Especial de Páscoa
Santo Agostinho, Bispo de Hipona (354-430)
Sermões para a
Vigília Pascal e para o Dia da Ressurreição de Cristo
O bem-aventurado apóstolo Paulo, exortando-nos a que o imitemos, dá
entre outros sinais de sua virtude o seguinte: "freqüente nas
vigílias" 1.
Com quanto maior júbilo não devemos também nós vigiar nesta vigília, que
é como a mãe de todas as santas vigílias, e na qual o mundo todo vigia?
Não o mundo, do qual está escrito: "Se alguém amar o mundo, nele
não está a caridade do Pai, pois tudo o que há no mundo é concupiscência dos
olhos e ostentação do século, e isto não procede do Pai" 2.
Sobre tal mundo, isto é, sobre os filhos da iniqüidade, reinam o demônio
e seus anjos. E o Apóstolo diz que é contra estes que se dirige a nossa luta:
"Não contra a carne e o sangue temos de lutar, mas contra os principados e
as potestades, contra os dominadores do mundo destas trevas" 3.
Ora, maus assim fomos nós também, uma vez; agora, porém, somos luz no
Senhor. Na Luz da Vigília resistamos, pois, aos dominadores das trevas.
Não é,
portanto, esse o mundo que vigia na solenidade de hoje, mas aquele do qual está
escrito: "Deus estava reconciliando consigo o mundo, em Cristo, não lhe
imputando os seus pecados" 4.
E é tão gloriosa a celebridade desta vigília, que compele a vigiarem na
carne mesmo os que, no coração, não digo dormirem, mas até jazerem sepultos na
impiedade do tártaro. Vigiam também eles esta noite, na qual visivelmente se
cumpre o que tanto tempo antes fora prometido: "E a noite se iluminará
como o dia" 5. Realiza-se isto nos corações piedosos, dos quais se disse:
"Fostes outrora trevas, mas agora sois luz no Senhor". Realiza-se
isto também nos que zelam por todos, seja vendo-os no Senhor, seja invejando ao
Senhor. Vigiam, pois, esta noite, o mundo inimigo e o mundo reconciliado. Este,
liberto, para louvar o seu Médico; aquele, condenado, para blasfemar o seu
Juiz. Vigia um, nas mentes piedosas, ferventes e luminosas; vigia o outro,
rangendo os dentes e consumindo-se. Enfim, ao primeiro é a caridade que lhe não
permite dormir, ao segundo, a iniqüidade; ao primeiro, o vigor cristão, ao
segundo o livor diabólico. Portanto, pelos nossos próprios inimigos sem o
saberem eles, somos advertidos de como devamos estar hoje vigiando por nós, se
por causa de nós não dormem também os que nos invejam.
Dentre ainda os que não estão assinalados com o nome de cristãos, muitos
são os que não dormem esta noite por causa da dor, ou por vergonha. Dentre os
que se aproximam da fé, há os que não dormem por temor. Por motivos vários,
pois, convida hoje à vigília a solenidade (da Páscoa). Por isso, como não deve
vigiar com alegria aquele que é amigo de Cristo, se até o inimigo o faz, embora
contrariado? Como não deve arder o cristão por vigiar, nessa glorificação tão
grande de Cristo, se até o pagão se envergonha de dormir? Como não deve vigiar
em sua solenidade, o que já ingressou nesta grande Casa, se até o que apenas
pretende nela ingressar já vigia?
Vigiemos, e oremos; para que tanto exteriormente quanto interiormente
celebremos esta Vigília. Deus nos falará durante as leituras; falemos-lhe
também nós em nossas preces. Se ouvimos obediente as suas palavras, em nós
habita Aquele a. quem oramos.
NOTAS:
1 2Cor 11,27 /
2 1]0 2,15 / 3 Ef 6,12 / 4 2Cor 5,19
5 SI 138,12.
A ressurreição de nosso
Senhor Jesus Cristo lê-se estes dias, como é costume, segundo cada um dos
livros do santo Evangelho. Na leitura de hoje ouvimos Jesus Cristo censurando
os discípulos, primeiros membros seus, companheiros seus: porque não criam
estar vivo aquele mesmo por cuja morte choravam. Pais da fé, mas ainda não
fiéis; mestres - e a terra inteira haveria de crer no que pregariam, pelo que,
aliás, morreriam - mas ainda não criam. Não acreditavam ter ressuscitado aquele
que haviam visto ressuscitando os mortos. Com razão, censurados: ficavam
patenteados a si mesmos, para saberem o que seriam por si mesmos os que muito
seriam graças a ele.
E foi deste modo que Pedra se mostrou quem era: quando iminente a Paixão
do Senhor, muito presumiu; chegada a Paixão, titubeou. Mas caiu em si,
condoeu-se, chorou, convertendo-se a seu Criador.
Eis quem eram os que ainda não criam, apesar de já verem. Grande, pois,
foi a honra a nós concedida por aquele que permitiu crêssemos no que não vemos!
Nós cremos pelas palavras deles, ao passo que eles não criam em seus próprios
olhos.
A ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo é a vida nova dos que crêem
em Jesus, e este é o mistério da sua Paixão e Ressurreição, que muito devíeis
conhecer e celebrar. Porque não sem motivo desceu a Vida até a morte. Não foi
sem motivo que a fonte da vida, de onde se bebe para viver, bebeu desse cálice
que não lhe convinha. Por que a Cristo não convinha a morte.
De onde veio
a morte?
Vamos investigar a origem da morte. O pai da morte é o pecado.
Se nunca houvesse pecado ninguém morreria. O primeiro homem recebeu a
lei de Deus, isto é, um preceito de Deus, com a condição de que se o observasse
viveria e se o violasse morreria. Não crendo que morreria, fez o que o faria
morrer; e verificou a verdade do que dissera quem lhe dera a lei. Desde então,
a morte. Desde então, ainda, a segunda morte, após a primeira, isto é, após a
morte temporal a eterna morte. Sujeito. a essa condição de morte, a essas leis
do inferno, nasce todo homem; mas por causa desse mesmo homem, Deus se fez
homem, para que não perecesse o homem. Não veio, pois, ligado às leis da morte,
e por isso diz o Salmo: "Livre entre os mortos" 1.
Concebeu-o, sem concupiscência, uma Virgem; como Virgem deu-lhe à luz,
Virgem permaneceu. Ele viveu sem culpa, não morreu por motivo de culpa,
comungava conosco no castigo mas não na culpa. O castigo da culpa é a morte.
Nosso Senhor Jesus Cristo veio morrer, mas não veio pecar; comungando conosco
no castigo sem a culpa, aboliu tanto a culpa como a castigo. Que castigo
aboliu? O que nos cabia após esta vida. Foi assim crucificado para mostrar na
cruz o fim do nosso homem velho; e ressuscitou, para mostrar em sua vida, como
é a nossa vida nova. Ensina-o o Apóstolo: "Foi entregue por causa dos
nossos pecados, ressurgiu por causa da nossa justificação" 2.
Como sinal disto, fora dada outrora a circuncisão aos patriarcas: no
oitavo dia todo indivíduo do sexo masculino devia ser circuncidado. A
circuncisão fazia-se com cutelos de pedra: porque Cristo era a pedra. Nessa
circuncisão significava-se a espoliação da vida carnal a ser realizada no
oitavo dia pela Ressurreição de Cristo. Pois o sétimo dia da semana é o sábado;
no sábado o Senhor jazia no sepulcro, sétimo dia da semana. Ressuscitou no
oitavo. A sua Ressurreição nos renova. Eis por que, ressuscitando no oitavo
dia, nos circuncidou.
É nessa
esperança que vivemos. Ouçamos o Apóstolo dizer: "Se ressuscitastes com
Cristo..." 3 Como ressuscitamos, se ainda morreremos? Que quer dizer o
Apóstolo: "Se ressuscitastes com Cristo?" Acaso ressuscitariam os que
não tivessem antes morrido? Mas falava aos vivos, aos que ainda não morreram...
os quais, contudo, ressuscitaram: que quer dizer?
Vede o que ele afirma: "Se ressuscitastes com Cristo, procurai as
coisas que são do alto, onde Cristo está assentado à direita de Deus, saboreai
o que é do alto, não o que está sobre a terra. Porque estais mortos!"
É o próprio Apóstolo quem está falando. Ora, ele diz a verdade, e,
portanto, digo-a também eu... E por que também a digo? "Acreditei e por
causa disto falei" 4.
Se vivemos bem, é que morremos e ressuscitamos. Quem, porém, ainda não
morreu, também não ressuscitou, vive mal ainda; e se vive mal, não vive: morra
para que não morra. Que quer dizer: morra para que não morra? Converta-se, para
não ser condenado.
"Se ressuscitastes com Cristo", repito as palavras do
Apóstolo, "procurai o que é do alto, onde Cristo está assentado à direita
de Deus, saboreai o que é do alto, não o que é da terra. Pois morrestes e a
vossa vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, que é a vossa
vida, aparecer, então também aparecereis com ele na glória". São palavras
do Apóstolo. A quem ainda não morreu, digo-lhe que morra; a quem ainda vive
mal, digo-lhe que se converta. Se vivia mal, mas já não vive assim, morreu; se
vive bem, ressuscitou.
Mas, que é viver bem? Saborear o que está no alto, não o que sobre a
terra. Até quando és terra e à terra tornarás? Até quando lambes a terra?
Lambes a terra, amando-a, e te tornas inimigo daquele de quem diz o Salmo:
"os inimigos dele lamberão a terra" 5.
Que éreis vós? Filhos de homens. Que sois vós? Filhos de Deus.
O filhos dos homens, até quando tereis o coração pesado? Por que amais a
vaidade e buscais a mentira?
Que mentira
buscais? O mundo.
Quereis ser felizes, sei disto. Dai-me um homem que seja ladrão,
criminoso, fornicador, malfeitor, sacrílego, manchado por todos os vícios,
soterrado por todas as torpezas e maldades, mas não queira ser feliz. Sei que
todos vós quereis viver felizes, mas o que faz o homem viver feliz, isso não
quereis procurar. Tu, aqui, buscas o ouro, pensando que com o ouro serás feliz;
mas o ouro não te faz feliz. Por que buscas a ilusão? E com tudo o mais que
aqui procuras, quando procuras mundanamente, quando o fazes amando a terra,
quando o fazes lambendo a terra, sempre visas isto: ser feliz. Ora, coisa
alguma da terra te faz feliz. Por que não cessas de buscar a mentira? Como,
pois, haverás de ser feliz? "O filhos dos homens, até quando sereis
pesados de coração, vós que onerais com as coisas da terra o vosso coração?"
6 Até quando foram os homens pesados de coração? Foram-no antes da vinda de
Cristo, antes que ressuscitasse o Cristo. Até quando tereis o coração pesado? E
por que amais a vaidade e procurais a mentira? Querendo tornar-vos felizes,
procurais as coisas que vos tornam míseros! Engana-vos o que desejais, é ilusão
o que buscais.
Queres ser feliz? Mostro-te, se te agrada, como o serás. Continuemos ali
adiante (no versículo do Salmo): "Até quando sereis pesados de coração?
Por que amais a vaidade e buscais a mentira?" "Sabei" - o quê? -
"que o Senhor engrandeceu o seu Santo" 7.
O Cristo veio até nossas misérias, sentiu a fome, a sede, a fadiga,
dormiu, realizou coisas admiráveis, padeceu duras coisas, foi flagelado,
coroado de espinhos, coberto de escarros, esbofeteado, pregado no lenho,
transpassado pela lança, posto no sepulcro; mas no terceiro dia ressurgiu,
acabando-se o sofrimento, morrendo a morte. Eis, tende lá os vossos olhos na
ressurreição de Cristo; porque tanto quis o Pai engrandecer o seu Santo, que o
ressuscitou dos mortos e lhe deu a honra de se assentar no Céu à sua direita.
Mostrou-te o que deves saborear se queres ser feliz, pois aqui não o poderás
ser. Nesta vida não podes ser feliz, ninguém o pode.
Boa coisa a que desejas, mas não nesta terra se encontra o que desejas.
Que desejas? A vida bem-aventurada. Mas aqui não reside ela.
Se procurasses ouro num lugar onde não houvesse, alguém, sabendo da sua
não existência, haveria de te dizer: "Por que estás a cavar? Que pedes à
terra? Fazes uma fossa na qual hás de apenas descer, na qual nada
encontrarás!"
Que responderias a tal conselheiro? "Procuro ouro". Ele te
diria: "Não nego que exista o que desejas, mas não existe onde o
procuras".
Assim também, quando dizes: "Quero ser feliz" . Boa coisa
queres, mas aqui não se encontra. Se aqui a tivesse tido o Cristo, igualmente a
teria eu. Vê o que ele encontrou nesta região da tua morte: vindo de outros
paramos, que achou aqui senão o que existe em abundância? Sofrimentos, dores,
morte. Comeu contigo do que havia na cela de tua miséria. Aqui bebeu vinagre,
aqui teve fel. Eis o que encontrou em tua morada.
Contudo, convidou-te à sua grande mesa, à mesa do Céu, à mesa dos anjos,
onde ele mesmo é o pão. Descendo até cá, e tantos males recebendo de tua cela,
não só não rejeitou a tua mesa, mas prometeu-te a sua.
E que nos diz
ele?
"Crede, crede que chegareis aos bens da minha mesa, pois não
recusei os males da vossa".
Tirou-te o mal e não te dará o seu bem? Sim, da-lo-á. Prometeu-nos sua
vida, mas é ainda mais incrível o que fez: ofereceu-nos a sua morte. Como se
dissesse: "À minha mesa vos convido. Nela ninguém morre, nela está a vida
verdadeiramente feliz, nela o alimento não se corrompe, mas refaz e não se
acaba. Eis para onde vos convido, para a morada dos anjos, para a amizade do
Pai e do Espírito Santo, para a ceia eterna, para a fraternidade comigo; enfim,
a mim mesmo, à minha vida eu vos conclamo! Não quereis crer que vos darei a
minha vida? Retende, como penhor a minha morte".
Agora, pois, enquanto vivemos nesta carne corruptível, morramos com
Cristo pela conversão dos costumes, vivamos com Cristo pelo amor da justiça.
Não haveremos de receber a vida bem-aventurada senão quando chegarmos
àquele que veio até nós, e quando começarmos a viver com aquele que por nós
morreu.
NOTAS:
1 SI 87 / 2
Rm 4,25 / 3 Cl 3,1 / 4 SI 115 / 5 SI 71,9 /
6 SI 4,3 / 7
Ibid
FONTE:
GOMES, C.
Folch Antologia dos Santos Padres. São Paulo- Ed. Paulinas
1979
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