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Estudo
do Ícone da Natividade do Senhor
Ícone de Theófanes de Creta - 1546
Monastério Stavronikita - Monte Athos - Grécia)
Introdução
Este ícone segue o esquema
tradicional da representação do nascimento de Jesus Cristo, segundo a Igreja
Ortodoxa, que reúne em um mesmo ícone narrações dos Evangelhos e dos Apócrifos.
O ícone da Natividade é o prólogo
dessa grande epopéia que é a história da Salvação. E, como no Prólogo dos
poemas encontramos sintetizados os pontos destacados do que se cantará, assim,
no ícone da Natividade contemplamos o conjunto dos mistérios do cristianismo: a
encarnação, a morte e a ressurreição.
«Este é o acontecimento pelos quais
os Patriarcas suspiravam, os Profetas predisseram e os justos desejavam ver».
(S. João Crisóstomo, Sermão 34).
«Deus se manifestou nascendo, a
Palavra toma expressão, o invisível se faz visível, o inatingível se faz
palpável, o intemporal entra no tempo, o Filho de Deus se torna Filho do
Homem». S. Gregório Naziazeno. Sermão 38
«Que podemos te oferecer, ó Cristo, por
nos teres te mostrado sobre a terra, como homem? Cada uma de tuas criaturas
traz seu testemunho de gratidão: os Anjos te oferecem o canto, os céus a
estrela, os Magos seus presentes, os Pastores seu assombro, a Terra uma gruta,
o deserto um presépio. Nós, porém oferecemos-te uma Mãe Virgem».
Hino
de Vésperas - atribuído a Anatólio
A montanha
A cena está enquadrada por uma montanha
em forma piramidal que se estende por todo espaço visual do ícone. É a montanha
messiânica tal como Isaias o profetizou: «O Monte do Senhor será erigido acima
das montanhas e será mais alto que as colinas"... «Ele agitará a mão até o
Monte da Filha de Sião, até a Colina de Jerusalém»... «Não se terá mais dano
nem mal sobre meu monte santo, porque o país estará cheio do conhecimento do
Senhor» (Is 2, 2; 10, 32; 11, 9)
A Montanha do Senhor,
resplandecente, vem ao mundo, transpassa e transcende cada colina e cada
montanha, quer dizer, a altura dos Anjos e dos homens. A montanha é Cristo.
Em alguns casos o monte apresenta
dois cumes: as duas naturezas de Cristo, a humana e a divina.
O centro da cena é ocupado por uma
plataforma onde Maria esta ajoelhada, pela gruta do nascimento na que Deus se
manifesta. Nesta Montanha, o Novo Sinai, de onde Deus se revela, Deus é quem
está à entrada da gruta e a humanidade, simbolizada por Maria, pode ver face a
face a Deus sem cobrir o rosto, pois Deus está sob o véu da carne em Jesus
Cristo. Deus se fez homem. Deus se fez visível e acessível ao homem.
O contrário se passou na revelação
do Sinai a Moisés: este se esconde na gruta e se cobre diante de Deus, só o
pode ver a sombra, já que o homem não pode resistir ao esplendor e a beleza
divina.
Por isso Deus se encarna, para
fazer-se acessível ao homem, e para que este O possa ver sem medo e nem ter de
cobrir seu rosto.
Os anjos
Acima se fazem representar um grupo
de anjos que cantam, contemplando o céu e a terra: «Glória a Deus nas alturas e
na Terra paz aos homens que o Senhor ama». Representam a natureza angélica que
acode o evento extraordinário; um deles destacado do grupo, encontra-se falando
com um ou mais pastores.
Este anjo anuncia ao pastor a grande
alegria da salvação e o faz estendendo a mão e fazendo o sinal da encarnação
trinitária: dois dedos juntos e três tocando-se pelas pontas. Seu significado é
a salvação vinda de Deus Uno e Trino, através da encarnação de Cristo.
O pastor e o Anjo estão em diálogo.
Com a encarnação de Jesus Cristo, o mundo divino e o humano iniciam um diálogo
que nunca mais se perderá. Deus estará no meio dos homens Ele mesmo lhes
falará, e cada homem poderá falar diretamente com Deus, sem intermediários.
O pastor
O Pastor, ou pastores, representam o
povo «que caminha nas trevas e que viu uma grande luz» (Is 9,1). Com efeito,
havia aparecido a luz sobre os habitantes da terra de sombras e de morte. Disse
o anjo: «Anuncio-lhes uma grande alegria, lhes trago uma boa notícia, para todo
o povo, pois nasceu para vós um Salvador, que é o Messias, o Senhor, na cidade
de Davi. Isto tereis como sinal: encontrareis um menino envolto em panos e
reclinado num presépio» (Os 10,12; Is 61,11).
Aos pés do Pastor, há um menino
tocando uma flauta, é antítese da música celestial e faz referência a um hino
de matinas da vigília: «interrompendo o som das flautas dos pastores, a armada
celestial gritava»...
A gruta
No centro do ícone se abre uma gruta
que mostra as entranhas da montanha. Representa o inferno e a morte sobre as
quais encontra-se Cristo, e que tentam engoli-Lo. É a mesma voracidade obscura
que se fala no ícone da Ressurreição.
A Virgem
Fora da gruta está representada a Virgem,
a Teotókos. Geralmente está recostada, algumas vezes sentada e outras, ainda,
joelhada, como neste caso. Esta postura última denota a influência ocidental.
A Virgem geralmente não olha para o
menino, mas para o infinito, custodiando e refletindo em seu coração tudo
aquilo que de extraordinário aconteceu com ela. (Lc 2,19) Sobre seu rosto se lê
a tristeza humana de uma mãe que queria dar algo maior a seu Senhor e parece
dizer:
«Quando
Sara trouxe ao mundo um filho, este recebeu vastos territórios como homenagem; eu,
ao contrário, não tenho nada: emprestaram-me esta gruta onde quiseste habitar, meu
pequeno, Deus antes dos séculos» (Romano o Melode XIII,14).
A
Mãe de Deus é colocada próxima ao coração da Montanha; «representa a luz que
emana da sarça do Sinai». (S. Gregório de Nicéia, sermão 21,119)
Maria estava vestida com seu manto
donde as estrelas (frente a ambos os ombros) proclamam sua virgindade.
Representam o sinal da santificação trabalhada nela pela Trindade para que
fosse progenitora de Deus.
Adora a seu Filho e Deus em atitude
de serva do Senhor, disposta a fazer tudo o que o diga, assim as expressam suas
mãos cruzadas no peito.
O Menino
Entre a Virgem e a entrada da Gruta
aparece o Menino envolto em panos colocado mais que em um presépio, em um
sepulcro de forma tradicionalmente retilíneo. O Menino está envolto como numa
mortalha. Evoca a figura mortuária, em concreto, a imagem de Lázaro que o
presépio-sarcófago contribui para o evidenciar.
«Está envolto em panos por quantos
haviam revestido então as túnicas da piedade» (Romano o Melode XIII-14 e Gn
3,21).
Os panos serão para os pastores
sinal de reconhecimento do menino, como o serão sinal tangível da Ressurreição
para as mulheres, Pedro e João ante o sepulcro vazio. (Lc 2, 13; Jo 20, 1ss)
Os panos do menino são as vendas
mortuárias que, depois, aparecerão espalhadas pelo sepulcro, quando
ressuscitou. Este Menino é, doravante, o que vai vencer a morte com sua
Ressurreição. Nascemos para morrer e ressuscitar com Ele.
Já desde o princípio da Vida de
Jesus, a Igreja o proclama Vencedor da Morte na representação de seu
nascimento. É Ele o Sol das trevas que nos tirou dos braços da morte.
[...]
«Seu corpo foi como um servo, jogado nos braços da morte, a quem o dragão
infernal esperava devorar; tivera, no entanto, que vomitar aqueles que já havia
devorado. Ele venceu a morte para sempre e secou as lágrimas dos olhos de
todos». (S. Cirilo de Jerusalém. Catequese 12, 15).
«Da
Virgem nasceu o Rei da Glória, revestido de púrpura de sua carne, que visitou
os prisioneiros e proclamou a libertação aos quantos habitavam nas sombras».
(S. João Damasceno, sermão 54).
«Como
Jonas, no ventre da baleia, Cristo entrou na face da morte, como novo Adão,
para recuperar a dracma perdida: o gênero humano. Os céus se inclinam até a
profundeza dos abismos, nas profundas sombras do pecado. Chama portadora de
luz, a carne de Deus, dissipa as sombras do inferno sob terra. A luz
resplandece nas trevas, mas as sombras não a viram». (Orígenes).
Animais
Os animais representam a palavra do
Profeta Isaías: «O boi conhece seu dono e o asno o presépio de seu dono; Israel,
no entanto, não entende, meu povo não tem conhecimento» (Is 1,3).
José
Na parte inferior aparece José
pensativo e afastado. Diante de um homem vestido com peles e apoiado em um
bastão. José personifica o drama humano: o homem ante o mistério. José se
interroga frente ao mistério.
Demônio-pastor
A literatura apócrifa atribui a José
esta dúvida, e o Pastor que fala com ele, apoiado num bastão, alimenta e
confirma os pensamentos de José, já que é o diabo que suscita uma tormenta de
sentimentos encontrados no interior de José. O diabo, vestido com peles de
cabra, o tenta sobre a virgindade de Maria, dizendo-lhe, segundo os apócrifos:
«como este bastão que eu levo não pode produzir brotos, do mesmo modo, um velho
como tu não pode engendrar e uma virgem não pode engravidar».
Como todo tentador é insinuante,
amável e sedutor, aparece o diabo sob forma tranquila, coloquial e amistosa com
José. Ele está vulnerável sobre a decisão que tem de tomar. Toda tentação nos
faz vacilar, se nosso olhar não está posto em Cristo e sobre nós mesmos.
A árvore
A tradição dá ao pastor o nome de
Tirso. Na antiguidade pagã, tirso era um grande bastão, atributo típico de
Dionísio e de seus sátiros e bacantes, entidades representativas do paganismo e
do racionalismo.
Junto ao pastor-demônio, há um
arvoredo que brota de um tronco seco. «Um rebento brota do tronco de Jessé; um
broto surge de suas raízes. Sobre ele repousará o Espírito do Senhor; por ele o
Senhor resgatará o seu povo» (Is 11, 1-2)
O Arvoredo representa uma resposta
às palavras do pastor-demônio. «Deus não é escravo das leis que regulam a
vegetação; é seu Criador e, se fez brotar a vara de Araão, muito mais, pode
fazer com que uma Virgem floresça e dê frutos». (Cirilo de Jerusalém. Catequese
XII, 28)
Nuvem
Na parte superior do ícone
apresenta-se uma nuvem que se retira para o céu. Os apócrifos contam que «no
momento do nascimento, a nuvem que recobria a gruta se dissipou e apareceu uma
grande luz que a vista não era capaz de suportar. Logo esta luz se diminuiu
lentamente e apareceu o menino». Proto-evangelho de São Tiago 19, 2
A nuvem evoca a presença de Deus que
pôs nas sombras seu esconderijo. (Sl 17, 12) A nuvem é de grande tradição e de
grande simbolismo no Antigo Testamento, e sempre revela a presença misteriosa
de Deus. A Nuvem guia o povo de Israel pelo deserto até a Terra Prometida; a
nuvem revela Deus no monte Sinai; no Monte Tabor, Jesus se transfigura
tornando-se resplandecente como uma nuvem; na Ascensão, a nuvem vela a visão do
Ressuscitado.
Da nuvem, o céu aberto faz descer um
facho de luz até a terra que se divide em três raios em direção ao o menino: é
a Santíssima Trindade que se manifesta como luz. Ao mesmo tempo representa a
estrela.
Em alguns ícones aparece dentro uma
pomba do Espírito, e em outros uma cruz: Jesus nasce para morrer e ressuscitar.
«O Filho de Deus é o ícone vivo e
idêntico do Pai através do qual tivemos acesso ao Pai. Nossa mente, iluminada
pelo espírito, olha o Filho e, no Filho, como num ícone, contempla o Pai»
(Macário Crisocéfalo).
A Estrela
A estrela é a realização da Profecia
de Isaias: «Levanta-te e resplandece, pois chegou tua luz; e a glória do Senhor
amanhece sobre ti, entre a obscuridade envolve a terra e as trevas dos povos; sobre
ti vem a aurora do Senhor» (Is 60,1-4).
Assombro do criado
Está representado pelas ovelhas ou
cabras que estão diante do menino que toca flauta e olham para o alto. Eles
expressam o assombro da Criação diante de tão grande mistério: Deus se fez
homem. Ninguém consegue prosseguir em sua ação natural, tal é o estupor e o temor
do Universo que reconhece a presença de Deus e se extasia ante a sua
misericórdia.
A Criação fica transtornada diante
de tanta maravilha. Isto vem narrado nos apócrifos: Proto-evangelho de São
Tiago 18, 1-3 e no Hino das Grandes Horas da Natividade.
Os magos
Sob os Anjos, que cantam a glória,
aparecem à cavalo os três reis do Oriente, guiados por uma estrela que olham e
que tem a forma de cruz dourada e gloriosa; seguem Aquele que morrerá e
ressuscitará e dará a toda humanidade a entrada para a vida eterna.
Os magos representam os homens
excluídos da Antiga Aliança que o Novo Reino Messiânico ha de incluir. Os
santos, os justos, ainda que não sejam de Israel, são agradáveis a Deus, e
Cristo estende sua predileção e primogenitura a todos os povos, representados
pelos magos.
Os magos prefiguram as mulheres
miróforas que, a caminho do sepulcro se animavam dizendo: «Apreciemo-No e O
adoremos como os Magos, e levaremos como presentes unguentos Àquele que já não
está envolto em panos, mas em uma mortalha» (Ode VI do Cânon das matinas da
Ressurreição).
Os magos, por sua vez, como as
miróforas, se converteram em «divinas testemunhas que, ao retornar para as suas
terras, anunciaram Cristo a todos». (Hino Akasthitos) de Romano Melode XII, 21.
«Os Magos viram nas mãos da Virgem Aquele
que plasmou com as suas mãos os homens; e compreendendo que era o Senhor, ainda
que tivesse tomado a forma de servo,
apressaram-se
a honrá-lo com um tríplice dom, como o Hino dos Serafins que o proclama três
vezes Santo» (Hino Akasthitos - de Romano, o Melode XII, 21.).
A tradição iconográfica transmitiu
uma constante sobre os magos: a idade. Apresentam-no com semblantes: jovem,
adulto e velho, representando assim as três idades do homem em uma única
síntese visual.
Comadre-Eva
Na parte inferior deste ícone há
duas mulheres que preparam o banho do menino. Isto é influência da iconografia
helenística que tanto influenciou a Arte Cristã.
Tem ainda seu desenvolvimento
cristão nos Apócrifos, na verdade, no Proto-evangelho de Santiago, 19 e 20. Ali
se narra como uma parteira testemunhou a maternidade divina de Maria, e Salomé
certifica a Virgindade de Maria e presta a ela sua ajuda banhando o Menino.
Segundo a tradição, a comadre é Eva
que, junto a Salomé, se ocupa do Menino. Eva dá a vida mortal, Maria a imortal.
Maria põe nas mãos de Eva a Vida Imortal: seu Filho.
Neste ícone, o menino se apresenta
com feição de gente maior, com entradas nos cabelos porque é desde o princípio,
verdadeiramente homem.
O Menino Jesus do banho nas mãos de
Eva, acentua sua debilidade e morte, sua humanidade. Como homem necessita de
cuidados, atenções e cobre suas necessidades. É, portanto, homem, não só na aparência,
mas, realmente. É a síntese de todo o ícone: Jesus Cristo, Deus e Homem.
Banho
A Imagem do banho ganhou um
significado todo especial: a imagem do Batismo. O recipiente onde o menino é
banhado tem a forma de uma pia batismal, prefiguração de sua morte e descida
aos infernos.
O banho é como um enterro num
sepulcro líquido, o mesmo em que está imerso o Cristo no ícone da Epifania.
«No Sacramento do Batismo, o ato de
imergir nas águas e voltar a sair, simboliza a descida aos infernos e a saída
desta morada junto com Cristo» (S. João Crisóstomo Homilia 40).
«Pelo batismo morremos, para ressuscitar
com Ele» (Rm 6, 1-4).
Fonte: https://www.ecclesia.org.br/biblioteca/iconografia/meditando_natividade.html
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