dia! Éramos, na verdade, noite quando vivíamos sem a fé em Cristo. E uma vez que a falta de fé envolvia, como uma noite, o mundo inteiro, aumentando a fé a noite veio a diminuir. Por isso, com o dia de Natal de Jesus nosso Senhor a noite começa a diminuir e o dia cresce. Por isso, irmãos, festejemos solenemente este dia; mas não como os pagãos que o festejam por causa do astro solar; mas festejemo-lo por causa daquele que criou este sol. Aquele que é o Verbo feito carne, para poder viver, em nosso benefício, sob este sol: sob este sol com o corpo, porque o seu poder continua a dominar o universo inteiro do qual criou também o sol. Por outro lado, Cristo com o seu corpo está acima deste sol que é adorado, pelos cegos de inteligência, no lugar de Deus que não conseguem ver o verdadeiro sol de justiça”.

Máximo, bispo de Turim no século IV: “Jesus é o novo sol que atravessa as paredes, invade os infernos, perscruta os corações. Ele é o novo sol que com os seus espíritos faz reviver o que está morto, restaura o que está velho, levanta o que está decadente e purifica ainda, com o seu calor, aquilo que é impuro, aquece o que está frio e consome o que o que não presta”.

“Preparemo-nos pois, irmãos, para acolher o Natal do Senhor, adornemo-nos com vestes puras e elegantes! Falo, claro está, das vestes da alma, não do corpo… Adornemo-nos não com seda, mas com obras boas! Pois as vestes elegantes ornam o corpo, mas não podem adornar a consciência; pois seria muito vergonhoso trazer sob elegantes vestes elegantes, uma consciência contaminada. Procuremos acima de tudo embelezar os nossos afetos íntimos, e poderemos então vestir belas roupas; lavemos as manchas da alma para usarmos dignamente roupas elegantes! Não adianta dar nas vistas pelas vestes se estamos sujos em pecados, porque quanto a consciência está escura, todo o corpo fica nas trevas”.

 

Efrém: “só um anjo anunciou a sua concepção, enquanto que para o seu nascimento uma multidão de anjos O anunciaram”.

 

Romano Melode, poeta siríaco do século VI: “Terra e céu rejubilem juntamente, diante do Emanuel que os profetas anunciaram, tornado criança visível, que dorme num presépio”. “A alegria acaba de nascer numa gruta. Hoje os coros dos anjos unem-se a todas as nações para celebrar.... Hoje toda a humanidade, desde Adão, dança. Bendito seja Deus, recém-nascido”.

Leão Magno: “Nasceu hoje, irmãos, o nosso Salvador. Alegremo-nos! Não pode haver tristeza quando nasce a vida; a qual, destruindo o temor da morte, nos enche com a alegria da eternidade prometida. Ninguém está excluído da participação nesta alegria; a causa desta alegria é comum a todos, porque nosso Senhor, aquele que destrói o pecado e a morte, não tendo encontrado ninguém isento de pecado, a todos veio libertar. Exulte o santo porque está próxima a vitória; rejubile o pecador, porque é convidado ao perdão; reanime-se o pagão, porque é chamado à vida… Por isso é que, quando o Senhor nasceu, os anjos cantaram em alegria ‘glória a Deus nas alturas’ e anunciaram ‘paz na terra aos homens...’. Porque veem a Jerusalém celeste ser formada de todas as nações do mundo, obra inexprimível do amor divino, que, se dá tanto gozo aos anjos nas alturas do céu, que alegria não deverá dar aos homens cá na terra?”

 

Agostinho de Hipona: “Hoje nasceu para nós o Salvador. Nasceu, portanto, para todo o mundo o verdadeiro sol. Deus Fez-se homem para que o homem se fizesse Deus. Para que o escravo se tornasse senhor, Deus assumiu a condição de servo. Habitou na terra o morador do céu para que o homem, habitante da terra, pudesse encontrar morada nos céus”.

“Ele está deitado numa manjedoura, mas contém o universo inteiro; mama num seio materno, mas é o pão dos anjos; veio em pobres panos, mas reveste-nos de imortalidade; é amamentado, mas é também adorado; não encontrou lugar na estalagem, mas constrói para si um templo no coração dos seus fiéis. Tudo isto para que a fraqueza se tornasse forte e a prepotência se tornasse fraqueza. Por isso, não só não menosprezamos, mas mais admiramos o seu nascimento corporal e reconhecemos neste acontecimento quanto a sua imensa dignidade se humilhou por nós”.

 “Aquele que estava deitado na manjedoura fez-se frágil, mas não renunciou à sua condição divina; assumiu aquilo que não era, mas permaneceu aquilo que era. Eis que temos diante de nós Cristo menino: cresçamos juntamente com Ele”.

“Chama-se dia do Natal do Senhor a data em que a Sabedoria de Deus se manifestou como criança e a Palavra de Deus, sem palavras, imitou a voz da carne. A divindade oculta foi anunciada aos pastores pela voz dos anjos e indicada aos magos pelo testemunho do firmamento. Com esta festividade anual celebramos, pois, o dia em que se realizou a profecia: A verdade brotou da terra e a justiça desceu do céu (Sl 84.12).

“Neste dia, o Verbo de Deus revestiu-se de carne e nasceu de Maria virgem. Nasceu de modo admirável... Donde veio Maria? De Adão. Donde veio Adão? Da terra. Se Adão veio da terra e Maria de Adão, também Maria é terra. E se Maria é terra, entendemos quando cantamos: a verdade brotou da terra”.

Gregório de Nazianzo: “Esta é a nossa festa. Isto celebramos hoje: a vinda de Deus ao meio dos homens, para que, também nós cheguemos a Deus… celebremos, pois, a festa: não uma festa popular, mas uma festa de Deus, não como o mundo quer, mas como Deus quer; não celebremos as nossas coisas mas as coisas daquele que é nosso Senhor”.

“Não embelezemos as portas das casas, não organizemos festas, nem adornemos as estradas, não demos banquetes em nosso proveito nem concertos para mero agrado dos ouvidos, não exageremos nos adornos nem nas comidas… e tudo isto enquanto outros padecem fome e necessidades, esses que nasceram do mesmo barro que nós”.

 

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terça-feira, 1 de dezembro de 2020

153 - A Mortalidade - Parte 4 - Cipriano de Cartago

 


153

Cipriano de Cartago (210-258)

A Mortalidade (Parte 4)

 Igualmente, por meio de Salomão, ensina o Espírito Santo serem arrebatados precocemente e mais cedo libertados os que agradam a Deus, a fim de que não venham a ser manchados pelo contato do mundo, por uma permanência mais demorada: “Foi arrebatado para que a malícia não alterasse a sua inteligência. Pois sua alma era agradável a Deus; por isso [o Senhor] apressou-se em tirá-lo do meio da iniquidade”.

Também nos Salmos a alma que se dedicou a Deus apressa-se para o Senhor na fé espiritual: “Quanto são amáveis as tuas moradas, Deus dos exércitos. A minha alma deseja e procura as tuas mansões”.

É próprio daquele a quem o mundo deleita, a quem o século convida, acariciando e enganando com os engodos do prazer terreno, querer demorar-se nele por muito tempo. Ainda mais, se o mundo odeia o cristão, por que amas o que te odeia e não preferes seguir ao Cristo, que te redimiu e amou?

São João clama na sua epístola e exorta-nos a não amarmos o mundo, seguindo os desejos da carne. Diz ele: “Não ameis o mundo, nem o que é do mundo. Se alguém ama o mundo, não está com ele a caridade do Pai; porque tudo que está no mundo é concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e ambição do século, e não vem do Pai, mas da concupiscência do próprio mundo. E o mundo passará, e com ele a sua concupiscência. Aquele, porém, que fizer a vontade de Deus permanece eternamente, como Deus permanece eternamente”.

Estejamos, pois, irmãos diletíssimos, prontos para a vontade de Deus, com a mente íntegra, a fé firme e a virtude sólida, de modo que se afaste de nós o temor da morte e pensemos unicamente na imortalidade que a seguirá. Mostremos que somos de fato o que acreditamos ser, de modo que nem lamentemos a morte dos caros, nem hesitemos quando chegar o dia do nosso chamado, mas aceitemos de bom grado o convite do Senhor.

Posto que essa deva ser a atitude constante dos servos de Deus, agora, mais do que nunca, deve ser a atitude constante dos servos de Deus, agora, mais do que nunca, deve ser assim, pois o mundo já se está desmoronando, assolado pelos turbilhões que o assaltam; assim nós que percebemos já terem começado as coisas duras e sabemos estarem iminentes outras ainda mais pesadas, estimemos, como grande lucro, deixar mais depressa este lugar.

Se em tua casa as paredes envelhecidas trepidassem, o teto se abalasse e a própria casa, corroída pelo tempo, já frouxa e sem firmeza, ameaçasse ruir, não te mudarias com toda presteza?

Se em viagem uma violenta e tormentosa procela, levantando as vagas mais impetuosas, prenunciasse o naufrágio, porventura não procurarias imediatamente um porto?

Eis que o mundo vacila e desmorona e a sua ruína não é apenas o envelhecimento, mas o próprio fim; tu, porém, não dás graças a Deus, nem te rejubilas por te livrares, pela morte prematura, da ruína do naufrágio e das desgraças iminentes?

Devemos considerar e refletir, irmãos diletíssimos, que renunciamos ao mundo e que nele habitamos provisoriamente como hóspedes e peregrinos, sobre tudo isso.

Amemos, pois, o dia que coloca um de nós na verdadeira pátria, que, libertando-nos dos laços seculares, restitui-nos ao paraíso e ao reino.

Quem, estando em terra estranha, não abreviaria o regresso à pátria? Navegando com pressa para o convívio dos seus, quem não desejaria ardentemente um vento propício, que mais cedo permitisse abraçar os entes queridos? Para nós, a pátria é o paraíso.

Os patriarcas já começam a ser os nossos pais. Por que, então, não nos apressamos e corremos para ver a nossa pátria e abraçar os nossos pais?

Aí nos espera um grande número de entes queridos, aí nos aguarda com ansiedade uma multidão de irmãos, pais e filhos, já segura de sua glória e preocupada com a nossa salvação.

Que alegria não há de ser para nós e para eles quando chegarmos a sua presença e ao seu amplexo? Qual não será, então, o prazer, quão grande a felicidade de possuir, sem temor da morte, a vida eterna e os reinos celestiais?

Aí estará o glorioso coro dos apóstolos; aí, a falange jubilosa dos profetas, a multidão inumerável dos mártires coroados pela vitória nas lutas e sofrimentos; aí estarão ainda as virgens triunfantes, que dominaram, pela virtude da continência, a concupiscência da carne e do corpo; aí estarão, finalmente, os misericordiosos, na posse da sua recompensa, isto é, os que fizeram obra de justiça, distribuindo aos pobres bens e alimentos, e cumpriram os preceitos do Senhor, dando o seu patrimônio terrestre em troca dos tesouros celestes.

Caminhemos, pois, irmãos diletíssimos, com ansiedade para eles, desejemos que não demore a nossa ida para junto do Cristo, para que também mais cedo estejamos com eles.

Que Deus veja este nosso pensamento, que o Cristo Senhor considere este propósito do espírito e da fé, para que dê mais abundantemente o prêmio de sua glória àqueles por quem sabe ser mais desejado.

 

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terça-feira, 24 de novembro de 2020

152 - A Mortalidade - Parte 3 - Cipriano de Cartago

 


152

Cipriano de Cartago (210-258)

A Mortalidade (Parte 3)

 

Afinal, irmãos caríssimos, que pode haver de mais proveitoso e necessário? Com efeito, esta epidemia que parece tão horrível e funesta põe à prova a justiça de cada um e experimenta o espírito dos homens, verificando se os sãos servem aos enfermos, se os parentes se amam sinceramente, se os senhores têm piedade dos servos enfermos, se os médicos não abandonam os doentes que imploram, se o violento reprime a violência, se o avarento, ao menos por meio da morte, abandona o ardor sempre insaciável da sua

desvairada cobiça, se os soberbos quebram o orgulho, se os desonestos refreiam a audácia, se, ao menos por terem morrido os que os ricos amavam, vendo-se à beira da morte e sem herdeiros, distribuem alguma coisa aos pobres.

Se, porém, nada mais nos proporcionasse esta mortalidade, ainda valeria muito para nós, cristãos, por este resultado que produziu: pois, ensinando-nos a não temer a morte, faz que comecemos a desejar de boa vontade o martírio.

Estamos, pois, diante não do enterro, mas do adestramento. A mortalidade é um exercício que dá ao espírito a glória da fortaleza e nos prepara para a coroa, pelo desprezo da morte.

Mas, talvez, alguém se oponha dizendo: “O que me contrista nesta mortalidade é que me havia preparado para a confissão e havia feito de todo o coração o voto de suportar o sofrimento. Como, porém, a morte me toma a dianteira, sou privado do martírio”.

Antes de tudo, o martírio não está em teu poder, mas na benemerência de Deus. Não podes, portanto, dizer que perdeste o que nem sabes se merecerás receber.

Além disso, Deus, que penetra o coração e as entranhas, vê e conhece as coisas ocultas. Ele contempla e louva, prova e examina atentamente a virtude que em ti estava preparada e dar-te-á a recompensa.

Acaso Caim, quando ofereceu a Deus o sacrifício, já matara o irmão? E, todavia, Deus, que previa o fratricídio já concebido no pensamento, condenou-o antecipadamente.

Do mesmo modo que aquela cogitação má,

aquela ideia criminosa fora manifesta a Deus, assim também quando os seus servos desejam a confissão e concebem no espírito o martírio, essa disposição será coroada pelo próprio Deus.

Uma coisa é faltar disposição para o martírio, outra é ter faltado o martírio quando havia disposição.

Tal como o Senhor te encontrar ao chamar-te, assim te julgará, pois ele mesmo o

estabeleceu, dizendo: “Saibam todas as igrejas que eu sou aquele que sonda os rins e o coração”.

Com efeito, não deseja o nosso sangue, mas procura a nossa fé. Pois nem Abraão, nem Isaac, nem Jacó foram mortos e, contudo, foram julgados dignos, pelos méritos da fé e da justiça, de serem honrados como os primeiros entre os patriarcas; e todo aquele que for encontrado fiel, justo e digno de louvor será reunido ao seu convívio.

Devemos estar lembrados de que cumpre fazer não a nossa vontade, mas a de Deus, conforme o Senhor nos mandou rezar diariamente.

Verdadeiramente é estranho e contraditório pedirmos que seja feita a vontade de Deus e não obedecermos imediatamente quando vem chamar-nos e retirar-nos deste mundo.

Resistimos e relutamos como servos rebeldes e somos levados à face de Deus com tristeza e temor, saindo do século acorrentados à irresistível lei da natureza e não pela complacente

entrega da vontade livre.

E ainda queremos receber o prêmio celeste das mãos daquele a quem só chegamos constrangidos.

Por que, pois, oramos e pedimos que venha a nós o Reino dos céus, se nos agrada o cativeiro da terra? Por que rogamos insistentemente, em preces repetidas, que se apressem os dias do Reino, se os nossos maiores desejos e votos são, antes, servir nesta terra ao diabo que reinar com Cristo?

Por último, para se tornarem mais evidentes os sinais da Divina Providência, pelos quais o Senhor, presciente do futuro, dirige os seus à verdadeira salvação, aconteceu o seguinte fato: um nosso companheiro de sacerdócio, estando esgotado pela doença e preocupado com a morte que se avizinhava, implorou para si uma prolongação da vida.

Surgiu, então, ao suplicante, já quase moribundo, um jovem de venerável majestade e beleza, de estatura elevada e nobre aspecto.

E, apesar de postar-se ao lado do moribundo, este a custo o teria visto com os seus olhos carnais, se não estivesse no limiar da morte e, por isso, em condições de contemplar uma tal figura.

Disse-lhe o jovem, sem esconder certa indignação no ânimo e na voz: “Temeis sofrer, não quereis morrer; que farei por vós?”.

A palavra é de quem censura e também de quem admoesta. É a palavra de quem cuida dos desejos futuros, em vez de permitir, aos que estão preocupados com a perseguição e seguros da morte, os desejos do século.

O nosso irmão e companheiro, na hora da morte, ouviu o que era dito para os outros.

Pois aquele que ouviu, estando prestes a morrer, só ouviu para que transmitisse. Não ouviu para si, mas para nós. Que poderia aprender para si, estando já para morrer?

Aprendeu, antes, para nós que ficamos, para que saibamos, pelo conhecimento da censura feita ao sacerdote que pedia prolongação da vida, aquilo que convém a todos nós.

E a nós também, mínimo e último, quantas vezes foi revelado, com que frequência e clareza Deus se dignou ensinar-nos, a fim de que o afirmássemos e pregássemos pública e assiduamente, que não devem ser chorados os irmãos libertados do século pelo chamado divino.

Sabemos que não os perdemos, mas que eles nos precedem, que, retirando-se, avançam na nossa frente, à semelhança dos que viajam ou navegam.

Saibamos, pois, que devemos lembrar-nos deles, mas não chorá-los, nem usar, aqui, vestes pretas, quando eles, lá, já vestiram a veste branca.

Não devemos, pois, dar ocasião aos gentios para que nos repreendam, com razão e direito, dizendo que choramos como extintos e perdidos aqueles que afirmamos viverem junto de Deus e que não provamos com o coração a fé que manifestamos com palavras.

Traímos assim a nossa fé e a nossa esperança; parece ser falso, fingido e simulado o que dizemos.

De nada adianta alardear virtudes por palavras e revelar o contrário por fatos.

Já o apóstolo Paulo censura e incrimina os que se entristecem pelo falecimento dos seus. Diz ele: “Não queremos, irmãos, deixar-vos na ignorância a respeito dos que dormem, para que não vos entristeçais, como os que não possuem a esperança.  Se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, creiamos também que Deus conduzirá com Jesus os que nele dormiram”.

É próprio dos que não têm esperança, diz ele, contristar-se com a morte dos entes queridos.

Nós, porém, que vivemos na esperança, cremos em Deus e estamos seguros de que o Cristo sofreu e ressuscitou por nós, nós que permanecemos no Cristo e somos nele e por ele ressuscitados, por que não queremos deixar este século, por que choramos e lamentamos, como perdidos, os nossos mortos?

O próprio Cristo, nosso Deus e Senhor, nos adverte, dizendo: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim viverá, ainda que morra, e todo aquele que vive e crê em mim não morrerá eternamente”.

Se cremos no Cristo, se temos fé nas suas palavras e promessas, também não morremos eternamente; caminhemos, pois, com alegria e tranquilidade em direção do Cristo, com quem havemos de vencer e reinar para sempre.

Porque, ao mesmo tempo que morremos, somos pela morte conduzidos à imortalidade; nem é possível que venha a vida eterna sem que tenhamos saído do mundo. Isso, portanto, não significa mais um fim, mas a passagem e a emigração para o eterno, depois de percorrido o caminho do tempo.

Quem não se apressará em chegar ao melhor? Se o apóstolo Paulo prega, dizendo: “A nossa pátria está no céu, donde esperamos o Senhor Jesus Cristo, que transformará o nosso corpo miserável, configurando-o com o seu corpo glorioso”, quem não deseja com ardor ser mudado

e transformado na figura do Cristo e chegar mais depressa à majestade da glória celeste?

Que seremos assim, o Cristo igualmente promete, quando ora ao Pai para que estejamos ao seu lado, habitemos com ele nas moradas eternas e alegremo-nos nos domínios celestes: “Pai, quero que os que me deste estejam comigo onde eu estarei, e que eles vejam a glória que tu me deste antes que o mundo fosse feito”.

Quem está para partir para a morada do Cristo, para a glória do Reino celeste, não deve chorar, nem se lamentar; antes, conforme a promessa do Senhor e a fé do seu Verbo verídico, deve rejubilar-se por esta partida e migração.

Lemos, ainda, ter sido assim transportado Henoc, que agradou a Deus, conforme o testemunho do Gênesis: “Henoc agradou a Deus e não foi mais visto, porque Deus o transportou”.

Por ter sido agradável ao olhar de Deus, mereceu ter sido afastado do contágio deste século.

 

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terça-feira, 17 de novembro de 2020

A Mortandade - Parte 2 - Cipriano de Cartago


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Cipriano de Cartago (210-258)

A Mortalidade (Parte 2)

Além disso, se o cristão acreditou que há para si uma condição e uma lei, que ele conhece e afirma, saberá [também] que lhe compete labutar mais que os outros neste século, pois será maior para ele a agressão do diabo.

A Escritura Divina ensina e adverte, dizendo: “Filho, entrando no serviço de Deus, permanece na justiça e temor e prepara teu espírito para a tentação”.[11]

De novo: “Nas dores sê firme, nas humilhações tem paciência, porque o ouro e a prata são provados pelo fogo, mas o homem, por meio das humilhações”.[12]

Assim Jó, depois de perder os bens, de ver a morte dos filhos e de ser afligido gravemente por chagas e vermes, não foi vencido, mas provado; e, nas suas aflições e dores, disse, mostrando a paciência de sua alma religiosa: “Nu saí do ventre de minha mãe, nu irei para a terra. O Senhor deu, o Senhor tirou. Como quis o Senhor,

assim se fez. Bendito seja o nome do Senhor”.[13]

E quando a própria esposa, impaciente pela intensidade da dor, quisesse impeli-lo a pronunciar uma queixa ou uma palavra de revolta contra Deus, ele respondeu dizendo: “Falaste como uma mulher insensata. Se recebemos os bens da mão do Senhor, por que não havemos de suportar os males? Em todas estas coisas que lhe aconteceram, Jó não pecou por seus lábios diante do Senhor”.[14]

Por isso o Senhor Deus dá testemunho em

seu favor: “Reparaste o meu servo Jó? Não há na terra ninguém igual a ele, é um homem sem queixumes, que presta culto verdadeiro a Deus”.[15]

Também Tobias, depois de obras magníficas, depois dos muitos e gloriosos louvores de sua misericórdia, tendo padecido a cegueira, temeu e louvou a Deus na adversidade; pela própria desgraça corporal, cresceu no louvor.

Também sua esposa tentou pervertê-lo, dizendo: “Onde está a tua justiça? Eis que sofres”.[16]

Mas ele, constante e firme no temor de Deus, armado com a fé da religião para suportar todos os sofrimentos, não cedeu à tentação da fraca esposa diante da dor; mas, por uma paciência ainda maior, mereceu mais diante de Deus. Por isso, mais tarde, o anjo Rafael louva-o, dizendo: “É honroso revelar e confessar as obras de Deus. Pois quando oravas, tu e [tua nora] Sara,

eu apresentei vossa oração diante da glória divina, e também quando sepultavas com simplicidade os teus mortos; porque não hesitavas em levantar e abandonar a tua refeição para sair e velar um morto, fui enviado para provar-te. De novo me mandou Deus para curar a ti e a tua nora Sara. Eu sou Rafael, um dos sete anjos santos que assistem e habitam diante da glória divina”.[17]

Os justos sempre possuíram essa paciência. Os apóstolos receberam este ensinamento como lei do Senhor: não murmurar na adversidade, mas aceitar com paciência tudo que acontece neste século.

E o povo judeu sempre pecou, porque murmurava frequentemente contra Deus, conforme atesta o Senhor Deus no livro dos Números, dizendo: “Cesse a murmuração deles contra mim e não morrerão”.[18]

Não se deve, portanto, irmãos diletíssimos, murmurar na adversidade, mas suportar com paciência e coragem tudo que acontecer, pois está escrito: “Sacrifício a Deus é um espírito atribulado; Deus não despreza o coração atribulado e humilhado”.[19]

Também no Deuteronômio aconselha o Espírito Santo: “O Senhor teu Deus te afligirá, mandar-te-á fome e verá se o teu coração guarda ou não os seus preceitos”.[20]

E novamente: “O Senhor Deus vos tenta para saber se amais o Senhor vosso Deus de todo o vosso coração e de toda a vossa alma”.[21]

Assim Abraão agradou a Deus, pois para agradá -lo não temeu perder o filho, nem recusou cometer filicídio.[22]

E tu que não podes perder um filho pela lei e pela circunstância desta mortalidade, que farias se recebesses ordem de matá-lo?

O temor de Deus e a fé devem preparar-te para tudo: seja a perda da propriedade, seja o contínuo e cruel tormento dos membros atingidos pela doença, seja a triste e fúnebre perda violenta da esposa, dos filhos e dos demais entes queridos.

Nada disso seja para ti ocasião de tropeços, mas de luta. Nada disso quebre ou enfraqueça a fé do cristão. Antes, que isso manifeste mais o [seu] vigor no combate, pois toda a agressão dos males presentes não deve ser temida pela segurança dos bens futuros.

Na verdade, não pode haver vitória sem que tenha havido combate. Mas se houver vitória, então será dada a coroa aos vencedores.

É na procela que se conhece o piloto, é no combate que se prova o soldado.

Quando não há perigo, é fraca a agitação da luta. O combate nas adversidades é uma provação para a verdade. A árvore que tem raízes profundas não é abatida pelos ventos; a nau bem construída é agitada pelas ondas, mas não é perfurada.

E quando na eira se debulha a colheita, o grão forte e robusto zomba do vento, enquanto as palhas sem força são levadas pela aragem.

Assim o Apóstolo Paulo, depois de naufrágios e flagelos, depois de muitos e graves tormentos da carne e do corpo, disse não ser afligido, mas corrigido pela adversidade, de forma que quanto mais fosse atormentado, mais verdadeiramente seria provado.

“Foi-me dado”, disse ele, “um estímulo da carne, um enviado de satanás que me esbofeteie, para que me não venha a ensoberbecer. Por isso, três vezes pedi ao Senhor que ele fosse afastado de mim, e o Senhor me disse: ‘Basta-te a minha graça. Pois a força se aperfeiçoa na fraqueza’”.[23]

Quando, portanto, irromper uma calamidade, uma fraqueza ou enfermidade, então nossa força se aperfeiçoará, então a fé, que perseverou na tentação, será coroada, conforme está escrito: “O vaso se prova na fornalha, e os justos no sofrimento da tribulação”.[24]

Afinal, é isto justamente que nos diferencia dos demais homens, daqueles que não conhecem a Deus, pois enquanto estes se queixam e murmuram da adversidade, nós na desventura não nos afastamos da virtude e da fé, mas até nos fortalecemos na dor.

É proveitoso para o progresso da nossa fé que neste momento as vísceras dissolvidas em fluxo esgotem a força do corpo, que a febre interior queime a face ulcerada, que o estômago seja dilacerado por vômitos repetidos, que os olhos ardam pela afluência de sangue, que os pés e outros membros sejam amputados pelo contágio da podridão, que a doença se espalhe pelas juntas, tornando-as defeituosas e paralisadas, ou pelo corpo todo tornando obstruído o ouvido e cegos os olhos.

Diante de tantos ímpetos de devastação e morte, quão grande é para o pecador lutar com as energias de um ânimo inquebrantável, quão sublime é permanecer de pé entre as ruínas do gênero humano e não jazer prostrado como aqueles que não têm esperança em Deus.

Devemos, pois, antes, rejubilar-nos e aproveitar o favor do tempo, porque enquanto provamos a fortaleza da nossa fé, caminhamos para Cristo, suportando as penas pela sua estrada estreita, e recebemos de suas próprias mãos o prêmio da vida e da fé.

Tema morrer, sim, mas aquele que, não tendo renascido na água e no Espírito, é propriedade do fogo e da geena.

Tema morrer quem não participa da cruz e da paixão do Cristo. Tema morrer quem passa desta morte a uma segunda morte. Tema morrer o que deixando o século será atormentado pela chama inextinguível das penas eternas.

Tema morrer quem encontra na terra uma protelação dos sofrimentos e gemidos. Muitos dos nossos morrem nesta mortandade, mas isto quer dizer apenas que muitos dos nossos irmãos são libertados do século.

Pois se essa epidemia é, de fato, uma peste para judeus, gentios e demais inimigos do Cristo, é, contudo, para os servos de Deus a viagem da salvação.

Nem se pense que a ruína é igual para bons e maus, por verificar que morrem indistintamente os justos e os injustos. Pois os justos são chamados para a paz, ao passo que os injustos são arrebatados para o suplício.

O que acontece é que aqueles recebem mais depressa a herança e estes, a pena.

Assim, irmãos, diletíssimos, somos imprudentes e ingratos em relação aos benefícios divinos, pois nem reconhecemos o que nos é dado.

Eis que partem em paz, seguras de sua glória, virgens prudentes,[25] não temendo mais as ameaças da corrupção e do lupanar do anticristo, que está prestes a vir; eis que os meninos fogem do perigo da idade incerta e alcançam sem risco o prêmio da castidade e inocência; eis que a jovem esposa já não teme a tormenta e evita, pela morte prematura, o temor da perseguição e das mãos dos algozes cruéis.

Ainda mais, pelo medo da mortalidade, animam-se os tímidos, levantam-se os abatidos, exercitam-se os covardes, os desertores são compelidos a voltar, os gentios coagidos a crer e a velha fileira dos veteranos é chamada ao descanso, pois um novo e numeroso exército de ânimo mais forte, recrutado no tempo da mortalidade, vai ocupar a linha de frente, pronto a lutar sem temor da morte, quando vier o combate.


terça-feira, 10 de novembro de 2020

150 - A Mortalidade - Cipriano de Cartago - (Parte 1)

 


150

Cipriano de Cartago (210-258)

A Mortalidade (Parte 1)


Introdução

– De mortalitate (A mortalidade):

Em 252, uma peste deixava mortos em quase todos os lares, pagãos e cristãos; morte era comum a ambos, e o que distinguia um de outro era o modo como era afrontada. Cipriano convida os cristãos a não temê-la, porque é partida para o encontro com o Cristo que chama a entrar na imortalidade e na felicidade eterna. Mesmo que a obra não seja de grandes proporções, é o primeiro tratado – embora não no senso técnico contemporâneo do termo – na história do cristianismo a propor uma teologia da morte.

 

Texto de Cipriano

Muitos de vós, irmãos diletíssimos, têm o espírito calmo, a fé firme e o ânimo devotado; longe de serem abalados pela extensão da mortalidade atual, qual rochedo forte e estável, quebram os assaltos impetuosos do mundo e as violentas vagas do século, sendo por elas provados, mas não vencidos.

Noto, todavia, que alguns dos fiéis sustentam o combate com menor vigor e – seja por fraqueza de caráter ou por falta de fé, seja pelos encantos da vida no século ou pela fraqueza do sexo, seja, ainda, o que é mais grave, por um erro de doutrina – não fazem valer a força divina e invencível que trazem dentro de si. Isso não é algo que se possa deixar passar em silêncio ou disfarçar; pelo contrário.

Portanto, na medida das minhas pobres forças, com a maior energia e com palavras hauridas dos livros divinos, seja reprimida a ignávia (alidade de ignavo; indolência, inércia, preguiça) de um ânimo autocondescendente, a fim de que seja realmente digno de Deus e do Cristo quem já se tornou servo de Deus e do Cristo.

Quem é soldado de Deus, irmãos caríssimos, deve reconhecer, como que colocado nos acampamentos celestiais, que já vive das realidades divinas, de maneira que não tenhamos nenhuma hesitação, nenhuma perturbação diante das procelas e dos turbilhões do mundo; pois o próprio Senhor predisse que essas coisas haveriam de vir.

Com palavras de previdente exortação, ele instruiu, ensinou, preparou e animou os membros de sua Igreja, para que pudessem suportar, quando viessem, os sofrimentos futuros – fome, guerras, terremotos e pestes – que prenunciou e profetizou que surgiriam por toda parte. E para que um medo de inesperadas e desconhecidas calamidades não nos fizesse tremer, preveniu que nos últimos tempos mais e mais se intensificariam as adversidades.

Eis que acontece o que foi predito. E, se se realiza o que foi anunciado, virá em

seguida o que foi prometido pelo próprio Senhor, que prometeu, dizendo: “Quando virdes que essas coisas sucedem, sabei que está próximo o Reino de Deus”.[1]

Aproxima-se, irmãos caríssimos, o Reino de Deus. Avizinham-se, com [este] mundo que passa, o prêmio da nossa vida, o júbilo da salvação eterna e a alegria perpétua, a posse do paraíso que perdêramos. As realidades celestes já sucedem às terrenas, as grandes às pequenas, as eternas às passageiras.

Que motivo há, pois, para ansiedade e desassossego? Quem fica inquieto e triste nesta situação, senão quem não tem esperança e fé? Temer a morte é próprio de quem não quer ir para o Cristo.

Não querer ir para o Cristo é próprio de quem não crê que começará a reinar com ele. Está escrito: “O justo vive da fé”.[2] Se és justo e vives da fé, se verdadeiramente crês em Deus, por que – seguro da promessa do Senhor de que estarás com o Cristo – não te rejubilas por seres chamado para junto dele e por ficares livre do diabo?

Assim se deu com o justo Simeão, que foi verdadeiramente um justo e observou  com plena fé os preceitos de Deus. Fora-lhe prometido, por revelação divina, que não morreria antes de ver o Cristo.

Por isso, quando o Cristo, recém-nascido, veio ao templo com sua mãe, conheceu no Espírito que havia nascido aquele de quem lhe fora profetizado. Assim que o viu, soube que estava prestes a morrer.

Alegrando-se, então, pela morte próxima e certo do chamado iminente, tomou nas mãos o menino e, bendizendo o Senhor,[3] exclamou: “Despede agora, Senhor, o teu servo, em paz, segundo a tua palavra; pois os meus olhos já viram a tua salvação”.[4]

Reconheceu assim e testemunhou que só haverá paz e repouso livre e tranquilo para os servos de Deus quando, retirados dos reboliços deste mundo, caminharmos para o porto seguro da eterna morada e quando, vencida esta morte, chegarmos à imortalidade. Essa é, com efeito, a nossa paz, a tranquilidade em que se pode confiar; a segurança estável, sólida e perpétua.

Aliás, o que há no mundo senão o combate cotidiano que se trava contra o  demônio e pelejas assíduas contra seus dardos e flechas? Nossa luta é com a avareza, com o despudor, com a ira, com a ambição; nossa batalha contínua e penosa é contra os vícios da carne e as seduções do século.

O espírito do homem, cercado e oprimido de todos os lados pela perseguição do diabo, dificilmente percebe cada um de seus golpes e a custo resiste-lhes. Pois, se a avareza é abatida, levanta-se a libido; se a libido é dominada, surge a ambição; se é desprezada a ambição, a ira exaspera, a soberba infla, a embriaguez atrai, a inveja rompe a concórdia, o ciúme destrói a amizade. És levado a maldizer e a lei divina nos proíbe isso.[5] És obrigado a jurar e isso não é lícito.[6]

Tantas perseguições sofre cotidianamente o espírito [humano], tantos perigos oprimem o seu peito; e [ainda assim] agrada-lhe estar por mais tempo aqui, entre as armas do demônio, apesar de ser mais desejável e preferível apressar os passos, por uma morte mais próxima, ao encontro do Cristo? Ele próprio nos ensina dizendo: “Em verdade, em verdade vos digo, havereis de lamentar e chorar enquanto o século se alegra; mas a vossa tristeza se converterá em alegria”.[7]

Quem não prefere não ter tristeza, quem não se apressa à alegria? Mas é o Senhor mesmo, mais uma vez, que nos declara quando a nossa tristeza se converterá em alegria: “Hei de ver-vos novamente, e o vosso coração se encherá de alegria e ninguém poderá retirá-la de vós”.[8]

Se, portanto, alegrar-se é ver o Cristo, e não pode haver outra alegria para nós que não a de ver o Cristo, que cegueira de mente, que insanidade de espírito é amar as angústias, as penas e as lágrimas do mundo, em vez de correr ao encontro da alegria que nunca nos poderá ser tirada. Isso acontece, irmãos diletíssimos, porque falta a fé; porque ninguém crê que seja verdadeiro aquilo que prometeu Deus, que é veraz e cuja palavra é eterna e inabalável para aqueles que creem.

Se um homem respeitável e bem reputado te promete alguma coisa, terás certamente confiança no promitente; não pensarás ser enganado ou iludido por alguém que sabes constante em suas palavras e ações. Quando é Deus que te fala, tu, incrédulo, hesitas com espírito desconfiado? Deus, ao partires deste mundo, te promete a imortalidade e eternidade, e tu duvidas? Isso é desconhecer a Deus por completo! Isso é ofender o Cristo, Mestre de quem crê, com o pecado da incredulidade! Isso é estar na Igreja e não ter fé dentro da própria morada da fé.

O próprio Cristo, Mestre da nossa salvação e do nosso bem, mostra o quanto convém sair do século. Pois quando seus discípulos se entristeceram por anunciar-lhes que tinha de partir, falou-lhes dizendo: “Se me amásseis, ficaríeis certamente alegres, porque vou para o Pai”.[9]

Dessa maneira ensinou e mostrou que a partida dos entes amados deste mundo é antes ocasião de alegria que de tristeza. Lembrado disso é que o bem-aventurado apóstolo Paulo declara na sua epístola: “Para mim, viver é o Cristo e morrer é lucro”.[10]

Estima, pois, o Apóstolo como a maior das vantagens já não estar mais preso pelos laços deste século, nem sujeito a pecados e vícios de carne; estar, portanto, isento de torturas e angústias, e partir, livre dos venenosos hálitos do diabo, para a alegria eterna do próprio Cristo que chama.

Mas, todavia, a alguns estranha que o contágio deste mal atinja igualmente os nossos e os gentios, como se acreditassem que se é cristão para gozar sossegado deste mundo e desta vida, imunes do contato dos males, e não para reservar-se às futuras alegrias, depois de sofrer aqui todas as adversidades.

Lastimam estes que compartilhemos com todos da mesma mortalidade. O que, porém, não haveremos de ter em comum com os demais homens, enquanto esta carne comum permanece sob a lei do primeiro nascimento?

Enquanto estamos neste mundo, somos ligados ao gênero humano pela igualdade na carne, e separados pelo Espírito. Por isso, até que este [corpo] corruptível se revista da incorrupção, o mortal receba a imortalidade e o Espírito nos conduza a Deus Pai, tudo o que há de incômodo na carne nos será comum com o gênero humano.

Assim, quando a terra [torna-se] estéril e não produz frutos, a fome não distingue ninguém. O mesmo quando uma cidade é dominada pela invasão do inimigo, o cativeiro pesa igualmente sobre todos [os habitantes]. Quando o céu sereno retém a chuva, a seca é uma só para todos. Quando um escolho fende o navio, o naufrágio é comum aos navegantes, sem exceção. Do mesmo modo a dor dos olhos, o ataque das febres e as enfermidades de todos os membros são as mesmas para nós e para os outros, enquanto carregamos neste século esta mesma carne.

terça-feira, 13 de outubro de 2020

149 - Cipriano de Cartago (210-258) O Bem da Paciência – 13-14

 


149

Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra

Cipriano de Cartago (210-258)

O Bem da Paciência – 13-14

 


 

13. O cristão não se apressa em defender-se, sua paciência perdure até o último dia

Sei de muitos, irmãos diletíssimos, que desejam ser depressa defendidos, seja por causa do peso de injúrias angustiantes, seja por ressentimento contra as coisas que investem e se assanham contra si.

Eis por que, no fim de tudo, não se pode deixar de dizer que – colocados nestas tempestades de um mundo agitado e sujeitos também às perseguições de judeus, gentios e hereges – devemos esperar pacientemente o dia da retribuição, e não ter pressa da vindicação dos nossos sofrimentos com impertinente precipitação, pois está escrito:

“Espera por mim, diz o Senhor, no dia de minha ressurreição para o testemunho, porque a minha sentença é para reunir as nações, a fim de pôr de parte os reis e derramar sobre eles a minha ira”.[ Sf 3,8.]

O Senhor nos manda esperar o dia da futura vindicação com infatigável paciência, e fala, no Apocalipse, dizendo: “Não seles as palavras da profecia deste livro, porque o tempo já está próximo, a fim de que aqueles que perseveram em fazer o mal o façam, e o que está nas imundícies ainda se suje; que o justo, porém, faça obras mais justas, e, semelhantemente, aquele que é santo [faça] obras mais santas.

Eis que venho logo, e a minha recompensa está comigo, para retribuir a cada qual segundo as suas obras”.[ Ap 22,10-12.]

Por conseguinte, também os mártires – que clamam e que, irrompendo a dor, têm pressa da vindicação – recebem a ordem de ainda esperar e ter paciência, [em consideração] pelos tempos que se devem consumar e pelos mártires que se devem completar:

“E quando abriu o quinto selo, vi, debaixo do altar de Deus, as almas dos que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e do seu testemunho, e clamaram em alta voz dizendo: ‘Até quando, Senhor, santo e verdadeiro, não julgas e reclamas o nosso sangue dos que moram na terra?’. E foram dadas a cada um deles vestes brancas, e foi-lhes dito que descansassem ainda por um pouco de tempo, até que se completasse o número dos seus conservos e irmãos que seriam depois mortos ao exemplo deles”.[ Ap 6,9-11.]

Mas o Espírito Santo dá a conhecer, pelo profeta Malaquias, quando virá a vindicação divina do sangue justo, dizendo: “Eis que o dia do Senhor vem queimando como um forno; e todos os soberbos e todos os iníquos serão como palha, e o dia que está para vir os incendiará, diz o Senhor”.[ Ml 3,19.]

É o que também lemos nos Salmos, onde se anuncia a vinda de Deus como juiz, a qual deve ser venerada pela majestade do seu julgamento: “Deus, o nosso Deus, virá manifesto, e não se calará. Diante dele arderá fogo, e em torno dele uma grande tempestade.

Convocará em cima o céu e, embaixo, a terra, a fim de separar o seu povo. Reuni para ele os seus justos, os que firmam aliança com ele nos sacrifícios; e os céus anunciarão a sua justiça, porque Deus é o Juiz”.[ Sl 50(49),3-6.]

Também Isaías prenuncia as mesmas coisas, dizendo: “Eis que o Senhor virá como fogo e a sua carruagem como a borrasca, tomar vingança na ira. Serão, com efeito, julgados no fogo do Senhor, e feridos com a sua espada!”.[ Is 66,15.]

E novamente: “O Senhor Deus dos exércitos aparecerá e despedaçará a guerra, provocará um combate e clamará com força sobre os inimigos: ‘Tenho-me calado, por acaso sempre me hei de calar?’”.[ Is 42,13-14.]

 

14. Deus, oculto na humilhação, é juiz e defensor que virá com poder; tenha-se sempre presente, com esperança, a paciência de Cristo

Quem, pois, é este que diz ter-se calado antes, e que não se calará sempre? Sem dúvida é aquele que, como uma ovelha, foi conduzido à imolação e que, como um cordeiro sem balido, não abriu a sua boca diante de quem o tosquiava.[ Cf. Is 53,7.]

Sem dúvida é aquele que não gritou, e cuja voz não foi ouvida nas praças.[ Cf. Is 42,2.] Sem dúvida é aquele que não foi recalcitrante nem protestou quando expôs as suas costas aos açoites e as suas faces às bofetadas, e que não desviou o seu rosto da imundície dos escarros.[ Cf. Mc 15,15; 14,65.]

Sem dúvida é aquele que, enquanto era acusado pelos sacerdotes e anciãos, nada respondia e que, à admiração de Pilatos, conservou um pacientíssimo silêncio.[ Cf. Mc 14,60-61; Mt 27,12-14.]

É esse que, tendo se calado na paixão, não se calará mais tarde no castigo. Esse é o nosso Deus, isto é, não de todos, mas o Deus dos fiéis e dos crentes, que não se calará quando vier manifesto no segundo advento, pois, tendo antes estado oculto na humildade, virá manifesto com poder.

Esperemos, irmãos diletíssimos, por esse nosso juiz e defensor, que juntamente consigo há de vindicar o povo da sua Igreja e a multidão de todos os justos desde o início do mundo.

Aquele que demasiadamente se precipita e se apressa pela própria vindicação considere que nem ele mesmo, que se vindica, foi vindicado.

No Apocalipse, o anjo resiste e diz a João que o queria adorar: “Olha, não o faças, pois sou um conservo teu e de teus irmãos. Adora o Senhor Jesus”.[ Ap 22,9.]

Como é o Senhor Jesus e quão grande a sua paciência, que, ainda não sendo vindicado na terra, é adorado nos céus!

Nos nossos sofrimentos e perseguições, irmãos diletíssimos, pensemos na sua paciência. Prestemos ao seu advento um obséquio cheio de esperança. Não nos apressemos, com ímpia e atrevida precipitação, em sermos defendidos, nós servos, antes do Senhor.

Ao contrário, fiquemos firmes; trabalhemos e observemos os preceitos do Senhor, vigiando de todo o coração e permanecendo inabaláveis em tudo o que aguentamos; a fim de que não sejamos castigados com os ímpios e pecadores quando vier aquele dia de ira e de reivindicação, mas, com os justos e os que temem a Deus, nós o glorifiquemos.

 

O que você destaca no texto?

Como ele serve para sua espiritualidade?